Língua e Cidadania. O Português No Brasil
Língua e Cidadania. O Português No Brasil
Língua e Cidadania. O Português No Brasil
9 "788571"131095
o
..•......••
C/)
~
(/)
O)
lro
::::J
..•......•• 19C,.,)"
C\J
c::
J:!2
'-
ro
~
..o
E
O)
o
>- ..•......•• cr)
.S o o:
(/)
o
>-
a.::
-
ro o: ~ J:!2 E
c:
(/)
c:: -..J
ro o u x
E o
~ Cb
C/)
~ O)
::::J "'O .-
"'O ~
::::J
C!J
o
"'O
ro
"'O
ro
"'O
> E:
:::J
~
..•.....•
c::
c::
C/)
a
U
O)
>-
(/)
u
ro
'o
>-
-
O) E ..o
o ~ (/)
E
(/) Q ~ E:- -~~
a.::
-
"'O o o O)
o ~ ~ Cb Cb
E O)
::::J
"--
(/)
"'O
Q. "'O ~ t::1) ~ O) Q. -.
-
co c:n Cb E ::::J
-.-
-
O) ::::J
..•......•• ro E "-- Cb .~
§ c:: ,O) c::J cr. -
o
~
Q.
(/)
LlJ
::::J
c:n
c:
ro
u
c:
o
..•......••
::::J
ro
-2
~
C/)
~
:§2
'Q
t::1)
·S
~
.g
..o
E -
co
co
c
~
:> -
=>
O) Q)
,O) "'O ---.J 'LlJ
I-.::::: ~ -..J ~ "'O "--
ro -
~
EDUARDO GUIMARÃES
ENI PUCCINELLI ORLANDI
(Orgs.)
LÍNGUA E CIDADANIA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) O Português no Brasil
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Guimarães, Eduardo
Orlandi, Eni Puccinelli
Língua e cidadania: o português no Brasil! Eduardo
Guimarães, Eni Puccinelli Orlandi (orgs.). - Campinas, SP :
Pontes, 1996. - (história das idéias lingüísticas)
Bibliografia.
ISBN 85-7113-109-2
CDD-469.798
(O19) 253,0769
II)I./ÍI
IIII)IIIJS~II 1111 Ill'IIslI
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
Identidade Lingüística 9
Eduardo Guimarães e Eni Puccinelli Orlandi
10 Sinopse dos Estudos do Português no Brasil: o Esta obra é mais uma publicação com resultados dos estudos que se vêm
A Gramatização Brasileira 127 desenvolvendo há alguns anos no projeto "História das Idéias Lingüísticas:
Eduardo Guimarães Construção de um Saber Metalingüístico e a Constituição da Língua Nacional".
Entre as várias tarefas que um projeto como este se formula, tratar as idéias
11 A Gramática de Anchieta e as Partes do Discurso 139 lingüísticas é tratar a questão da língua, dos instrumentos tecnológicos a ela li-
José Horta Nunes gados e da sua relação com a história de um povo que a fala.
Com esta posição reunimos aqui textos organizados em três partes:
O Dicionário e o Processo de Identificação do Sujeito 151 Cidadania; A Língua no Brasil; Instrumentos Lingüísticos.
Matiza Vieira da Silva
1 Não há como tratar a história das idéias fora das condições históricas.
Em outras palavras, não há idéias ou filosóficas ou científicas senão aquelas
que se constituem pela prática humana. Deste modo falar da história das idéias
lingüísticas no Brasil é tratar da constituição de um saber lingüístico (metalin-
güístico) nas condições próprias da história brasileira: a história de uma colô-
nia portuguesa que se torna um Estado independente no início do século XIX.
Nesta história é crucial a questão da língua nacional, ou seja, a língua que
funciona no Brasil e que, por suas especificidades, faz parte do processo de
constituição da nacionalidade.
Deste modo, tem um interesse específico o estudo dos instrumentos tec-
nológicos de gramatização, no sentido em que este termo é definido por
Auroux. Com suas próprias palavras: "Por gramatização deve-se entender o
processo que conduz a descrever e a instrumentar uma língua na base de duas
tecnologias, que são ainda hoje os pilares de nosso saber metalingüístico: a
gramática e o dicionário" (Auroux, 1992,65). Observar a constituição destes
instrumentos tecnológicos é tratar do modo como a sociedade brasileira cons-
trói elementos de sua identidade. A produção de tecnologias é parte do modo
como qualquer sociedade se constitui historicamente. E a produção tecnoló-
gica relacionada com a linguagem é, não há dúvida, lugar privilegiado de
observação do modo como uma sociedade produz seu conhecimento relati-
vamente à sua realidade.
9
I'1101VIIIdestes instrumentos encontramos a constituição de uma descrição que há um trabalho no sentido de demonstrar a especificidade do Português
11111'111\11111 no Brasil que, antes de ser uma questão brasileira, é uma questão brasileiro. Em seguida vem "A Gramática de Anchieta e as Partes do Discurso"
II I illl'qllese. A gramatização de uma língua indígena é o primeiro momento (Capítulo 11) que aborda o crucial tema das partes do discurso na primeira
dll 1I111i1lse de linguagem em território brasileiro (ou melhor, português). gramática que se escreve no Brasil, ainda no século XVI, como instrumento para
()~ estudos de linguagem passam a se caracterizar como uma questão o ensino de uma língua indígena. No Capítulo 12, o terceiro Capítulo desta parte,
III uxilciru LIpartir do século XIX, quando se coloca a questão do Português analisam-se aspectos do primeiro dicionário monolíngüe da língua portuguesa,
dI) Brasil e não somente a questão do Português. Só a partir de então o estu- o dicionário de Moraes. Esta análise se faz sobre verbetes como analfabeto, alfa-
do do Português passa a afetar a constituição das idéias lingüísticas no betização, etc. percorrendo as reedições do dicionário. É possível ver como este
BI.lsil. Antes a questão da linguagem era só um modo de apropriação do instrumento produz sentidos sobre a questão de ter ou não o domínio da língua
111uxil pela Europa. escrita. Assim retoma a questão da escola e da cidadania.
"orno se disse, a presente obra se organiza em três partes. Na primeira
procura-se mostrar a configuração da cidadania no Brasil, pois esta configuração 2 Os resultados das análises feitas nestes textos indicam vários caminhos
l; elemento particularmente importante das condições políticas de vida no Brasil.' de interpretação. Vamos aqui tomar um deles.
Na segunda parte descreve-se a língua no Brasil. Mais especificamente, Pelo conjunto dos textos sobre a cidadania, na primeira parte do livro,
descreve-se (no texto de Fernando Tarallo) a especifidade estrutural da língua podem-se ver aspectos da constituição da cidadania brasileira. No texto de
110 Brasil, a partir do final do século XIX.2 Ao mesmo tempo, estudam-se J.H. Nunes (primeiro Capítulo) vê-se a constituição da cidadania brasileira na
questões relacionadas à língua tais como: a) a formação, no século XVIII, do tensão entre o civilizado e o ignorante. Nesta tensão o Estado e a Igreja desen-
imaginário de que a língua do Brasil é o Português de Portugal, nação que con- volvem a ação evangelizadora, civilizadora, heróica. Esta tensão se desloca
quistou outros povos (é o caso do apagamento da língua geral que se falou no para dentro das relações portuguesas: entre o português nobre e o não nobre.
Brasil amplamente até o século XVIII, de que fala Bethania Mariani no Tal como mostra S. Lagazzi (Capítulo 2), na sua análise da Guerra dos
"apítulo 7; b) a ortografia e os acordos ortográficos (estudados por Souza e
Mascates. Aqui o português nobre é o brasileiro, o pernambucano, enquanto
Mariani no Capítulo 6; c) o ensino de língua no Brasil (no texto de Solange que os comerciantes, os mascates, são os forasteiros. Ao mesmo tempo o por-
lullo, Capítulo 8) e d) a relação da literatura com a questão da língua
tuguês nobre é o que é natural de Pernambuco, o natural no Brasil. Esta marca,
nacional, que se pode entrever no texto de Marisa Lajolo no Capítulo 9.
natural (nascido) no Brasil, é, basicamente, a característica do brasileiro no
Na terceira parte trata-se da construção de instrumentos tecnológicos como
século XIX, na Constituição do Império de 1824. E isto ligado ao fato de que
gramáticas e dicionários. Em "Sinopse dos Estudos do Português no Brasil"
a cidadania (ver "Os sentidos de Cidadão no Império e na República", no
(Capítulo 10) tem-se uma visão geral da produção de estudos sobre o Português
Capítulo 3) aparece como forma de caracterizar os brasileiros como os nasci-
IlO Brasil, notadamente a partir da segunda metade do século XIX, momento em
dos no Brasil não escravos, que são, ao mesmo tempo, súditos do imperador.
Ou seja, a cidadania está submetida a um poder que nasce fora dela. E esta ca-
Parte dos textos deste livro foram apresentados, em Paris, em fevereiro de 1991, no Colóquio racterística se mantém, mesmo na Constituição republicana,' em que as Forças
"Lu citoyenneté au XIXeme siecle au Brésil ct cn France", realizado dentro do convênio Armadas assumem o lugar do imperador como lugar externo que configura e
Uuicamp/Univ. de Paris VII, coordenado por Eni Orlandi e M. Perrot. São eles: Processos de instabiliza a cidadania. Isto relativamente ao último texto da primeira parte (de
Constituição do Cidadão Brasileiro: Discursividade da moral nos Relatos dos Viajantes e Freda Indursky, Capítulo 4) mostra as condições de sentido que presidiram por
Missionários (José Horta Nunes); Guerra dos Mascates: A Constituição do Cidadão Brasileiro tanto tempo o poder de arbitrar a vida brasileira que tiveram as Forças
no scculo XVIII (Suzi Lagazzi); Os Sentidos do Cidadão no Império e na República do Brasil Armadas. De tal modo que o cidadão do período da ditadura dos anos 60 a 80
Wdllardo Guimarães); O Cidadão na IlIa. República Brasileira (Freda Indursky); é o que tem obrigações com o governo militar.
1hllgnoslicalH.louma Gramática Brasileira: O Português daquém e dalém Mar ao Final do
Estas coerções da cidadania são trabalhadas pela construção da nacionali-
SI" 1110XIX (Fcrnando Tarallo); O Ensino da Língua "Materna" no Brasil do Século XIX: a
dade. Desta construção faz parte a questão lingüística. Assim, pode-se ver um
111,1\' ()ulia (Solange Gallo); Oralidade, um Passaporte para a Cidadania Literária Brasileira
I MIIII'" l.molo),
3 A questão da ordem imposta por um lugar externo pode também ser observada nos desliza-
, \ I, 'PI'1I11du lfugua que se falava no país, nessa época, é interessante ler o trabalho de Bethania
mentos de sentido que sofre a máxima positivista "Ordem e Progresso" desde o discurso posi-
~lllIllIlIi,''('(' de SOU7asobre as três formações discursivas: a dos literatos, a dos gramáticos,
·1ti,,, 111.1111111' "I H22, Pátria Independente: Outras Palavras", in Organon, Porto Alegre,
tivista francêse suas derivas no discurso positivistabrasileiro,re-signiflcadopelo apostolado c
111_
I"
lI( ''', 1111
I,' 111
Pll'lo (l,11:texto foi inicialmenteapresentado no colóquio,já referido, "La citoyen-
\ I \"1111'"~ck au Brésil et en France".
pelos militares. Para tal, cf. "Os Sentidos positivos do Cidadão Brasileiro, E.P. OrJandi (1992).
Este texto foi inicialmente apresentado no colóquio, já referido, "La citoyenneté au XIXcme
siêcle au Brésil et en France".
lil
II
li IIIi1dllll dI dl'S<':1
ição lingüística que busca a especificidade do léxico Celso Cunha e Lindley Cintra.
l"il~lkilll '1111'as gramáticas e dicionários que aqui se fazem, a partir dos anos É interessante observar que a instalação de um lugar para uma gramática
I HtlO, pllll urum caracterizar. Então, a gramatização brasileira se dá como a científica se formula na Gramática Secundária de Said Ali (1924). Nela, ()
l;fllI~IIII~':'IO
de um conhecimento sobre a língua no plano das diferenças lexi- autor estabelece uma distinção entre gramática descritiva prática de um lado e
1~1I1. (11lmgua é um léxico) e de uma procura de outras fontes de saber lingüís- descritiva científica, de outro. Ele já constituía, assim, uma idéia que distingue
1110drsuntas das portuguesas (leia-se da gramática filosófica) e das que vi- sua posição daquela da história de nossas gramáticas: mesmo uma gramática
111111111 através de Portugal. "norrnativa" precisa se basear numa descrição da língua e não em uma políti-
ca do idioma. E é neste espaço teórico que se produz o Estrutura da Língua
I O interessante é observar, pelas análises que hoje se fazem (ver o Portuguesa de Mattoso Câmara.
(".tpllulo 5 "Diagnosticando uma Gramática Brasileira: o Português daquém e
d.i1l'111Mar ao Final do Século XIX), que nos mesmos anos 1880 o português 4 As diferenças lexicais, sintáticas, morfológicas, fonéticas do Português
do Brasil já apresenta um quadro estrutural distinto do português de Portugal no Brasil não constituem, por si, uma questão nacional.
1'111latos importantes como a questão das relativas, Especificidade que nossos A constituição da língua nacional no Brasil é um efeito construído pela
lingüistas da época não chegaram a tratar. história contraditória da gramatização brasileira: No sentido mesmo de que a
Por outro lado desta época é a formulação, de Antonio de Macedo Soares, gramatização de uma língua é parte da história da língua, não sendo, simples-
do lugar do dilema entre a unidade da língua da colônia e do colonizador. Como mente, uma produção de instrumentos sobre ela. As tecnologias não são só
está em "Sinopse dos Estudos do Português no Brasil (Capítulo 10) a questão resultado de um saber, são também parte dos fatos para os quais, ou a partir dos
.ra escrever no Brasil como se fala no Brasil e não como se escreve em Portugal. quais, foram produzidas. Assim a língua nacional, a língua que identifica o
Está, aí, posta a questão do embate entre o escrito e o oral como padrão. brasileiro é uma língua que tem particularidades estruturais, mas é a língua que
Muccdo Soares defende o oral como padrão do escrito, como modo de o Brasil imaginariamente o brasileiro não sabe, porque ela é, também, a língua que os
constituir sua identidade lingüística. portugueses sabem (mesmo que a língua que eles - os portugueses - falam e
A formulação de Macedo Soares está, de algum modo, relacionada com a escrevem não seja exatamente a mesma que no Brasil se fala e escreve).
presença de características da oralidade na nossa literatura (tal como mostra Quando a questão lingüística passa a ser uma questão de cidadania?
Marisa Lajolo, Capítulo 9). Parece-nos que isto se faz somente nos interstícios da sua constituição como
Este embate percorre até hoje a questão da língua no Brasil que, por questão de nacionalidade. A nação precisa de uma unidade que a identifique e
muitas vias, repõe a necessidade de unidade da escrita com Portugal. Para isso a cidadania é um dos lugares em que se trabalha esse processo de identifi-
desloca o padrão da literatura para a escrita culta. Ou seja, exclui-se do padrão cação.
(l que de oral se põe na escrita. É o processo da afirmação pela negação, tão A Língua, a Ciência e a Política estabelecem entre si relações profundas
própria às relações que derivam da colonização. Um exemplo crucial disso é e definidoras na constituição dos sujeitos e da forma da sociedade. Ao mesmo
() lato de Celso Cunha (1985) refazer sua Gramática do Português tempo em que a lingüística vai-se constituindo como ciência, a questão da lín-
Contemporâneo (1970) junto com um português, Lindley Cintra. Aqui a auto- gua é afetada pela relação do sujeito com o Estado e as polítieas gerais de um
11:1brasileiro-portuguesa afirma, normativamente, mais do que qualquer país manifestam essa interrelação, de que a forma mais visível é a formulação
descrição, a unidade de língua entre Brasil e Portugal. específica das políticas lingüísticas. A noção de política lingüística aqui
Desta forma a gramatização brasileira que se instala como uma tensão adquire um sentido outro. Ao se definir que língua se fala, com que estatuto,
entre o específico brasileiro e o modelo Português, chega ao final do século onde, quando e os modos de acesso a ela - pelo ensino, pela produção de
\ X corno a afirmação de que apesar dos séculos de mudança e diferenciação instrumentos lingüísticos, pelo acesso às publicacões, pela participação em ri-
111111\1:1, há uma unidade lingüística entre Brasil e Portugal. tuais de linguagem, pela legitimação de acordos, pela construção de institui-
1\llIhora também afirme a existência dessa unidade, Mattoso Câmara ções lingüísticas, etc. - está-se praticando as várias formas das políticas da
( I~) I') considera que a linguagem oral de cada país afeta e produz diferenças língua ao mesmo tempo em que, para identificá-Ia, se está produzindo seu co-
1111 SÜIIpadrão escrito. É esta posição que seguramente assume quando, no seu nhecimento, sua análise, e está-se dando a ela uma configuração particular.
I 11111111/(/ d« Língua Portuguesa, diz que sua descrição "Partirá do uso falado Assim como, para a sociedade em sua forma histórica, a questão funda-
I 1"11110considerado "culto", ou melhor dito, adequado às condições "for- mental é a relação entre a Unidade (o universal) necessária e a Variedade (o
111111',"dI' mrcrcâmbio lingüístico no sentido inglês do adjetivo" (1970,16).
VI SI', (,lIt:IO,como o aparecimento da primeira gramática descritiva cien- 4 A este respeito ver Capítulo 10, "Sinopse dos Estudos do Português no Brasil. A Grarnatização
lilll 11111111.1,,1alastasc de uma ação normativa homogeneizadora como a de Brasileira".
13
11\ !ljj~III/H~I,d) concreta, também para a língua é essa relação crucial e procura tornar visível o modo como se instala uma história das idéias (seja do
IAilllll"l" A, rcnciu, por seu lado, tem suas formas de praticar essa relação: formalismo, do liberalismo ou do positivismo) em conformidade com nosso
I dll:dhladc contraditória, dizem M. Pêcheux e F. Gadet (1981), se realiza sujeito histórico-social - este nosso programa de reflexão se reporta ao estu-
11I111I11"IiIH'/ltcna própria estrutura das teorias lingüísticas e na história de seus do dos fundamentos do pensamento jurídico no Brasil, ou melhor, tem sua
1,.,,"11111/10' Esta contradição trabalha, na ciência da linguagem, um equívoco base na análise dos fundamentos jurídicos na construção do imaginário social
"I~(1'''i1l10 entre o saber sobre a(da) língua e o saber sobre as(das) línguas. brasileiro. Isto de maneira modesta. Em outras palavras, procuramos estabele-
1'01 seu lado, o poder, em uma forma de Estado como a nossa, funciona cer a relação desses processos com a história da língua portuguesa, isto é,
1111111"11I0 tempo sob o modo de um sistema jurídico concentrado em um cen- vamos procurar pôr em evidência a relação entre as concepções de sociedade
11111I/lI(,O C sob o modo sociologista de uma absorção negociada da diversi- formuladas pelo pensamento jurídico no Brasil e a história da normatização do
d,lIk No caso da língua, as diferenças, reconhecidas, no entanto se anulam no português como língua standard, idioma oficial, nacional: o português
J110n'sso de constitução da identidade nacional. A igualdade (juridicamente) brasileiro. Faz parte fundamental desse conhecimento o estudo da formação de
""lllIl/ada e a absorção (politicamente) negociada da diversidade são as ca- um saber metalingüístico que acompanha (e contribui para) esse processo
IlIlll'llsticas desse jogo contraditório entre a universalização das relações histórico de constituição de uma "identidade" lingüística. A forma de fazê-lo,
un ulrcus e a modalização da igualdade em condições diversas (costumes como se pode ver neste livro, é procurar colocar questões que vinculem estu-
lonl/s, concepções ancestrais, particularismos históricos, etc.). dos da linguagem com assuntos relevantes de nossa história.
De seu lado, a constituição do pensamento lingüístico no Brasil deve ser
) É nesse espaço, pleno de equívocos, de falhas e de contradições, entre vista, tal como dissemos no início, nas condições específicas de sua história.
o conhecimento sobre a língua e o conhecimento sobre as línguas, que defi- Tomar esta posição é reconhecer, na produção do conhecimento Iingüístico
/l1/1I0S nosso trabalho de reflexão, relacionando a constituição de um saber brasileiro, mais do que uma simples influência das idéias européias. E tornar
mctalingüfstico com a formação da língua nacional no Brasil, avaliando três visível a maneira como, ao trabalhar essas idéias, em sua historicidade, ela
uuxlclos possíveis: a) o absolutista; b) o da língua literária, e c) o comunitário. constrói seu lugar próprio na história das ciências.
Além da produção de um conhecimento específico necessário ao domínio
11/1~lIístico, importa conhecer o modo de formação da língua nacional e o de
constituição de um saber metalingüístico para melhor compreender a variada Eduardo Guimarães
n.uurcza dos objetos simbólicos que estão envolvidos na formação de um país Eni Puccinelli Orlandi
,'01110 o Brasil. É da produção desses objetos e da relação estabelecida pelos
sujeitos com essa produção que resultam os sentidos atribuídos ao país assim
('(111I0aqueles que dão sentidos a esses sujeitos enquanto eles se definem em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ivlução ao seu país, nas formas que a política das relações sociais significar
m'ssa sua história, seja como súditos, seja como escravos, seja como cidadãos. AUROUX, S. A Revolução Tecnológica da Gramatiração. Campinas, Editora
A língua e os intrumentos lingüísticos são objetos históricos que estão da Unicamp, 1992.
intuuamcnte ligados à formação do país, da nação, do Estado. CUNHA, C. Gramática do Português Contemporâneo. Belo Horizonte,
Ao se colocar como objeto de reflexão a história da língua nacional e a Bernardo Alvares, 1970.
II/'I()I ia das idéias lingüísticas, pode-se fornecer subsídios para a compreensão CUNHA, C. e CINTRA, L. Nova Gramática do Português Contemporâneo.
do ruodn como a sua constituição produz as bases para o reconhecimento de Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
IIII/il unidade imaginária na formação social e para a nação. Não se pode
MAITOSO CÂMARA Jr., 1. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis,
Ih'" uuhcccr que a noção de nação, vigente a partir das revoluções do final do
Vozes, 1970.
'Illllo XVIII, pela qual, enquanto brasileiros, nós transitamos, tem como um
IU11110 c t ucial de sua identidade (e da nossa, conseqüentemente, enquanto MATTOSO CÂMARA, Jr., J. "Os Estudos de Português no Brasil".
I 1I1,lIllIm) n questão da língua nacional. Dispersos. Rio de Janeiro, FGV, 1972
(h (11[crentes processos que estabelecem diferentes concepções de ORLANDI, E.P. "Um Sentido Positivo para el Ciudadano Brasilefio", in Signo
1.1I;II·dild\'1,'111como constitutivas formas de configuração da língua nacional. e Seria, J. Buenos Aires, 1992.
1(1111111"" IIISlúl ia lui distintos momentos expressivos desse estabelecimento e, PÊCHEUX, M. e GADET, F. La Langue lntrouvable, Paris, Maspero, 1981.
11111I1:i~lI~ 111"1111/,;1\,procuramos identificar esses momentos e compreendê-Ios.
SAI [) ALI. M. (1924) Gramática Sccutulária da Língua Portuguesa, São
('111/1I "'110, jl(l(iL'1II0Sdizer que - na perspectiva de uma reflexão que
Paulo, Melhoramentos, 1963.
15
CONSTITUIÇÃO DO CIDADÃO BRASILEIRO: DISCURSIVIDADE DA
MORAL EM RELATOS DE VIAJANTES E MISSIONÁRIOS
AS VIRTUDES DO COLONIZADOR
Segundo Foucault, toda "moral" no sentido largo comporta dois aspectos: o dos códigos de
comportamento e o das formas de subjetivação, mas implica também a constituição de si
enquanto sujeito moral: "Toute action morale, c'est vrai, cornport un rnpport au réel ou cllc
s'effectue et un rapport au code auquel elle se réfere; mais elle implique aussi un certain rap-
port à soi; celui-ci n'est pas simplement 'conscience de soi', mais constitution de soi C0111111e
'sujet moral" ("Usage des plaisirs et techniques de soi", Le Débat, 1983. p. 68)
19
IIit!lI, 1,1 •• 110' dl' ~'1ande medida: "gestos mais que heróicos", "grandes ernprei-
humildade, que se manifesta através do reconhecimento do poder divino e da
I[ldll~", \ ,lIolllados diante da "ociosidade" e do "desleixo"; por outro, a pro- "fraqueza", da "indignidade" do homem. É uma marca da devoção religiosa.
ílil~rto !Iv \ onhccimcntos sobre os costumes de outros povos: a "observação Quando emergem os enunciados ligados a ela, despontam as interpretacões
1'11 I .1 "longa experiência das coisas". Essas atividades são mencionadas e
religiosas, com seus efeitos de admiração e submissão. Ao lado da humildade,
jll\l 11, ••• da!> com vários exemplos, evocando-se desde os atos célebres de ressaltam-se também a misericórdia e a doçura. São as qualidades predomi-
111 I\WS c Enéias até as práticas de Sócrates, Platão, Cícero e outros. São frag-
nantes no funcionamento do discurso da catequese, da doutrinação.
1I1('nlos de discurso que ilustram o lugar exemplar do herói, um lugar que Mas as atividades do missionário não se restringem à catequese. Ele é
1',Il\J~'ao gesto da conquista, com os benefícios que ela pode trazer. solicitado também para outros afazeres:
Outras qualidades que acompanham a virtude heróica são a magnanimi-
d.ulc, a coragem, a curiosidade. São disposições imprescindíveis para quem (2) "É preciso que eu vos diga que os missionários em meio aos selvagens
prutc em direção às terras desconhecidas. Com isso, pode-se atingir a "honra são obrigados a fazer o ofício de governadores, de juízes, de médicos, de
pCI pétua" e a "glória imortal" ; e pelo lado material, "admiráveis riquezas". E pais e de mães, e de protetores contra as injustiças e violências dos por-
.unda alcançar os prazeres proporcionados pelo Novo Mundo: "paraíso ter- tugueses habitantes desses lugares"
restre", "lugar de delícias", "deliciosa residência".
A política da colonização é assentada sobre princípios que organizam as O missionário apresenta qualidades morais diversas, conforme o seu posi-
atividades dos indivíduos. Assim como se privilegia a virtude heróica, com cionamento em tal ou tal circunstância, o que lhe confere um caráter inconstante.
exemplos e justificativas, estabelece-se uma hierarquia das "artes", das formas Em suas atividades cotidianas, ele passa facilmente de uma conduta "doce",
de conhecimento, configurando-se uma certa relação entre a ética e a política: "humilde", "suave", para uma conduta "firme", "temerária". Em relação aos
índios, age com "severidade", "resolução"; aos portugueses, "honestamente",
(I) "O que fez com que Seleuc Nicanor, o Imperador Augusto Cesar e 'justamente", com "firmeza"; ao governador, com "reverência", "respeito"; aos
muitos outros Príncipes e personagens notáveis portassem em suas divisas religiosos, "agradavelmente", com "respeito". Abre-se espaço para outros tipos
e insígnias o Delfim e a âncora do navio, senão dar instrução à posteri- de interpretação, conforme se apresentem os interlocutores. E nessas situações
dade, que a arte da marinha é a primeira e de todas as outras a mais vir- são colocados em jogo informações factuais, informações jurídicas, confrontos
tuosa? Eis sem mais longo discurso, um exemplo na navegação, como entre o verdadeiro e o falso, conhecimentos dos pagãos, etc.
tudo, na medida em que ela é melhor, mais difíceis são os meios para Apesar da inconstância da conduta do missionário e das possibilidades
alcançá-Ia, é assim que por experiência nos testemunha Aristóteles, falan- enunciativas que daí decorrem, predominam em seu discurso, por fim, as
do de virtude". (Thevet, Sp)2 interpretações religiosas, Os valores morais presentes na Bíblia, nos livros
religiosos - para Lery nas "Cartas de Calvino" - são o quadro de referência
A valorização da arte da marinha se dá em conformidade com os interes- para a boa conduta.
ses expansionistas da metrópole, isto é, ela permite que se arquitetem as ativi- Na prática desse sujeito, a moral, em forma de interpretações, justificati-
dades colonizadoras, possibilitando também o exercício do heroísmo. Com vas, exemplos, incide sobre a realidade representada e a conduta do indivíduo.
esse princípio ético-político são estabelecidas outras práticas subordinadas, Em tal forma de subjetivação as escolhas morais não se realizam sem que se
lendo em vista o relacionamento com os povos em contato - é o caso do trá- passe pela explicação, pelo comentário, pela retórica religiosa. Para o colo-
fico e da catequese. nizador, o contato com os costumes dos índios reforça ainda mais as virtudes
O tráfico, além de propiciar a remessa de riquezas para a metrópole, é cristãs:
uunbém um meio para "civilizar". A utilidade dele é motivo de grandes bene-
Ircios para os reis e para as nações: "O Rei de Portugual, como cada um pode (3) "Na moral, tanto mais que no natural, os contrários servem para se
entender, recebe grandes ernolumentos do tráfico que faz dessas especiarias". fazer conhecer; e sem dúvida estimaríamos mais nossa dignidade e nossa
Akm disso, revela-se um meio de manter relações com os outros povos e de qualidade de cristãos, se nós nos representássemos, em oposição, a ver-
.u IIllcl vir ("meio de entreter a sociedade civil"), apontando as evidências que gonha e a miséria do estado dos homens que não o são" (Carta de um teó-
",,'I'\IIam li valorização dos costumes europeus. logo da Ordem, Nantes: 102)
A virtude heróica do viajante-conquistador vêm se somar as virtudes do
1I1I',',lIlllií,lO.A qualidade mais acentuada no discurso dos capuchinhos é a Observando os índios, representando seus costumes com o filtro da moral
cristã, o colonizador constrói a possibilidade de uma transformação do outro
~jl.l\')I" d" "'I~lIlall'lIlfrancêsforamtraduzidaspara facilitar a leitura sempre que as condições se apresentarem.
II 21
I I 11tH.! (1IISI'RVADOR durante quase um ano, sob o trópico de Capricórnio entre os selvagens
Tupinambás" (Lery: 52)
1111101 d,,, uuvidadcs valorizadas no contexto da colonização é a obser-
VI\III 11\'1das coisas, obtida pela experiência do olhar, O Novo Mundo deve Assim, ao lado do olhar cobiçoso e exaltado do conquistador, surge essa
I I "h~\'1vudo, relatado, descrito. Só quem vem e vê pode fazê-lo. Faz-se disposição de observar com mais objetividade, com "sinceridade", "honesti-
111'1,,,,1110,nessas circunstâncias, discernir as coisas a serem observadas: as dade". Segundo Orlandi (1990), em Jean de Lery, a partir da perspectiva
1"1\;" notavcis", "mais memoráveis", "coisas dignas de serem preservadas". humanista da Reforma, pode-se notar um imaginário científico que atravessa
() que mais agrada à primeira vista ao olhar cobiçoso do colonizador são a observação dos costumes e da língua dos índios, apontando as origens de
'" 111 Meres e as riquezas possíveis no Novo Mundo. Esse olhar procura as uma tradição que se constituiu em paradigma do contato.
uovrdudcs e as "singularidades" que o país pode oferecer, satisfazendo a Em algumas ocasiões nota-se, por outro lado, um olhar prazeroso, que se
oIl1dllc,aoe a curiosidade dos sujeitos. São informações que passam a preencher diverte diante do comportamento dos índios. Nesses momentos, deixa-se de
r'IHI,oS nas estantes dos leitores europeus, ansiosos por conhecimentos das lado a observação séria ou pudica. Os costumes ou o comportamento dos
1\'/1as desconhecidas e exóticas . índios passam a produzir efeitos cômicos e "tragicômicos":
."orn relação aos costumes, esse olhar esboça um mapeamento da moral,
elegendo o que é louvável ou não no comportamento do índio, o que está de (7) "Devo acrescentar que embora tenha visto muitas vezes regimentos de
acordo com o "dever cristão" e o que é "infligido pelo diabo". Vejamos alguns infantaria e cavalaria nos países europeus, com seus elmos dourados e
enunciados em que se desenrola a observação do índio: suas armas reluzentes, nunca espetáculo de combate me deu tanto prazer
aos olhos. Mas além da diversão de vê-los saltar, assobiar e manobrar com
(4) "É fácil entender que essa boa gente não é mais civil no comer que em destreza para todos os lados, causava encanto o espetáculo de tantas fle-
outras coisas. Tanto que não possuem certas leis para eleger o que é bom chas emplumadas de vermelho, azul, verde e outras cores, brilhando aos
e fugir do contrário, assim comem eles de todas as carnes, todos os dias e raios do sol; e não era menos agradável ver os adornos feitos dessas penas
todas as horas, sem discrição". (Thevet: 56) naturais com que se vestiam os selvagens" (Lery: 190)
(8) "Finalmente sob um novo aspecto ainda podemos dizer que, deixan-
(5) "Como eram extremamente brutos e sua nudez Ihes havia feito perder a do-o seminu, calçado e vestido com as nossas frisas de cores, com uma
vergonha natural, não há nenhuma espécie de desregramento contra a pureza das mangas verde e outra amarela, apenas lhe falta o cetro de palhaço."
que eles não cometam, até nas idades mais tenras, tanto que isso poderia (Lery: 118)
parecer incrível: em uma palavra, é uma desordem terrível." (Nantes: 12)
São espaços discursivos que vão se criando com uma visão moral não tão
A descrição dos costumes já vem carregada pelo discurso moral e reli- restritiva. A conjunção de imagens dos costumes europeus e indígenas não
!'IOSO.É um olhar cheio de pudor que envolve a comunidade indígena. O dis- produz aqui a exclusão do índio, ou a necessidade de transformação. Coloca-
l'IIIS0 da moral adere às atitudes do índio, compondo um quadro moralizado, o, sim, em uma posição determinada no cenário do saber europeu, mais pró-
por vezes grotesco. xima de uma tradição literária, lembrando por vezes uma narrativa cômica
Nesse exercício de observação entram em jogo a sinceridade ou a falsi- popular como a de Rabelais.
dade do observador. Essa torna-se uma questão constitutiva dos relatos. A dis- Outros espaços surgem também em que o olhar do europeu volta-se sobre
plll,1 entre Thevet e Lery ocorre em um campo onde as afirmações sobre o si mesmo, gerando uma reflexão comportamental. Esse olhar invertido marca
Novo Mundo são colocadas em questionamento. A busca da sinceridade está o confronto entre as duas culturas. O europeu remói sua própria conduta,
.rl i.uln a urna nova prática de observação, em que se volta para a veracidade diante da dos índios, numa atitude marcadamente piedosa:
dllS Iaios e o modo de observá-los. Podemos discernir aí a caracterização de
11111 uictodo de observação: (9) "Ces barbares marchent tous nuds,
Et nous nous marchons incognus,
(li) "I~ S\' alguém alegar ter eu ao refutar aqui o sr. Thévet cometido iguais Fardez, masquez. Ce peuple estrange
1:11m \' Sl' me condenarem por usar da primeira pessoa ao descrever os A Ia pieté ne se range.
1;11'.1 11III\'Sdos selvagens, responderei que se trata de coisas científicas, de Nous Ia nostre nous mesprisons,
I!'I" 111'111 I:IS.de coisas que talvez ninguém tenha ainda tratado, não com Pipons, vendons et deguisons."
Iil11" 111li! Il:tO s(Í 11América em geral mas ainda ao lugar em que residi (Ode a Thevet, de Estienne Iodelle, Thevet, sp)
23
t 'iun 11111(1
lcrção não tão piedosa, há também algumas reflexões em cer- (I I) "Esse anjo se fará ouvir em toda parte antes do fim do mundo; ele
1I1~f'1I1'i" do conhecimento europeu, como, por exemplo, no ensaio de gritará como um leão que ruge e fará ribombar a voz de seus trovões, os
~l"III,II!'lIl' "dcs Canibales", em que se percebe uma agitação nos sentidos pregadores, por toda a terra, a fim de que o Evangelho, representado pelo
1lllhllldo~ i\ cultura indígena pelos viajantes e outros. Esse é um lugar em que livro aberto, seja visto e ouvido por todos os povos de todas as línguas e
" ,,1I\l'l vaçõcs são trabalhadas com um caráter mais filosófico, contribuindo nações sob o céu". (AbbevilIe: 14)
plll ti a Iclormulação ideológica do contexto europeu.
Alguns produtos ainda dessas observações são os dicionários, catecismos, São maneiras de invadir a memória do índio, transformando-a. Nessas cir-
1I uduçõcs da vida de santos, instruções, perguntas e respostas, etc. São textos cunstâncias inscreve-se também o confronto entre o oral e o escrito. De um
qll(' apresentam um aspecto utilitário, servindo às atividades práticas dos colo- lado os missionários com o modelo da escrita, de outro os índios com uma
ur/udorcs. Pode-se dizer que essa prática se inscreve na tradição daquilo que memória de tradição oral:
l'l'l"hcux chama uma ciência da estrutura do real, em que haveria a unificação
til' uma multiplicidade heterócJita das coisas-a-saber em uma estrutura repre- (12) "de modo que eles ficaram muito persuadidos de que a escrita con-
scutrivcl homogênea - uma "autoleitura científica, sem falha, do real" servava a memória inviolável das coisas passadas, e de que sem escrita
(Pêchcux, 1990:35). O saber filtrado pela moral é então aplicado na prática tudo se esquecia, e tomava-se o erro pela verdade, como eles viam pela
pohtico-educativa da colonização. experiência de todo dia, esquecendo pouco a pouco o que haviam apren-
dido". (Nantes: 20)
LIÇÕES DE MORAL A catequese gera uma transformação no modo de apropriação dos discur-
sos. Através de uma série de técnicas e rituais, o missionário busca modificar a
A prática educativa do missionário está baseada em uma ignorância fun- relação do índio com seu discurso e, ao mesmo tempo, com sua conduta moral.
damental: a ignorância do Criador. Agir por ignorância é agir infligido pelo As técnicas utilizadas são várias, a começar pelo uso da língua indígena.
diabo e não pela vontade de Deus. Essa ignorância é atribuída aos índios em Depois de adquirida a língua, fazem-se doutrinações públicas, utilizam-se
diversas oportunidades, desde as que se referem a atividades mais cotidianas, "exemplos e expressões tirados do seu conhecimento cotidiano", ensinam-se
até as que dizem respeito a sua organização política. orações com métodos de repetição e fixação, prega-se o evangelho com a
Embora a ignorância seja um erro fundamental ("ignorantes da criação Bíblia à mão, promove-se o contato dos índios com as cidades, com os "bons
do mundo", "pobres selvagens, que não têm nem Reis, nem Leis nem exemplos", ete.
loverno, nem artes, nem escrita"), ela marca também a possibilidade de Entre os rituais, temos as missas, festas, cerimônias dos sacramentos,
obter o conhecimento, de atingir um estado racional - "capazes de exortações públicas, cantos de litanias, orações, entre outros. Em cada aldeia
raciocínio" - e moral; de passar da "cegueira dos sentidos" à "luz da Santa em que se instalam, os missionários rezam a primeira missa, plantam uma
Escritura": cruz, e iniciam a construção de uma capela, compondo a cena da catequese,
em que se desenrolam os rituais religiosos.
( IO) "A natureza deu a todas as criaturas, sem exceção de uma só, as Os instrumentos para a conversão e para a "reforma dos costumes"
raizes e as sementes das virtudes". (Evreux: 120) servem também ao estabelecimento de uma relação dos indivíduos com as
nações européias. Desta forma, por intermédio da instrução moral, os índios
Para instruir o índio, o missionário utiliza discursivamente os conheci- são interpelados à posição de vassalos do rei:
mentes dele. Longe de trabalhar com O princípio da "tabula rasa", ele interfere
11.1memória discursiva daquele, provocando aproximações, reestruturações, (13) "Desejando sair a luz este Katecismo Indico; ele mesmo se vai pôr
.Ipa~'Ulllentos, identificações. À medida em que fala das crenças, das canções, aos pés de Vossa Real Majestade, persuadido, que sendo para a instrução
dos mitos dos índios, ele marca os pontos de encontro que possibilitam as li- dos Indios do novo Orbe, achará para este fim o amparo de um Príncipe,
',II,IWSdiscursivas por onde se instala o discurso europeu. a quem o Céu deu por vassalos, os que ele por estes documentos Cristãos
Mli itas vezes, a elaboração desse discurso passa por cadeias metafóricas em vai forçando a admitir Fé, Ley, e Rey, que não tinhão, e a reconhecer
'lI" il lu-tcrugcncidadc discursiva é bastante explorada. Em Abbeville, por exern- soberanos." J
1'1•• \I 1.110til' os índios evocarem a imagem de "Tupã" promove sentidos úteis à
, .11, II"I'S(', t' é onde o missionário ancora sua fala evangélica. Deste modo,
3 Bemard de Nantes, "Katecismo indico da língua kariris, acrescentado de várias Práticas
C 11111,.1 SI' 11111
discurso religioso aliado ao naturalismo do contexto indígena:
doutrinares, & moraes, adaptadas ao gênio & capacidade dos Indios do Brasil", Lisboa, 1709.
25
(15) "Introduzi pouco a pouco entre eles algum governo, estabelecendo
IlId,l~ l'sSa~ técnicas e procedimentos do colonizador apontam um princí- Oficiais para a Igreja e para o civil, que eu autorizava o melhor que pos-
l'lli uuu nl que privilegia a finalidade da ação, valorizando-se a conduta uti- sível e que eu prendia a mim através de pequenos presentes e pelo respeito
111.11111, Jll.il ica, funcional. Dessa perspecti va, os conhecimentos produzidos
e a obediência que eu os fazia ter, a fim de que me apoiassem na necessi-
111111'
(l Novo Mundo aparecem como possibilidades interpretativas prontas a
dade". (Nantes: 20)
I 11Il'1l!lIl.:m para salvaguardar as finalidades colonizadoras.
Deixar os costumes, submeter-se às ordens e à tutela do colonizador,
servir de mão-de-obra para edificar as cidades: os índios são agora súditos do
MORAL E RELAÇÕES SOCIAIS rei. Suas qualidades morais são o "respeito", ti "submissão", a "obediência",
qualidades que os colocam diante das leis do colonizador.
As primeiras relações entre europeus e índios são descritas com a va-
1001I.ação de certas qualidades dos índios, muito apreciadas pelos colo-
nrzadores, como a "cordialidade", a "alegria", a "fratemidade", "caridade", DISCURSIVIDADE DA MORAL - JUST1ÇA IDADANIA
"liberalidade", "amizade", "felicidade", "lealdade", "doçura", "modéstia":
Em torno da passagem do sujeito religioso ao sujeito-de-direito, pode-se
(14) "Mostram os selvagens sua caridade natural presenteando-se diaria-
discernir no discurso dos missionários do século XVIII a configuração de um
mente uns aos outros com veações, peixes, frutas e outros bens do país; e lugar específico para o cidadão brasileiro. Analisamos a esse propósito a
prezam de tal forma essa virtude que morreriam de vergonha se vissem o questão da justiça e da representatividade, mostrando como as caracterizações
vizinho sofrer falta do que possuem; e com a mesma liberalidade tratam morais estudadas anteriormente se inscrevem nesse discurso, permitindo
os seus aliados". (Lery: 240) retornos interpretativos que ligam a cidadania brasileira às condições da colo-
nização.
Do ponto de vista político, há sentidos peculiares que se produzem, quan- No contexto de estabelecimento da colônia, há algumas práticas que
do se considera essa "liberalidade". No cruzamento das formações discursivas
servem a "civilizar" o indivíduo:
do europeu e do índio, as palavras se filiam a diferentes redes discursivas, ca-
racterizando certas relações entre o moral e o político. Nas relações de conta- (16) "Como os encontrei mais animais do que homens em seu modo de
to, por exemplo, as designações dos objetos configuram diferentes posições vida, eu me apliquei primeiramente a formá-Ios pouco a pouco em uma
dos sujeitos. Enquanto para os índios os objetos "comercializados" têm valor vida razoável e civil, falando-Ihes freqüentemente, nos discursos que
para o uso em suas atividades ou um valor de estima: "machados", "facas", fazia todos os dias, do que se praticava em meio aos povos civilizados,
"próprios para cortar a madeira .. e para fazer seus arcos e flechas", "de que se representando-Ihes em detalhes, conforme a capacidade de seu espírito e
utilizam para pescar", "com os quais eles presenteiam"; para os europeus têm
de seu estado, a utilidade da vida civil". (Nantes: 16)
um valor comercial acumulável: "mercadorias usadas no comércio com os
'ndios", "admiráveis riquezas", "mercadorias que nos serviam de moeda", Como vimos mais acima, são atividades que vão de par com os interesses
"imensas riquezas suscetíveis de serem transportadas para a França". A cons- de conquista da metrópole. O que observaremos agora é como essas atividades
trução dos objetos vai configurando a posição do colonizador, numa relação são organizadas não mais em relação ao heroísmo, à cobiça, à fé, mas em
desigual entre a liberalidade e a cobiça. relação ao juizo, à objetividade. São valores que surgem concomitantemente
Discursivamente, a liberalidade dos índios funciona abrindo espaço para com determinadas práticas da justiça e da representatividade, que rcconfigu-
o discurso do outro, permitindo que ele se instale, e até mesmo que habite sua
ram e reafirmam a relação entre colônia e metrópole.
cnunciação. Deste modo, a formação discursiva do europeu se põe a envolver
A empresa colonizadora tem como finalidade a expansão do Estado, e por
I do índio. conseguinte, a conquista dos povos, a expansão territorial e o aumento do
Por outro lado, outros valores com respeito aos índios são a "cruel- número de súditos. Ela implica um ponto de vista em que o justo só pode ser
d.I<I\-". li "vingança", enfim, aqueles ligados à barbárie, ao canibalismo, e
avaliado dentro dos interesses do próprio Estado. Trata-se de uma justiça em
11"1'devem ser alterados. Introduzem-se desta forma os valores sociais do que não se inclui a voz do outro, quando este não é um indivíduo subordina-
1lIlllIlltado!' em relação aos dos índios, construindo-se os argumentos para a do ao Estado. Politicamente, convive com essa prática uma moral teleológica,
I IIIIIIII/.I,ÜO. Esta posição se configura finalmente com as ações transfor- como a moral de Aristóteles e a moral cristã. Ficam em afinidade, pois, os fins
1I1.1I1I1I1I~ dos europeus:
do Estado e os fins da catequese.
27
1'1i1.1 11\ IlIdIO:-', que não têm leis escritas, formalizadas, diz-se que eles ci vis, os direitos humanos e as finalidades do missionário. O Estado, nesse
;'[\"1'111.1 1('1 da natureza": meio, fica em uma posição problemática: de um lado, ele quer a presença do
missionário, que o auxilia na catequese, na civilização, na pacificação dos
( I 7) "Nâo praticam a justiça com formalidades e autoridade pública, índios; de outro quer assegurar os direitos concedidos aos particulares.
P0I('1l1 tüo somente de fato e na própria intimidade". (Abbeville: 256) No relato de Martin de Nantes há uma disputa que ilustra bem esse lugar
(I H) ••... jamais tiveram lei, nem policiamento fora da lei natural". (ib.) problemático. Trata-se de uma luta pela terra entre os índios e "particulares"
( 11.» "Em resumo, é vida por vida, olho por olho, dente por dente". (Lery: (proprietários de terra), com a mediação do missionário. De acordo com
9) Orlandi, esse discurso está na raiz do latifúndio e estabelece uma certa relação
jurídica: "Essa fala européia sobre o índio alia proteção e necessidade,
Em oposição à justiça dos índios, referida como igualitária, mantida sem redefinindo a propriedade (o habitar as terras). Na sua ambigüidade (em que
o 1"0 da autoridade, os colonizadores estabelecem uma justiça com base na jogam o religioso e o jurídico), com seu discurso, os missionários fundam O
deSigualdade, na subordinção tanto às leis divinas, como às leis do Estado. direito à propriedade, desfazendo-o ao mesmo tempo. Fazem de forma a
Enquanto os índios, por exemplo, guerreiam por vingança, os europeus o redefinir a posse: "prover" os índíos da sua sobrevivência a partir das suas
luzem por ambição, para conquistar. necessidades." (1990: 154)
Ajustiça legal é estabelecida de acordo com os princípios religiosos: "Há Vemos, então, que há formas jurídicas que determinam diferentes relações
ruo estreita ligação entre a religião e a lei, que uma não pode existir sem a entre os indivíduos e seus direitos. Para uns é conferida a qualidade de prote-
outra". (Abbeville: 127) São leis que impõem ao indivíduo o dever cristão e a tores, magnânimos, e portanto, conhecedores das leis e dos meios retóricos de
subordinação ao rei. Desta forma, o direito funciona com a autoridade do rei defesa dos direitos; para outros, a qualidade de frágeis, pusilânimes, igno-
ou de seu representante e com a interpretação dos livros religiosos para o jul- rantes das leis e incapazes de exercer o discurso jurídico. A distinção civiliza-
gamento dos fatos. do/ignorante, heróico/frágil retoma nesse momento assegurando a desigual-
Notam-se, entretanto, índices de uma justiça que não valoriza os fins, mas dade jurídica.
os meios. Consideram-se mais os interesses dos indivíduos. Mas o funciona- Essas manifestações da justiça são acompanhadas de algumas formas de
mento da justiça apresenta-se ainda atravessado pela moralidade cristã. representação. No discurso religioso, a autoridade suprema é a divindade, que
Podemos ver aí o esboço da posição do cidadão, que reivindica seus direi- é representada pelo rei, pelo missionário. Com a laicização do governo, os
tos. Percebemos no fio do discurso expressões como: "defesa da causa", interesses do Estado se modificam. Seus representantes devem então salva-
"demandar justiça". Tais manifestações são formalizadas por meio de um esti- guardar os direitos civis. A representação é marcada também por um aspecto
lo "sucinto e sincero". O estilo sucinto remete aos enunciados utilizados para dúbio. O missionário se coloca em uma posição de representante dos índios,
H "defesa", a "justificação", o "convencimento", a "persuasão". Esses enuncia- mas sem deixar, ao mesmo tempo, de defender os interesses coloniais do
dos são representados como: "testemunhos muito vantajosos", "termos Estado, estabelecendo a justiça, civilizando e "protegendo" os índios.
respeitosos", "termos fortes e sucintos", "silogisrnos muito curtos e muito Aparece aí a figura de um porta-voz que filia sua memória discursiva não
claros", "cartas claras e sinceras", "carta a mais civil", etc. Essa forma sucin- à posição reivindicativa mas sim à posição do juiz, que já tem a resolução das
tu vai de par com a restrição das interpretações religiosas e a construção de um disputas:
espaço objetivo, não-contraditório, que mostra um sujeito que trabalha mais
sobre si mesmo, justificando seus atos. A sinceridade se alia aqui mais a esses (20) "Resolvi dizer-Ihes que se servissem do direito natural, e que já que
luturcs do que à humildade do religioso. não se fazia justiça por meio da súplica, que eles colocassem eles mesmos
Os argumentos utilizados na interpretação jurídica passam a ter natureza os cavalos fora de sua ilha, visto que eles os faziam morrer de fome".
dlstlllta dos argumentos religiosos. Por exemplo, apela-se freqüentemente às (Nantes: 140)
"mturmações jurídicas", ao "direito das gentes", ao "direito natural", o que
uuu cu as novas formas de direito. Surge, pois, um espaço contraditório que Se a voz de reivindicação dos indivíduos se esvai, sendo preenchida pela
envolve os direitos concedidos pelos reis, pelos governadores, pelo Papa, e os figura do protetor, por outro lado, diante da justiça instalada, esses indivíduos
dlll'llos mais universalizados. devem responder - e agora com sua própria voz - por seus atos:
Note -sc que, embora o funcionamento dajustiça se volte então para a obje-
11\ Id.llk dos üuos, o missionário continua se utilizando, através da moralidade (21) "Não se pode governar uma República sem Leis penais: é por isso
111\1.1. dI' 111\1 dlcativas baseadas na intenção religiosa, o que confere um aspec- que eu as estabeleci, mas sempre muito humanas, ainda que sensíveis para
111 tI"IIIII I1 1",1 içn que se estabelece. No mesmo espaço encontramos os direitos reter em seu dever os fracos e punir os culpados". (Nantes: 83)
29
Illtllldll/llltlll a distinção entre indivíduos inocentes e culpados, coloca-se
I1Ihuu ron.uncnto as formas de punição. Para se defender, o indivíduo precisa
111111 .1' upropriar desse discurso ...
1'11Iresumo, a caracterização do indivíduo em sua conduta nos permitiu
.\.1111111<11 as filiações nas redes de memória, em vista da constituição do 2
I ul.ltlilO brasileiro. Historicamente, os processos discursivos que comportam
1'''~l'Selementos funcionam de modo a negar a oposição entre ações jurídicas GUERRA DOS MASCATES:ACONSTITUIÇÃO DO
l' :1I;OCS reivindicativas, e isso com o apoio do discurso moral. Assim, os gestos CIDADÃO BRASILEIRO NO SÉCULO XVIII
hl'l óicos, objetivos, inconstantes, protetores dos europeus se associam aos
.'c••tos Iiberais, obedientes, necessitados dos índios, numa relação produtiva
que determina de um lado possibilidades interpretativas em proveito dos inte- Sus» Lagazzi
Iesses políticos colonizadores, de outro uma condição para a cidadania
brasileira.
ABBEVILLE, Claude d'. História da Missão dos Padres Capuchinhos na Ilha Com a emergência da burguesia, o conceito de cidadão passou a ter, como
do Maranhão e terras circunvirinhas, Ed. da Universidade de São Paulo, referência primeira, a exigência da igualdade de direitos.
São Paulo, 1975. A noção de cidadania se construiu com a definição político-jurídica do
sujeito, até então um "sujeito-religioso" subordinado ao dogma cristão.
EVREUX, Ivo d. Viagem ao Norte do Brasil, Livraria Leite Ribeiro, Rio de
Como mostra Haroche (1984), essa redefinição do sujeito foi decorrên-
Janeiro, 1929.
cia de modifições econômicas que, a partir do século X, ocasionaram a tran-
rOUCAULT, Michel. "Usage des plaisirs et techniques de sai", Le Debat, sição gradual do feudalismo para o que se concretizaria, mais tarde, como
1983.
capitalismo.
LERY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil, Itatiaia-Editora da Universidade de Essa transição do feudalismo para o capitalismo trouxe mudanças funda-
São Paulo, Belo Horizonte, 1980. mentais nas relações entre as pesosas, sendo que o fim dos laços de dependên-
NANTES, Bernard de. "Katecisrno indico da lingua kariris, acrescentado de cia pessoal que existiam entre o vassalo e o senhor feudal permitiu a definição
várias práticas doutrinaes, & moraes, adaptadas ao genio & capacidade político-jurídica do sujeito com a exigência da igualdade de direitos.
dos Indios do Brasil", Officina de Valentim da Costa Deslandes, Lisboa, Esse novo sujeito, o "sujeito -de-direito", não mais subordinado ao dogma
1709. cristão, mas sim regido por direitos e deveres iguais, o sujeito das sociedades
de Estado-capitalista, sujeito que emerge com a burguesia, é o cidadão. Esse
NANTES, Martin de. Relation Succinte et Sincêre, edição fac-similar publica-
sujeito-de-direito é um sujeito que nega o "sujeito-religioso", nega seus laços
da por Frederico G. Edelweiss, Salvador, 1952.
de dependência pessoal.
RLANDI, Eni. Terra à vista, Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo,
Cortez-Unicamp, Campinas, 1990.
PEClIEUX, Michel. O Discurso: estrutura ou acontecimento, Pontes, DA HISTÓRIA PARA O DISCURSO
Campinas, 1990.
TI I EVET, André. Les Singularités de Ia France Antarctique, La Découverte- A colonização do Brasil foi marcada pela divisão do nosso território em
Maspero, Paris, 1983. grandes propriedades de terra, os latifúndios, cujos proprietários, os senhores
de engenho, mantinham uma relação de dominação sobre os escravos e os ou-
tros trabalhadores da propriedade, estes denominados "agregados",
Paralelamente a essa sociedade dos latifúndios desenvolveu-se, com a
pecuária, um tipo de relação social sem laços de dependência entre as pessoas
Servindo de apoio à mineração, que criou grandes correntes de COIl\I'I(11I
no país, a pecuária ajudou a fixar o povoamento no interior do território, duudo
1111
1i
1IIII'l vilas e cidades c criando um contraponto com os latifúndios, o que
111 il
direito" queriam integrar as Câmaras e ter acesso ao poder, aqueles que não
,li ,11!lUI abalar a aristocracia agrária.
por
reconheciam os privilégios dos nobres, não aceitavam a diferença de direitos.
I k um lado, então, tínhamos o senhor de engenho, o nobre, mantendo sob Atendida pela Coroa Portuguesa a reivindicação de Recife, esta passou à ca-
\l'lI douunio os escravos e "agregados" e voltado para uma economia fechada tegoria de vila, gerando inconformismo na Câmara de Olinda e acarretando a
lia monocultura da cana, centrada em suas mãos e nas mãos da Coroa guerra entre as duas vilas.
I'ortugucsa. Enquanto material discursivo para nossa análise, encontramos o relato do
Do outro lado tínhamos os habitantes dos povoados, cidades e vilas, Reverendo Antonio Gonçalves Leitão sobre a Guerra dos Mascates, feito "à
voltados principalmente para o comércio, organizados independentemente de proporção que os fatos se iam sucedendo", conforme afirma José Bernardo
laços pessoais. Fernandes Gama, pernambucano que publicou, em 1846, o relato em sua obra
Nas cidades e vilas, a administração era exercida através da Câmara ou Memórias Históricas da Província de Pernambuco.
Senado, que era o conjunto de indivíduos eleitos pelo povo. Essa prática Algumas observações são necessárias a respeito do relato feito pelo
democrática, no entanto, era alvo de restrições definidas por alvarás e cartas Reverendo Leitão.
régias, que determinavam, por exemplo, não poderem ser eleitos mercadores, Não podemos ignorar o fato desse relato ter sido publicado por José
filhos do reino, soldados, degredados. Só se elegiam nobres, naturais da terra Bernardo Fernandes Gama, que afirma, no "Proemio" do texto, que essa pu
e descendentes dos conquistadores e povoadores. Apesar, então, de nas blicação é quase um completo "plagiato", pois que ele apenas reduziu as duas
cidades e vilas não dominarem as relações de dependência pessoal, as partes do relato a um só livro, evitou erros gramaticais mais notáveis e algu
Câmaras ou Senados tornaram-se o lugar da nobreza, o lugar institucionaliza- mas circunlocuções ociosas, "sendo fidelíssimo na exposição dos factos, não
do do poder, a que não podiam ter acesso os não-nobres. alterando em nada a ordem, em que os collocou o historiador seu coevo".'
A partir dessa perspectiva histórica, podemos afirmar que se instalou no Quando se trabalha sob a perspectiva discursiva, sabe-se que não basta ser
Brasil, uma oposição entre nobres e não-nobres, oposição que trouxe à tona a fiel à exposição e à ordem dos fatos para manter o discurso do outro. "Um
questão dos direitos da cada um. quase completo plagiato" é outro discurso. Portanto, temos que levar em con-
Da história para o discurso, essa oposição interessa-nos enquanto sideração que esse não é mais apenas o relato do Rev. Leitão: é o relato do
oposição entre sujeitos, que se redefinem político-juridicamente. Rev. Leitão publicado e "revisado" por Fernandes Gama.
Através do método discursivo, analisaremos o processo de constituição do Outra consideração ainda é o fato do Reverendo, através de um manifesto
cidadão brasileiro, tendo então, como recorte teórico, a oposição nobre/não- não publicado por Fernandes Gama, mas por este referido, posicionar-se
nobre. Tentaremos explicitar o funcionamento discursivo constitutivo da explicitamente a favor dos integrantes da Câmara de Olinda, contra os mas-
redefinição político-jurídida do sujeito no Brasil, mostrando as configurações cates, falando de um lugar muito bem definido. Também Fernandes Gama
que esse sujeito adquire. observa, em seu "proernio": "Eis o unico documento que tive, e que ha, dessa
Considerando o novo recorte teórico, procuramos, para a constituição do cor- guerra desoladora, que infelicitou tantos Pernambucanos illustres, e patriotas".
pus do nosso trabalho, um fato político da história do Brasil que trouxesse a Veremos, com a análise, que a referência a "Pernarnbucanos ilIustres e patrio-
oposição nobre/não-nobre em nosso país, mostrando o confronto entre as duas po- tas" é muito significativa no que diz respeito à posição de Fernandes Gama: os
sições e permitindo a visualização do sujeito-de-direito que ia se configurando. "Pernambucanos illustres e patriotas" não são os mascates.
A Guerra dos Mascates, em Pernambuco, nos anos de 1710 e 1711, é um Esse fato, de tanto o Rev. Leitão quanto Fernandes Gama colocarem-se a
fato político/histórico importante para a análise do processo de constituição do favor da nobreza, faz parte das condições de produção do relato sobre a Guerra
cidadão brasileiro, fato que, para a Análise do Discurso, significa enquanto dos Mascates.
fato de linguagem, enquanto discurso.
Esse movimento de Pernambuco mostra bem o confronto entre a nobreza
de Otinda e os mascates de Recife. A CONSTITUIÇÃO DO CIDADÃO BRASILEIRO
No que se refere às condições de produção mais específicas, Olinda era,
na época, sede da Capitania de Pernambuco e os integrantes de sua Câmara A partir do nosso objetivo e do recorte teórico que estabelecemos, clctua
eram aristocratas, ou seja, pessoas que "de direito" podiam integrar .as mos o recorte dos dados, que é a cxplicitação, no material hnrlllslIt'O, do
Cumarus, lidando diretamente com o poder, e para quem era inconcebível que recorte teórico Chegamos, assim, às marcas lingüísticas signihcauvas para
11111 plebeu quisesse ocupar a mesma posição de um nobre. Recife, que acabara
nossa análise.
dl' Il'l Vindicar ao Rei de Portugal sua elevação à categoria de vila, era habita-
doi qunsc que totalmente por comerciantes, os mascates, aqueles que "não de
1 Sobre a questão de Prefácios, vide Orlandi, 1990.
\'l
33
NII lrrlur , do material, chamou-nos especial atenção o que denominamos (3) "( ... ) e assim, arvorados em Mascates em breve aquelles cstupnlos.
,,'Crlll ill,II\'S de referência", ou seja, as palavras e expressões utilizadas pelo que em Portugal nem para criados serviam, tornavam-se capttalistas, c,
HI~V,I nlilO para se referir aos envolvidos na guerra. esquecendo-se de seus principias, julgavam-se superiores à Nobreza do
Paiz, que tão benignamente os acolhêra e que, entregue ao honorifico Ira
Pcrnambuco devia somente a si mesmo sua existência política, e
( I) "(. ..) balho agrícola, os honrava e favorecia liberalmente em todas as occasiões.
sua liberdade. Este povo, pois, com melhor rasão do que outro qualquer D'aqui se vê a rasão por que os Portuguezes nos primeiros tempos foram
tinha direito a ser manutenido em seus foros; mas os Portuguezes, esses denominados Mascates".
mesmos que haviam desamparado os Pernambucanos, abandonando-os à (4) "Chegando a Pernambuco, esses forasteiros conseguiam, a troco de
sua triste sorte, e à tyrania Batava; (...)" algum trabalho pessoal, adquirir 4.000 ou 6.000 rs( ...)".
(5) "Não satisfeitos os Mascates de serem agasalhados pelos
Este segmento discursivo faz parte do primeiro parágrafo do relato da Pernambucanos, (...) tentaram também abater e aniquilar a Nobreza do
(;Ul.!ITados Mascates, praticamente iniciando as considerações do Rev. Leitão. Pai; (...). E como ha muito nutriam em seus fermentidos peitos o desejo
Nessa seqüência discursiva, a referência a "Pemarnbucanos" e "Portuguezes'' de abater os nossos naturaes ( ...)".
estabelece uma oposição que vai organizar todo o discurso do Reverendo. (6) "Em poder d'essesforasteiros ou Mascates residia todo o commercio (..T.
Essa oposição entre ser Pernambucano e ser Português produz um estra- (7) "( ...) descobriram os Mascates meios de rnalquistarern, e arruinarem
nhamento, na medida em que os Pernambucanos eram de origem portuguesa. os Pernambucanos mais notáveis".
Assim, se todos eram Portugueses, como entender essa oposição que os (8) "( ...) outro remedio não tinham os tristes Pernambucanos que
Pernambucanos estabelecem com os Portugueses? sujeitaram-se à vontade do oppressor Europeot",
A seqüência do discurso do Rev. Leitão mostra-nos que se faz uma par- (9) "( ...) os Mascates julgaram que tinha chegado o tempo de darem um
ticularização em relação aos Portugueses: golpe decisivo na Nobreza de Pernambuco",
(10) "Os mercadores que tinham-se retirado para a Bahia, (...) enquanto
(2) "E posto que alguns Portuguezes para Pernambuco viessem que, já pela os Pernambucanos descançados em suas consciências entregavam-se às
sua educação, já pelo seu nascimento, e já pela índole de que eram dota- suas privadas occupações".
dos, faziam justiça aos naturaes do Pa, , I; fraternalmente os tratavam,
eram em numero tão limitado, que se perdia no meio do turbilhão de aven- Através desses segmentos discursivos, podemos relacionar as predicações
tureiros auricedentos, que, todos os annos, nus e miseraveis apartavam no atribuídas aos Pernambucanos e aos Portugueses:
hospitaleiro Pernambuco. D'esta gente, pois, a mais abjecta de Portugal, No segmento (2), "alguns Portuguezes" estelecem uma relação fraterna
ignorante e sobremaneira mal educada, abundava esta Província". com os "naturacs do Paiz'' , que se opõem aos "aventureiros auricedentos".
No segmento (3), a "Nobreza do Paiz", que se dedica ao trabalho agríco-
Os Portugueses não eram considerados indistintamente: "alguns la, opõe-se aos "Portuguezes", "mascates", "capitalistas".
Portuguezes faziam justiça aos naturaes do Paiz", por sua educação, seu nasci- No segmento (4), os que chegam a Pernambuco referidos como
mento e sua índole. "forasteiros".
Comparar os dois grupos pelo "nascimento" é bastante significativo. Se já No segmento (5), a "Nobreza do Paiz", os "nossos naturaes'' opõem-se
vimos que todos eram Portugueses, referir-se ao "nascimento" para falar do aos "mascates".
lugar de origem não distinguiria "alguns Portuguezes" dos outros, já que todos No segmento (6), temos os Portugueses referidos como "forasteiros" ou
tinham Portugal como pátria de origem. Mas a referência ao "nascimento" sig- "mascates".
mficava também, na época, o fato de "ser bem nascido", de pertencer à No segmento (7), os "mascates" opõem-se aos "Pernambucanos mais
nobreza. Assim, só podia "fazer justiça aos naturaes do Paiz pelo nascimento", notáveis".
o nobre Português que para Pernambuco vinha. No segmento (8), temos os "Pernambucanos" que se opõem ao "opprcs
Os Portugueses estavam divididos, pois, em dois grupos: de um lado os sor Europeo".
1IIIIlIt~s, uma minoria extremamente limitada, que podia comparar-se aos "na- No segmento (9), os "mascates" opõem-se à "Nobreza de Pcrnambuco",
uuuux do Paiz", de outro lado o "turbilhão de aventureiros auricedentos", os No segmento (10), os "mercadores" opõem-se aos "Pcrnambucanos".
"uuscrúvcis", "abjetos", "ignorantes" e "mal educados". Assim, de um lado temos os Pernambucanos, referidos como:
()"lli\s prcdicaçõcs são atribuídas aos Portugueses c aos Pernambucanos - os "naturaes do Paiz",
111 IIIII}'O do discurso do Rev. Leitão: - a "Nobreza do Paiz",
35
I", 1'I'lllllmhucanos mais notáveis", Recife", o nobre marca a dissemetria entre ele e o não-nobre, o mascate do
Ii "nuhrcza de Pernambuco" Recife, que nem mesmo "Recifense" era chamado. A dissimetria também se
,1~lllcult()res mostra entre o "natural do paiz" e o "forasteiro", o "morador", O forasteiro e
" dll 011110 lado temos os Portugueses, que eram: o morador não necessariamente têm vínculo com o lugar, podendo aí manter-
"aventureiros aurieedentos", se apenas por interesses. Nem sempre criam raízes e sua lealdade para com o
"mascates" , lugar pode ser questionada:
"capitalistas",
"forasteiros", (lI) "Diz Vmc. primeiramente que os moradores do Recife, com a
"oppressores Europeos", Infantaria pretenderam segurar as Fortalezas, e Ihes acha rasão; ao que
"mercadores" , respondemos que até agora se seguraram muito bem as Fortalezas na forma
Vemos, pois, que a oposição que os "Pernambucanos" estabeleciam não em que estavam presididas, por ordem dos Senhores Governadores, pela
era em relação a todos os "Portuguezes", mas aos Portugueses "aventureiros mesma Infantaria da terra, e menos seguras estão pelos mercadores do
auriccdentos", os "mascates" ou "mercadores", os "capitalistas", os Recife, do que em poder dos filhos de Pernambuco, de quem se deve fiar a
"forasteiros" e "oppressores Europeos", enfim, os Portugueses que, com seus maior segurança, como descendentes dos que à custa de suas vidas e fazen-
objetivos econômicos, "tentam abater e aniquilar a Nobreza do Paiz", "abater das a restauraram do poder do inimigo, porque mais fundamento de leal-
os nossos naturaes", "arruinar os Pernambucanos mais notáveis", "dar um dade se deve achar nel1es, que nos moradores do Recife, cujos princípios e
golpe decisivo na Nobreza de Pernambuco", ou seja, era uma oposição aos ser nesta terra conhecemos todos mui bem, e os naturaes de Pernantbuco
portugueses que ameaçavam o poder dos nobres, trazem sua origem de Nobreza mui qualificada, que vieram povoar esta
Assim, a oposição que se mostrava como sendo entre Pernambucanos e terra, dos quaes se devem esperar sempre as melhores resoluções de valor
Portugueses, era a oposição entre os nobres e os mercadores capitalistas. e brio, como tem mostrado a esperiencia", (Resposta da Camara ou Senado
Afirmamos, anteriormente, que tanto o Rev, Leitão quanto Fernandes d'Olinda ao Capitão-Mór da Parahyba, em Gama (1977).
ama falam do lugar do nobre, Portanto, nossa análise incide sobre o discur-
so do nobre, e o funcionamento que explicitaremos na oposição Vimos que o processo de constituição do cidadão é marcado pela pas-
Pernambucano/Português configura-se sob a perspectiva da nobreza, sagem da ordem do discurso Religioso para a ordem do discurso de Direito.
A partir do momento em que o Rev. Leitão afirma, em seu relato, que "os Em termos da configuração do sujeito no percurso de sua redefinição politico-
Portuguezes nos primeiros tempos foram denominados Mascates", não encon- jurídica na história do Brasil, da constituição do cidadão brasileiro, encon-
tramos mais, na seqüência do texto, a predicação de referência "Portuguezes". tramos, sob a ordem do discurso religioso, o aristocrata rural, o nobre, que,
Estes passam a ser nomeados sempre como "mascates", "mercadores", "aven- cheio de privilégios, legitimava seu poder através dos laços de dependência
tureiros auricedentos", "capitalistas", "forasteiros", "oppressores Europeos'', pessoal. Na medida em que a ordem do discurso passou a ser a do Direito, não
ou ainda, "moradores do Recife" e "mercadores do Recife". havia mais como manter o poder em termos pessoais, Encontramos, então, um
O apagamento apenas da predicação de referência "Portuguezes", sem nobre que tenta continuar a legitimar seu poder através de uma relação de
que ocorra o apagamento da predicação de referência "Pernarnbucanos", rede- direito para com o país, afirmando-se enquanto "natural do País", enquanto
fine a oposição, Pernambucano, atribuindo ao não-nobre, o mascate, o prcdicado de
Como mostramos, os Pernambucanos eram os "naturaes do Paiz", "a "forasteiro", "morador do Recife", desqualificando a relação deste para com a
Nobreza do Paiz", "a Nobreza de Pernarnbuco", os "Pernambucanos mais nova Terra, desqualificando seus direitos de cidadão, O não nobre não leria ()
notáveis", Se a essas predicações opomos as predicações "moradores do direito à cidadania, o direito de integrar a Câmara ou o Senado e exercer ()
Reei [c", "mercadores do Recife" e "forasteiros", a oposição fica caracterizada poder, porque era um forasteiro, alguém que "estava de passagem", sem ler,
entre os "Pernambucanos" e os "do Recife", entre quem é "natural do Paiz" e portanto, "lealdade para com o país",
quem é "forasteiro", apenas "morador", Essa redefinição na oposição esta-
hclccida pelos Pernambucanos permite-nos explicitar o funcionamento dis-
cursivo que preside a oposição,
A guerra aconteceu entre Olinda e Recife, duas vilas, que podiam
rqurpnrar se em termos de importância política, No entanto, entre
1'lllIóllllhuco, li capitania, e Recife, a vila, a dissimetria era grande, Ao nomear-
'l'l'lll:llllhucano", e não "Olindense", e ao nomear o outro como "do
\11 37
I{1;1;1i 1<I'N c: IAS BlE LIOGRÁFICAS
Eduardo Guimarães
I - CIDADANIA NO IMPÉRIO
ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço de
sua nação"
Deste modo, o nascimento em território brasileiro é apresentado como li
condição básica da cidadania no Brasil.
c) E aqui se põe uma pergunta: o os deste item I ° é anãíora de quê'! Não
pode ser de cidadãos brasileiros, pois assim se teria como paráfrase do cuput
do artigo e de seu item 1°: "São cidadãos brasileiros: os cidaduos brasrlciros
que no Brasil tiverem nascido". O os é anãlora de cidadaos. Isto leva à
seguinte paráfrase! para o caput do artigo 6° e seu item I": "Sào cidadãos
* Este texto foi publicado em Signo e Seiia, I. Universidade de Bucnos Aircs, 1992.
I A paráfrase é aqui considerada na sua relação com a polissernia tal como o vem fazendo E.
Orlandi (1983, 1990).
\H 39
!,ili\"kllll~ os cidadãos que no Brasil tiverem nascido". Ou seja a anáfora
1"111\11111110 antecedente do anafórico o termo que, no decorrer de todo texto, Na medida em que "cidadão" funciona como pré-construído, pode-se
" '1!1,III'lC WI11 a determinação, não incluindo, no entanto, a determinação. O perguntar: que outro lugar configura cidadão? Ou ainda: que outra enunci
111111ronumcnto da anáfora desfaz a determinação. Por esta anáfora, então, o ação configura cidadão?
u-xto significa a categoria do "cidadão", embora, de modo geral, o texto da Como vimos, e isto a interpretação anafórica do os do artigo 6° nos dá,
Coustituição expresse a categoria do "cidadão brasileiro". "cidadão" é um efeito de pré-construído pelo qual comparece no texto da
Significar a categoria do cidadão pela anáfora é constituir um efeito de constituição o que poderíamos caracterizar como discurso liberal, no qual não
pré-construído (Pêcheux, 1975) como se houvessem "cidadãos" com tais e caberiam enunciados como
tais predicados, qualidades e que, se nascidos no Brasil, seriam "cidadãos "Os escravos não são cidadãos"
brasi leiros". ou, por exemplo,
Mas é possível pensar em uma outra alternativa: o os interpretado como "Os escravos não são franceses"
dêitico. Neste caso ele refere o mesmo que indivíduos, pessoas referiria, e não Mas, contraditoriamente, o texto da constituição se dá de uma posição
o que cidadãos referiria. Com esta hipótese, o caput do artigo 6° e seu item 1° enunciativa tal que inclui enunciados como os acima. Ou seja, o enunciado
seria paráfrase de "São cidadãos brasileiros os indivíduos que no Brasil "Os escravos não são cidadãos brasileiros"
tiverem nascido ...". Esta interpretação correlaciona-se com a formulação do é um enunciado do dicurso em que se enuncia a Constituição de 1824.
item 4° do mesmo artigo. onde se tem: E isto se dá pelo efeito de sustentação de "quer sejam ingênuos ou liber-
"4° - Todos os nascidos em Portugal" tos", que, por expressar-se, acaba por significar aquilo que fez que o texto
além de no item 2° e 3° aparecer: omitisse: a existência de escravidão no Brasil e sua exclusão do predicado
"Os filhos de pai brasileiro, ...". "ser brasileiro".
Por outra parte há que se levar em conta a articulação explicativa do item
1°. Retomêmo-Io: 2 O Imperador e o Cidadão
"1° - Os que no Brasil tiverem nascido, quer sejam ingênuos ou libertos, ...".
cujo efeito de sentido é o efeito de sustentação (Pêcheux, 1975), o retorno do A Constituição do Império apresenta, no seu preâmbulo, enunciado da
conhecido: a especificação encaixada (quer sejam ingênuos 011 libertos) fun- posição do Imperador, o enunciado que segue.
ciona no enunciado como se só houvesse, no "universo" considerado, "indiví- "Fazemos saber a todos os nossos súditos, que, ..."
duos ingênuos ou libertos". A relação de posições enunciativas na qual se constitui a performativi-
Assim, se a interpretação dêitica estabelece uma relação parafrástica dade do texto é, então, entre o Imperador e os súditos. E aqui súditos, sem
entre "ser cidadão brasileiro" e "indivíduo nascido no Brasil", a interpre- maiores análises, são os que estão sob a "autoridade" do Imperador. E, como
tação anafórica, pelo efeito de pré-construído da anáfora do os, leva a con- diz o Art. 1° da mesma Constituição, o Império é a associação dos cidadãos.
siderar uma qualidade da cidadania que não seria geográfica. Por outro lado, Mas o Imperador promulga a Constituição para os súditos. E o Imperador é
o efeito de sustentação da especificação articulada (quer sejam ingênuos ou aquele que está, pelo próprio texto constitucional, acima do corpo social:
libertos) nos leva a considerar o cidadão como "O indivíduo livre, o homem basta registrar que o Imperador não está sujeito a nenhuma responsabilidade:
livre". O que faz com que o enunciado do item I ° possa ser interpretado "Art, 99. A pessoa do Imperador é inviolável e sagrada: ele não está
como paráfrase de: sujeito a responsabilidade alguma."
"Os ingênuos e libertos nascidos no Brasil, ainda que o pai seja A propósito da performatividade deste texto seria importante ainda colo-
estrangeiro ..." car: a) basicamente, ele foi outorgado pelo Imperador (lembremos aqui que
que sequer traria a questão do os discutida acima. Mas, se o item 1° do artigo Dom Pedro dissolveu a Assembléia Constituinte); e b) há uma enunciação de
6° é, de certo modo, paráfrase do enunciado acima, significa. também. algo Dom Pedro I importante de ser trazida aqui. No dia de sua coroação em
distinto. A paráfrase que acabamos de propor diz mais diretamente que há pes- primeiro de dezembro de 1822 ele disse que juraria a futura Constituição do
soas no Brasil da época que não são livres. Há efeitos de sentido do item 1°do Brasil, que deveria ser elaborada pela Assembléia Constituinte já convocada,
artigo 6° que são distintos de efeitos de sentido da paráfrase proposta acima. E "se for digna do Brasil e de mim".
estes efeitos de sentido do item 1° trazem um problema: se, por um lado. con-
fi, ma a qualidade de liberdade do cidadão, "mostra", por outro, que há pessoas
nascidas no Brasil que não são livres e, portanto, não são "cidadãos
111uxilciros". Negar a cidadania é negar a brasilidade.
to
41
, ti io, a Geografia, o Cidadão
IlIIpl~1 11CIDADANIA NO INÍCIO DA REPÚBLlCA
('01110 vimos, a performatividade do texto constitucional de 1824 se dá na Vou nesta parte começar pelo recorte enunciativo relativo à perforrnativi-
,d.u,ao Imperador/súditos. Deste modo, os "cidadãos" são "súditos". A posição dade dos seguintes textos: Proclamação da República, Decreto 78-A do
dI' "sujeito-cidadão" é ocupada por súditos do Imperador. Frise-se, neste ponto, Governo Provisório, Constituição apresentada pela Junta de Governo, e
que os "cidadãos" (ver o Art. 1° da Constituição) formam uma "nação livre". Constituição promulgada pelo Congresso Constituinte.
Mas os súditos são súditos do Imperador. A categoria do cidadão fica, então,
submetida à de súdito, e por esta via, a nação ao Imperador. 1 Os Concidadãos
Lembremo-nos, no entanto, que há uma interpretação dêitica para o os do
nem I° do artigo 6° que, com outros elementos do texto, aproxima "cidadão" A Proclamação do Governo Provisório de 15 de novembro de 1889 é ini-
de "pessoa", "indivíduo". ciada por um vocativo: concidadãos. Poder-se-ia, pois, dizer que sua perfor-
Mas deve-se assim mesmo considerar que há uma distância entre pessoa e matividade se dá no interior da relação de cidadania. Veremos, no entanto, que
cidadão, já que "súdito" é constituído na relação com o "Imperador" e o "ci- não é isso que ocorre.
dadão" apresenta-se como um pré-construído tal que os "cidadãos brasileiros" Este vocativo reaparece mais três vezes, no início de outros três blocos
formam a "nação" e sua associação política é o Império. Deste modo a mesma textuais da Proclamação. E assim a enunciação do texto se apresenta como se
pessoa pode ser súdito e cidadão, dependendo da relação que se considera. dando do lugar do cidadão para o cidadão. Ou seja, sua performatividade se
Pode-se, então, dizer que o que cidadão "designa" é algo que pode ser daria como própria desta relação.
referido por ninguém, todos; que é "súdito" do "rei". Mas se isto se apresenta assim, é preciso notar também que a relação de
A designação de cidadão não é uma relação entre cidadão e "algo". É uma concidadania em que se mostra a performatividade é subcategorizada já no
relação entre cidadão, alguém, ninguém, todos, súdito (esta uma relação muito primeiro enunciado do texto:
especial) e "algo" que é "criado" por todas estas possibilidades de referência. Ou
seja, tudo isto constitui uma categoria "cidadão" neste texto constitucional. "O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita comunhão de senti-
Na constituição, à medida em que qualifica como cidadão brasileiro mentos com os novos concidadãos residentes nas províncias, acabam de
"ingênuos ou libertos", escravo aparece só como uma contraparte disto, não decretar a deposição da dinastia imperial e conseqüentemente a extinção
sendo dito no texto. Aparece como o que o efeito de sustentação de "quer do sistema monárquico representativo"
sejam ingênuos ou libertos" faz omitir.
Então, como vimos, no texto da Constituição do Império tem-se algo que Ou seja, a cidadania, qualidade de todos, se distingue em povo, exército,
é paráfrase de "há escravos no Brasil, eles não são brasileiros". Há algo que é armada e cidadãos das províncias. Assim, o que o vocativo iguala, o primeiro
paráfrase disto sem que esta seqüência tenha sido dita. E assim, como há um enunciado do texto distingue. Deste modo cabe a pergunta: qual é a relação
componente geográfico para os dois textos na configuração da brasilidade, nos performativa que efetivamente se dá? Entre que subcategorias das acima
dois casos, para os escravos, suspende-se a geografia, subtrai-se a cidadania referidas?
(estão ou nasceram no Brasil, mas é como se não estivessem, enquanto nesta A análise, ainda do primeiro bloco, mostra que a Proclamação diz que o
condição de escravos). chefe do poder executivo da nação nomeia como Governo Provisório os sig-
Por outro lado, no texto Constitucional há uma forma indireta de pro- natários da própria Proclamação. Assim, o texto nomeia as pessoas que o assi-
duzir esta qualificação. Ela se dá pela presença da categoria do "cidadão" nam e representa o lugar da performatividade da nomeação. Este lugar é o da
determinada no texto por brasileiros. Ou seja, a cidadania que uns têm dá- chefia do poder executivo provisório. A Proclamação, no entanto, parece não
lhcs, numa geografia determinada, a brasilidade. E quem não a tem não é representar o lugar que instituiu a chefia do Governo Provisório. Diria, então,
brasileiro. Ou seja, é "cidadão", como já dissemos acima, que qualifica, que o texto não significa diretamente este lugar enunciativo, embora o consti-
determina "brasileiros", apesar de a construção sintática parecer indicar na tua de alguma forma. Veja: o chefe do Governo é um marechal; o texto distin-
ducçao oposta. guiu povo de exército e armada nacional. Assim o texto dá os elementos para
se considerar como perspectiva enunciativa o lugar das "forças armadas",
sendo o povo o destinatário' desta posição. Deste modo, a perspectiva das
2 Enunciador e destinatário (Ducrot, 1984 e Guimarães, 1989), são posições de sujeito da cnun-
ciação. Para mim esta posição é a da perspectiva enunciativa historicamente considerada.
I' 43
l'lI\liN .u ru.ulas" institui a chefia e o chefe do Governo Provisório e, por con- tal como na Constituição de 1824, do Império.
'1111111', através dele (chefe de governo) institui o Governo Provisório. O caput do artigo 69 e seu item primeiro são:
l)ill.lllI\l\, então, que a performatividade não se dá no interior da cidadania,
11I.t~ entre "forças armadas" e povo. "Art. 69 - São Cidadãos Brasileiros
Isto se confirma se buscarmos uma relação enunciativa entre este texto e 1o - Os nascidos no Brasil, ainda que de pai estrangeiro, não residindo a
11111 texto posterior: o decreto 78-A de 21 de dezembro de 1889 que diz no seu serviço de sua nação"
prcúmbulo:
Ressalte-se, já, que este é exatamente o texto da constituição promulgada
"O Marechal Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisório, pelo Congresso Constituinte em 24 de fevereiro de 1891. Tem-se, então, que
constituído pelo Exército e Armada, em nome da Nação, considerando ..." para ser cidadão brasileiro o requisito fundamental é o do nascimento no Brasil.
Por outro lado cabe aqui lembrar que temos a mesma questão relativa à
Ou seja, este texto, tal como os decretos subseqüentes, significa expres- anáfora e dêixis do os discutida na constituição de 1824. Assim, neste artigo,
samente o que o texto da Proclamação do Governo Provisório significava sem cidadão é um pré-construído. A diferença é que não há nos textos dos decre-
dizer diretamente. tos do Governo Provisório e da Constituição de 1891 o efeito de sustentação
De qualquer modo é importante registrar que há um movimento de sig- relativo a quer sejam ingênuos ou libertos, até porque isto se tornara impossí-
nificação que é distinto do que se dá na Constituição do Império. vel pela abolição da escravidão, enunciação, ainda, do final do Império.
Registre-se, ainda, que pelo decreto 510 de 2 de junho de 1890, o Deste modo, cidadão nestes textos tem uma configuração mais específi-
Governo Provisório decreta urna Constituição para o Brasil, ao mesmo tempo ca e não constitui um efeito de sentido em que cidadão qualifica brasileiros,
em que convoca "o Congresso Nacional dos representantes do povo como no texto do Império. Aqui cidadão significa mais diretamente as quali-
brasileiro". E, ao decretar tal Constituição e convocar o Congresso, traz como dades da cidadania do discurso liberal, e é brasileiros que qualifica cidadãos.
lugar de sua força performativa o exército e a armada: Assim cidadão é menos sinônimo de pessoa, indivíduo. Constitui-se como
algo acima das fronteiras geográficas. Sendo a geografia uma circunstância
"O Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil, cons- qualificadora.
tituído pela Exército e Armada, ..."
3 A Onipresença do que Fica Fora
Seria interessante ressaltar aqui que o Governo Provisório, instituído do
lugar das forças armadas, convoca os representantes do povo brasileiro. Como Pela análise da performatividade que fizemos nesta parte, podemos dizer
vimos, o próprio Governo Provisório enunciou a distinção entre exército e que o lugar do cidadão não é um lugar pleno, capaz de gerar sua própria orde-
armada de um lado e povo de outro. Assim, o ato de convocação de nossa nação jurídica. As relações enunciativas deste início de república constituem
primeira Constituinte da República se dá no espaço de uma diferença, de uma um lugar externo (as Forças Armadas) à cidadania, ao povo. E este lugar exter-
desigualdade hierarquizada, em que as "forças armadas" convocam o povo no, a partir do texto da Constituição de 1891, fica como uma significação não
para fazer uma constituição. Deste modo mantêm-se o exército e armada corno dita, porque já-dita.
externos à formulação da própria constituição.
A significação performativa nos dá, através desta análise histórica, o lugar
externo (forças armadas) capaz de arbitrar o texto da lei, onde ela (as forças III CONCLUSÃO
armadas) estará presente como interna à lei.
Assim a cidadania se vê formulada e instabilizada pelo lugar que a for- Para concluir retomemos algo que nos parece decisivo: a polissem ia entre
mula. anáfora e dêixis do os do item IOdo Art. 6 da Constituição do Império e do
0
1·1 45
1I~ICIII,I,IiI,() retorno do conhecido) para a definição do cidadão. É deste
IIllidu '1"\, lia Constituição do Império, cidadão qualifica brasileiros. Já no
II~X 111 d,l I{qwblica não há isso e o efeito de pré-construído do discurso liberal
rlllllltlll,1 plenamente. Então, no Império, na configuração da cidadania, são
4
1IIIIII1IIadasas relações de produção junto com a geografia. Na República, ao
\ untuu io, a cidadania é formulada como se as relações de produção não con-
I.I"~\·III:na Constituição da República funciona o pré-construído do discurso
liberal. como se ele definisse tudo. A geografia se apresenta como se fosse
o CIDADÃO NA IIIª REPÚBLICA BRASILEIRA
nu-ru circunstância.
Por outra parte, confrontando a performatividade que trabalha a Constitui-
Freda Indursky
~U() do Império e a dos textos do início da República, podemos dizer que o
texto da Proclamação da República como que instala as relações jurídicas no
Interior da relacão de cidadania, aparentando diferenciar-se das relações da
pcrformatividade da Constituição do Império que se dava deixando de fora a
Cidadania, subordinando o cidadão ao súdito.
QUE CIDADÃO É ESTE?
Mas vimos como, mesmo aparentando estabelecer relações jurídicas na
relação entre cidadãos, os textos do início da República constituem, como um
Proponho-me analisar o discurso presidencial da ll1a. República
efeito de sentido fundamental para sua performatividade, um lugar externo ao
Brasileira (1964-1984) para verificar como o cidadão nele está representado.
do cidadão: o das "forças armadas".
Este exame foi determinado pela constatação de que esta forma de designação
Assim, embora diferentemente no Império e início da República, o
é rara neste universo discursivo e, quando ela se faz presente, efeitos de senti-
"cidadão" é algo instável. Este objeto instável tem sua constituição formulada
do particulares se produzem. Assim, no campo discursivo de Castello Branco,
sempre de um lugar que instabiliza não sua configuração, simplesmente, mas
primeiro presidente deste período, cidadão é aquele que tem deveres, tal como
sua existência. Há sempre um fora do "cidadão" que pode não só falar dele,
é possível observar no recorte' discursivo (I) que se segue.
mas configurá-Io; que pode, portanto, excluí-Ia.
(1) A vista do que se fez, cada cidadão melhor compreenderá a razão dos
sacrifícios reclamados pelo governo e certamente sentir-se-á orgulhoso de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
contribuir para a edificação de uma grande pátria. (CS2 - 11.11.65 - RI,
Assembléia Legislativa, p. 45)
DUCROT, O. (1984) Le Dire et le Dit. Tradução brasileira, o Dizer e o Dito,
Campinas, Pontes, 1987.
A partir de (I) pode-se inferir que um indivíduo tem o direito de ser
GUIMARÃES, E. e outros (1989) Vozes e Contrastes. São Paulo, Cortez. chamado cidadão se tiver a capacidade de sacrificar-se por sua pátria. Este
ORLANDI, E.P. (1983) A Linguagem e seu Funcionamento. 2' ed. ampliada, efeito de sentido torna-se mais claro a partir do recorte discursivo (2), que
Campinas, Pontes, 1987. examinamos a seguir.
RLANDI, E.P. (1990) Terra à Vista. São Paulo, Cortez/Ed. da Unicamp.
(2) Uma nação cujos cidadãos porfiam em reclamar somente o gozo dos
J>nCIIEUX, M. (1975) Les Vérites de Ia Palice. Tradução brasileira,
direitos, esquecendo a disciplina dos deveres, está fadada ao subdcscn
Semântica e Discurso, Campinas, Ed. da Unicamp, 1988.
volvimento econômico, à injusta perpetuação de privilégios ... (CS2
30.09.65 - A propósito das eleições de 03.10.65 - )1. H)
A noção de recorte foi proposta por ORLANDI (1981 1289: 1984: 117) para disunguir
análise frasal, que opera com a segmentação lingüística, de análise discursiva, cuja matenali-
dade é o texto. Orlandi entende recorte como uma unidade discursiva onde linguagclllc-silua-
ção estão correlacionadas. Em suma, recorte é um fragmento da situação discursiva.
1(1
47
I) fi 1"llIll'lI O recorte revela uma concepção de cidadão centrada na dico- preciso observar, no entanto, que esta reintegração não se faz sem constrangi
iUliOil ilill'IIII~ltll:veres e indica a associação entre dever e orgulho como seu mento, o que pode ser verificado pela freqüência inexpressiva de seu emprego
1'61[, IJII" 11vo, o segundo dá relevo a esta separação, através da identificação neste campo discursivo, limitando-se a apenas três ocorrências.
IIII~ dlll'llm com seu pólo negativo. Vale dizer que, durante a ditadura mode-
1'lId.1cll' Custcllo Branco, cidadão é aquele que abdica livremente de seus direi-
til.\ /'/11 //O/IIe de seus deveres cívicos.
() efeito de sentido produzido por cidadão no campo discursivo de Costa ONDE ESTÁ O CIDADÃO?
l' Silva. segundo do ciclo militar, é diverso daquele produzido no primeiro, tal
l"IIIIIO pode-se verificar através do recorte discursivo (3). A constatação do apagamento progressivo de cidadão neste universo dis-
cursivo determinou o exame de seu jogo enunciativo e é assim que, em busca
(1) O presidente da República ficou transitoriamente munido de poderes do cidadão, este trabalho encaminhou-se naturalmente ao estudo de NÓS,
excepcionais, para praticar todos os atos necessários à manutenção da ordem pois, segundo Guespin (1985, p. 46), NÓS designa "conjuntos não
pública, à defesa da segurança individual e coletiva dos cidadãos, onde nomeáveis", cujas fronteiras indefinidas e móveis favorecem a instauração e a
venha ela a ser ameaçada ... (CS2 - 31.12.68 - Mensagem à Nação, p. 479) indeterminação referencial. Geffroy (1985, p. 6) considera que "NOS é a
primeira encarnação lingüística do mais de um", através da qual é possível
preciso observar inicialmente que (3) foi recortado de um discurso pro- examinar a passagem do "sujeito falante ao sujeito político". A este propósito,
nunciado após o golpe de estado interno realizado através do AI-5, em 1968. é preciso retomar o raciocínio de Guespin (1985, p. 45-6) sobre o funciona-
As mudanças por este acarretadas se fazem igualmente visíveis na materiali- mento da relação eu/tu. O autor observa que esta relação tem muito pouco a
dadc discursiva. No recorte em exame, percebe-se que o cidadão não é mais o oferecer no que tange a interlocutores sociais. Em seu lugar, surge NÓS que
guardião de seus próprios interesses. O Estado apropriou-se desta guarda, se mostra muito produtivo, pois, por seu intermédio, o sujeito do discurso
ficando este sob sua tutela. Se, no campo discursivo de Castello Branco, o pode associar-se a referentes muito variados, sem especificá-Ios lingüística-
cidadão abdicava voluntariamente de seus direitos, na ditadura explícita de mente. Esta operação de adjunção é responsável pela "elasticidade" referen-
osta e Silva, estes lhe foram confiscados e, neste segundo campo discursivo, . cial característica de NÓS, daí decorrendo a ambigüidade do que é dito.
cidadão é aquele que possui o direito de se submeter livremente aos deveres Estes grupos lexicalmente não nomeados correspondem ao que desig-
que lhe são ditados pelo Estado. namos de não-pessoa discursiva. É preciso observar, entretanto, que esta não
A exacerbação desta concepção de cidadão é atingida durante o governo se identifica com a terceira pessoa ou, como Benveniste (1966) a chama, a
de Médici quando o cidadão desaparece textualmente do discurso presiden- não-pessoa. No quadro da interlocução política que examinamos, a não-pes-
cial, não mais sendo mencionado. É o período do Brasil: ame-o ou deixe-o. soa discursiva é assim chamada porque ela é referencialmente indeterminada.
Cidadão só retoma ao discurso oficial da IIIa. República no campo dis- Vale dizer: a não-pessoa discursiva não corresponde a uma operação de
cursivo do Presidente Geisel, o quarto da linha sucessória deste ciclo. Embora exclusão do discurso, tal como ocorre em Benveniste (1966). Ao contrário. Ela
raramente empregado, quando o é retoma o efeito de sentido construído no possibilita a instauração de uma operação de inclusão indeterminada. De
segundo campo discursivo. O mesmo ocorre inicialmente no campo discursi- modo que proponho chamar de não-pessoa discursiva a pessoa não-nomeada
vo de Figueiredo, o quinto do corpus em análise. Entretanto, é neste último a qual EU se associa para constituir NÓS, o sujeito político.
que cidadão sofre uma nova transformação, como é possível apreciar através Em meu corpus, NÓS é dotado de uma amplitude referencial muito
do recorte discursivo (4). grande, fato este que me conduziu a uma análise detalhada para determinar sua
escala referencial. A seguir, encontra-se a grade dos referentes discursivos de
(4) Defendo ... a melhor distribuição entre todos, dos frutos do trabalho NÓS no discurso da ma República Brasileira
comum ... Mas ninguém atingirá esse estado pela magia de ideologias que
só prosperam enquanto neguem os direitos cívicos de seus cidadãos ... (F2
7.1.80 - Brasília - Discurso dirigido aos Estudantes de Direito, p. 25).
49
(5) Assim armados, chegamos com uma nova constituição ao dia 15 de
NíVEL Descrição do REFERENTE março de 1967. A Revolução realizava sua vocação, constitucionalizando-
se ... Mas os inimigos não desistiram e tornaram à carga, agora sob novas
NOSI Chefe do executivo formas, impondo-nos a decisão de 13 de dezembro. (CS2 - 31.03.69 - 5°
Aniv. Revolução, p. 414),
NÓS2 Sistema, Regime, Estado, Revolução
NÓS3 Governo, gestão, administração, conjunto das instâncias Ao representar-se através de NÓS2, o sujeito do discurso se representa
constitutivas do Governo como porta-voz da não-pessoa discursiva a qual se associa, ao mesmo tempo
que fala investido do discurso fundador' do Regime Militar, produzindo o
NÓS4 A coletividade dos brasileiros efeito de sentido de uma Revolução constantemente em marcha. Em outras
palavras: através de NÓS2 instaura-se um duplo movimento: de um lado, o
NÓS5 O presidente e um segmento da sociedade (Forças sujeito do discurso retira sua legitimidade do discurso fundador; de outro lado,
Armadas, Partido, Imprensa, Oposição ...) esta legitimação dá-lhe o poder de colocar sua voz a serviço da enunciação
ideológica do regime.
o exame desta grade referencial permite algumas considerações preli-
minares. Constata-se que todos os níveis de NÓS pertencem à esfera pública.
Acrescente-se a isto que, com exceção de NÓS I, que remete para a esfera NÓS3 - GOVERNO, ADMINISTRAÇÃO, GESTÃO, INSTÂNCIAS
pública individual, os demais níveis localizam-se na esfera pública partilhada. CONSTITUTlVAS DO GOVERNO
A natureza desse compartilhamento varia a cada nível. Desta forma, NÓS2 e
NÓS3 pertencem à esfera pública institucional, na qual o sujeito do discurso NÓS3, da mesma forma que NÓS2, representa a personificação de uma
se associa a diferentes segmentos, enquanto seu porta-voz. Por conseguinte, não-pessoa discursiva em nome da qual o sujeito do discurso fala. Trata-se da
NÓS2 e NÓS3 constituem um uso panitivo. Igualmente partitivo, NÓS5 representação do conjunto lexical não-nomeado - Governo; administração,
difere dos dois níveis anteriormente examinados porque, através dele, o sujeito instâncias constitutivas do Governo - pertencente à esfera pública institu-
do discurso associa-se a um referente não-especificado sem se constituir em cional. Este é o nível que está representado no recorte (6) que segue.
seu porta-voz. Finalmente, NÓS4 escapa à esfera institucional. Neste nível, o
sujeito associa-se a todos os brasileiros, constituindo-se em um uso coletivo. (6) Nossos propósitos de justiça social estão patentes aos olhos de todos.
Neste trabalho examinarei os empregos partitivo e coletivo, não me ocu- Não prometemos senão aquilo que poderíamos realizar e tudo quanto
pando pois do primeiro nível, já que este remete ao espaço público individual, prometemos está sendo realizado. (M4 - 1.5.73 - Mensagem aos
o plural dito de majestade. Adotaremos a grade referencial como elemento Trabalhadores, p. 12).
organizador das análises que se seguem.
Uma última observação se faz necessária: NÓS representa, em nossas NÓS3 representa a opinião do Presidente da República associada à dos
análises, toda a série que refere a primeira pessoa plural: nós, nos, nosso bem ministros e outros colaboradores que compõem a esfera gerencial do Governo.
como a desinência verbal correspondente. Ou seja, o sujeito do discurso, através de NÓS3, se institui o porta-voz de
diferentes membros do Governo, sem nomeá-Ias, reduzindo-os à dimensão da
não-pessoa discursiva.
NOS2 - SISTEMA, ESTADO, REVOLUÇÃO
este nível pertence ao espaço público institucional. Através dele, o sujeito 2 O grupo de pesquisa em Análise do discurso da Universidade Estadual de Campinas desen-
do discurso associa-se a um conjunto lexicalmente não-nomeado, muito difu- volve estudos sobre o discurso fundador. (cf. Discurso Fundador, E Orlandi (org.), Pontes,
so, cujo referente remete ao regime militar, no poder a partir de 64. Trata-se Campinas, 1993). No que se refere ao presente trabalho, chamo de discurso fundador o dis-
da personificação de uma não-pessoa que resulta na não-pessoa discursiva da curso que instaurou em 1964, sob a fachada de uma Revolução, o Regime Militar no Brasil. O
quul o sujeito do discurso, ao associar-se-lhe, se faz o porta-voz legítimo, já discurso inaugural de 64, dito revolucionário. E "revolução", neste universo discursivo, sugere
qUl' pertence a este grupo não-nomeado. Para melhor perceber este funciona- o efeito de sentido de um processo perpétuo que é, de fato, construído discursivamentc pelo
IIH'lIln, examinemos o recorte (5) que se segue. recurso à repetição, à celebração. Este procedimento instaura o discurso fundador no interior
do discurso presidencial da 111" República Brasileira.
,I) 51
NÓS5 - O PRESIDENTE E UM SEGMENTO DA SOCIEDADE (8) ...estendi as minhas mãos aos adversários políticos para que, juntos,
num movimento de união, deixássemos (5) de pensar um pouco nos nos-
O quinto nível também se situa fora da esfera institucional. Nele o sujeito sos (5) interesses pessoais e pensássemos (5) um pouco neste nosso (4)
do discurso associa-se a diferentes segmentos da sociedade, constituindo-se Brasil tão carente de união da nossa (4) gente.
em um emprego partitivo, através do qual, por vezes, é possível captar a repre-
sentação indeterminada do cidadão, tal como ocorre no recorte (8). Nesta seqüência coexistem dois níveis referenciais de NÓS. O sujeito do
discurso, através de deixássemos e pensássemos, une-se aos adversários políti-
(8) ...estendi as minhas mãos aos adversários políticos para que, juntos, num cos, o que caracteriza o emprego de NÓS5 em uma operação de inclusão, a
movimento de união, deixássemos de pensar um pouco nos nossos interess- qual não se mantém em "nossos interesses", que serve bem mais para lembrar
es pessoais e pensássemos um pouco neste nosso Brasil tão carente de união ao cidadão os seus deveres. A aparente socialização do dizer do sujeito do dis-
da nossa gente. (FI - 25.07.80 - Improviso produzido em Recife, p. 177) curso indica que sob os "nossos interesses pessoais" cabe, de fato, ao adver-
sário esquecer seus direitos ou seja, nossos estabelece a exclusão do sujeito do
Através de NÓS5, conforme já afirmamos, o sujeito do discurso se repre- discurso, referindo apenas os interesses de seu destinatário. Dito em outras
'1'111.1associado a diferentes segmentos da sociedade, tais como as classes produ- palavras: o adversário político deve abdicar de seu direito de opor-se ao go-
1111,". ,I Illlpl ensa, os militares, os adversários políticos, etc. Dada a grande va- verno para ser reconhecido como cidadão, podendo, desse modo, ser associa-
53
I" IIII,IIJIIII) do discurso. Esse é o preço da cidadania. Assim procedendo, terá Discursos Presidenciais
" 11111'110d~' integrar o conjunto dos cidadãos, sinalizado pelo uso coletivo de
NI I'" I \'11\ "nossa gente". Dessa forma, o cidadão sacrifica seus direitos pelo
d1'V1'1 de ir ao encontro das necessidades da pátria comum, igualmente não- Castello Branco (CB)
111!lIlvada, mas pressuposta no uso coletivo de "nosso Brasil". CB 1 - CASTELLO BRANCO, Humberto de Alencar. Discursos. Brasilia,
A coexistência no mesmo recorte discursivo de diferentes níveis referenci- Secretaria da Imprensa, 1964.
•IIS de NÓS opacifica as diferenças e produz o efeito de sentido de um único
CB2 - . Brasília, Secretaria da Imprensa, 1965.
NOS coletivo. Essa aparente neutralização se projeta sobre o conjunto do cor-
pus, surgindo daí um sujeito político embaçado que se associa a diferentes não-
pessoas discursivas, indefinidas, produzindo uma enunciação indeterminada. 2 Costa e Silva (CS)
Após as análises efetuadas, parece lícito afirmar que a dicotomia obser- CSI - COSTA E SILVA, Arthur da. Pronunciamento do Presidente,
vada no emprego de cidadão se projeta sobre os diferentes níveis referenciais Brasília, Secretaria de Imprensa e Divulgação da Presidência da
de NÓS: NÓS2 e NÓS3 são detentores dos direitos, enquanto os deveres são República, (1983). V.1.
o privilégio de NÓS4. O NÓS5, por sua vez, representa uma zona de forte CS2 - . V2.
ambigüidade porque neste nível direitos e deveres são distribuídos em função
da não-pessoa discursiva associada ao sujeito: algumas são cumuladas de
direitos enquanto outras recebem apenas os deveres. 3 Médici (M)
Esta redistribuição dos direitos e deveres encontra-se na base do apaga- M 1 - MÉDICI, Emílio Oarrastazu. O jogo da verdade. Brasília, Imprensa
mento discursivo do cidadão que, por sua vez, é conseqüência de seu apaga- Nacional, 1970.
mento político: ele não é nomeado porque foi desqualificado pela desapropria-
M2 - . Nova Consciência do Brasil. Brasília, Imprensa
ção que sofreu no que tange aos seus direitos cívicos. Essa é a dimensão do
Nacional, 1970.
cidadão neste universo discursivo: ele foi reduzido à configuração fantas-
magórica da não-pessoa discursiva que convém plenamente as condições de M3 - . Tarefa de todos nós. Brasília, Impresa Nacional, 1971.
produção do discurso da ma República Brasileira. M4 - . Os anônimos construtores. Brasília, Imprensa Nacional,
1973.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
4 Geisel (G)
01 - OEISEL, Ernesto. Discursos: 1974. Brasília, Imprensa Nacional,
Textos Teóricos
1975. V1.
02 - . Discursos: 1975. Brasília, Imprensa Nacional, 1976. V2.
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral!. Campinas, Pontes, 4a
03 - . Discursos: 1978. Brasília, Imprensa Nacional, 1979. VS.
edição, 1995.
FFROY, Annie. Les noms indistincts. Mots (10), Março, 1985.
5 Figueiredo (F)
JUESPIN, Louis. Naus, Ia langue et l'interaction. Mots (10), Março, 1985.
FI - FIOUEIREDO, João. Discursos: /980. Brasília, Secretaria da
RLANDI, Eni. A Linguagem e seu funcionamento. Campinas, Pontes,
Imprensa e Divulgação da Presidência da Rcpúbl ica, 1981. Y. I.
43 edição, 1996.
F2 - . Discursos: /982. Brasflia, Secretaria da Imprensa e
_____ (Org.) Discurso Fundador, Pontes, Campinas, 1993.
Divulgação da Presidência da República, 1982. Y.4, T.1.
F3 - . Discursos: 1983. Brasília, Secretaria da Imprensa e
Divulgação da Presidência da República, 1983. Y.S.
lil
55
5
Fernando Tarallo
I PALAVRAS DE ENTRADA
* Este artigo é a versão integral em português do original em inglês escrito durante o estágio de
) pós-doutorado do autor no Romanisches Seminar da Universidade de Hamburgo, Alemanha.
patrocinado pela Fundação Alexander von Humboldt. A ajuda financeira e acadêmica da
Fundação são profundamente reconhecidas.
Ver, por exemplo, entre outras tantas referências, João Ribeiro, 1905, Páginas de Estetica, e
1933, A língua nacional. No/as aproveitâveis, José Pedro Machado, O Português do IJIII.çil. c
H. Senna, 1952, O Problema da Língua Brasileira.
59
lIilitll! .11111('1
pCl1ciade uma gramática brasileira que, ao final do século XIX, Um dos pontos centrais levantados no trabalho de 1968 era a tentativa de
"IIiNII'I" ,\ ( 1111
as di Icrcnças estruturais em relação à gramática portuguesa. Tais romper o paralelismo entre a noção de estrutura e o conceito de homogenei-
""111 "\iI~. conforme bem o atestam os trabalhos de Galves (1987,1990, entre dade. Ou conforme referendado no texto à página 100:
1111111" lólI110S),tornaram-se ainda mais acentuadas neste final do século XX.
<.lllilIIO grandes mudanças sintáticas serão aqui apresentadas: Long before predictive theories of language change can be attempted, it
I n re-organização do sistema pronomial que teve como conseqüências will be necessary to learn to see language - whether from a diachronic ar
IIII1IS importantes a implementação de objetos nulos no sistema brasileiro de a synchronic vantage - as an object possessing ordcrIy heterogencity
11I11 lado, e sujeitos lexicais mais freqüentes de outro (cf. Tarallo, 1983, 1985); (grifo nosso) (...) The more linguists became impressed with the existence
li mudança sintática ocorrida nas estratégias de relativização como conse- of structure of language, and the more they bolstered this observation with
qüência direta da mudança no sistema pronominal (cf. Tarallo, 1983, 1985); deductive arguments about the funcional advantages of structures, the
\ li re-organização dos padrões sentenciais básicos (cf. Berlink, 1988, 1989) e, more mysterious became the transition of a language from state to state.
di rctamente relacionado a esta ordem SVO rígida em estado de emergência à After ali, if a language has to be strctured in order to funcution efficiently,
peca, o enrijecimento do princípio de adjacência na marcação do acusativo how do people continue to talk while the language changes, that is, while
(cf. Ramos, 1989, 1991); 4 e, finalmente, uma quarta mudança no sistema it passes through periods of lessened systematicity? (ênfase acrescida).
brasileiro, diretamente ligada às três anteriores, será apresentada como evidên-
cia cabal de que os dois sistemas continuam a distanciar-se um do outro: os Após terem sido tão produtivas na análise de dados sincrônicos, teorias
padrões sentenciais em perguntas diretas e indiretas (cf. Duarte, 199 I). estruturalista da linguagem causaram uma série de paradoxos no estudo da
Este texto está dividido em três seções, além da introdução em I e das mudança lingüística que precisavam ser neutralizados de uma forma ou de
considerações finais em 5. A seção 2 apresenta algumas considerações teóri- outra. A saída segundo WLH seria assumir que
cas e metodológicas de maneira a reforçar a possiblidade de uma abordagem
interdisciplinar à questão da cidadania no final do século XIX, se socio- a model of language which accomodates the facts of variable usage and
lingüística, discursiva, ou ambas. Na terceira seção alguns testemunhos de its social and stylistic determinants not only leads to more adequade
autores brasileiros e portugueses são retomados a fim de ilustrar o lado emo- descriptions of linguistic competence, but also naturally yields a theory of
cional das discussões. Finalmente, na seção 4 serão apresentadas as quatro language change that bypasses the fruitless paradoxes with which histo-
mudanças sintáticas atestadas na literatura brasileira de sociolingüística, argu- ricallinguistics has been struggling for over half a century (WLH, 99).
mentando-se que a variedade portuguesa falada no Brasil já desenvolveu um
número de traços sintáticos discerníveis o suficiente para possibilitar uma Um programa de pesquisa foi então montado a fim de dar conta de todos
descrição de seu sistema no sentido de uma gramática brasileira. A seção 5 os ângulos e diferentes faces dos fenômenos de variação e de mudança
fecha o texto retomando conclusões presentes nas seções anteriores. lingüísticas. Tal paradigma quantitativo procura, pois, contemplar cinco
questões centrais de pesquisa: 1 a questão das restrições/condicionamentos,
ou the set of possible changes and possible conditions for changes which
2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS can take place in a structure of a given type (WLH, p. 101); 2 a questão do
encaixamento: How are the observed changes embedded in the matrix of lin-
A apresentação e discussão das quatro mudanças sintáticas são feitas a guistic and extralinguistic concomitants of the forms in question? What
partir do quadro teórico desenvolvido por Weinreich, Labov & Herzog (1968) other changes are associated with the given change in a manner that cannot
c as linhas mestras são a noção de encaixamento lingüístico das mudanças sin- be attributed to change? (WLH, p. 10 1); 3 a questão da avaliação: How can
táticas a serem examinadas, assim como o princípio da uniformidade de acor- the observed changes be evaluated - in terms of their effects upon linguistc
do com o qual as forças que operam no presente são as mesmas que teriam structure, upon communicative efficiency (as related, e.g., to functional
operado no passado. load), and on lhe wide range of nonrepresentational factors involved in
O referencial teórico adotado é conhecido na Iiteraratura lingüística ) speaking (WLH, p. 101); 4 o problema da transição, ou intervening stages
uuuvés de vários rótulos: paradigma quantitativo para o estudo da competên- which can be observed, or which must be posited, between any two forms of
viu comunicativa (cf. Sankoff, 1974), variação e mudança lingüísticas, ou sim- a language defined for a language community at different times (WLH, p.
plesmente sociolingüística (cf. Labov, 1972). Os pressupostos teóricos subja- 101); e, finalmente, 5 a questão da implementação, perhaps the most basic:
(l'l1les u esse quadro podem ser localizados no trabalho, agora clássico, de what factors can account for the actuation of changes? Why do changes in
I%H (k Wcinrcich, Labov & Herzog (doravante WLH). a structural feature take place in a particular language at a given time, but
liO 61
lunguages with the same feature, or in the same language at
!(.II ;11 111111'/ cionada ao quadro teórico da análise do discurso. Do lado teórico a análise do
(WLH, p. 102).
111" / II/I/I',\'? discurso, tal qual proposta por Orlandi, por exemplo, procura dar conta dos
(>lllros postulados feitos no texto de 1968 e que permanecem intactos na processos de produção e significação da linguagem, mas não dos produtos
11111.11\11:1 sociolingüística de hoje são: lingüísticos.' As mudanças sintáticas a serem apresentadas neste trabalho,
entretanto, são derivadas de um tipo de análise que assume, acima de qualquer
'Ilie generalization of linguistic change throughout linguistic structure is coisa, que a linguagem não somente reflete normas sociais, como também as
neither uniform. nor instantaneous; it involves the covariation of associa- reforça. Além disso o referencial teórico do presente trabalho diferentemente
ted changes over substancial periods oftime, and is reflected in the diffu- concebe o objeto a ser estudado: trabalha-se com produtos lingüísticos com
sion of isoglosses over areas of geographical space; the grammars in atenção especial à questão da representatividade do corpus. Novamente, os
whicli linguistic change occurs are grammars of lhe speech community. dois quadros teóricos diferenciam-se pois a análise do discurso concentra sua
Because the variable structures contained in language are determined by atenção em recortes do texto em oposição a segmentos.' A motivação para
social functions, idiolects do not provide the basis for self-contained or análise, com base em corpora é também diferenciada nos dois referenciais:
internally contained grammars; linguistic and social factors are closely para a análise do discurso a motivação é claramente teórica' enquanto para a
interrelated in the development of language change. Explanations wich sociolingüística a análise de dados simplesmente reflete a necessidade de tra-
are confined to one or the aspect, no matter how well constructed, willfail balho empírico concebido como um retrato exaustivo dos fenômenos em estu-
to accounl for the rich body of regularities that can be observed in empi- do. Isto é: o trabalho empírico realizado pela sociolingüística ilustra o postu
rical studies of language behavior (WLH, pp. 187-18). lado segundo o qual as leis científicas, a fim de serem consideradas como tal,
precisam ser recorrentes e freqüentes.
Depois dessa breve introdução ao quadro teórico a partir do qual as A análise do discurso ainda estabelece a inexistência de uma relação
mudanças sintáticas da seção 4 a seguir foram atestadas, dois pontos merecem mecânica entre marcadores formais (no sentido de marcas lingüísticas) e aqui-
destaque. Em primeiro lugar: embora se pressuponha no quadro teórico que lo que representam nos processos discursivos. O modelo sociolingüístico não
fatores lingüísticas e sociais estejam intimamente relacionados no desenvolvi- pressupõe tal relação, embora o resultado de análise seja centrado nas mar-
mento da mudança lingüística, assumimos no presente trabalho a possibilidade cas/variáveis lingüísticas e em sua correlação com os determinantes sociais da
teórica de contemplar somente o lado lingüístico das variáveis em estudo, Duas linguagem. Mas precisamente neste ponto há algo comum entre os dois
razões principais explicam tal possibilidade: de um lado, o aparato analítico é quadros teóricos que pode ser resgatado: o reflexo e o reforço de normas so-
sociolingüístico em concepção e orientação mas a motivação teórica para o ciais através da variação lingüística no paradigma laboviano de um lado, e a re-
estudo das variáveis é derivada do modelo gerativo; a segunda razão, e esta é lação entre condições materiais de base lingüística e a compreensão dos meca-
crucial, é a distinção assumida no trabalho entre origem e propagação da nismos subjacentes à produção da significação dentro da análise do discurso,
mudança lingüística. Ao limitarmo-nos exclusivamente ao lado lin-
güfstico/sintático da questão, não estaremos contemplando a questão da propa- 2 Cf. Orlandi, E. (Discurso, Sigllificação, Brasilidade, 1987-6): "Diferentemente da Lingüística
gação. A origem, por outro lado, somente pode ser apreciada no seu lado estri- _ que a Análise do Discurso pressupõe mas reavalia criticamente - trata-se de dar conta de
tamente lingüístico, isto é: no sentido de ser o sistema retratado de tal maneira processos de produção da linguagem e não de seus produtos. Para isso se faz necessária a
a responder às questões referentes às restrições e ao encaixamento lingüístico. remissão da linguagem à sua exterioridade, na medida em que esses processos são de natureza
O segundo ponto remete à hipótese central subjacente à análise dos dados social, institucional, logo regulados (e reguladores)."
a ser apresentada na seção 4: a questão do encaixamento. Assumimos, na linha 3 Cf. Orlandi, E. op. cit., pp. 7-8: "Em termos de técnicas de análise não trabalharemos com scg
proposta por WLH (1968, p. 101), que as mudanças observadas são necessa- mentos mas com recortes de linguagem. Esses recortes têm de particular li f(110 de se C(III,II
riamente encaixadas na matriz dos concomitantes lingüísticos das formas em tuirem de fragmentos de linguagem-em-situação. Não obedecem, pOIS, eUI MIl!dl'lllllllUÇllO,
questão e que outras mudanças são associadas às dadas mudanças de maneira apenas a determinações lingüísticas estritas (imancntes) mas II1cluCIIlu rcluç.io (10 Ill\l!\h,tll;1I
não acidental. Em outras palavras, as mudanças acontecem em teias e ecoam com sua exterioridade."
umas nas outras. Tal eco sintático de um processo de mudança a outro - e que
nüo necessariamente forma uma linha reta - é teoricamente previsível a par-
/ 4 Cf. Orlandi, E. op. cit., p. 9: "A delimitação do corpus não segue crucnus
tivistas) mas teóricos. Desse modo, a questão da cxaustividüdc
1'11I/"'//(//,\' (pO'1
deve sei cOII\l(k'rudlll'l1I rcla~'llo
til de um paradigma sintático forte para a análise lingüística: o modelo choms- aos objteivos e à temática e não em relação ao material hngüísuco cmpínco (ll'XIOS)cru SI Esse
"IUIlO (cf. Tarallo & Kato, 1989). material se organiza em função de um princípio teórico, segundo o qual u relação cnuc o
Tendo assumido tal perspectiva teórica pode-se então questionar o lingüístico e o discursivo não é automática, não havendo bi-univocidadc entre marcns hneüis
M:glIlIlll' ponto: como essa perspectiva teórico-metodológica pode ser rela- ticas e os processos discursivos de que são o traço (as pistas)."
(,'I 63
di) i1llll11 pois, que, apesar das diferenças teóricas e metológicas
A~~1l1ll1Jl10S, Resultam essencialmente de se achar a língua em dois territórios
1I'~I-I.III.IS.os
dois referenciais podem, cada um de sua perspectiva e segundo nacionais distintos e separados, A partir do período clássico, em que o
11.1 plÚpl1a abordagem, obter resultados de análise extremamente interessantes português se implantou no Brasil, cada país teve a sua evolução lingiiis-
P;II.I () atendimento da emergência da noção de cidadania ao final do século tica, nem sempre coincidente uma com a outra apesar das estreitas
\IX (consulte-se Orlandi, Guimarães & Tarallo, 1989, para uma explicitação relações de vida social e cultura, (...) O problema do português popular
de corno se obter resultados a partir de tal abordagem interdisciplinar), e dialetal do Brasil é, naturalmente, outro, Nele podem ter atuado subs-
tratos indígenas, não necessariamente, tupi, e os falares africanos, na
estrutura fonolâgica e gramatical. Também se verificaram, por outro
1A LÍNGUA COMO PRODUTO IMAGINÁRIO lado, sobrevivências de traços portugueses arcaicos, que não se elimi-
naram de áreas isoladas ou laterais em relação às grandes correntes de
A presente seção pode parecer estranha ou mesmo anedótica: por que le- comunicação da vida colonial. A imensa vastidão do território brasileiro
vantar argumentos emocionais sobre a língua como produto imaginário quan- e as modalidades de uma exploração intermitente e caprichosa já propi-
do o ponto em discussão é a emergência da noção de cidadania ao final do ciavam, aliás, por si sós, uma complexa dialetação, que ainda está por
século XIX? A resposta é óbvia: o sentido de nacionalismo relacionado à estudar cabalmente.
noção de orgulho tem sido um forte gerador de debates emocionados entre
lingüístas e filôlogos. Obviamente, argumentos moderados podem ser locali- Outra posição moderada semelhante é a encontrada na entrevista feita
ados no meio de discursos irracionais e exacerbados, Vejamos alguns desses com Souza da Silveira em 1952, No segmento a seguir Homero Senna (HS,
testemunhos sobre as duas variedades de língua, a portuguesa e a brasileira, 1952, pp. 24-26) discute os seguintes pontos com o entrevistado (SdS): a) a
Mattoso Câmara (1976, nota 2, pp, 30-31) ilustra o que poderíamos existência de uma língua brasileira; b) a comparação entre o processo de for-
chamar de uma posição moderada, O autor aponta no texto a seguir que as mação românica e a formação da língua brasileira; e c) atitudes lingüísticas a
iferenças na língua padrão entre o Brasil e Portugal não deveriam ser serem obedecidas pelos escritores brasileiros,
explicadas nem a partir da possível interferência de um substrato tupi e tam-
pouco a partir da influência africana supostamente profunda, como tem sido HS: Existe uma língua brasileira?
o caso, aliás, Segundo o autor, as diferenças essencialmente refletem a SdS: Não. O que existe é a modalidade brasileira da língua portuguesa.
existência de dois sistemas lingüisticos em dois territórios distintos e HS: Mas não há probabilidade de que venha aformar-se, à semelhança
geograficamente distante~Igualmente importante é o fato de, após a va- do que aconteceu com as línguas românicas derivadas do latim?
riedade portuguesa ter sido trazida ao Brasil, cada sistema ter continuado SdS: Não se pode comparar o processo de diferenciação do latim vulgar
sua própria evolução nem sempre coincidente~m com o outro apesar dos em línguas românicas com o de evolução da língua portuguesa no Brasil.
laços sociais e culturais que unem os dois grupos, Ainda segundo o autor, a Estamos diante de fenômenos diversos, O que se deu com as línguas
variedade brasileira pode ter sofrido influência indígena e africana aos românicas foi o seguinte: desaparecido o poder central no Império
níveis fonológico e gramatical, além de formas residuais do português Romano do Ocidente, o latim vulgar dos territórios romanizados ficou sem
arcaico que permaneceram no sistema americano, O último fator apontado o freio da antiga unidade e as forças diferenciadoras puderam, então.
por Mattoso Câmara é a dimensão geográfica brasileira que por si só teria atuar livremente, Note que esse latim não se escrevia, era apenas falado.
provocado formação e diferenciação dialetal. e que à centralização do poder sucedeu a descentralização, ocorrida.
sobretudo, com o aparecimento de vários reinos bárbaros, alguns de
Como quer que seja, as discrepâncias da língua padrão entre Brasil e efêmera duração. O caso do Brasil é outro: desde 0,1 I/OSso,\'primeiros /('/11
Portugal não devem ser explicadas por um suposto substrato tupi ou por pos, a língua portuguesa aqui se ensinava e se escrevia; 1/0 século XVII o
uma suposta profunda influência africana, como se tem feito às vezes, Padre Vieira pregava e escrevia, entre I/ÔS,,I'l'IIIUN',I' 1/1/11/(/ prosa das mais
vigorosas e vernâculas; em português escreveram os I/OS,I'O,I' grandes ('pi
) cr. Orlandi, E, op. cit., p. 8: "Considerando, então, que não há uma relação mecânica entre as cos do século XVIII (Durão e Basílio da Gatua), fJ('1I1 como os /I(I('t(/.\'do
marcas formais e o que elas representam nos processos discursivos, procuraremos - pela expli- grupo mineiro, um dos quais, Cláudio Manue! da C(I,\'Ia,teve dcclarndas
cuação das condições materiais de base lingüística -- chegar à compreensão dos mecanismos par- clássicas, pela Academia de Lisboa, as suas obras. OS I/O,I'SO,I' poetas do
ucularcs aos discursos que serão objeto de nossa análise, Para tal, os relacionaremos as formações romantismo também escreviam em bom idioma português, embora com
(hs~lIrslvas que os presidem, Compreender um discurso é apreender a sua relação com a formação alguma liberdade em relação às normas de além mar. Acresce que hoje há
d"l'IllSIVa que regula seu funcionamento, E explicitar seu modo de existência institucional." outros elementos que favorecem a união e, portanto, a unidade lingüisti-
Cl'\
65
ctt prever qual será neste sentido o papel da aviação, do
0//1'111 poderá
o texto de Machado a seguir representa o outro lado da moeda. Trata se
/(111111 da gravação dafala em disco' Eu, por mim, nada prevejo.
('
de uma réplica zangada a um discurso proferido por Cassiano Ricardo frente
11.'1 Que atitude devem a esse respeito adotar os escritores: trabalhar à Academia Brasileira de Letras em 30 de janeiro de 1941. Em seu discurso o
ptua que cada vez mais se acentue a diferença entre o português d'aquém poeta brasileiro fundamentalmente alerta para a impossibilidade de ignorar-se
(' (/ d'além-mar; ou, ao contrário, procurar fazer com que o idioma se o fenômeno lingüístico brasileiro. O texto do poeta diz o seguinte:
mantenha um só? Adiantará alguma coisa a posição que a propósito
tomem os escritores? A glória de Portugal nada tem que ver com a língua falada pelo povo
SdS: Penso que os escritores nossos devem cultivar a modalidade brasileiro. Muito ao contrário, é na ling ua falada pelo brasileiro que me-
brasileira da língua protuguesa, sem procurarem afastar-nos, de propósi- lhor havemos de celebrar a glória de Portugal. (...)
to, da literatura portuguesa. Isso seria empobrecer-nos. Se já se tem dito Se os filólogos portugueses são os primeiros a reconhecer; com absoluta
que a grande força de ingleses e norte-americanos se deve, em parte, a lealdade, que falamos um dialeto do português e, portanto, uma língua que
falarem a mesma língua, e se já se tem pensado num imperialismo espi- se destacou de sua origem peninsular; não poderemos nós ser mais realis-
ritual por meio da difusão do idioma inglês pelo mundo, não é diminuir tas do que o rei, ou, no caso, do que os reis da lingüística portuguesa. (...)
consideravelmente a nossa capacidade de resistência o separar-nos de O que me parece é que devemos ser sinceros e independentes em nosso
Portugal? E não será um desatino esforçarmo-nos para que se deixe de modo de falar e de escrever - como em todos os actos da nossa vida
ser também nossa a riquissima literatura portuguesa e para que se nos a fim de que o grande povo português melhor acredite /10 sinceridade
torne arcaica a apreciável literatura que já temos? com que lhe queremos bem.
Glorifiquemos, assim, as duas línguas e não somente ti portugues«, crian
+.Nem todas as opiniões e testemunhos, entretanto, são tão claros e tão do direitos e obrigações recíprocas. Nc70 é possível OIlI//lII o .Il'lItJ/lIl'IIO
otimistas em relação aos dois lados do oceano. Ribeiro (1933, in Elia, 1961, lingidstico no Brasil; muito menos transigir num 0.\'.1'1/1/10 que tanto inte
pp. 8-10) ilustra o que poderíamos chamar de quase que um ultimato à liber- ressa formação nacional.
à
li' , (1
'litÍlIllI'lI. no entanto, afastar todos os sentimentalismos para
J)I'VeIllOS, Nesta passagem o primeiro referente é João que é repetido na principal
ti/r objectivo que, sem essa medida prévia, aparecerá diante dos
111I\,(/,./111I seguinte em posição genitiva e apagado em posição de objeto direto. A seguir,
1/11.1.1'0,1' olhos rodeado de espessas névoas ou deturpado. e novamente retido na posição de sujeito da subordinada. A tabela I abaixo,
0,1' putrioteirismos, sempre deslocados, devem ser postos de parte, assim adaptada da tabela 2 em Tarallo (1985, p. 360), apresenta os resultados para
CO/110 os brasileiros lusófilos em excesso e os portugueses de espírito dis- retenção vs. apagamento pronominal em várias categorias sintáticas nos dados
solvente, enfim, afastemos todos os que não tenham condições de meditar em 1981. A diferença entre freqüência de retenção vs. apagamento no con-
I frio, Eu sou da opinião de Sílvio Elia: "A fuga para a Europa ou o traste entre principais e subordinadas não é feita por não ser pertinente aos
recolhimento na taba do índio são duas soluções cômodas, mas em argumentos do presente trabalho.
desacordo com o ser nacional".
POSiÇÃO sujeito objeto objeto oblíquo genitivo
o debate
sobre a essência da língua portuguesa em oposição à modali-
direto indireto
dade brasileira ainda continua. Em um editorial do jornal Folha de São
Paulo de 18 de novembro de 1982, à página 42, Helena da Silveira escreve
retenção 572 72 58 60 46
sobre a influência lingüística das novelas brasileiras sobre o uso do por-
% 79,4% 18,2% 40.8% 36.1% 79.3%
tuguês d' além-mar. Tal fato pode ser uma indicação da força das novelas na
cstandardização das duas modalidades, mas em direção oposta, entretanto, apagamento 148 324 84 106 12
da ex-colônia para o ex-império. Total 720 396 142 166 58
Em minhas estadas em Portugal li nos jornais polêmicas entre adeptos e Tabela 1: Retenção vs. apagamento pronominal em várias categorias sintáticas: corpus de 1981.
contrários à influência da fala brasileira, através das novelas da Globo.
(...) É lindo, eu acho, este refluxo da língua para a Mãe-Pátria. Ela chega Contrastemos agora os resultados apresentados na tabela 1 com os resulta-
lá, modificada por nossas vivências, nossas peculiarides. E, como muitos dos obtidos no estudo diacrônico. O português do Brasil existe como língua lite-
jornalistas portugueses, penso que nossa novelística televisiva é elemen- rária somente a partir dos anos 1700. Qualquer material anterior àquela data reve-
to de enriquecer, não se conspurcar o idioma. Talvez um dia, graças aos laria, pois, traços do português europeu e enviesaria os dados. Os escritores usa-
meios de comunicação, a língua portuguesa se unifique (nosso grifo). dos na análise são brasileiros; os dados consistem de cartas, diários e peças tea-
trais.' Para os objetivos de nosso estudo os séculos XVIII e XIX foram divididos
em 4 períodos de 50 anos, a que se refere a partir de agora como tempo I (circa
4 E FINALMENTE: O DIAGNÓSTICO DE UMA GRAMÁ TICA 1725), tempo 11 (circa 1775), tempo III tcirca 1825) e tempo IV (circa 1880).
BRASILEIRA Observemos primeiramente como eram as regras pronominais em função
de categorias sintáticas nos 4 períodos analisados. A tabela 2 (adaptada da
Comecemos com dois casos de diferenciação dialetal entre o português tabela 4 de Tarallo, 1985, p. 368) apresenta a percentagem de retenção
europeu e o brasileiro: objetos nulos e sujeitos lexicais. pronominal para cada categoria sintática em cada período de tempo analisado.
O seguinte segmento extraído de uma série de entrevistas sociolingüísticas A tabela mostra, por exemplo, que, enquanto a regra de retenção pronominal
realizadas com paulistanos e referidas neste trabalho como o corpus de 1981; é quase que categórica nos sintagmas preposicionais nos tempos I e li, começa
ilustra os fenômenos da retenção pronominal em várias categorias sintáticas. a haver um decréscimo depois do tempo 111. Mais interessante ainda é o ',\lu
de que, quando as percentagens para objetos diretos e sintagmas 1'1cpox 1
(1) Eu não sei como as pessoas conseguem ouvir o João no telefone. cionais diminuem, aumenta a proporção de retenção pronominal nos SllIeilus,
Às vezes eu estou do lado dele e não estou escutando (O). Parece sugerindo assim que a perda da referência pronominal faz com que o Slstl'l1Iil
que ele não está falando. / se re-arranje, marcando outros argumentos sentcnciais mais írcqcnrcmcutc.
(SP81-1-k-9/1 0)6
7 É óbvia, segundo Ellegard (1953, p 156), a utilização de texto, em plOsa MI' 11/11/1/1.\" 1\ 1(1
shed light on lhe development of lhe everyday language, and tlic 11/(111/ (//111/1/11I /'(11I1"""1""
to forming it into what it is today (...) I do not of course meanto impl» tluu fI/II.I/' /1'\1.1' /1"'1' 1/11
li A~"III\ lê se a convenção para marcação dos exemplos: SP = São Paulo: 81 = ano da gravação; e vact reflection of natural speech, or 10 use statistical jargon, [onnufan .I<IIIII,Ii' O/I/li' 11I1/
1/.' Indo da fila; liA = número ou letra do falante; 000/001 = marcador numérico do gravador. verse of speech events in a communtty. But lhe)' are lhe best samp!« 1/11I1 \I'e ('1/1/ /1"1
(IK 69
Ul'\f~i\I \\' qUl' os sujeitos demonstram alta taxa de retenção nos dados sin- estudos sobre o português europeu segue um diferente referencial teór ico de
It"IIl:m d~' II)X I, con forme indicado na tabel a I. análise. A partir dos trabalhos de Galves referidos anteriormente, entretanto,
fica claro que os dois dialetos se comportam diferentemente em relação às
I ([ 111 IV
('1/«(1
regras pronominais. Galves aponta em seus estudos que clíticos acusativos são
1725 1775 1825 1880
ainda bastante freqüentes na modalidade portuguesa e, mais importante ainda,
28/120 41fl54 25/152 57/174
SllJl'110 que o apagamento do sujeito naquele dialeto não o isenta de referência ine-
('1 23.3% 26.6% 16.4% 32.7%
rente. Assim, uma sentença corno
objeto direto 83/93 51/53 36/43 59/98
no conjunto de dados diacrônicos, por volta de 1880, acontece urna mudança (3) Tem as que (e) não estão nem aí, não é?
no sistema pronominal segundo a qual a freqüência de retenção começa a (SP81-1-J-292)
decrescer para SPs (em menor escala) e para objetos diretos (em maior escala)
enquanto a percentagem para sujeitos começa a crescer. O resultado é uma ) O primeiro tipo de relativa apresenta, pois, uma lacuna na relativa na
hierarquia diferenciada para os dados de 1981, a saber: pôsição original do sintagma-QU e foi por mim rotulada de relativa com lacu-
na (Tarallo, 1983).
sujeitos> SPs > objetos diretos O segundo tipo de estratégia de relativização não apresenta lacuna. Ao
contrário, a posição da lacuna é preenchida por uma forma pronominal co-re-
Teria a mesma mudança acontecido no português europeu? Não podemos [crente com o sintagma nominal cabeça da relativa. A sentença (4) é um exern
dizer um NÃO no sentido quantitativo da resposta, uma vez que a maioria dos pio de tal tipo que é rotulada de estratégia do pronome lembrete.
70
(I) Você acredita que um dia teve uma mulher que ela queria que a
~ente entrevistasse ela pelo interfone? (a qual, aliás, pouco ocorre no sistema lusitano) entraram no sistema em subs-
(SP81-J-293) rituição à moribunda estratégia piedpiping.
A tabela 4, adaptada da tabela I de Tarallo (1985; p. 359), mostra a fre-
Este segundo tipo de relativa percola todas as funções sintáticas; o qüência para cada estratégia de relativização nos dados de 1981.
primeiro tipo, ao contrário, somente ocorre em posições de sujeito e de objeto
ESTRATÉGIA sujeito objeto direto objeto indireto oblíquo gcnitivo
direto. Para as posições sintáticas mais baixas (objetos indiretos, oblíquos,
com lacuna 890 374
gcnitivos), a norma padrão prescreve o uso de piedpiping, conforme exempli-
% 89.7% 97.4%
ficado em (5). Uma vez que piedpiping praticamente não ocorre nos dados de
1981, a sentença (5) é um exemplo criado a partir do exemplo ocorrido com
piedpiping - - 3 17 l
% 3.9% 7.4% 5.9%
pronome lembrete.
pronome
lembrete 102 10 16 24
(5) E um deles foi esse fulano aí, que eu nunca tive aula com ele. 9
% 10,3% 2.6% 2l.l% 10.4% 52.9%
(SP81-2-E-378)
cortadora - - 57 190 7
% 75.0% 82.2% 4l.2%
E a versão piedpiping de (5):
Total 992 384 76 231 17
(5) E um deles foi esse fulano aí, com quem eu nunca tive aula (e). (e Tabela 4: Percentagem de relativas de acordo com estratégia em 5 funções sintáticas
= 'empty') (dados de 1981).
o terceiro
tipo de estratégia de relativização ocorre quando o sintagma Assim, nos dados de 1981 há somente 21 casos de piedpiping, ou seja,
nominal relativizado é objeto de preposição. Neste tipo, a partir de agora rotu- precisamente aquelas estruturas em que a hipótese do movimento é transpa-
lado de relativa cortadora, tanto a preposição governante quanto o sintagma rente. É, entretanto, muito pouco quando e se comparados aos 49 casos de
relativizado estão ausentes, isto é, trata-se t.vnbern neste easo de uma relativa pronome lembrete para as posições sintáticas mais baixas e aos 254 casos de
com lacuna, A sentença (6) ilustra tal estratégia na posição de objeto indireto, relativa cortadora. Vejamos agora os resultados para o corpus diacrônico, A
tabela 5, adaptada da tabela 6 de Tarallo (1985, p. 371), apresenta a freqüên-
(6) E uma pessoa que essas besteiras que a gente fica se preocupan- cia de uso para três estratégias de relativização em quatro períodos de tempo.
do (com) (e), ela não fica esquentando a cabeça. (SP81-2-6-129)
I 11 11I IV
Mencionamos anteriormente que os dois dialetos se diferenciam com circa 1725 1775 l825 1880
relação à questão de regras de movimento ou de apagamento na derivação de piedpiping 99 89 73 63
certas estruturas. Certamente, a estratégia com pronome lembrete não é % 89.2% 88.1% 91.3% 35.4%
derivada por movimento uma vez que o sintagma co-referencial permanece in pronome lembrete II 8 I 9
sitú e um complementizador que (não um pronome relativo) aparece na cabeça % 9.9% 7.9% 1.3% 5.1%
da relativa. Coloque-se então a seguinte questão: são as demais variantes cortadora I 4 6 106
derivadas por movimento ou por apagamento? Nos dois casos há uma lacuna % 0.9% 4.0% 7.5% 59.5%
e esta poderia resultar ou de uma regra de apagamento ou de uma de movi-
Tabela 5: Percentagem de uso de piedpiping, pronome lembrete e relativa cortadora através do
mento. Tarallo (1983, 1985) convincentemente demonstra que as duas estraté-
tempo.
gias de relativização são derivadas por apagamento do sintagma-QU in situ,
assim espalhando o comportamento de sintagmas não-QU fora da configu- )
racão de relativas: em outras palavras, uma imagem de espelho às estratégias A partir dos resultados apresentados na tabela 4, fica claro que por volta do
de pronorninalização apresentadas na tabela 1 para os dados de 1981. Não tempo IV, ou seja, por volta de 1880, a relativa cortadora já havia iniciado seu
entraremos na evidência estatística para os dados sincrônicos no presente tra- papel sintático no sistema: competir contra a estratégia do pronome lembrete em
bulho, mas os resultados diacrônicos serão apresentados uma vez que deve ser substituição à relativa piedpiping. Observe-se que a estratégia com pronome
('S( 1:11ccido quando a estratégia com pronome lembrete e a relativa cortadora lembrete mantém um papel balanceado, embora marginal, no sistema sintático.
A relativa cortadora, entretanto, começa a florescer precisamente por volta de
I I
73
11 IlltlllH'lItu ,'111 que também as estratégias de pronorninalização estavam
definida na literatura chomskiana, uma língua "pro-drop", como o italiano, o
1'l'\II" 1111\1 iI hicrurquia de uso válida até então. O gráfico I (adaptado do gráfi-
espanhol e o português europeu, é caracterizada por uma série de propriedades,
I.'" 1111 'üuullo, 1985, p, 373) revela o cncaixamcnto das duas mudanças: a re- as duas mais importantes sendo a possibilidade de sujeitos nulos de um lado, e
I ,llllllllil~a() no sistema pronominal e a emergência da relativa cortadora.
de inversão de sujeito, de outro. Em suma: uma língua "pro-drop" pode apre-
 IÚ11 de concluir nossa discussão desta segunda mudança, que dissemos
sentar as seguintes duas ordens: (S)V e VS, ao lado da canônica SVO.
l'slal relacionada com a primeira, os resultados até o momento indicam que no
Os resultados apresentados até o momento no presente trabalho apontam
1"lIlJlOlU a regra de apagamento pronominal, até então somente aplicável a
que, diferentemente do português europeu, o português brasileiro sofreu uma
sujeitos, e variavelmente, embora menos freqüentemente, a objetos diretos,
grande reversão em suas estratégias de pronominalização ao final do último
começa a afetar as posições sintáticas mais baixas (isto é, os sintagmas
século, abrindo espaço para sujeitos lexicais e objetos nulos. Se tais resultados
prcposicionais). Fica claro então que a relativa cortadora surgiu no sistema a
convergirem então como terceira instanciação de nossa hipótese do encaixa-
parur da mudança sintática nas estratégias de pronominalização.
mento sintático, deveríamos esperar um enrijecimento no padrão canônico de
ordem de palavras em direção a SV, com uma proporção decrescente para
Porcentagem do uso de três estratégias de relativização sujeitos invertidos. E isto é exatamente o que Berlinck constatou em seu estu-
comparado à retenção pronominal em orações principais através do tempo do diacrônico sobre a ordem do sujeito em relação ao verbo na modalidade
': ...................••...• \ -.
-. -.
brasileira. A tabela 6, adaptada de Berlinck (1989, p. 97), indica a proporção
decrescente para a ordem VS em três conjuntos de dados, 1750, 1850 e 1987.
dados
século XVIII (1750)
%
42.0%
N
203/486
m , , século XIX (1850) 31.0% 144/469
W .... ~ /
-- Retenção Pronominal em PPs século XX (1987) 21.0% 263/1262
50 , / .... -, - - - Relativa cortadora
40 /' / ",
Tabela 6:: Freqüência de uso da ordem verbo-sujeito, VS.
.. Relativa picdpiping
30 , , _. - Pronome lembrete
Ainda mais importante é o tratamento quantitativo que Berlinck aplieou
20 .:> /
__
10 em seus três conjuntos de dados. Os três corpora foram submetidos a uma
------~-::-=------ I
O - - - I I análise quantitativa, tendo sido usados exatamente os mesmos fatores condi-
II III IV cionadores como hipóteses, tendo-se assumido que a motivação para a ordem
Gráfico 1
VS deveria ser diferente em cada corpus. Assim, antes da reversão das estraté-
gias de pronominalização uma diferente gramática deveria explicar a ordem
VS enquanto após a mesma, a explicação deveria residir nas propriedades
Em outras palavras, a substituição da anáfora pronominal pela anáfora zero gerou,
transitivas do verbo. Em outras palavras: antes da reversão a transitividadc IlÜO
por assim dizer, um novo tipo de relativa: um que se parece exatamente com uma
deveria desempenhar papel algum uma vez que a presença de pronomes c1íti
oração declarativa matriz a não ser pelo complementizador invariável que a intro-
cos garantiria a interpretação discreta dos papéis temáticos dos sintugmas
duz. Neste sentido, a análise defendida aqui sugere que a antiga competição entre
nominais envolvidos no enunciado, isto é, o uso efetivo de pronomes c11l1l'os
dois tipos de relativas - uma claramente envolvendo movimento (relativa pa-
tornaria visíveis os papéis temáticos. Após a reversão no paradigma de
drão) e a outra, um processo de apagamento (pronomes lembretes) - somente
pronominalização a tendência crescente de ocorrência de objetos nulos deve
produziu um segundo paradigma, mas os dois processos em competição pennane-
ria, em princípio e por definição, transformar a transitividade do verbo em um
eeram os mesmos: movimento (piedpiping) vs. apagamento (relativa cortadora).
jbstáculo à ordem VS. Veja-se o quadro a seguir em que Berlinck indicu, em
Um terceiro processo de mudança relacionado aos dois primeiros é o estu-
ordem hierárquica, os fatores considerados significativos na explicaçno d:t
dado por Berlinck (1988, 1989). Com base nos resultados obtidos em Tarallo
ordem VS em cada conjunto de dados. O tipo de verbo, colocado na quurtu
(1983, 1985) que atestavam o crescimento de sujeitos lexicais acompanhado de
posição no século XVIII, lidera no século XIX, abrindo espaço para li transi
um decréscimo no objeto direto anafórico, um argumento forte pode ser feito em
tividade nos dados de 1987. Tal fato explica a existência de duas granulticus,
relação à modalidade brasileira como um sistema em fase de transição de língua
uma na qual as ocorrências de VS são explicadas via fatores funcionais, tais
"prodrop" para "não pro-drop", isto é, uma mudança paramétrica. Conforme
como o estatuto informacional do sintagma nominal sujeito (por exemplo, o
",I
75
\ ulu XVIII), e outra em que a transitividade do verbo bloqueia a possibili- A tabela 7, adaptada de Berlinck (1989, p. 105), e o gráfico 3, original
d/ldr de inversão do sujeito. mente figura 2 em Berlinck (1989, p. 106), revelam o encaixamento sintático
de que temos nos valido como hipótese norteadora ao longo do presente tra
Seculo XVIII: balho: a convergência entre os resultados de Tarallo sobre a emergência de
I. estatuto informacional
do sintagma nominal sujeito objetos nulos no português brasileiro e seu reflexo no enrijecimento do padrão
2. forma do sintagma nominal sujeito de ordem de constituintes, SV(O).
3. distinção aspectual
4. tipo de verbo
Dados %
tempo I - primeira metade do século XVIII 89.2%
Século XIX:
tempo li - segunda metade do século XVIll 96.2%
I. tipo de verbo
tempo [[I - primeira metade do século XIX 83.7%
2. forma do sintagma nominal sujeito
tempo IV - segunda metade do século XIX 60.2%
3. forma senteneial
tempo V - dados de 1981 18.0%
Século XX: Tabela 7: Freqüência de retenção pronominal na posição de objeto direto em cinco períodos de
I. transitividade tempo (adaptado de Tarallo, 1983, pp. 116-193).
2. forma do sintagma nominal sujeito
3. animacidade do sintagma nominal sujeito Observe-se no gráfico 3 que, ao caírem as percentagens para a retenção
4. distinção aspectual pronominal na posição de objeto direto por volta do tempo Ill, e ao tornar-se
5. concordância verbal tal decréscimo ainda mais forte nos tempos IV e V (linha pontilhada), também
cai a freqüência de ocorrências de VS tanto com transitivos (linha cheia) como
o gráfico 2, adaptado da figura I de Berlinck (1989, p. 102), revela o efeito com bi-transitivos (linha hifenada).
da transitividade nos três conjuntos de dados. Observe-se que, enquanto os ver-
bos intransitivos não separam os três corpora, os verbos transitivos largamente Freqüência de retenção pronominal em função de objeto direto comparada à
freqüência de V SN com verbos transitivos, ao longo de cinco momentos históncos
os distanciam um do outro. Isto simplesmente significa que, desde que os obje-
tos nulos se tornaram um traço sintático dessa emergente gramática brasileira, a 100 .........
ordem VS deveria ser bloqueada com verbos transitivos a fim de não colidir com 90
"'"
100 60
90 50
século XVIII
80 \~ século XIX
século XX
40
70 \: 10
60
\ 20
10
50
\. O
40
10 """<:<.~.: >< .,-.
- I- metade
do século
2" metade
do século
I~metade
do século
'l' metade
do século
corpus
sincrônico
...........
<,
~ ) XVIII XVIII XIX XIX
Gráfico 3
20
IOj
()
11111 ,11I\111 \.'11
I
uuransulvo
I
verbo de
'-'-'-'-'-f-'~
I
expressão
I
'I 77
"IMI l nuutc, 19H6, 1989) atestam, entre outras coisas: a) o não uso de
Na tabela 9, adaptada da tabela 2 de Ramos (1989, p. 87), a autora mosu n
111"lIl11l1l'~ clúicos acusativos; b) uma tendência crescente ao uso do objeto
que o decréscimo na marcação do acusativo com a se relaciona ao fato de ()
1111111, l' c) uma baixa freqüência, embora relativamente estável, de pronomes
objeto estar ou não adjacente ao verbo, ou seja, os objetos diretos adjacentes
lr 11 iln ctc». Além dessas características Ramos (1989) atestou uma freqüência
ao verbo apresentam menor ocorrência da preposição (9.1 %) enquanto objc
inuuo baixa de 0.7% de marcação de acusativo com a preposição a em seu
tos não adjacentes demonstram uma alta taxa de uso da preposição (21.2%).
estudo sincrônico, embora em seus dados diacrônicos a marcação com a
mesma preposição aparecesse com freqüência mais alta (aproximadamente
12(}'cJ no século XVIII). Vejamos alguns exemplos do fenômeno. N Total %
adjacência 85 931 9.1%
(7) Irmã Dulce surpreendeu a todos. (reportagem de TV) não adjacência 61 287 21.2%
(8) estou acompanhando ao Delegado Regional do Trabalho. (entrevista
Tabela 9: Freqüência de liSO de (+a) com relação à adjacência entre V e objeto direto atavés do
de TV)
tempo.
(9) Ele não respeita a ninguém (entrevista sociolingüística)
(10) ensinando e doutrinando aos meninos (século XVI)
Finalmente, o gráfico 5, originalmente diagrama 2 em Ramos (1989, p.
89), demonstra o encaixamento lingüístico da mudança sintática em questão:
A tabela 8, adaptada da tabela 1 de Ramos (1989, p. 87), indica que os
o enrijecimento da relação entre verbo e objeto direto (observe-se no gráfico
acusativos marcados com a mostravam uma percentagem de ocorrência de 12,4%
que a possiblidade de qualquer material [X no gráfico] intervir entre o verbo
no século XVIII, tal percentagem decrescendo para 5,8% no século seguinte.
e o objeto direto diminuiu exatamente no tempo IV) e a baixa percentagem de
inversão de sujeito. Tudo isso para indicar que por volta do tempo IV o por-
sécu 10 xv III século XIX tuguês do Brasil apresentava uma ordem canônica do tipo SVO (ou melhor
(+a) 39 18 SV[OJ, uma vez que sujeitos se tornaram lexica1izados mais freqüentemente e
12.4% 5.8% objetos diretos iniciaram sua caminhada rumo ao objeto nulo).
(-a) 265 288
Total 304 306 100
30
Tabela 8: Distribuição das variantes (+a) e (-a).
28
1M 79
'111111.1
I' 11111I11.1
mudança a ser apresentada - e sintaticamente encaixada
de fronteamento ou subida do verbo nas perguntas diretas a partir de 1937
11(1.1'llI .'1111111'" c a mudança no padrão da ordem de palavras em perguntas
na modalidade brasileira.
1"l'llo ponto também nas indiretas) atestada por Duarte (1991). O
dlli.:!I\1/ (I 011('
Um último comentário com relação aos resultados obtidos por Duarte
gráfico I em Duarte (1991, p. 6), indica que a mudança
liílll 1I(I, 11I1~'II\alll1ente
deve ainda ser mencionado: a emergência da partícula é que (colocada na
1It1IlIdl'III VS para SV em perguntas diretas aconteceu por volta dos anos 1930.
gramática padrão como forma expletiva) no curso da mudança de VS para SV
{)"~rr VL' se no gráfico que em 1734 a ordem nas perguntas diretas era categori-
nas perguntas diretas. A tabela 10, adaptada da tabela 2 de Duarte (1992, p.
1011111'1111: VS. Note-se também que os padrões de ordem entre os dois tipos de
42), mostra que a implementação da ordem SVem perguntas diretas coincide
uucuugutivas começam a fundir-se por volta da década de 30 deste século, tal
com o surgimento da partícula é que em 1882, embora dois casos de SV sem
nuulunçu chegando a sua completude nos dados contemporâneos.
a mesma e um caso de VS com a partícula tenham ocorrido nos dados. Tal
instabilidade que é típica de fenômenos de mudança cessa de existir em 1937
100
*- .«: quando todas as ocorrências de SV aparecem com a partícula, que por sua vez
90
80
r--./ /
r >: não surge com a ordem VS nos dados. Ao tornar-se, pois, estabelecida no sis-
tema a mudança de VS para SV, o próprio sistema luta pela nova ordem, aos
70 poucos deixando de lado o uso da partícula é que, enquanto os casos relatados
60
~ / / de uso da partícula não mais podem ser explicados através de seu papel
50 <: / engatilhador à ordem SV, presente até então no sistema. E então o sistema,
40 / dependendo de sua configuração estrutural, encontrará seu próprio caminho
para condicionar e restringir as formas em uso. A gramática e o uso lingüísti
30 / co co-existem, pois, pacificamente, lado a lado, independentemente do estado
20 / do sistema no momento: se em fase de mudança ou não.
10
/"
O ~ ordem VS ordem SV
173~ 1845 1882 1918 1~37 1955 1975 1989 Tempo -é que +é que -é que +é que
Total
1734 30/100.0% -1- -1- -1- 30
Gráfico 6 1845 27/96.0% -1- 1/4.0% -1- 28
1882 23n7.0% 1/3.0% 2n.0% 4/13.0% 30
1918 26/81.0% -1- 3/9.5% 3/9.5% 32
Quão previsível é esta quarta mudança considerando-se os traços sin-
1937 17137.0% -1- -1- 29/63.0% 46
táticos já apresentados até o momento no presente trabalho? De um lado,
1955 6120.0% -1- 7/23.0% 17157.0% 10
há forte evidência (mas de novo não de natureza quantitativa) de que os
1975 1/2.0% 3/8.0% 12/29.0% 25/61.0% 41
padrões de ordem nas perguntas diretas na modalidade lusitana são bas-
1989 -1- 2/6.0% 2/6.0% 30/88.0';r, .1-1
tante diferentes (cf. Ambar, 1987). De outro, não há razão nenhuma para
não se acreditar que uma língua, que sofre um enrijecimento nos padrões Tabela 10: Distribuição de interrogativas diretas de acordo com período de tempo, ordem \('11
canônicos de ordem nas declarativas, não deveria nivelar todos os tipos de tencial (SV vs. VS) e presença de é que.
estruturas, assim ecoando o mesmo padrão pelo sistema como um todo. E
ainda, apontamos acima para uma distinção drástica entre as duas va-
riedades do português: regras de movimento para a modalidade lusitana e
5 COMENTÁRIOS FINAIS
regras de apagamento para o dialeto brasileiro para a derivação de certas
estruturas. Certamente, a derivação de perguntas diretas envolve movi- ) Os quatro casos sintáticos apresentados na seção anterior devem ser toma-
mento, mas em um sistema fortemente marcado por regras de apagamento,
dos como evidência quantitativa de que mudanças dramáticas aconteceram na
deve-se na realidade esperar que mesmo na configuração das perguntas
passagem do século XIX para o atual. Fica claro a partir do retrato oferecido
diretas as estratégias de movimento deveriam, pouco a pouco, começar a
que um novo sistema gramatical - chama-se de gramática brasileira ou de
ser deixadas de lado. E isto é exatamente o que Duarte (1991) atestou em
dialeto com sua própria configuração uma vez tratar-se de uma questão mera-
seus dados: um decréscimo da ordem VS, isto é, um decréscimo da regra
mente ideológica - emergiu ao final do século XIX, estabelecendo uma nova
xo 81
'IIIIII.III\'IIradicalmente diferente da modalidade lusitana, conforme já havia 'HOMSKY, N. Lectures on Government anel Binding, Dordrecht, Foris, 1981.
leio Il'\IClllunhado, a partir de um diferente referencial teórico, nos trabalhos _____ . Some Concepts and Consequences af file Theory of Goverment
til' (,uives entre outros. and Binding, Cambridge, MIT Press, 1982.
'ertamcnte, estes novos traços gramaticais entraram na língua no final
_____ . Knowledge of Language. IfS Nature, O,.;g;II, and Use, Nova
dos anos 1800 porque circunstâncias sociais especiais aconteciam naquele
momento da história externa. Isso significa que não descartamos a hipótese de York, Praeger, 1986.
que essas mudanças poderiam ter ocorrido antes da virada do século. E isso DUARTE, M.E.L. Clitico Acusativo, Pronome Lexical e Categoria Vazia no
também não significa que nossa evidência se encontra enviesada pelos dados. Português do Brasil, Ponti fícia Universidade Católica de São Paulo, dis-
ertamente que não! Nosso argumento é que as curcunstâncias sociais antes sertação de mestrado, 1986.
da virada do século podem não ter sido suficientemente satisfatórias para que _____ . "Clítico acusativo, pronome lcxical e catcgoi ia vazia no por-
a pena brasileira começasse a escorrer sua própria tinta. E neste sentido fica tuguês do Brasil", in F. Tarallo (org.), op. cit., pp. 19 14, 19H9.
comprovado quão importante é o exame de dados lingüísticos à luz de evidên- _____ . "A perda da ordem V(verbo) S(sujeito) em mtcrrogativas QU-
cias sociais. Sem vias de dúvidas entretanto, pode ser afirmado que o cidadão no português do Brasil", D.E.L.T.A., vol. 8, n" Especial, pp. 1752, 1992.
brasileiro já estava de posse, ao final do século XIX, de sua própria
ELIA, S. O Problema da Língua Brasileira. Rio de Janeiro, Instituto Nacional
língua/gramática.
do Li vro, Ministério da Educação e Cultura, 1961.
Nossa hipótese de trabalho, ao longo do estudo, foi a noção de encaixa-
mento lingüístico tal qual postulado por WLH (1968). A motivação teórica ELLEGARD, A. The Auxilia')' 'do': The Establishment and Regulation of its
para as variáveis em estudo segue o modelo paramétrico chomskiano (1981, Use in English, Stockholm, Almquist & Wiksell, 1953.
1982, e especialmente, 1986). Os quatro casos relatados clara e elegante- GALVES, CH. "A sintaxe do português brasileiro", Ensaios de Lingüística,
mente demonstram como cada mudança se encontra relacionada a outra, e 13, pp. 31-50, ]987.
como, em verdade, cada mudança cria as condições lingüísticas corretas e _____ . "V-movement, levels of representation and the structure of S".
necessárias para que as outras se efetivem. Isto não significa, entretanto, que Trabalho apresentado na 13' Reunião Anual do GLOW. A ser publicado
todos os processos de mudança são previsíveis: isto somente confirma nosso em W Chao & G. Horrocks (orgs.) Levels of Representation, Dordrecht,
pressuposto principal de que elas formam uma espécie de cadeia de fenô-
Foris, 1990.
menos de mudança.
KATO, M.A. "Inversão da ordem SV em interrogativas no português: uma
Não foi investigada neste trabalho, a relação entre estes quatro casos de
questão sintática ou estilística?, D.E.L. T.A., 3,2, pp. 243-252, 1987.
mudança sintática e a produção da significação nos textos analisados. Fica
para ser investigado, portanto, como a nova estratégia de relativização abre LABOV, W. Sociolinguistic Patterns, Philadelphia University ofPennsylvania
espaço para a enunciação de referentes, ou como a colocação da redundância Press, 1972.
pronominal em função de sujeito coincide ou não com as novas e emergentes _____ . "On the use of the present to explain the past". Estratto de
condições para a produção do sentido. Tal linha de pesquisa somente pode ser Linguistics at the Crossroads. Liviana Editrice-Jupiter Press, 1975.
atingida através de trabalho interdisciplinar entre o analista de discurso, o _____ . "Building on empirical foundations", in W.P.Lehmann & Y.
variacionista, e o lingüista histórico, e por que não, o próprio historiador? Malkiel (eds.), Perspectives in Historical Linguistics,
Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins Publishing Cornpany, 19X2.
_____ . "The overestimation of Iuncuonalism'', in R. Dirvcn & V. Ficd
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(eds.), Functionolism in Linguistics, Amstcrdam/Philadclphta, John
ÂMBAR, M. "Gouvernment et inversion dans les interrogarives QU-en por- Benjamins Publishing CO., pp. 311-332, 1987.
tugais", Recherches Linguistiques, 16, 1987. _____ .The Limitations of Comeu. Evidence (1011IMi.\'/I//(/I'/S/(IlIdillg in
BERLINCK, R. de A. A Ordem V SN no Português do Brasil: Sincronia e / Chicago, mimeo, 1989.
Diacronia, Unicamp, dissertação de mestrado, 1988. MACHADO, J.P. O Português 110Brasil, Coimbra, Coirnbra Editora (Coleção
. "A construção V SN no Português do Brasil: Uma visão Universitas), (s.d.) .
dmcrônica do fenômeno da ordem", in F. Tara 11o (org.), Fotografias MATIOSO CÂMARA, J. História e Estrutura da Lingua Portuguesa, Rio de
.\'11I iotingtttsticas, Campinas, Pontes Editores, pp. 95-112, 1989. Janeiro, Instituto Nacional do Livro, Ministério da Educação c Cultura,
1976.
83
( 11\11'N i\, N.P. de. Pronome Pessoal de Terceira Pessoa: Suas Formas
1;'11 iautes em Função Acusativa, Pontifica Universidade Católica do Rio
6
de Janeiro, dissertação de mestrado, 1978.
REFORMAS ORTOGRÁFICAS OU ACORDOS POLÍTICOS?I
()1<Li\NDI, Eni. Discurso, Significação, Brasilidade, Projeto da Área de
Análise de Discurso do DL - IEL, manuscrito, 21 pp., 1987.
----.& GUIMARÃES, E. &TARALLO, F. Vozes e Contrastes. Tania Conceição Clemente de Souza
Discurso no Campo e na Cidade, São Paulo, Editora Cortez, 1989. Bethania Sampaio Corrêa Mariani
PEREIRA, M.G. A Variação na Colocação de Pronomes Átomos no
Português do Brasil, PonLifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, "[, ..] que a sociedade enfim aceite (ou aceite de
dissertação de mestrado, ] 981. novo) desvincular a escrita do aparelho do Estado
RAMOS, J. "O emprego de preposições no português do Brasil", in F. Tarallo de que hoje faz parte; em suma, que se pare de
(org.), op. cit., pp. 83-93, 1989. excluir por motivo de ortografia. "
(R. Barthcs)
_____ .Teoria do Caso e Mudança Lingüísica: Uma Abordagem
Gerativo-Variacionista, Unicamp, tese de doutorado, 1992. Nosso objetivo ao tratar da normalização da Língua Portuguesa, mais
RIBEIRO, João. A Língua Nacional. Notas Aproveiiáveis, 2' ed., São Paulo, especificamente, da ortografia, é não só traçar um histórico da questão em si,
Companhia Editora Nacional, 1933. mas também enfocar questões de natureza político-jurídica, uma vez que estas
SANKOFF, G. "A quantitative paradigm for the study of cornrnunicative com- permeiam todo o processo relativo à simplificação e unificação da língua
petence", in R. Bauman & J. Sherzer (eds.), Explorations in the escrita no Brasil e em Portugal.
Etnography of Speaking, Cambridge, Cambridge University Press, 1974. Até o século XVIII a questão da ortografia não era muito discutida e a
gramática que então se aprendia era exclusivamente a latina, apesar de existirem
SENNA, Homero. "O problema da língua brasileira". Entrevista com o Prof.
gramáticas da Língua Portuguesa (cf.: Fernão de Oliveira, 1536, dentre outros).
Souza da Silveira. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura,
Serviço de Documentacão, 1952. Em 1759, Marquês de Pombal, no Brasil, toma medidas de caráter sócio-
político no sentido de alterar esta situação: ordena o aprendizado elementar da
TARALLO, F. Relativiration Strategies in Brazilian Portuguese, University of Língua Portuguesa, configurando-se, assim, o primeiro passo para o ensino
Pennsylvania, Ph. D. dissertation, 1983. normativo do idioma.
_____ ."The filling of the gap: Pro-drop rules in Brazilian Portuguese", in Em meados do século XIX, várias tendências se delineiam. Por um lado,
L. D. King & C. A. Ma1ey (eds.), Selected Papers from the XIfIth o espírito do Romantismo fazia com que os autores se voltassem para uma
Linguistic Symposium on Romance Languages, AmsterdamJPhiladelphia, temática nacionalista, chegando alguns, como José de Alencar, a pleitear uma
John Benjamins Publishing Co., pp. 354-375, 1985. "língua brasileira", com léxico, sintaxe e ortoepia próprios. Havia, porém, os
_____ .(org.). Fotografias Sociolingüísticas. Campinas, Pontes Editores, conservadores, isto é, aqueles que defendiam a manutenção da língua como
1989. um legado de Portugal. Por fim, havia aqueles preocupados, exclusivamente,
com a questão ortográfica devido às inúmeras divergências com rclaçao a lín
. Tempos Lingüísticas. Itinerário Histórico da Língua
Portuguesa, São Paulo, Editora Ática, 1990. gua escrita. Dentre estes, encontra-se José Feliciano de Castilho, que pIO
moveu uma reforma ortográfica, constante no íris Clássico, manual udouulo
TARALLO, F. & KATO, M.A. "Harmonia trans-sistêmica: variação intra- e em vários estados brasileiros.
inter-lingüísticas", Preedição, 5, 41 pp., 1989.
WEINREICH, U.; LABOV, W; HERZOG, M. "Empirical foundations for a the-
ory of language chance", in W. Lehmann & Y. Malkiel (eds.), Directionfor Este trabalho, com o título "A Norrnauzação do Português Unli1 ()11l'SIi111111'111111'01"101 terna
historicallinguistics, AusLin, University of Texas Press, 1968. de comunicação no 111Encontro de Redação de I'IO!cssOIes (k R,·di1\'\o do RIO d,· .1.111,·110,rcn
lizado pela Puc-Rl em novembro de 198'\, FOI 1l1111bl'11lpubhcudu nos 1,·sp"l"IIVII\ i\nlm, em
maio de 1986.
O texto atual apresenta pequenas modificações com relação ao pruncuo, mantendo, porem, a
abordagem inicial da análise, a qual é restrita às discussões da ()llograllil que se sucederam até
o ano de 1971.
IId
'\ 85
7' Em 1897, foi fundada a Academia Brasileira de Letras, cuja primeira ini- Icitura do Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa, que se
ciativa foi procurar fixar a ortografia da palavra "Brasil". Três anos mais tarde, torna vigente no país quando da sua publicação em 1932.
a Academia é reconhecida pelo governo tornando oficiais as suas publicações. A Academia obtém, então, o respaldo de que precisava para poder
Nesse período de transição do século XIX para o século XX, observamos dois difundir suas reformas. Entretanto, o direcionamento das medidas a serem
movimentos de origem e naturezas contrárias que travam uma disputa sobre o adotadas e oficializadas fica nas mãos do governo, que não só cuida dos
teor das reformas ortográficas. Devido o surgimento de novos estudos cientí- trâmites legais, como também opina e intervém quando acha conveniente.
ficos da língua, os filólogos se dividiam: os conservadores só reconheciam A intervenção disciplinadora do governo torna-se mais incisiva com o
uma abordagem histórica, enquanto que outros tentavam conciliar os estudos advento do Estado Novo. Em 1938, é Vargas que, segundo a atribuição que lhe
etimológicos com os fonéticos. confere o artigo 180 da Constituição de 1937, insiste na obrigatoriedade do
Partidário do segundo ponto de vista, Medeiros e Albuquerque, em 1907, Acordo de 1931 e propõe a resolução de "casos especiais de grafia não cons-
propõe uma reforma da ortografia no Brasil, tomando como base a Ortografia tantes do Acordo entre a Academia Brasileira de Letras e a Academia de
Nacional, de Gonçalves Viana, publicada em Lisboa, 1904. Ambas as refor- Ciências de Lisboa" (Decreto-Lei 292 de 23/02/1938).
mas, porém, não tinham apoio por parte do governo dos dois países, ficando Como se vê, parece que o governo se preocupa com "casos" que as duas
restritas às publicações internas das academias. academias não se detiveram em examinar. Ora, a Constituição de 1937, ela
A falta de respaldo oficial, no entanto, não impediu que a Academia borada pelo jurista Francisco Campos, fora inspirada na "Constituição
Brasileira de Letras promovesse uma série de reformas, bem como adianta- fascista da Polõnia" (cf.: Francisco Alencar et alii, 1979) e o referido artigo
mentos, que não chegavam a ser difundidos pela Academia uma vez que lhe delega ao Presidente da República o "poder de expedir Decreto Lei sobre
faltava autoridade para impô-Ias (cf.: Cândido de Figueireido, 1908). todas as matérias de competência legislativa da União" (artigo 180 da
Essas contínuas alterações no corpo das reformas refletiam o espírito das Constituição de 1937).
duas primeiras décadas do século XX. Ora se propunha uma "ortografia sim- A partir de então, inicia-se um período onde a intervenção de ordem
plificada", privilegiando-se apenas a etimologia, ora uma ortografia mista, político-jurídica torna-se uma constante no desenrolar da questão ortográfica.
numa tentativa de conciliação entre a etimologia e a fonética. Em alguns pon- Na década de 40, fica patente o alcance do artigo 180. Uma série de decre-
tos, porém, os filólogos estavam de acordo: era preciso terminar com o estado tos se sucede. Em 1943, o Decreto-Lei 5.186 "reitera a vigência do acordo,
anárquico no qual a ortografia da língua estava imersa e para tanto se fazia mas exige a publicação de outro vocabulário". (cf.: Anuário da Academia de
necessária uma reforma que a um só tempo fosse "decisiva, eficaz e disci- Letras, 1985); uma das razões que levou o governo a não considerar mais
plinadora" (cf.: Revista da Academia Brasileira de Letras, 1931). como definitivo o vocabulário de 1932 da Academia Brasileira foi o fato,
As palavras do senhor José Veríssimo, um dos que votaram pela reforma, talvez, de a Academia de Ciências de Lisboa ter publicado, em 1940, o
descrevem bem a desordem ortográfica. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa.
Parecia haver a necessidade da revisão dos trabalhos anteriores produzi-
"A anarchia reinante na nossa orthographia, hoje entregue ao bel- dos no Brasil face à publicação da Academia de Lisboa. Estar-se-ia questio-
prazer de cada escriptor, de cada arnanuense, de cada jornal, de cada edi- nando a autoridade da Academia Brasileira? Ou haveria razões políticas para
tor, de cada pedagogo, de cada revisor, era verificada e lastimada por assim se proceder naquele ano de 1943?
quantos desta questão se ocupam e por qualquer observador". (cf.: Por ora, não vamos responder a essas perguntas, porém elas se reiteram
Cândido de Figueiredo, 1908). quando tomamos conhecimento das medidas que daí se sucederam.
Em agosto de 1943, seguindo as deterrninaçõcs do governo expressas nos
Com o intuito de solucionar o problema da anarquia, a Academia decretos de 1931 e 1933, a Academia Brasileira constitui uma Comissão signa
Brasileira de Letras e a Academia de Ciências de Lisboa resolveram, em 1931, tária, que organiza as Instruções que norteariam a elaboração do novo vocubulm io.
firmar um acordo, onde as duas nações procurariam estabelecer uma A Comissão tomou por base o Vocabulário Ortográftco da Língua
ortografia única e simplificada. A iniciativa era das duas Academias, mas foi Portuguesa da Academia Brasileira de Ciências de Lisboa publicado em 1940,
endossada pelos governos dos dois países. enriquecendo-o com o acréscimo de termos científicos e de palavras COI rentes
A partir de então, as reformas propostas pela Academia Brasileira de na "linguagem vulgar do Brasil".
Letras em acordo com a Academia de Ciências de Lisboa passaram a ser ofi- Essas Instruções bem como as provas tipográficas do vocubulurio foram
ciuis, Os decretos de 1931 e 1933 não apenas fixaram como também admiti- enviadas para a aprovação da Academia de Ciências de Lisboa.
I .uu c (ornavam obrigatória a ortografia resultante da reforma. Tais medidas A Academia de Lisboa não só aprova sem reservas as Instruções como
I l'ilI IIIIIal11 o papel da Academia enquanto autoridade oficial, cabendo a esta a considera que as mesmas representam "a expressão do perfeito acordo cxis-
11 87
1(lIlIOIIIIH' as duas Academias no sentido da Unidade, esplendor e prestígio do publicação, tendo sido o mesmo endossado não só pelo Presidente da
idll'lIliIUlII\Um". (cf.: prefácio do Pequeno Vocabulário Ortográfico, 1943) República, como por todo o seu Ministério.
A~ medidas acima tomadas pelas duas Academias apontam para uma con- Segundo Barbosa Lima Sobrinho (1953) a Conferência lnteracadêmica
I Imilo evidente: ambas aparentavam respeitar o Acordo que haviam firmado e não representava em termos jurídicos apenas mais um Acordo, nem tampouco
t.uuhém se as sujeitavam aos decretos governamentais. Mas não havia nada de uma simples Convenção. Devido ao tratamento político-jurídico recebido, a
concreto legalmente entre as duas nações, ou seja, os decretos não passavam Conferência assumiu as dimensões de um Tratamento Internacional.
pelo Poder Legislativo, logo, não Unham força de lei. Brasil e Portugal se comprometeram, assim, em obrigações mútuas, uma
Estranho, portanto, é o fato de que ainda em 1943, no mês de dezembro, vez que ambas as nações achavam-se atadas por laços indissolúveis.
os governos português e brasileiro assinarem uma Convenção que estabelece O rompimento dos laços que unem duas nações por meio de um Tratado
oficialmente a intervenção da Academia Brasileira de Letras e da Academia de só se torna possível se houver denúncia efetuada pelo representante do
'iências de Lisboa para fixarem a ortografia da língua comum. Governo de uma das Partes Contratantes.
Mais estranho ainda é o dado de que esta Convenção não concluiu todos Várias evidências apontavam o fato de que aquele Tratado não era vanta-
os passos de sua elaboração legal. Houve apenas um decreto-executivo n° joso para o Brasil. Sempre que nações se comprometem através de Tratado, há
14.533, de janeiro de 1944, que promulgava a referida Convenção. Mas segun- limitações aos privilégios da soberania nacional.
do a Constituição de 1937, então vigente, faltava-lhe o pronunciamento do Em 1947, saiu a publicação nos dois países do Vocabulário Ortográfico
Poder Legislativo ou a força de expedição de um Decreto-Lei (cf.: Barbosa Resumido.
Lima Sobrinho, ] 955). A Mensagem Presidencial ao Congresso, em 1948, pronunciada pelo Pre-
As Instruções de 1943 foram esquecidas e a Convenção do mesmo ano sidente Dutra recoloca em discussão a Convenção de 1943. A Mensagem vinha
carece de respaldo legal. precedida de uma exposição de motivos do Ministro das Relações Exteriores,
Em 1945, Getúlio Vargas nomeia outra Comissão para realizar uma refor- solicitando a aprovação pelo Congresso do "texto da Convenção Ortográfica
ma ortográfica, a qual foi amplamente discutida e levada a termo na entre Brasil e Portugal, firmada em Lisboa, a 29 de dezembro de 1943".
Conferência Interacadêmica realizada em Lisboa entre a Academia de Procurava-se assim dar à Convenção de 1943 o endosso legal que lhe fal-
Ciências de Lisboa e a Comissão credenciada por Vargas. tava. A aprovação em Congresso do texto da Convenção de 1943 implicaria na
Enquanto a Convenção de 1943 se ressentia da legalização de praxe para revogação do Acordo de 1945, já que aquela precedia este.
poder vigorar, à Conferência Interacadêmica de 1945 nada faltou. Não faltou, A Mensagem de J 948 teve andamento e se transformou num projeto de
por exemplo, que a Comissão de Acadêmicos recebesse credenciais do lei que continha duas disposições: a primeira revogava o Decreto-Lei que pro
Governo brasileiro e, em nome deste, promovesse o Acordo. O Acordo de mulgava o Acordo de 1945; a segunda restabelecia o sistema ortográfico de
1945, por sua vez, foi composto de três documentos: 1943, consubstanciado nas instruções e no Vocabulário da Academia
Brasileira de 1932.
- as conclusões da Conferência Interacadêrnica; O projeto de lei referido acima resultou na Lei n° 2623, de 21 de outubro
- as Bases Analíticas do Acordo aceitas e firmadas pelas delegações das de 1955, restabelecendo o sistema ortográfico do Primeiro Vocabulário
Academias; Ortográfico da Língua Portuguesa de 1932 da Academia Brasileira de Letras,
- o Protocolo de Encerramento da Conferência Ortográfica de Lisboa, fir- conferindo à Convenção de 1943 a ratificação legal que lhe faltava. Os resul-
mado pelas delegações acadêmicas em outubro de 1945. tados da Conferência Interacadêmica de 1945 ficam revogados.
A questão ortográfica encontra uma trégua durante um período de 16
O Acordo de 1945, politicamente, parecia forte demais e a sua homolo- anos. Somente em 1971 é assinado em Brasília um novo Acordo Ortográfico
gação implicaria a ratificação do mesmo com as dimensões de um Tratado realizado entre as duas Academias. O Acordo aguarda homologação por parte
Internacional. das autoridades legislativas e executivas dos dois países. No mesmo ano de
om a queda de Vargas, em 1945, desencadeou-se uma série de ofensi- 1971, o Presidente Médici assina a Lei n° 5.765 que dispõe sobre li atuulizu
vas contra o referido Acordo. Era preciso, então, respaldá-Io legalmente para ção do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa pela Acudcuuu
que não fosse revogado. E para que a revogação não ocorresse, o Presidente Brasileira de Letras.
lntcrino José Linhares, ainda com o poder conferido pelo Artigo 180, expe- Os fatos até aqui apresentados resumem sumariamente o m/III/I' di' que
dI" a 5 de dezembro de 1945, o Decreto-Lei n° 8.286. Através deste Decreto- dispomos. Limitamo-nos apenas a pôr em foco todo () desenrolar da questüo
I,!,I ,I aprovação do sistema ortográfico não ficava subordinada a nenhuma ortográfica. Esses fatos podem, entretanto, ser examinados ú lu/, da 'Il'ol 1<1 da
dl'\ I~"O lIItCIior, Este Decreto-Lei entrava em vigor a partir da data de sua Análise do Discurso.
H 89
I h- uucdiato, o que se percebe no corpo das reformas é a presença para- respeito de um assunto - como a questão ortográfica - aparentemente de
11:1:1.h IIIIIS discursos: O acadêmico, propriamente dito, e o político. Ambos menor importância política. Ou por que a necessidade de Tratado
11~11·lilild()s e organizados na forma de textos jurídicos. Internacional para abordar a questão ortográfica?
Nas primeiras reformas, ocorridas no período em que não havia amparo O acordo da Conferência Interacadêmica resulta numa "obrigação inter-
ulural e legal, o jurídico permeia O acadêmico uma vez que a academia, nacional, a que s6 poderemos deixar de respeitar com a concordância de
rnvcstida do seu papel de autoridade científica, se atribui o direito de regula- Portugal e nos termos precisos dessa concordância" (cf.: Barbosa Lima
montar a ortografia. Sobrinho, 1953).
O discurso jurídico de caráter definit6rio e imperativo permite que se O Brasil estava, assim, atrelado a Portugal no tocante à ortografia. O
estabeleçam pelo viés do acadêmico as bases para a prescrição e formu- alcance político que isso podia representar era o fato de que aquele Acordo
lação das decisões. A formulação nos vocabulários toma o feitio de regras específico poderia abrir caminho para Tratados Internacionais de outra
com corolários que têm como norma prescritiva o conceito de "boa pronún- natureza.
cia" (cf.: Reforma Ortográfica, 1907). No entanto, o caráter definit6rio e No decreto referente ao Acordo mencionado acima fica clara a posição
imperativo é que delega à Academia o poder de decidir qual é a "pronúncia secundária na qual a Academia (e por extensão, o Brasil) se encontrava em ter-
boa" (ibidern). mos de autoridade. Enquanto nas reformas antecedentes, as duas Academias
O discurso acadêmico expressa uma vontade pela verdade na medida em se comprometiam mutuamente a buscar o "ideal ortográfico", nesse último
que lhe confere cientificidade e autoridade. O teor das regras passa pelo jogo Acordo a Academia Brasileira ficava incumbida de se adaptar às normas resul
de verdadeiro ou falso refletindo, assim, a disputa daqueles que se julgam os tantes da Conferência Interacadêmica, bem como refundir seu Pequeno
"donos da verdade". os adeptos de uma escri ta etimol6gica versus os adeptos Vocabulário Ortográfico.
de uma escrita mista. O discurso acadêmico, ao se tornar oficial, ganha por um lado a possibi
Nas reformas seguintes, já com amparo oficial e legal, a apreensão desses lidade de ir além dos muros da Academia enquanto autoridade, tornando-se
dois tipos de discurso se dá de maneira diferente. O discurso jurídico, além de assim, publicamente reconhecido. Porém, perde, ao ter que se submeter a uma
permanecer entranhado ao acadêmico, como demonstramos acima, numa política de interesses de alcance bem mais forte do que a política do idioma,
determinada instância, se destacava reportando-nos a uma outra autoridade e traduzida, no caso, pela normatização ortográfica nos dois países.
a outras condições de produção. O período é de oficialização e legalização das Se antes as discussões giravam em torno da validade da etimologia em
reformas, a voz do governo prevalece, então, sobre a voz dos acadêmicos. oposição à fonética, na década de 40, pouco se fala da ortografia enquanto
Prevalece na medida em que os objetivos expressos no corpo dos decretos que objeto de estudo. Deslocando a questão para o campo do político, recalca-se a
sustentam as reformas se tornam cada vez mais amplos politicamente. discussão lingüística.
Nas quatro reformas que precederam a Conferência Interacadêmica, os A característica comum a todas as reformas era a busca do ideal ortográ-
objetivos se resumiam em dispor e impor o uso da ortografia do idioma fico, ou seja, uma norma definitiva que acabasse com a anarquia e que unifi-
nacional. Na Convenção que também precede a Conferência Interacadêmica, casse a ortografia garantindo o prestígio e a expansão de um idioma nacional.
os objetivos são: "assegurar a defesa, expansão e prestígio da Língua A Conferência Interacadêmica não fugia à regra. Curiosamente, a revo-
Portuguesa no mundo" e as "Altas Partes Contratantes" se obrigam a esta- gação da mesma possibilitou que se firmasse como definitiva a Convenção de
belecer um regime ortográfico único da Língua Portuguesa. Em suma, "ne- 1943, anterior à Conferência.
nhuma regra lingüística era ali lixada; somente se tratou de regras diplomáti- Na última reforma - a de 1971 -, além de permanecerem os resultados
cas e jurídicas" (cf.: Afonso Arinos, 1967). da Convenção, a Academia parece resgatar o seu papel soberano. O discurso
Na Conferência Acadêmica, que se constituiu em um verdadeiro Tratado acadêmico recupera a sua autoria e autoridade, e o discurso jurídico aparece
Internacional, as disposições visavam ao ensino da língua vernácula. E a sua apenas como legitimação dessa autoridade.
concepção como Tratado confere à questão ortográfica uma dimensão políti- A partir de 1971, a questão ortográfica não foi retomada.' Parece que con
co jurídica bem mais ampla com relação ao tratamento dado à questão nas tinua em aberto, uma vez que a última Lei aguarda humologuçno tanto em
reformas anteriores. Antes da Conferência Interacadêmica, os Acordos entre as Portugal como no Brasil.
duas Academias s6 ganhavam legitimidade através de leis e decretos no
.unbuo jurídico interno aos dois países. Isto é, ambos os países tinham autono-
1111:1 lia legislação dos Acordos. Na forma de Tratado, a legislação acaba por se
1\1111;11 uma "imposição" resultante dos termos do tratado. Cabe, então, se inda- 2 Este estudo, como está sendo referido na nota I, foi realizado em 19l1~ DepOIS dessa data, a
;011 IHII que num período tão curto (14 anos) fora necessário legislar tanto a questão ortográfica voltou a ser bastante discutida mas a lei aguarda sempre a sua homologação.
I/li 91
1,1l1'1:I<HNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SILVEIRA, O. G. A "Gramática" de Fernão de Oliveira. Inédito, Rio de
Janeiro, 1954.
I I',NCAR, F. ct alii. História da Sociedadde Brasileira. Rio de Janeiro, Ao
VIANA, G. A Ortografia Nacional - Simplificação e Uniformização
Livro Técnico, 1979. Sistemática das Ortografias Portuguesas. Lisboa, Editora Viuva Tavares
AI/II{//;o da Academia Brasileira de Letras. Rio de Janeiro, Academia Cardoso, 1904.
Brasileira de Letras, 1981-] 985.
Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Bloch
I3ARTHES R. O Rumor da Língua. Brasiliense, São Paulo, 1988, p. 6l. Editores, 197 L.
UNHA C. Língua Portuguesa e Realidade Brasileira. Rio de Janeiro, Tempo
Brasileiro, ] 975.
Decreto n° 20.] 08 de ] 5/06/ 193] . Coleção das Leis.
Decreto n° 23.029 de 02/08/1933. Coleção das Leis.
Decreto-Lei n° 193 de 24/02/1938. Coleção das Leis.
Decreto-Lei n° 5.148 de 12/01/1943. Coleção das Leis.
Decreto n° 14.532 de ] 7/01/] 944. Coleção das Leis.
Decreto-Lei n° 8.286 de 05/12/1945. Coleção das Leis.
FIGUEIREDO, C. de. A Ortografia no Brasil - História e Crítica, Lisboa,
Livraria Clássica Editora, 1908.
FOUCAULT, M. L'Ordre du Discours. Paris, Gallimard, 1971.
HAROCHE, C. Faire Dire Vouloir Dire, Paris, Pul, 1984
Lei n° 2.623 de 21/03/1955. Coleção das Leis.
Lei n° 5.765 de l8/12/1971. Coleção das Leis.
LIMA SOBRINHO, B. A Questão Ortográfica e os Compromissos do Brasil.
Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras, ] 953.
____ A Questão Ortográfica "O Acordo de 1945 e o Congresso Na-
o
1).\
1)1
1
I
7
lil
'I
Em pesquisas anteriores (cf. Souza e Mariani, 1986 e Mariani e Souza,
1991) produzimos análises sobre os processos de normatização da língua por-
1I1 tuguesa no Brasil.
A primeira destas pesquisas, cujo foco era a normatização ortográfica,
evidenciou que questões de ordem jurídico-política perpassaram os vários
acordos, leis e tratados Formulados entre Brasil e Portugal. A unificação da
ortografia do português, em vários momentos históricos, serviu de suporte
para uma normalização das relações políticas entre os dois países.
Na pesquisa seguinte, centramos nossa atenção no século XIX, analisando
o espaço discursivo polêmico formado a partir de três formações discursivas:
a dos românticos, a dos gramáticos e a dos eruditos. Verificamos que a cons-
trução do imaginário da língua brasileira estava fortemente ligada à construção
,li
da identidade nacional; o discurso polêmico sobre a língua era também uma
ti iscussão pol ítica.
O projeto que estou desenvolvendo agora trabalha com dois tipos de
1I materiais: o discurso produzido pelas Academias Literárias e Científicas do
xcculos XVIII e o diretório político lançado em meados do mesmo século pelo
marquês de Pombal. Trata-se de uma pesquisa em andamento não sendo, por
este motivo, nem definitiva quanto ao levantamento de dados, nem inteira
11 mente conclusiva quanto à análise e interpretação dos acontecimentos discur
.\1 vos em questão. Mesmo assim, desde já posso afirmar que, se por um lado o
1'0110 Alegre. O texto apresentado no congresso foi posteriormente publicado nos Anarx do VII '-
1\II(;0l1lronacional da ANPOLL, 199:1. Ao retorná-lo, agora, modifiquei alguns trechos (' ilLle,
I
n'l1lCI uma questão teórica não ternatizada na época: o conceito de discurso fundador
r
95
Quando se tematiza a presença das Academias do século XVIII, a referência c) Dissertação do Desembargador Chanceler Caetano de Brito e
l' quase sempre só da literatura. E o que se menciona é o "gosto duvidoso" das Figueiredo: "...Da América, quarta e maior parte do mundo, a melhor,
uuvidadcs literárias desenvolvidas, as quais "esteticamente só valem como exer- mais opulenta e fertilissima região, intento fazer hoje visível no teatro
cicio de retórica" (Amora, 1956). São mais de vinte academias' fundadas ao dos ouvidos. Estes também alguma hora hão de exercer o ofício dos
longo dos anos 700. Algumas com estatutos, lista definida de associados e pro- olhos, para que sirvam UIlS sentidos de intérpretes dos outros (...)
grama de atividades - são as academias voltadas para a história, a literatura e Determino descrever e debuxar o Brasil, o qual fácil e liberalmente, me
a ciência; outras com finalidade apenas festiva ou comemorativa. subministrarâ as tintas, pois da mais viva o abrasada tomou o nome.
Por uma questão de acesso ao material a ser analisado,' vou me deter aqui Mutuando seus nobres e multiplicados troncos de sua vastissima exten-
na produção textual de duas das academias apenas: I aAcademia Brasílica dos são, o Brasil, aurfero depósito de metal mais subito, fecundo progenitor
Esquecidos, Fundada em Salvador, em 1724, por iniciativa e incentivo do vice- do mais doce gênero e cultor oficioso da planta mais útil, e do pó mais
rei Vasco Fernandes Cezar de Menezes, e 2 a Academia Brasílica dos levantado. O Brasil com maior jactância, inestimável jóia da Coroa
Renascidos, fundada em 1759, também em Salvador, considerada uma conti- Portuguesa (...) sendo que é dotado de tão naturais excelências ... ".4
nuação ampliada da Academia dos Esquecidos. A Academia dos Esquecidos
era assim denominada porque seus membros fundadores se consideravam Destes três fragmentos, depreendi dois dizeres, ou melhor, duas formu-
esquecidos por Portugal no Brasil. Um dos objetivos desta academia era ela- lações que, postas em circulação no período, além de retomar outras formu-
borar uma história do Brasil, da descoberta até o ano de 1724. Já a Academia lações já produzidas anteriormente, instituem, elas também, um lugar de
dos Renascidos se considera uma continuação da dos Esquecidos, propondo- memória. São elas: Brasil-lugar de talentos e eruditíssimos sujeitos; c Brasil
se, três décadas depois, a retomar seus objetivos. - lugar opulento e fertilíssimo.
Ambas as Academias têm estatutos, sócios, objetivos, selo, enfim, tudo Tais Iormulaçõcs resultam tanto do retorno de um imaginário histórico exis-
que era considerado necessário para Ihes dar um caráter institucional. tente, quanto estão buscando construir uma identidade para o Brasil e para o
Como se sabe, em Análise do Discurso, o importante ao analisar um texto brasileiro. Como conseqüência, estão de algum modo contribuindo na Iormação
é entendê-Io "como prática constitutiva da cultura de uma época" (Orlandi, de uma memória para o país. Ao serem formulados, estes dizeres (ou "imagens
1990: 124), ou seja, como lugar de possível constituição de memória e de cnunciativas", conforme Orlandi, 1993: 12) retomam uma cadeia de filiações de
engendramento de sentidos. sentidos, cuja fundação pode ser encontrada na Carta de Pero Vaz de Caminha.'
Quando tomamos, então, alguns dos textos produzidos pelos Esquecidos, O que está em jogo é a construção de uma identidade histórica própria ao
procuramos compreendê-Ios e analisá-Ios como lugar constitutivo de algo a brasileiro. Ao se colocarem como tarefa construir a história do Brasil, os
ser rememorado. Esquecidos buscam impor um saber e uma autoridade sobre este saber, "insti-
Vou aqui citar três fragmentos a que tive acesso: tuindo, historicamente, o que chamamos de tradição." (Orlandi, 1990: 124).
Ora, as perguntas iniciais que fazemos são: Para quem esta história está
a) Ata de fundação da academia: "...para dar a conhecer os talentos que sendo feita? Qual a importância de construir essa história nesse momento?
nesta província florescem, e por falta de exercício literário estavam Uma primeira resposta, e mais fácil, é aquela apresentada usualmente, isto é,
desconhecidos, determinou [o vice-rei] instituir uma academia ... " os Esquecidos, para não continuarem esquecidos, pretendem "exibir" um
Brasil para Portugal.
b) Discurso de Rocha Pita durante o ato de fundação: "...Não permitiu o Mas, se quisermos dar uma complexidade maior a esta resposta, podemos
vice-rei que faltasse no Brasil esta pedra de toque ao inestimável ouro pensar que, dado que nenhuma formação social é homogênea e, dado que dos
de seus talentos (...) Erigiu uma doutíssima academia, que se faz em sentidos postos em circulação, um sempre é hegemônico, predominante,
palácio, na sua presença (...) tem presidido nela eruditissimos podemos perguntar pelo que não está sendo dito: qual a natureza deste outro
sujeitos ... " Brasil que não está sendo descrito? Ou seja, que Brasil é este que não está
2 Grupos de intelectuais reunidos com o objetivo de produzir pesquisas e/ou textos em prosa e Procurei adaptar, sempre que possível, os textos citados às normas ortográficas vigentes nos
verso sobre assuntos variados.
dias de hoje.
1 Parte da produção textual destas academias encontra-se dispersa nos vários arquivos do Rio de ~ Orlandi (1993: 11) faz uma análise da Carta de Pero Vaz de Caminha, evidenciando sua
Janeiro; o restante ou se perdeu ou só pode ser encontrado em Portugal. Assim sendo, os frag- natureza fundadora: "enunciados, como os dos discursos fundadores, que vão nos inventando
mentes textuais que apresento foram obtidos, em sua maioria, a partir da leitura de alguns estu- um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente c que nos dão a sensação de eS,"\I
dIOSOS do assunto (cf. bibliografia). mos dentro de uma história de Ulll mundo conhecido (. ..)".
1)(, 97
Esta situação de con!1ito - língua geral vs língua portuguesa - rcprc-
"lldo dito, para o qual não se apresentam enunciados para descrever? Que
senta também um conflito entre a política da metrópole e o poder cada vez
1I1,1~1ié este que estaria sendo esquecido pelos Esquecidos?
maior dos jesuítas na colônia.
Pala responder a esta questão volto inevitavelmente ao tema da língua. O O diretório de Pombal, em meados do século, intervém nessa situação.
Ih,I<;1ique não está sendo falado é o da língua geral. O Brasil esquecido não é
Ele representa uma ação política da metrópole no que se refere à língua.
\) dos Esquecidos, mas sim o dos índios, dos negros, das mulheres e das crian-
çax, de todos aqueles que usavam fundamentalmente a língua geral e que não Consta no diretório:
Ircqüentavam os salões das academias.
"...sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as nações que
Há inúmeros relatos (apud Cunha, 1979) que evidenciam a forte pene-
conquistaram /lOVOS domínios, introduzir logo nos povos conquistados o
tração da língua geral em todo território brasileiro. Vejamos alguns:
seu próprio idioma, por ser indispensável, que este é um meio dos mais
eficazes para desterrar dos povos rústicos a barbárie dos seus antigos
a) "...as famílias de portugueses e índios em S. Paulo estão tão ligadas
costumes (...) que ao mesmo passo que se introduz neles o uso da língua
hoje umas com as outras que as mulheres e os filhos se criam mestiça
e domesticamente,e a língua que se fala nas ditas familias é a dos do Príncipe que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a vene-
índios, e a portuguesa a vão os meninos aprender nas escolas ... " (rela- ração e a obediência ao mesmo Príncipe. Observa/ldo pos todas as
to do Pe. Antônio Vieira). Nações polidas do Mundo este prudente e sólido sistema, nesta conquista
se praticou pelo contrário, que só cuidavam os primeiros ('o/ll/lIiSllldoJ'(,.\'
b) Relatório do Governo Arthur Sá de Menezes (em 1698) solicitando estabelecer nela o uso da língua que chama/llos geral, invenção ver-
"... a maior parte daquela gente (do Sul do país) se não se explica em dadeiramente abominável e diabólica, para que privados os indios de
outro idioma [a língua geral] e principalmente o sexo feminino, e todos todos aqueles meios que os podiam civilizar; permanecessem na rústica
os servos, e desta falta se experimenta irreparável perda, como hoje se e bárbara sujeição, em que agora se conservam. Para desterrar este per-
vê em S. Paulo com o novo vigário que veio provido naquela igreja o niciosissimo abuso, será um dos principais cuidados do Diretório esta-
qual he mister quem o interprete ... " belecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não
consentino por modo algum que os Meninos e as Meninas, que per-
c) "...[os missionários] conservam [os índios] só com a língua que tencerem as escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de
chamam de geral naquele estado, que difere muito pouco da bruta que instrução nesta matéria, usem da língua Geral, mas unicamente a
saem dos sertões, no que os imitam também os moradores que não Portuguesa, na forma que S. M. tem recomendado em repetidas Ordens,
podem obrigá-Ias a aprender a língua portuguesa sem especial ordem que até agora não se observaram, com total ruína temporal e espiritual
de VM., porque sem ela fugirão para as missões ... " (carta dos do Estado" (apud Cunha, 1979).
moradores do Maranhão, datada de 1729, solicitando que os mis-
sionários ensinem português aos índios). Como se pode observar, a diretriz de Pombal é normatizadora e unifi-
cadora, Tem como objetivo inibir usos lingüísticos que não fossem portuguc
Em tais relatos, pode-se perceber que, embora viesse sendo construída scs. Faz-se interessante notar que um dos emissários enviados por pombal ao
uma imagem de língua geral como língua despossuída de história (cf. Orlandi, Brasil para impor o diretório - José Mascarellhas de Meio -torna se um dos
1990), a língua geral resistia e penetrava no espaço do próprio português. fundadores, em 1759, da Academia Brasílica dos Renascidos. Como dissemos
Mesmo sabendo que os missionários desenvolviam estudos sobre as línguas e no ínicio, coube a esta Academia dar uma espécie de continuidade ao trabalho
as aprendiam apenas com finalidades práticas (comunicar; catcquizar; go- dos Esquecidos: os Renascidos também se colocam illstitucionalll1~ntc a ture
vernar), o que se tem é a expansão e o predomínio da língua geral. Há, fa de redigir a história do Brasil.
portanto, um conflito apagado no discurso dos Esquecidos. Os Esquecidos Já na ata de fundação, quando delimitam sua finalidade, os Rcnuscidox
produzem uma imagem ufanista do Brasil para os europeus e para os por- prescrevem em que língua a história do país isto é, li história das "conquistas
tugueses, buscam fazer circular certos sentidos e apagar outros. Apagam os de Portugal" - deve ser contada. Podemos ler, então, ~1l1pai te dos estatutos:
conflitos e com isso apagam uma outra história. Pode-se reconhecer, então, na
prática discursiva desta Academia, a instauração de um processo de signifi- "Para se escrever a História Eclesiástica, Secultu; Gl'o;.:râjic(/ l' Natural;
l'[1<;ÜO sobre o Brasil que representa (ou que representa parcialmente) aquilo Política e Militar, enfim, uma História Universal de toda li Alllérica
qlll' () colonizador português quer ouvir. Como escreveu Brito e Figueiredo, foi Portuguesa, com mais brevidade se dividirá este laborioso exercício
IlItl'IH;;IO"fazer visível no teatro dos ouvidos" um certo Brasil. pelos acadêmicos, que a pluralidade de votos [orem ele i/os, para cada
99
'.11<
das províncias deste continente; porém, antes que se encarregue
/11I/11 a
ri/Ia l tistária; que se deve compor-se em Latim (... ) se concluirá as
tnctnárias históricas para a Biblioteca Brasilica, incluindo todos os
autores naturais do Brasil e todos que escrevessem na América, as 8
memárias históricas que se devem imprimir na língua portuguesa. "
Sabe-se que estas histórias acabaram sendo apenas parcialmente escritas O ENSINO DA LÍNGUA "MATERNA" NO BRASIL
(não há quase material sobre o assunto). Isto, porém, talvez nem importe tanto. DO SÉCULO XIX: AMÃE OUTRA
Importa mais é o resíduo que fica da leitura destes estatutos, ou seja, a
imposição da língua portuguesa como língua de cultura, como língua que tem Solange Leda Gallo
história e que por isso - junto com a latina - pode contar a história do Brasil,
que não é outra (neste século XVIII) senão a das conquistas de Portugal.
Enfim, o papel das academias e do diretório de Pombal, quando refleti-
mos sobre a normatização e sobre a homogeneização da língua, foi o de fixar
A história, com O sentido, determinado através de A língua portuguesa e, desta Este trabalho constitui-se em uma reflexão crítica sobre um conjunto de
forma, contribuir para a constituição de UMA memória histórica oficial sobre evidências que envolve o ensino da língua portuguesa, no Brasil, desde o sécu
o Brasil. 10 XIX. Sob o ponto de vista da Análise do Discurso, que é a teoria na qual
nos apoiamos neste trabalho, nem é "evidente" a instituição do ensino da lín-
gua portuguesa, nem são "evidentes" os conteúdos dessa prática, como procu-
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS raremos mostrar nesta reflexão.
Antes, porém, de discurtirmos a questão do método, queremos questionar
AMORA, A. S. A Academia Brasílica dos Esquecidos, in Suplemento a própria instituição do ensino da língua portuguesa na escola do século XIX.
Literário do Estado de São Paulo, São Paulo, outubro, 1956. Tal fato produz, de saída, a ilusão de uma unidade lingüística na verdade não
___ O Brasil no espírito dos Esquecidos. In Suplemento Literário do existente no país. Ao contrário, parece-nos que será justamente a apresentação
Estado de São Paulo, São Paulo, dezembro, 1956. de uma língua como "nacional" e ao mesmo tempo como "normativa", um dos
CUNHA, C. Linguagem e condição social no Brasil. In Revista de Letras, fortes argumentos para a ilusão da realidade dessa língua.
Qual é efetivamente a língua do Brasil no século XIX? Nós sabemos que
Universidade Federal do Ceará, Vol. I, n° 3,1979:72-73.
havia no Brasil do século XVI centenas de línguas orais, não grafadas. Em
MARIANI, B. S. C. & SOUZA, T. C. C. 1822, pátria independente: outras seguida houve a confrontação dessas línguas locais com a língua do colo-
palavras? Revista Escritos, México, (no prelo). nizador português. Desse confronto resultou uma língua que Mattoso Câmara
ORLANDI, E. P. Terra à vista. Discurso do confronto.velho e novo mundo. definiu como "tupi-jesuítico".
São Paulo, Cortez / Ed. da Unicamp, 1990. Longe de permitir o confronto histórico desses diferentes sujeitos, a
___ Vão surgindo os sentidos In Orlandi, E. P. (org.) Discurso Fundador. relação "tupi-português" definiu-se como uma relação lingüística c disciplinar
A formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas, e permitiu, essencialmente, a domesticação do conflito. Ela corroborou uma
Pontes, 1993:11-26. forma de governo, evidentemente um governo onde os dirigentes eram os pOI
tugueses. Mais tarde, a essas línguas orais brasileiras se misturaram ainda tan
RIZZINI, C. O livro, o jornal e a tipografia no Brasil, Rio de Janeiro,
tas outras línguas faladas pelos imigrantes que chegaram ao Brasil.
Kosmos, 1946:259-280.
O fato que nos interessa ressaltar é que na relação com textos CS<:I itos em
SOUZA E SILVA, J.N. As academias literárias e científicas no século XVIII. língua portuguesa, esses textos orais produzem um efeito de scnudo de multi
In; Revista popular, tomo 15, ano 4, Rio de Janeiro, 1862, pp. 363-373. plicidade e de ilegitimidade (não nacional), exatamente pelo luto de cunsu
SOUZA, T. C. C. & MARIANI, B. S. C. A normatização do português: uma tu irem-se necessariamente na relação com textos de hngua portupuexa Ess«
questão histórica. In: Anais do li! Encontro de professores de redação do língua apresenta-se como normativa, excluindo () que nao .I'1'f{/II' .1'/1(/.1' 1/0/11/(/.1'.
Sstado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Departamento de Letras, Puc, Assim, ao contrário dos textos orais, o efeito de sentido produzidu pelos
1986: 145-158. cf. aqui mesmo, capítulo 6. textos escritos em língua portuguesa, a partir da "dcscobcrtu" do Brasil, será
de legitimidade e de unidade (nacional), exatamente porque esses textos, que
100 101
..•~ ,CJ rt.\:: ...
·~t"J~~~, I '-LX
,.~\.",,-,\_ •••• DAVI
;. "'. ~~;:::~_~:.~:·1·
IBLlOTECA ..•,-"~'.,,·.. L"J~'~.
111,'"'" discursivamente O Brasil, justamente ao contrário dos outros, cons- Dentro do campo da pedagogia do ensino da língua, e aqui voltamos à
111'Il'lllse fora de um confronto, já que a "língua brasileira" aqui pode ser, (e questão do método, o que nos interessa como ponto de partida é o fato de que
c) Ignorada (em desacordo com as normas). no século XIX, quando esse ensino se estabelece efetivamente, já existe no
Estabelece-se, então, a partir desses fatos, uma relação direta e paradoxal Brasil uma produção literária "brasileira" escrita em língua portuguesa (nor-
entre norma lingüística e nacionalidade: quanto mais de acordo com as nor- malmente produzida por indivíduos nascidos em terras brasileiras e formados
tuas da língua disciplinar (a portuguesa), mais brasileiro. intelectualmente na Europa ou pela Europa).
É interessante observar aqui uma das dimensões em que "ser brasileiro" é Essa produção será absorvida pela Escola que a apresentará como MO-
concretamente determinado histórica e ideologicamente, o que vem con- DELO e o ensino da língua "materna" se especializará na reprodução desse
frontar-se com a evidência de um "ser brasileiro" em abstrato. MODELO, do qual se absorverão as normas a serem impostas para todos. Esse
E é nesse DISCURSO ESCRITO,I justamente, que se produz, por exem- é justamente o processo que vai transformando a língua portuguesa em língua
plo, o enunciado "descoberta do Brasil", que poderia ser construído como mãe, a mãe de todos os alfabetizados no Brasil, e finalmente, por concessão,
"invasão do Brasil", etc. Assim, a partir da chegada dos colonizadores a todos os analfabetos (tomados aqui como subproduto).
europeus ao Brasil, os sentidos legítimos serão produzidos por esse discurso e Nós podemos concluir, então, que ensinar a língua é ensinar a reproduzir
garantidos por uma escritura em língua portuguesa; por outro lado, esses sen- a língua escrita já produzida, o que traz como conseqüência o fato de que li
tidos concorrem com os sentidos que continuam a ser produzidos a partir de democratização do ensino da língua que começa no século XIX, não se cons
textos orais, mas na relação com o D. E. só serão legitimadas "formas" desse Lituirájamais em um risco à ordem (social, pol ítica, ctc.) cstahclccrda, lima vel.
discurso quando forem aí absorvidas (silencia-se o poder discursivo e que o poder da escrita não está nas suas sigllijicaçiJes 11('11I II{/.\' .1'I/lI.I' fO/I//{/,I',
absorvem-se as marcas formais: por exemplo, o léxico tupi, no domínio mor- mas no seu sentido que se produz no discurso (().E.): quando .1'1' RI~'produ; li
fológico, a topicalização no português do Brasil, no domínio sintático, etc.). forma e as significações de textos já produzidos, o resultado são 11' \.10,1' que
O essencial é perceber que apesar da interpenetração de marcas da oral i- não se inscrevem mais no D.E.
dade na escrita e vice-versa, trata-se aqui de dois processos diferentes de pro- Nós notamos aí a produção de sentidos de um outro discurso, próprio da
dução de sentido, irredutiveis um ao outro, onde há uma permanente domi- Escola, que Orlandi (1987) formulou como DISCURSO PEDAGÓGICO.
nação de um sobre o outro e onde o discurso dominante, ou seja, o DISCUR- Esse discurso produz, sem cessar, um efeito de legitimidade para os tex-
SO ESCRITO é um discurso sempre institucional, não importa a época em que tos que a Escola apresenta como "modelares", exatamente porque ela assim os
ele seja produzido: mudam-se as instituições (igreja, corte, academia, etc.), apresenta.
permanece o discurso. Ao mesmo tempo esse DISCURSO PEDAGÓGICO produz um efeito de
Gostaríamos de salientar, ainda, que embora seja possível afirmar que ilegitimidade para as produções dos alunos, precisamente porque no D.P. elas
existe um DISCURSO ORAL que se distingue de um DISCURSO ESCRITO, são sempre RE-produções inacabadas, mesmo quando são grafadas.
não é possível separá-Ios abstratamente sem trabalhar essa distinção na relação Quero explicitar, aqui, que estou considerando que escrita e grafia não se
com as instituições onde eles se constituem. confundem'.
A relação do D.O. com o DISCURSO RELIGIOSO, por exemplo, pro- Nós fazemos referência, aqui, ao DISCURSO PEDAGÓGICO e não à
duz efeitos de sentido diferentes daqueles produzidos pelo mesmo D.O. em ação pedagógica. Evidentemente que as ações pedagógicas, desde o século
relação ao DISCURSO JURÍDICO. Assim também a relação do D.O. com XIX, são múltiplas e elas têm dado uma certa mobilidade a essa configuração.
O DISCURSO RELIGIOSO produz, hoje, efeitos de sentido diferentes Mas, de qualquer forma, elas se desenvolvem dentro dos limites do DISCUR-
daqueles produzidos no século XIX, ele. Aqui nos limitaremos aos efeitos SO PEDAGOGICO e, portanto, elas podem constitituir-se em forças de
de sentido produzidos na relação do D.O. e do D.E. com o DISCURSO oposição dentro de um mesmo discurso, mas não provocam uma ruptura.
PEDAGÓGICO. Segundo Orlandi (1987), uma das características do DISCURSO
PEDAGÓGICO é a de ser circular. Nós identificamos, aqui, uma das dimen-
sões dessa circularidade, ou seja, que ao se apropriar de certos textos, a Escola
As noções de DIRCUSO DA ESCRITA (D.E.) e DISCURSO DA ORALlDADE (0.0) foram legitima esses textos (que aí se tornam "modelo"), e se legitima, ela mesma,
por mim formuladas em DISCURSO DA ESCRITA E ENSINO, sendo o 0.0. lugar de através desses textos, podendo, assim, legitima outros textos, etc. Um dos
uiscnção de textos orais ou grafados que não se legitimam, enquanto que o D.E. é o lugar de fatores deterrninantes dessa circularidade, no caso específico do ensino da lín
rnxcnção de textos oralizados ou grafados, mas sempre "escritos" (legitimados) institucional-
IllI"nt(·(' por ISSO produtores do efeito de fechamento e de autoria. Estaremos tomando, aqui, as 2 A construção dessa diferenciação está em minha tese de doutorado. TEXTO, COMO
111111\ nO\·ôc.·snessa concepção. APRE(E)NDER ESSA MATÉRIA? (ver bibl.)
IIP 103
'11.1 111011('1 11a",
que a Escola não refletirá em nenhum momento sobre os
é
__ "La danse des Granunaires", Colóquio de Nice, 1987 (contact
I kllll\ sentido do D.O. e do D.E., mas somente sobre as significações e a
til: des langues: Quels modeles") e in Terra à vista (cap, II - 2" parte),
"1111101 dos textos, excluindo dessa maneira sua historicidade. Campinas, Cortez / Unicamp, 1990.
I\lI1<.1aa respeito do DISCURSO PEDAGÓGICO, há, no caso do ensino
PÊCHEUX, M. - Discurso: Estrutura ou Acontecimento, Campinas, Pontes,
d,I língua "materna", a produção de um sentido de "evidente" correspondência
1990.
entre oral idade/escrita; ou seja, a ilusão dessa correspondência.
O fato que sustenta essa ilusão é que ao nível da forma e da significação
do texto, tanto a transcrição é possível, quanto a tradução: escrito/oral,
oral/escrito; e é justamente a prática escolar de transcrição e de tradução que
produzirá essa falsa "evidência".
Por essa falsa evidência fica apagado o fato de que escrever sobre o Brasil
ttu língua portuguesa não passa pelo DISCURSO ORAL, na mesma medida
em que a escrita não é transcrição da oralidade.
Outra conseqüência é o argumento que torna possível a apresentação dos
textos produzidos pelo D.E. como modelares na escola, e a língua deles extraí-
da, como normativa; ou seja, por essa falsa evidência os textos do D.E. seriam
a forma escrita dos textos do D.O. e a língua extraída desses textos (do D.E.),
uma versão normativa da língua materna.
A escola finalmente transformará essa questão crucial para a aprendiza-
gem da língua, que é a questão da identificação do sujeito, em uma questão
lingüística e sociolingüística, traduzidas em termos de "certo/errado",
"bom/mal", capaz/não capaz", ctc.
Mas o resultado mais contundente desse processo é o fato de que essa
língua, substrato da prática escolar e simulacro de textos do D.E., pouco a
pouco vai-se infiltrando nos textos do D.O. São, na verdade, três discursos,
o D.O., o D.E. e o D.P. produzindo textos que opõem-se histórica e ideo-
logicamente. No entanto, como Iingüisticamente essa produção é completa-
mente cornpósita, o efeito de sentido que se produz é de uma língua única,
definida entre dois limites extremos (o mais próximo e o mais distante da
norma). A esse efeito chama-se língua materna, a língua dos filhos de uma
mãe outra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
I()I 10')
9
Marisa Lajolo
Versão anterior deste texto foi apresentada em dezembro de 1990 na John Cuncr Brnwn
Library durante um pós doutorado que contou com o auxílio da FAPESI', Vunc FOll1\!Ia1101\ &
John Carter Brown; uma segunda versão foi apresentada 1:111ícvcrcuo de 11)1)I dlllal\ll' o Colln
que La cittoyenneté au XIX Siêcle au Brésil et en Francc na Uruversuv tIL'I'all\ VII, que con
tou com o apoio do COFECUB e do Fundo de ApOIO ao 1111\11\0c li PesqUisa (I'AEJI I
Unicamp). Uma terceira versão foi publicada em 1995 com o utulo "The mie 01 ornluy 111thc
seduction or the Brazilian reader: a national challcngc tor hru/rhnn WlltCIS 01 ItWOI\" em
Poetics today 15: 4 (Winter 1994) pp. 553-567,
2 Relativamente à discussão dos papéis desempenhados c possíveis de serem dcscmpcuhãvers
pelos estudos culturais em diferentes tradições culturais, veja ,se Rama (1985) e Mignolo
(1989) (1990),
107
NIIIII lal contexto, qualquer papel que os estudos literários possam vir a
Ao lado de forte base católica, o medo das luzes que haviam inspirado a
III~~I mpcnhur é também um papel político, ou, dizendo melhor, papel no qual independência norte-americana em 1766 e a revolução francesa em 1789 levou
I I.H \' política é inextrincável de quaisquer outras. Afinal, escrever, ler e dis-
Portugal a adotar uma política obscurantista que proibia a imprensa no Brasil,
(11111 Iitcratura são algumas das atividades a partir e através das quais grande
e nas demais colônias portuguesas. (Bastos, 1926; HaIlewell 1985; Morais
Jl'1I te das sociedades ocidentais - sobretudo as do primeiro mundo - 1979; Nizza da Silva 1973, 1974, 1977, 1978; Rizzini 1988). Privada, assim, da
urnbufrarn e continuam atribuindo expressão simbólica. Neste mundo, a lite- base técnica que viabiliza a modernidade, a cultura literária que é parte da cul-
ratura é um dos fatores que formara vivências emocionais, alegrias e tristezas, tura escrita, tem um começo pouco auspicioso na Terra de Santa Cruz.
esperanças e medos. É também na literatura que natureza e humanidade ga- Um começo tão precário vaticina que a história da escrita e da leitura no
nham sentido: em resumo, a literatura foi (e ainda é) uma das linguagens Brasil deva ser pobre, e mais pobre ainda a história da literatura. E todas elas
através das quais diferentes comunidades constróem, reforçam ou reformatam são pobres, com efeito.
sua identidade, desdobram e renovam poderes da linguagem verbal. A adversidade do contexto colonial para atividades de cultura baseadas na
Ao longo de sua história, os estudos literários conceberam de diferentes escrita e na leitura explica a pobreza e rarefação de tais práticas. Mais impor-
formas seu objeto e instauraram, em nome e em torno de tal objeto diferentes tante, no entanto, do que lamentar a pobreza deste início é entender como,
práticas discursivas, exilando para áreas vizinhas - como a sociologia da li- deste começo canhestro, se desenvolvem as práticas que constituem o modo
teratura, a história do livro, ou o ensino da literatura - o estudo das práticas de ser da literatura brasileira, enquanto instituição e prática discursiva: man
sociais através das quais a literatura desempenha (ou não desempenha) dife- tendo embora as cicatrizes da precariedade de seu começo, tem nesta cicatriz
rentes papéis em diferentes sociedades. de origem traço de identidade.
O resultado desta cartografia torna-se profundamente insatisfatório quan- É para esta compreensão que se precisa garimpar em outras instâncias c
do se atenta para seus resultados, que invisibilizam certas questões e, no vácuo âmbitos os traços deixados pela viabilização de tais práticas, que, não obstantc
destas, congelam num perfil determinado. Perfil que não vem ao caso discutir pobres e rarefeitas, criaram condições de leitura e até de uma inst ituição
se verdadeiro ou falso: afinal, todo perfil é sempre e só um perfil. O que vem literária no Brasil, a partir de meados do século XIX.
ao caso é discutir as conseqüências de um movimento oposto à fragmentação Mesmo antes da Independência em 1822, com a vinda de D. João VI em 1808,
da área, ou seja, o contemporâneo alargamento do campo dos estudos literários, cancela-se a proibição da impresa. Mas, não obstante o avanço representado pela
identificados agora em alguns centros de ponta como estudos culturais? existência legal de prelos, a presença do mecenatismo na produção cultural bra-
Este alargamento do campo, ao historicizar e contextualizar questões sileira, será um novo fator de retardo para o desenvolvimento da literatura. Assim,
estéticas, permite refletir sobre o que se faz quando se ensina e se estuda lite- à dessemelhança dos romancistas ingleses que viveram o que constitui (Watt 1957)
ratura; tarefas cujo resultado pode constituir forma particular de entender me- o paradigma clássico de práticas de leitura associadas à revolução industrial, os
lhor nosso aqui e agora, a sociedade em que vivemos, nossas linguagens, escritores brasileiros não podiam contar com efeitos e necessidades gerados pela
nossa língua e nossas práticas simbólicas. revolução industrial. Mas ainda assim, à semelhança de seus colegas da Europa, os
fundadores do romance brasileiro tiveram de seduzir seus leitores, da mesma forma
Qualquer literatura nacional é (parte de) uma instituição e, ao mesmo que o escritor inglês Samuel Richardson teve de seduzir os seus, como tão suges-
tempo, prática social muito complexa e nada desinteressada, cuja compreen- tivamente Terry Eagleton analisa em The rape of Clarissa (Eagleton 1982).
são exige sua contextualização no aparato que formata a instituição das letras. Mas é claro que lançando mão de outras manhas de sedução.
A especulação mais sugestiva sobre qualquer manifestação particular da insti- Em meados do século XIX, o Brasil era um país cuja cultura mantinha
tuição letrada precisa levar em conta seu desenvolvimento histórico o qual, no traços fortes de oral idade, com um sistema escolar absolutamente insatis-
caso brasileiro, é fortemente marcado pela política cultural implementada por fatório (Almeida 1989; Carvalho 1978), taxas altíssimas de analfabetismo,
Portugal ao longo dos séculos XVII e XVIII. parcas bibliotecas e gabinetes de leitura, e um número insignificante ou nulo
de editoras e de livrarias (Araújo 1989; Athos 1962; Bernardes 1988; Burns
Canclini (1980). Eagleton (1976, 1983, 1984) e Paes (1990) discutem, de diferentes pontos de
1964, 1975; Diniz 1959 a e b; Dornas Filho 1939; Ellis 1957; Frieira 19X 1l,
vista, diferentes e muito sugestivas funções que os estudos culturais podem desempenhar no
Era num tal cenário, que se precisava transformar em público leitor uma
âmbito dos estudos literários.
li expressão cunhada por Gerald Graff professing literature (Graff 1987) é muito sugestiva e
pequena parcela de uma população na sua maioria analfabeta e, além diSSO,
pretende cobrir as variadas atividades relacionadas a textos que desenvolvemos profissional- dispersa ao longo de um imenso território.
mvntc c que ultrapassam muito o estudo - ensino e aprendizagem - da literatura. Ou seja: a tarefa que aguardava os escritores brasileiros - a cousrruçuo
IÜ'lallvalll<:nlc ao ensino da literatura na América Latina, consultar Antonio Cândido (1988), de seu público - era tarefa quase impossível. Que foi, não obstantc, levada a
1.1'1010(19M8, 1989) e Vidal (1979). cabo. Com sucesso ...
II)M 109
:~II"
I\, hl~I(1I1:1do público leitor brasileiro é uma história de ausência e de pre- I Ima tal liberação parece ocorrer, por exemplo, quando a história contada
I .u n-d.ulcs, em virtude da já mencionada política cultural portuguesa, obscu- abandona o estratagema de apresentar-se como transcrição de um relato oral,
1.llIllsla e scgrcgadora, No entanto, uma outra história, mais dialética e menos ou ainda quando ela dispensa a moldura do romance epistolar e desenvolve-se
determinada parece ser contada a partir de uma leitura atenta da ficção autônoma, seqüência linear e progressiva de eventos, apresentados de um
brasileira que faz uma representação bastante sutil das condições de leitura nas ponto de vista que tende à onisciência e à terceira pessoa do narrador.'
quais escrita e leitura literárias tomam forma no Brasil.' Mas, mesmo que terceira pessoa e onisciência sejam categorias chave da
Desde seu início, confiava-se à literatura brasileira tarefa já cumprida lorrna narrativa moderna e o romance seja, definitivamente, um gênero
I I() III
1{l:1I 11 I suas cartas e fiz um livro. sedução de um público pesadamente conservador, benjaminianamente nostal
I:IS o destino que lhes dou; quanto ao título, não me foi difícil achar. !!ico e só muito de leve familiarizado com práticas de leitura e de escrita. Em
(Alcncar s/d [1862]: 05) renas condições, a oral idade se expressa e se representa no romance
A senhora estranhou, da última vez que estivemos juntos, a minha brasileiro, de modo a recuperar a importância de que desfrutava em tempos
excessiva indulgência pelas criaturas infelizes, que escandalizam a mais antigos, ou em culturas distintas da ocidental.
sociedade com a ostentação de seu luxo e extravagâncias. A oral idade destas outras talvez seja encenada no romance regionalista
Quis responder-lhe imediatamente, tanto é o apreço em que tenho o brasileiro, desde o século XIX até hoje.
tato sutil e esquisito da mulher superior para julgar de uma questão de No regional ismo brasileiro, a oralidade talvez resgate para a literatura um
sentimento. Não o fiz porque vi sentada no sofá, do outro lado do salão, traço extremamente significativo da cultura de minorias como índios, negros
sua neta, gentil menina de dezesseis anos, /lor cândida e suave, que mal e camponeses. Por outro lado e no mesmo sentido, a oralidade encenada no
desabrocha à sombra materna. Embora não pudesse ouvir-nos, a minha regionalismo pode também representar um sinal da resistência com o qual a
história seria uma profanação na atmosfera que ela puri ficava com os per- cultura de comunidades como as acima elencadas minou e/ou subverteu, mis-
fumes da sua inocência (...) cigenando a cultura dominante, particularmente a literária, transformando-a
Calando-me naquela ocasião, prometi dar-lhe a razão que a senhora num mosaico de formas, cores e tamanhos.'
exigia; e cumpro o meu propósito mais cedo do que pensava. Trouxe no Este caráter compósito que a ficção regionalista manifesta pode, inclu-
desejo de agradar-lhe a inspiração; e achei voltando a insônia de recor- sive, explicar a constante posição de menoridade a que ela é confinada pela
dações que despertara a nossa conversa. Escrevi as páginas que lhe envio, tradição crítica. Ou seja, a crítica - instância mais conservadora da instituição
às quais a senhora dará um título e o destino que merecem. (...) (Alencar literária - talvez desqualifique produções nas quais a oral idade não tenha
s/d [1862]: 7-8) sido completa ou quase completamente apagada? - em função de um certo
Terminei ontem este manuscrito, que lhe envio ainda úmido de mi- corporativismo textual, que, obviamente no entanto, se recobre de outros argu-
nhas lágrimas. (Alencar s/d [1862]: 210) mentos, entre os quais, universalidade é o mais forte.
Hipótese que Iracema ajuda a investigar.
Esta alusão a lágrimas que enxarcarn um manuscrito, enquanto estratégia Em 1865, o romance Iracema de José de Alencar tcmatiza e tcxtualiza uma
narrativa, parece ter poderosos efeitos de sentido. Trata-se de um recurso anti- forma de oralidade bastante diferente da oral idade cvocada pela menção a ma
go, mesmo que o padrão seja o Brasil do século XIX. Este arcaísmo inten- nuscritos ou serões de leitura de Luciola e outras obras urbanas do romance
cional, encenando velhos tempos de manuscrito, patrocina para os leitores - brasileiro. Iracema se apresenta como um romance de fundação. atravcs do
ao lado da intensificação da verossimilhança - um forte sentimento de ances- primeiro encontro entre brancos e índios. O romance se abre e se fecha com cal'
tralidade e de história, que parece dissipar os riscos de perda de identidade que tas dirigidas a um Dr. Jaguaribe (na realidade, Domingos Jaguaribc, primo do
espreitam leitores e escritores na modernidade. escritor) ao qual Alencar expõe seu projeto literário e ensina a leitura pretendi-
Mas Luciola é apenas um exemplo de como a oral idade traduz-se na nar- da para o romance. Como tantos outros romancistas de sua geração, Alencar
rativa moderna: prcsentifica, numa espécie de corte congelado do passado, um vem a cena dizer que está recontando uma história que lhe foi contada:
tempo no qual o contar ocorria em condições historicamente diferentes.
Em outros livros da tradição brasileira, a oralidadc encena o velho costume Uma história que me contaram nas lindas várzeas onde nasci, à caia-
de leitura coletiva, vigente no Brasil nos dois extremos do arco social, documen- da da noite, quando a lua passeava no céu argenteando os campos, e a
tado tanto em pousos de tropciros quanto em salões e saletas da aristocracia do brisa rugitava nos palmares. (Alencar 1982 [1865]: 12)
Império brasileiro. Com efeito, José de Alencar refere-se ao costume de ler ficção
em voz alta creditando a ele forte in/luência em sua carreira de romancista Uma tão explícita alusão à prática de narrativas orais inscreve Iracema,
(Alenar 1990 [1893]). Este modo de leitura, que funciona como ritual de sociali- seu leitor e seu narrador - através de seu autor - na tradição ancestral da
zação familiar, aglutinava em torno de um rústico lampião família e agregados, e narrativa, oral e coletiva, que passa de boca em boca.
constituía, seguramente, meio de educar para a leitura (e/ ou escuta) literária.
Nada a estranhar, portanto, que tantas moçoilas, titias, rapazes e matronas,
8 Penso na realidade multicultural das heranças culturais brasileiras no mesmo trilho no qual
sejam ílagrados lendo, em meio às peripécias que vivem no romance do sécu- Cornejo Polar discute o caráter heterogêno da literatura indígena da América Latina. Consuluu
lo XIX brasileiro. Cornejo Polar (1977) c Lajolo (1989).
Mas esta espécie de oral idade encenada, ainda que réplica verossímil de 9 Relativamente ao regionalismo e a sua inserção na história da literatura brnsilciru. consultar
coxtumc« sociais, não era a única arma que a narrativa escrita esgrimia na Antonio Cândido (t987: pp 140-162), Bosi (1973: pp. 53-72) e Pereira (1973: pp 17722~)
11" 113
M,I' tradição oral, comunitária e socializante não é a única presente
l',la
1111 Imediatamente
h(f('/'/II11. antes do texto acima citado, Alencar filia seu o que aqui estam os chamando de oralidade residual não se limita a esta
u uu.uicc a outra tradição narrativa, ao compor a cena, na qual Martirn _ a indianização da linguagem. Referências à natureza, por exemplo, paralelísti-
puncipal personagem portuguesa - está deixando o Brasil e sua partida ense- Ias e encadeadas soam como textos produzidos enquanto o narrador está face
p' que o narrador lance ao leitor uma pergunta romancesca que inscreve o livro .to cenário que descreve, apontando para palmeiras, montanhas e praias
na tradição européia do romance folhetim, onde o suspense se reforça através 011 cnosas, partilhando a paisagem com seu ouvintefleitor, nela mergulhado
de perguntas retóricas (muitas vezes fecho de capítulo) que monitoram a pelos dêiticos que pontilham a obra.
atenção do leitor para os pontos fulcrais da história: Da mesma maneira, certos usos do presente do indicativo trazem para a
história a nuance de atemporalidade que o pretérito (em português, tempo
o moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos presos na sombra uadicional da narrativa) é incapaz de produzir, uma vez que o mundo ao qual
fugitiva da terra; a espaços o olhar empanado por tênue lágrima cai sobre se refere o pretérito é um mundo já passado e, por isso, incapaz de fazer frente
o jirau, onde folgam duas inocentes criaturas, companheiras de seu ao leitor ou ouvinte.
infortúnio. Obviamente, no entanto, tudo isso se passa nas páginas de um livro, ou
Nesse momento o lábio arranca d'alma um agro sorriso. seja, esta narrativa in praesentia é artificial. O texto alencariano, portanto, é
Que deixara ele na terra do exílio? (Alencar 1982 [1865]: 12) uma resposta textual à intuição do fato de que seus leitores, por hipótese não
xao familiarizados com a paisagem descrita. Em função deste desconheci
Relativamente ao estilo narrativo de Iracema estamos, pois, em um outro mente, o texto se sobrecarrega ainda com explicações de palavras o que
patamar narrativo, no qual se percebe quão bem Alencar entre teceu a tradição acaba sendo um outro signo da narrativa dividida: o aqui da matéria narrada
oral com a escrita na estruturação do livro. A obra é repleta de traços da lin- não é o aqui no qual a narrativa está sendo lida: quando Alencar se dirige ao
guagem oral, como a parataxe, as sentenças curtas e rítmicas, a alta freqüên- primo na carta que abre o romance, ele sublinha que, por viver no Ceará,
cia de apostos - procedimentos de linguagem que já têm sido apontados e local onde se passa a história, Jaguaribe des fruta das condições ideais para
aplaudidos pela maior parte da fortuna crítica do livro (Proença 1959; leitura do livro.
Wasserman 1983, 1984).
Estas estratégias narrativas heterogêneas - tradição indígena + folhetim Este livro o vai naturalmente encontrar em seu pitoresco sítio da várzea,
- dão a Iracema perfil híbrido, fruto de uma linguagem mestiça e ao mesmo no doce lar, a que povoa a numerosa prole, alegria e esperança do casal.
tempo sugerem a heterogeneidade da formação cultural - simbólia, lingüísti- Imagino que é a hora mais ardente da sesta.
ca, linguageira - do público leitor pretendido, pelo menos bilíngüe em ter- O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias natais; as aves emude-
mos de linguagens narrativas. A combinação de duas tradições narrativas cem; as plantas languem. A natureza sofre a influência da poderosa irra-
parece satisfazer as expectativas de um leitorado precário e primitivo como o diação tropical, que produz o diamante e o gênio, as duas mais brilhantes
brasileiro, cujo alvorecer do sentimento patriótico encontrou, na cultura pré- expansões do poder criador.
cabralina, uma primeira fonte para a titulação nobiliárquica, para denominação Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de reses,
de lugares e para metáforas da terra, para não mencionar - por já ter sido lem- que figuram a boiada. Era assim que eu brincava, há quantos anos, em
brado tantas vezes - a coincidência entre as letras que compõem a palavra outro sítio, não mui distante do seu. A dona da casa, terna e incansável,
Iracema e as que compõem a palavra América (Almeida 1941; Queiroz 1965) manda abrir o coco verde, ou prepara o saboroso creme de buriti para
da qual, então, a personagem título do livro alencariano é anagrama. refrigerar o esposo, que pouco há recolheu de sua excursão pelo sítio, e
Se estes traços formais podem, por hipótese, ser creditados ao projeto india- agora repousa embalando-se na macia e cômoda rede.
nista que José de Alencar, a partir da crítica a Gonçalves de Magalhães, traçou Abra então este livrinho, que lhe chega da corte imprevisto. Pcrcm Ia suas
para si, a mímese da estrutura da língua indígena reforça a hipótese de que o con- páginas para desenfastiar o espírito das cousas graves que o uuzcm ocu
texto indianista favorece a oralidade (Lima 1966[ 1922]: 462-468; 585-621). pado (Alencar 1982 [1865]: 9).
Enfatizando este ponto, o sucesso de Iracema representa muito mais do que o
reconhecimento de uma opção literária individual de Alencar: inspiração na cul- Em função destas diferentes espacialidades, digamos de narrauva l' de lcuu
tura indígena já havia sido recomendado por todos os pais e padrinhos da ra, o narrador acaba operando uma espécie de transculturação. opc",~'iio que
nascente literatura brasileira como meio de assegurar a originalidade da literatura Alcncar performa com maestria, principalmente através de aposiçocx, cxtrutura
de que carecia o novo país independente (César 1978; Denis 1826; Almeida sintática muito adequada para converter um código em outro (Rama I ()K2).
( ;:11 rcu /826), projeto ao qual José de Alencar adere com armas e bagagens. As dificuldades da crítica para rotular Iracema podem provir, talvez, desta
bem realizada mistura de linguagens. Se Alencar resolveu seu problema,
11·1
1/5
\ 1111I1I:ll1do seu livro de lenda (lenda cearense é o subtítulo do livro)'" os estu- nas cidades ... arrenego I... não há menina que por pobrezinha que seja, não
diosos tentaram resolver os problemas da crítica considerando Iracema um saiba ler livros de letras de forma e garatujar no papel... que deixe de ir a
poema em prosa. O que importa é que ambas as denominações enfatizam a funçonatas com vestidos abertos na frente ..." (Taunay 1987 [1872]: 31).
altcridade deste livrinho encantador que, desde a primeira edição, tem ma-
ravilhado leitores e desafiado críticos. Ao lado destas personagens que proclamam pela própria boca seu distancia-
Por quê? mento do mundo da escrita - na voz de Pereira sob forte suspeição - também
Talvez porque ele tenha sido o primeiro romance brasileiro a textualizar é digno de nota o fato de que no romance de Taunay contracenam diferentes
uma estrutura narrativa capaz de exprimir dialeticamente os paradigmas con- estrangeiros em trânsito pela fazenda do pai de Inocência. Assim, além de ence-
traditórios de uma tradição cultural híbrida. Se for assim mesmo, Alencar feriu nar questões de oralidade e de escrita, o livro é percorrido por sotaques estran-
a nota certa e deu pistas à teoria da literatura para que procurasse na ficção geiros, contraponto ao eloqüente e aterrorizante silêncio do anão mudo Tico.
brasileira não urbana os textos mais promissores - enquanto expressão da Desse modo, questões de linguagem estão na berlinda ao longo deste
alteridade introjetada - no traçado de identidade brasileira. romance de sucesso, onde cada capítulo tem uma epígrafe extraída de uma obra
Com uma tal noção de transcuIturação (Rama, 1982 b), essencial numa prima da literatura ocidental, intertextualidade que já indicia a linhagem literária
tradição cultural híbrida, chegamos a outra das estratégias desenvolvidas pelos à qual o romance de Taunay pretende filiar-se. O sucesso do escritor neste pacto
escritores brasileiros para seduzir um público leitor desacostumado de qual- de muitas vozes sela-se tanto pelo entusiasmo do público brasileiro rejo livro,
quer tradição narrativa mais consolidada.
como ainda pela sua imediata tradução para diferentes idiomas europeus."
Na fronteira entre oralidade e escritura, algumas soluções narrativas Se se considera o romance como uma linguagem socialmente simbólica
encontradas parecem sugerir a inadequação da estrutura clássica do romance
ou como um inconsciente coletivo social (Ianni 1991; Jarncson 19HI),
- tal como ela se consagrou no caso modelar de um Balzac, por exemplo.
podemos ler Inocência sob uma luz diferente daquela sob a qual a obra tem
Tais modelos inscrevem-se, evidentemente, no contexto e na tradição da cul-
sido tradicionalmente lida pela crítica.
tura urbana européia, que, quando cristalizada nos romances canônicos, parece
Esta nova leitura dá peso ao fato de que, em nível simétrico e oposto às
monolítica. E que, por ser monolítica, parece não abrir espaço para a plurali-
epígrafes de alta estirpe, o romance de Taunay é pontilhado de rodapés do
dade de vozes necessárias para exprimir a identidade cultural fracionada de
uma cul tura como a brasileira (Lajolo 1991). autor. Se as epígrafes elevam o livro, ao tarnsformá-lo em interlocutor do que
há de mais canônico na tradição literária ocidental, algumas das muitas notas
Este perfil conflitante e quase esquizofrênico da cultura escrita brasileira
de rodapé traduzem para o público leitor do romance [por hipótese escolariza-
é também magnificamente encenado por Inocência (1872), romance de
do, alfabetizado e urbano, como tão bem sabia Alencar ao frisar excepciona-
Taunay. Nesta obra, o paradigma que relaciona o binômio analfabeto / interior
Iidade da ambiência rural na qual Jaguaribe iria ler o livro ...] a linguagem des-
ao binôrnio alfabetizado / cidade é recorrente e muito sugestivo, sobretudo
escolarizada e regional de algumas personagens. Tais procedimentos sugerem
quando manifestado a propósito do mundo feminino. Diz Inocência a Cirino:
que Taunay se distanciava, tanto enquanto narrador, como enquanto autor, da
linguagem de seus personagens, e creditava a seus leitores o mesmo distancia-
Sou filha dos sertões; nunca morei em povoados, nunca li livros, nem
mento, sinal seguro de superioridade - ao menos da alteridade lingüística e
tive quem me ensinasse coisa alguma (...) Se eu o magoar, desculpe, será
sem querer (Taunay 1987 [1872]: 87). social" dos circuitos previstos para produção e circulação do métier literário.
E diz Pereira, também a Cirino: Circuitos, no entanto, às vezes arrombados.
" ... isto de mulheres, não há que fiar. Bem faziam os nossos do tempo
antigo. As raparigas andavam direitinhas que nem um fuso ... Uma pis- lI A décima oitava edição de Iracema pela editora Melhoramentos (1927) menciona uma
cadela de olho mais duvidosa; era logo pau ... Contaram-me que hoje, lá tradução francesa em 1896 por Olivier du Chastel; uma tradução inglesa em 1889 por Jarnes
Wells, uma tradução italiana em 1893 por G.P. Malan, uma tradução sueca em 1896 e uma
espanhola em 1905 por José Vicente Concha, presidente da Colornbia.
Io Uma particularidade de duas traduções de Iracema para o inglês podem iluminar questões da 12 Talvez valha a pena apontar que no prefácio de sua tradução inglesa, Wells explica aos
multiculturalidade representada pelo livro: a obra é considerada fale por Burton, e story por leitores as dificuldades de tradução do que ele chama de "local patois". Transcrevo-o: " .. as
Biddell. Ao mesmo tempo, título e subtítulo alteram-se consideravelmente na tradução de the author is wonderfully rich in local patois and proverbs, which would be cornpanuivcly
B1II10n, que dá uma extensão nacional (brasileira) à lenda que Alencar relaciona com a fun- uninteligible if put into actual corresponding English, I have had to take libertics in my tll'ul
dação do Ceará ao mesmo tempo que sublinha a beleza e sensualidade de Iracema ao incor- ment of the matter". (Taunay 1889 [1872]: s/p). Efetivamente, são variadfssirnos os cxpc
porar ao título a expressão honey lips que, no romance, é mencionada apenas no corpo do dientes de que se vale o tradutor que, às vezes mantém a expressão brasileira, às veles IlIuda
'l'l!lIndo capítulo. a expressão, muitas vezes abre suas próprias notas de rodapé, confirmando qUI:, 11I1I11ll'IIlUIl'IlI
do Atlântico, as vozes não urbanas são de representação problemática, com duplo solal]lIl'
II1I
117
da sua disposição na página, e na esteira de sua etimologia, epí-
1'111 1t'11l10S novo momento na formação do público brasileiro, momento no qual o
)I.dv~ c rodapés inscrevem-se, repectivamente, acima e abaixo da página. No cscri tor tem de desconstruir os protocolos e rcfercnciais de leitura, tão cuida-
l,ISO de inocência, o texto entre ambas é também graficamente marcado, salpi- dosamente construídos pelos seus antccessorcs, os romancistas das gerações
rudo de aspas ou rendilhado de itálicos e negritos através dos quais Taunay de Alencar e Taunay.
sinaliza os trechos produzidos por estrangeiros ou por analfabetos e por isso Essa ficção constantemente voltada para o leitor talvez possa ser conce-
vasados num português que se afasta da norma culta. Mais uma vez, estamos bida como uma espécie de réplica textual dos projetos de política cultural tão
face a um narrador muito hábil e inteiramente alerta para o intervalo entre dife- freqüentemente formulados por escritores brasileiros de primeira geração,
rentes práticas de linguagem entrelaçadas no coração da vida social brasileira, geralmente engajados na política ou na administração e que estavam, pois,
intervalo polifônico, e polifonia na qual a literatura tem de transcrever-se. quer na vida civil, quer na pele de narradores, sempre a braços com a imple-
As diferentes vozes orquestradas em Inocência, pressupõem - dez anos mentação de projetos que fundassem amadurecessem modernizassem e
depois de Alencar - um público leitor em meio ao qual os protocolos para a escrevessem e lessem o Brasil (Coutinho 1968; Martins 1977).
leitura da ficção romanesca estão mais difundios e são mais heterogêneos. Contextua1izando estes alinhavos todos no fato de que desde o Brasil colô-
Ou seja: o Alencar de Iracema e o Taunay de Inocência, de forma respecti- nia questões de literatura se discutiam, decidiam e implementavam em escri-
vamente adequada ao tempo de cada um, parecem ter intuído que o romance, tórios governamentais, parece mesmo que o romance brasileiro é uma área muito
enquanto gênero com estruturas formais definidas a partir de obras da literatura sutil na qual se pode compreender - codificada na complexa linguagem da nar-
européia dos séculos XVIII e XIX talvez não fosse o modelo textual mais ade- rativa escrita - algumas das muitas contradições da vida social brasileira ...
quado para encenar realidades diferentes daquela (européia) que lhe deu origem. ... compreensão que representa nobre e gratificante função a ser cumpri-
Assim, para falar brasileiro, as matrizes do romance clássico tiveram de da pelos estudos literários que podem, assim, explicar porque, como intuía
criar espaço para outras vozes narrativas, transformando-se uma certa ver- Alencar, o povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba (não]
tente do romance brasileiro (como o regionalista), num artefato narrativo pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que
capaz de incorporar tradições narrativas híbridas como era (e talvez ainda sorve o figo, a pera, o damasco e a nêspera ...
seja ...) a tradição cultural disponível para escribas brasileiros, a quem coube
responder, de forma inventiva, ao desafio de criar formas e vozes narrativas
através das quais o público leitor disponível pudesse ser seduzido e aumen- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
tado, pré-requisito essencial para que a literatura cumprisse a função social
que lhe estava reservada. ALENCAR, José de
(1865) Iracema. São Paulo. Livraria Martins. 1941
A popularidade de alguns autores brasileiros que neste pós moderníssimo
fim de século disputam records de venda com best-sellers traduzidos, aponta (1865) Iracema, lenda do Ceará. Fortaleza. Universidade Federal do
o sucesso a longo prazo, do projeto empreendido por Alencar e Taunay. Os Ceará. 1965
romancistas brasileiros do século XIX efetivamente, cumpriram a missão de (1872) Sonhos d'ouro. São Paulo. Atica. 1981
sedução e formação de um público leitor: no arsenal de estratégias narrativas (1865) Iracema, lenda do Ceará. São Paulo. Atica. 1982
de que se valeram, destacam-se as que organizavam de tal forma a linguagem
(1893) Como e porque sou romancista. Campinas. Pontes. 1990
e a estrutura do romance que, como efeito de leitura, patrocinavam.
a) um sentimento de intimidade e solidariedade entre narrador e público (1862) Luciola. São Paulo. Melhoramentos. s/d
leitor; b) a introdução do leitor em versões transculturadas do romance ALMEIDA, Guilherme de. 1941 "Prefácio" in Alencar 1963: 1-14.
europeu com o qual tal público estava familiarizado, através das freqüentes ALMEIDA, José Ricardo Pires de. 1989 História da instrução pública no
traduções de folhetins franceses que os jornais publicavam a partir dos anos Brasil (/540-/889) translated by Antonio Chizzotti. Brasília. INEP, São
trinta do século passado (Meyer 1990) e c) os necessários protocolos para uma Paulo. EDUC
pedagogia de leitura que, sob a forma de metaficção, a parttir de então e até
ALMEIDA, Garrett. 1826 Bosquejo da história da poesia e da língua por-
agora, os escritores brasileiros continuam fornecendo a seus leitores.
tuguesa. Paris Aillaud.
Numa última reflexão que vira a esquina, vem Machado de Assis, cujas ANTÔNIO, Cândido
1\11'II/ôriasPóstumas de Brás Cubas (1881), são publicadas menos de dez (1965) Literatura e sociedade. São Paulo. Companhia Editora Nacional.
UIlOS depois de Inocência de Taunay. O tempo de Machado desdobra um 1975.
1I H 119
1987 a- "Literatura e Subdesenvolvimento" in A educação pela noite & DENIS, Ferdinand. Resumé de l'histoire litteraire du Portugual suivi du
outros ensaios. São Paulo. Atica. pp. 140-162. resumé de l'histoire litteraire du Brésil. Paris. Lecointe ct Durcy, 1826 .
1987 b- "Uma literatura de dois gumes" in A educação pela noite & ou- DlNIZ, Sílvio Gabriel. "Biblioteca setecentista nas Minas Gerais" Revista do
tros ensaios. São Paulo. Atica. pp. 163-180. Instituto Histórico de Minas Gerais 6. 1959.
1988 "A faculdade no centenário da abolição" Aula inaugural na abertu- "Um livreiro em Vila Rica no meio do século XVIII". Kriterion Belo
ra do ano acadêmico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Horizonte. (12): 180-198. 1959.
Universidade de São Paulo, São Paulo.
DORNAS Filho, João. "O que lia um letrado de 1818 em Minas Gerais"
ARAÚJO, Jorge de Souza. 1989 "O perfil do leitor colonial" Revista de Anuário brasileiro de literatura 4:393. 1939
Cultura Vozes 83 (4): pp. 448-457.
EAGLETON, Terry Marxism and literary theory, London Methuen & Co
ATHOS, Damasceno. Gabinetes de leitura e bibliotecas do Rio Grande do Sul 1976; The rape of Clarissa. Oxford 1982; Literary Theory (Oxford Basil
no século XIX. Centro Regional de Pesquisas Educacionais do Sul. Blackwell, 1983; The functions of criticism, London. Verso. 1984.
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais. MEC: Rio
ELLIS, Myriam. "Documentos sobre a primeira biblioteca pública oficial de
Grande do Sul. Brasil. 1962
São Paulo" in Revista de História (SP) v. XIV, 29: 387-447. 1957.
BASTOS, Timoteo da Silva. História da censura intelectual em Portugal.
FRIEIRO, Eduardo. O Diabo na livraria do cônego; Como era Gonzaga? e
Conferência. University of Coimbra. 1926
outros. SP. Belo Horizonte. Itatiaia, EDUSP 1981.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técni-
GRAFF, Gerald. Professing literature: An institutional history. Chicago. The
ca (tradução de Carlos Nélson Coutinho. Rio de Janeiro. Civilização
University of Chicago Press. 1987.
Brasileira, 1968
HALLEWELL, Lawrence. O Livro no Brasil (sua história). São Paulo. T.A.
BOSI, Alfredo. "Ficção (I): o conto regionalista e a prosa de arte" in A literatura
Queirós. 1985.
brasileira. vol V. O pré-modemismo. São Paulo. Cultrix 1973 pp. 53-72.
IANNl, Octavio. Ensaios da sociologia da cultura. Rio de Janeiro. Ed.
BURNS, E. Bradford. "The Enlightenment in two Colonial Brazilian
Civilização Brasileira 1991.
libraries''. Journal ofthe History of Ideas 25 1964. (4): pp. 430-438;
ISER, Wolfgang. The implied reader Patterns of communication in prose fie-
"The intelectual as Agents of Change and the Independence of Brazil,
tion froni Bunyan to Beckett. Baltimore. John Hopkins University Press.
1724-1822" in From Colony to Nation: Essays on the Independence of
1974.
Brazil. Edited by A.J.R. Russell- Wood. Baltimore: John Hopkins
University Press. 1975. JAMESON, Frederic. The political unconscious (Narrative as a socially syrn-
bolic act) Ithaca. Cornell U niversity Press. 1981.
BERNARDES, Maria Thereza Caiuby Crescenti. Mulheres de ontem? São
Paulo. T.A. Queiroz. 1988. LAJOLO, Marisa. Leitura, escrita, escola: mares muito pouco navegados para
além da Taprobana. EPA. Estudos Portugues e Africanos n° 10.2 sem.
CANCLINI, Néstor Garcia. A Socialização da arte: teoria e prática na
1987. pp. 53-64;
América Latina traduzido por Helena Ribeiro da Cunha e Maria Cecília
Queiroz Moraes Pinto. São Paulo. Cultrix. 1980. "No jardim das letras, o pomo da discórida", Boletim 3/4 ALBS. RGS.
1988, pp. 10-27;
CARVALHO, Laerte Ramos de. As Refornas Pombalinas da instrução públi-
ca. São Paulo. Saraiva. EDUSP. 1978. "Quando o sertão não vira mar" in QUEIROZ, Raquel de O quinze. São
Paulo. Círculo do livro. 1989 a, pp. 151-158;
CÉSAR, Guilhermino (editor) Historiadores e críticos do Romantismo: I. a
contribuição européia-crítica e história literária. Rio de Janeiro. Livros "Monteiro Lobato, o mal amado do modernismo brasileiro" in Monteiro
técnicos e científicos; São Paulo: EDUSP. 1978 Lobato: contos escolhidos São Paulo. Brasiliense. 1989 b, pp. 7-12;
CORNEJO-POLAR, Antonio. "EI indigenismo en Ias literaturas heterogeneas: "EI regionalismo lobatiano: a contrapelo deI modernismo. Escritura,
su doble estatuto sociocultural" in Revista e crítica literária latino-ame- XlV. 27. Caracas. 1989 c, pp. 221-232. enero-junio;
ricana n" 7-8 Lima 1977. "Leitura, literatura e democracia: muitos problemas e algumas pro-
COUTINHO, Afrânio. A Tradição afortunada. Rio de Janeiro. José Olympio. postas". Leitura: Teoria e Prática. Ano 8. n° 14. 1989 d, pp. 51-64;
1968.
120 121
• "I ••"iludo, Graciliano e Ruben Fonseca: diferentes itinerários do escritor PEREIRA, Lúcia Miguel. "Regionalismo" in História da literatura
IlIa~lIeiro. apud Toward Socio-Criucism: Selected proceedings of lhe brasileira: prosa de ficção de 1870- 1920. Rio de Janeiro. José Olyrnpio:
Cunfcrcncc Luso-Brazllian literatures, A Socio-Critical approach. Brasília. INL, 3" ed., pp. 177-224. 1973.
Introdução de Roberto Reis. Temple: Center for Latin American Studies. PROENÇA, M. Cavalcanti. "José de Alencar na literatura brasileira" in Obra
1991. 153-163. completa de José de Alencar. Rio de Janeiro. Aguillar. 4 volumes. vol.
LÃJOLO, Marisa e Regina Zilberman. A Leitura rarefeita. São Paulo. I. pp.15-88. 1959.
Brasiliense. 1991, QUEIROZ, Raquel de. "Cem anos de Iracema" in Alencar, José de. Iracema.
LIMA, Alceu Amoroso. 1966 Estudos literários vol. 1. Rio de Janeiro: Brasília. MEC/INL. 1965.
Aguillar s/d RAMA, Angel. Los gauchapoliticos rioplatenses: literatura )' sociedad.
MARCO, Valéria De. O Império da cortesã (Lucíola: um perfil de Alencar). Buenos Aires. Calicanto. p. 24; 1976.
São Paulo. Martins Fontes, 1986. "La tecnificación de Ia narrativa" in La novela latino americana 1920-
MARTINS, Wilson. História da inteligência brasileira. São Paulo. Cultrix. 1980. Bogotá: Instituto Colombiano de Cultura; 1982 a.
Editora da Uni versidade de São Paulo. 1977. Transculturaciôn narrativa en América Latina. Mexico. Siglo XXI;
MEYER, Marlyse. De folhetins. (mimeo) Centro Interdisciplinar de Estudos 1982 b.
Contemporâneos. Universidade Federal do Rio de Janeiro. RJ. 1990.
A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense. 1985.
MENEZES, Raimundo de. José de Alencar, literato e político. Livros
RIZZINI, CarIos. O Livro, o jornal e a tipografia no Brasil, 1500-1822. (Com
Técnicos e Científicos. Rio de Janeiro. 1977. um breve estudo sobre a informação) Ed. fac-similar. São Paulo.
MIGNOLO, Walter. "Literacy and colonization: the new world experience" Imprensa Oficial do Estado 1988.
Hispanic issues, 4, (Oct); 1989. SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação
"Alfabetización y literatura" Grupo de Trabalho 27. IX Congresso cultural na Primeira República. São Paulo. Brasilicnsc, 1983.
Internacional da ALFAL. Unicamp. (mimeo); 1990.
SULEIMAN, Susan R. and Crossman, Ingc (cd), The rcadct iu thc tc st:
"Teorias literarias o teorias de Ia literatura? Que son y para que sirven?" essays on Audiense and Interpretation. Princcton Univcrsity Prcss.
apud Teorias literarias en Ia actualidad. Ed. El Arquero. 1980.
MORAES, Rubens Borba de. Livros e Bibliotecas no Brasil colonial. Rio de TAUNAY, Visconde de. (1872) Inocência. São Paulo. Melhoramentos. J 927
Janeiro. LTC; São Paulo. SCCT. 1979.
(1872) Inocência. São Paulo. Ática. 1987.
NIZZA da Silva, Maria Beatriz. "Livro e sociedade no Rio de Janeiro (1808-
TOMPKINS, Jane P. ed. Reader-response criticism; from formalism to post
1821)" Revista de História. Abril-Junho. vol. XLVI n° 94. Ano XXIV
structuralism. Baltimore. John Hopkins University Press. J 980.
1973. SP. Brasil, p. 441-457;
VIDAL, Luis Fernando. AI pie de Ia letra (reflexiones acerca dela ensenanza
"Transmissão, conservação e difusão da cultura no Rio de Janeiro (1808-
de Ia literatura. Lima. Amaru Editores J 979.
1821) Revista de História. janeiro-março vol. XLVII. n° 97. AnoXXV.
1974. SP. Br. pp. 137-159; WATT, L The reading public and the rise of the novel in The rise of the novel.
Berkeley. University of California Press. J 957. pp. 35-59.
"Produção, distribuição e consumo de livros e folhetos no Brasil colo-
nial" Revista do Instituto Histórico e Geog ráfico Brasileiro 140 (314) WASSERMAN, R.M. "The red ant the white: the "Indian" novels of José de
(January/March 1977): 78-94; Alencar: PMLA 98. 1893, pp. 815-827;
Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro, 1808-1821, 2" ed. São Paulo. "Reinventing the New World: Cooper and Alencar. Comparative litera-
Companhia Editora Nacional. 1978: pp. 197-227. ture. Spring. 1984. pp. 130-152;
PÃES, José Paulo. "Por uma literatura brasileira de entretenimento" in A Exotic Nations.1993.
Aventura literária: ensaios sobre ficção e ficções. São Paulo. ZILBERMAN, R. Estética da recepção e história literária. São Paulo. Ática,
ompanhia das Letras. 1990. 1989.
1'1'1 123
10
Eduardo Guimarães
O estudo das idéias lingüísticas no Brasil tem entre seus objetivos abor-
dar a produção de tecnologias como dicionários e gramáticas que se fazem no
Brasil desde o século XVI. Lembremos aqui a gramática de Anchieta e as lis-
tas de palavras e dicionários bilíngües que são feitos no Brasil com a tarefa de
estabelecer relação com os índios.
A partir do século XIX, notadamente a partir da segunda metade do sécu-
lo, os estudos da língua portuguesa no Brasil fazem com que as idéias lingüís-
ticas se organizem de um modo específico no interior do movimento de idéias
do Brasil de então. Uma das características do conjunto de estudos que marcam
os estudos do Português no Brasil nesse momento é o trabalho de demonstrar
que o Português que aqui se falava e escrevia era diferente do Português de
Portugal. Há estudos sobre o léxico, por exemplo, no sentido de mostrar que no
Brasil o Português incluía palavras de origem africana e indígena bem como
palavras do Português que no Brasil significavam diferentemente que em
Portugal. E estes estudos fazem parte, inclusive, das gramáticas que foram
escritas a partir dos anos 1880. Podemos aqui referir tanto a Gramática
Histórica da Língua Portugueza de Pacheco Silva (1879), e sua Gramática da
Língua Portugueza com Lameira de Andrade (1987), quanto a Gramática
Analítica (1887) e depois Gramática Descritiva (1894) de Maximino Maciel.
Com o objetivo de produzir um primeiro conjunto de fatos que nos per-
mita uma abordagem histórica dos estudos sobre o Português do Brasil a par-
tir do final do século XIX, vamos considerar quatro períodos, levando em
conta fatos de ordem política e institucional. Como se verá, os períodos que
dizem respeito ao tempo que abordaremos são o segundo, terceiro e quarto.
Nosso objetivo aqui, ao centrar nossa atenção a partir do final do século
XIX, é poder refletir sobre o movimento de gramatização brasileira do
Português.
I~H 129
1'11 '"\01 doi dcrcrminação
brasileiro no título do dicionário. O próprio autor sobre diversas regiões brasileiras. Em 1922 A. Nascentes apresenta sua mono-
di' qlll' "Fie tempo dos brasileiros escreverem
como se fala no Brasil e não grafia sobre o linguajar carioca. Ainda de Nascentes é o primeiro Dicionário
11111111 se escreve em Portugal" (apud Mattoso Câmara, 1972, p. 200). Ou Etimológico publicado no Brasil (em 1932). De 1939 é seu Estudos
~rld, u cscrita deve se pautar pela linguagem falada do Brasil e não pela lín- Filo lógicos, que inclui textos como "Independência Literária e Unidade da
'lia escrita de Portugal. Língua" e "A Filologia Portuguesa no Brasil".
De 1889 é Neologismos Indispensáveis e Barbarismos Dispensáveis de Registraria ainda a publicação de Lições de Português de Sousa da
Castro Lopcs. Nesta obra o autor, para fugir aos chamados barbarismos, cria Silveira em 1923. Uma sucinta e meticulosa gramática histórica do português.
lumosos neologismos como convescote, cardápio, etc. Esta obra é no seu conjunto um estudo histórico de aspecto neogramãtico. No
Em 1897 funda-se a Academia Brasileira de Letras com a finalidade de final da obra aparece uma seção sobre Dialetologia onde ele, e praticamente
cuidar da cultura da língua e da literatura nacional. A Academia estará, como somente aí, trata das especificidades do Português no Brasil. A partir de 1946,
se sabe, envolvida nos acordos da unificação ortográfica de 1932,1943,2 e em a obra traz um apêndice: "Denominação do idioma nacional do Brasil". Neste
um parecer sobre a denominação da língua que se fala no Brasil, em 1946. parecer a comissão que o fez conclui que a Iíngua que se fala no Brasil é o por-
Éjá desta época a produção de Cândido de Figueiredo, filólogo português, tuguês.
que mantinha uma coluna intitulada "o que se não deve dizer" no Jornal do
Comércio. Parte do que se publicou nesta coluna ele publicou em 1903.
Desta época é também a polêmica entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro 1.3 Terceiro Período
Ribeiro em torno da redação do Código Civil. De 1902 é o "Parecer" de Rui.
Deste mesmo ano é a resposta de Carneiro Ribeiro: "Ligeiras Observações Este período inicia-se pela fundação das Faculdade de Letras que passam
sobre as emendas do Dr, Rui Barbosa ao projeto do Código Civil". Em 1904 a constituir-se em espaço de pesquisa sobre questões de linguagem, o que esta-
Rui faz sua "Réplica", que terá em 1905 nova resposta de Carneiro Ribeiro: va ligado fundamentalmente a questões relacionadas a um padrão literário e ao
"Redação do Projeto do Código Civil e a Réplica do Dr. Rui Barbosa". ensino.
Registro aqui uma opinião de João Mangabeira sobre esta polêmica: o que Rui De 1943 é o acordo ortográfico que estabeleceu a atual ortografia do
construiu, com o "Parecer" e sua "Réplica", foi tal "que o amor, o zelo pela Português do Brasil,' com diferenças relativamente à ortografia de Portugal.
língua portuguesa se pode, nitidamente, dividir, entre nós, em duas fases: antes Este acordo sofre uma pequena modificação em 1971. Também da década de
e depois da "Réplica" (apud Nascentes, p. 37). Há que se registrar também a 40 é o debate sobre que nome dar à língua falada no Brasil. Entre tantos docu-
opinião de José Veríssimo, que considera a Réplica "uma lição de português". mentos sobre esta questão,' registro aqui o documento (já referido logo
Em 1903 é publicado Estudos da Língua Portuguesa de Mario Barreto, acima) "Denominação do Idioma Nacional do Brasil", de autoria da comis-
que combate as posições de Candido de Figueiredo, e que, posteriormente, são nomeada com esta finalidade, de acordo com o art. 35 da Constituição
sustenta as posições a favor da grafia simplificada de Gonçalves Viana. Brasileira de 1946. Este documento, encaminhado ao Ministro da Educação,
Incluindo-se, também, no conjunto dos autores que defendem uma norma elas- tem a seguinte conclusão:
sicista para o Português no Brasil. "À vista do que fica exposto, a Comissão reconhece e proclama esta ver-
De 1907 é a publicação da Gramática Expositiva de Eduardo Carlos dade: o idioma nacional do Brasil é a Língua Portuguêsa.
Pereira, fortemente influenciada pelas posições da gramática filosófica. Ele E, em conseqüência, opina que a denominação do idioma nacional do
diz que sua gramática atende aos novos estudos históricos, mas que é Brasil continue a ser: Língua Portuguêsa.
necessário estabelecer um meio termo entre os estudos clássicos e os novos Essa denominação, além de corresponder à verdade dos fatos, tem a van-
estudos. Esta gramática teve grande influência no ensino secundário brasileiro, tagem de lembrar, em duas palavras - Língua Portuguêsa -, a história da
em muitas regiões, não se restringindo a São Paulo, onde o autor trabalhava. nossa origem e a base fundamental de nossa formação de povo civilizado."
Em 1908 M. Said Ali publ ica Dificuldades da Língua Portuguesa. Esta Em 1952 é publicada a História da Língua Portuguesa de Serafim da
obra é, como se sabe, um trabalho descritivo sobre pontos importantes da lín- Silva Neto. Com esta obra passa-se a considerar a história da língua como li-
gua portuguesa.
De 1920 é o Dialeto Caipira de Amadeu Amaral. Esta obra é um marco
na produção dialetológica, já bastante desenvolvida então, com trabalhos
3 Sobre os acordos ortográficos ver, neste volume, Capítulo 6.
, Soh,,' os acordos ortográficos ver "Reformas Ortográficas ou Acordos Polfticos?", neste vo- 4 Em sua tese de doutorado. Os Sentidos do idioma Nacional, Luis Francisco Dias (1995) se
IIIIII\' cupuulo 6 ocupa, exatamente, destes aspectos. Esta obra foi publicada pela Pontes (Dias, 1996).
I \() 131
qlll" óIluxto: ia política e cultural. Deste modo é uma obra que trata a Língua
1'(lIIIl~'Uesarelativamente à realidade política e cultural no Brasil. Serafim dá
1.4 Quarto Período
I
-uuulc importância às condições da implantação do Português no Brasil e à
mlluôncia tupi no português popular do Brasil. Serafim considera que o por- A partir de 1965, a Lingüística passa a fazer parte do currículo mínimo
tuguês popular é bastante diferente aqui e em Portugal, mas considera que a dos cursos de Letras por decisão do Conselho Federal de Educação. Em 1966
língua literária tem ainda uma força unificadora entre Brasil e Portugal. é criado o curso de pós-graduação em Lingüística da USP e em 1971 o da
Já em 1955 é publicada A Formação Histórica da Língua Portuguesa de Unicamp. Várias pós-graduações se seguem a estas sob diversas modalidades.
Silveira Bueno. Nesta obra, o autor apresenta, inclusive, estudo sobre a diale- Para este período, não vou me referir, dada a proximidade histórica, aos
tação no Brasil, com as influências africanas e indígenas. Registro aqui a pre- pesquisadores, mas às línguas de trabalho que vêm se desenvolvendo.
sença de um capítulo intitulado "A gramaticalização do Idioma". Neste capí-
tulo ele considera que a publicação de gramáticas, por exemplo, faz parte da a) Trabalhos gramaticais que se dão numa perspectiva ou estrutural, ou fun-
história da língua. Por outro lado, também neste capítulo, combate a chamada cional, ou gerativa. Aqui aparece um bom número de estudos (leses, artigos e
posição purista sobre a língua, que considera anti-científica. livros) que analisam vários aspectos do Português. Nestes trabalhos há um con-
De 1941 é a primeira edição de Princípios de Linguistica Geral de junto deles que se dedica a analisar a especificidade do Ponuguê« do Brasil.
Mattoso Câmara. A segunda edição, revista e aumentada é de 1954, nesta obra b) Trabalhos de semântica. Aqui encontram-se trabalhos til' semânlica IOr
Mattoso já mostra sua formação que inclui influência de Saussure, mas fun- mal e enunciativa. Há, também, trabalhos de semântica estrutural e outros li
damentalmente de Sapir. A obra de Mattoso tem várias vertentes. Entre elas gados à sintaxe gerativa. Registre-se, ainda, que a semântica so se desenvolve
suas extraordinárias descrições do português publicadas na década de 60 e como disciplina e com continuidade a partir deste quarto período.
posteriormente transformadas em Livro em 1970 com o nome de Estrutura da c) Trabalhos de Sociolingüística tanto na linha laboviana variacionista
Língua Portuguesa, seguramente a primeira gramática descritiva científica quanto em outras perspectivas, como a interacionista. Aqui estão trabalhos que
feita no Brasil. Registro, ainda, seus estudos sobre línguas indígenas no Brasil. descrevem variantes regionais brasileiras, bem como a especificidadc do
Em 1958 foi elaborada, com o patrocínio do Ministério da Educação a Português do Brasil.
conhecida NGB (Nomenclatura Gramatical Brasileira). Que se reduz a ser d) Trabalhos de Lingüística Histórica, que se desenvolvem a partir de
uma organização terminológica sem teoria que a sustente adequadamente. diversas posições teóricas. Trabalhos feitos a partir da teoria da variação e da
Sabe-se, no entanto, que as gramáticas escolares que se fizeram a partir daí mudança, a partir do ponto de vista gerativo e a partir do ponto de vista dis-
adotam consistentemente tal nomenclatura. cursivo e enunciativo. Nestes trabalhos encontram-se vários que tratam das
Nos anos de 1963-65 é publicado o Atlas prévio dos falares baianos, particularidades do Português do Brasil.
organizado por Nelson Rossi, dentro da perspectiva da geografia lingüística. e) Trabalhos em análise do discurso entre os quais podemos incluir uma
Em 1965 Celso Cunha publica Uma Política do Idioma, obra que dedica significativa produção de análise do discurso da linha francesa bem como tra-
a Luís Filipe Lindley Cintra. Nestre trabalho ele defende a necessidade de se balhos inspirados numa semiótica greimasiana. Incluem-se também nesta
buscar a unidade da Língua Portuguesa. Em 1968 publica Língua Portuguesa linha os estudos sobre enunciação. Aqui encontram-se trabalhos de descrição
e Realidade Brasileira, onde por outras vias, reaparece a questão da unidade de funcionamentos discursivos próprios da discursividade no Brasil.
do português. Em 1970 ele publica sua Gramática do Português Contem- f) Trabalhos de pragmática, análise da conversação e lingüística textual.
porâneo, obra que aparece com certas modificações em 1985, em co-autoria Também nesta perspectiva são feitos estudos sobre língua portuguesa no
com Lindley Cintra, com o nome de Nova Gramática da Língua Portuguesa. Brasil.
Lembre-se que Cintra é seu homenageado em A Política do Idioma. As Deste quarto período é o dicionário que se transformou no dicionário ofi-
gramáticas de Celso Cunha, como outras, adotam a NGB. cial do português do Brasil, o Novo Dicionário Aurélio (1975), de Aurélio
Segundo Mattoso Câmara, nesta produção, que incluímos neste terceiro Buarque de Hollanda Ferreira. É interessante notar que ele não se dá como tra-
período, está afastado o ideal classicista. Mas, ainda, segundo ele, fica o "ideal" balho acadêmico. São quase inexistentes os trabalhos da lexicografia feitos em
de uma unidade da língua escrita. Falaremos disso novamente mais à frente. projetos acadêmicos no Brasil atualmente.
112
111
I "'1)llIl.' a produção destes períodos cabem alguns comentários. gua oral do Brasil e não pela escrita portuguesa. Esta idéia opera fortemente
,I)I' interessante ressaltar que o segundo momento, na verdade aquele que em trabalhos futuros como os de Scrafirn da Silva Neto c Mauoso Câmara,
11I11I1L'1I0traz alguma produção significativa sobre o Português no Brasil, ou por exemplo, bem como em trabalhos atuais sobre \l português no Brasil.
"IIHla, aquele que funda os estudos brasileiros sobre o Português, pode ser Ou seja, a questão de qual deve ser o parâmcrro tia escrita no Brasil fica
Visto como iniciado por uma atitude de considerar certas características gra- posta desde este momento. Podemos incluir neste recorre as grnmriticus de
maticais e léxicas do Português brasileiro como diferenças relativamente ao Pacheco Silva e Lameira de Andradc, a de Mux iminn Macicl, entre outros;
Português de Portugal. Ao mesmo tempo é interessante ver que neste período as descrições do Português feitas por Joao Rihcu o, Said Ali, Antcnor
há uma grande onda purista no Brasil que procura dar como norma para a lín- Nascentes, Mattoso Câmara; bem como os estudos de Scrufim da Silva
gua a gramática dos textos clássicos portugueses. Registre-se aqui a famosa Neto, Silveira Bueno, Nelson Rossi c lodo um conjunto de cxtudox atuais
polêmica entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro a propósito das cor- sobre o Português do Brasil (em si ntaxc, SOl' iollll!!UISlll' a, scnumuca, cstu
reções de Rui Barbosa ao Código Civil. dos históricos do português, análise do discurso, eSludos Il'xlU:IIS e prag
Na verdade este é um período pontuado por esta discussão do caráter mática).
específico do Português do Brasil ou de sua não diferença com o Português de Neste recorte devemos incluir também o cstubclccuncuro da
Portugal. O que ressalta nesta discussão é que ela não é, naquele momento, Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) em 1\)'iX, qUL' se 1:11 como lima
simplesmente uma discussão teórica e descritiva, mas é uma discussão forte- ação do Governo Brasileiro, através de um ministério (M Il1islL'110da I':dlll':U,':I()
mente política e militante. Esta militância ou se dá eomo sustentação da inde- e Cultura), com o objetivo de dar uma unidade tcrminologicu pura :lS /:,1:l111:1tl
pendência brasileira relativamente a Portugal ou como, simplesmente, o esta- cas escolares no Brasil. Este movimento se dájunto com outro: os gmnuiucos
belecimento da especificidade do Português do Brasil. passam a incluir na exemplificação de seus trabalhos um maior numero de
b) Durante os períodos segundo, terceiro e quarto podemos notar que autores brasileiros, incluindo, inclusive, autores contemporâneos.
está freqüentemente presente uma valorização dos estudos da especificidade
do Português brasileiro. No quarto período considerado vemos, nos nossos b) Segundo recorte
diversos centros de Pós-graduação projetos de estudo do português do Neste recorte estão os estudos que defendiam o modelo clássico no início
Brasil. do século XX, bem como gramáticos atuais de gramática escolares que ainda
Em vista destas considerações, retomo o modo de organização histórica se pautam por dar como norma textos clássicos. Evidentemente esta posição
de nossos estudos sobre o Português em dois recortes de significação, entre parece bastante frágil hoje. Mas se atentarmos ainda para as discussões sobre
outros possíveis, independentemente da época. Adoto, assim, uma concepção a unificação da ortografia do Português nas quais se envolve, inclusive, a
de história em que a historicidade não é o tempo, mas a produção de sentido. Academia Brasileira de Letras, vamos ver que há neste nível uma tentativa de
Primeiro recorte: nele se incluem estudos que visam mostrar uma especi- tratar a unidade do Português de Portugal e do Brasil, sob o pretexto da neces-
ficidade do Português do Brasil em oposição ao Português de Portugal, isto sidade de troca cultural entre estes países (e os demais países de Língua
feito de um modo diretamente contrastivo ou não. Portuguesa). Ou seja, vemos como a questão da língua escrita é o lugar de
Segundo recorte: estudos feitos visando defender a unidade lingüística resistência desta posição de significação política da unidade para muitos estu-
Portugal/Brasil. Esta posição vem freqüentemente aliada a uma atitude purista, diosos. Poderia incluir aqui, até mesmo, um texto como o de Mattoso Câmara
classicista. É claro que um mesmo gramático, lingüista, filólogo pode ter na "Os Estudos de Português no Brasil". Este texto cruza os dois recortes. De um
sua obra, ou num mesmo texto, a presença dos dois recortes. lado, desde o seu título, é uma história sobre a produção brasileira dos estudos
de linguagem, e em muitos pontos valoriza o que é específico do português
brasileiro. Por outro lado ele, na sua parte final, nas suas conclusões, toma
3 Analisemos, então, a questão, pela perspectiva dos recortes propostos. uma posição a respeito da política do idioma claramente na direção da busca
a) Primeiro recorte da unidade em torno da língua escrita. Neste contexto ele afirma: "Também SI.'
Aqui podemos incluir as posições, de meados do século XIX, a favor pode chegar à unidade da teoria gramatical e da nomenclatura gramatical pnrn
da cspccificidade do Português Brasileiro, entre elas as de José de Alencar. base do estudo e do ensino da língua literária" (Mattoso Câmara, 1972, p. 227
Incluem-se neste recorte, também, trabalhos como o Vocabulário Brasileiro - lembrar que o texto foi apresentado em 1966). Mas mais que isso, di, 11m
11(1/(/ Servir de Complemellto aos Dicionários da Língua Portuguesa de ele: "Para a língua escrita e literária, impera uma norma elástica, que pL'II1I1IL'
Ill;às da Costa Rubim e o Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa de certos traços específicos para o Brasil. A verdadeira tendência núo e aqui o
1\11101\10Joaquim de Macedo Soares, que coloca na nossa história das idéias advento de uma nova língua literária, construída sobre li língua i oloqtuul
111I1'1I1\lll'as a necessidade de que a língua escrita do Brasil se paute pela lín- brasileira, exclusivamente, mas no sentido de um compromisso, pOI meio do
11'1 115
lIll,lI 111I~11I;t
,I literária do Brasil fica intimamente associada à de Portugal e estudos Jilológicos no Brasil." Ao mesmo tempo ele diz do mesmo autor do
C 1\ I ponte de ligação entre os dois grandes dialetos, sem perder contato
dI' "compendio": Coruja, que inaugurou a nossa Gramaticografia, vai também
11'1'\011diSSO com a língua oral coloquial dos dois países, (idem, p.227), inaugurar a dialetologia publicando em 1852 no tomo XV da "Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro" a "Coleção de vocábulos e frases usa-
t1 Com estes dois recortes parece interessante cruzar outros dois que dos na provincia de S. Pedro do Rio Grande do Sul", que saiu em 2" edição, em
mostrem a distinção entre uma produção que se dá sem a configuração ou fili- Londres, em 1856 ..." (idem, pp, 23-24), Ou seja, do nosso ponto de vista, O
lI<jfloa um aporte teórico bem definido (que chamarei de terceiro recorte) e uma Epitome está no recorte dois e o Compendio de Coruja ou sua Coleção de vocá-
produção que se faz a partir de um aporte teórico bem definido (quarto recorte). bulos estão no recorte um, que busca a cspccificidudc do Português do Brasil.
Podemos observar que a produção que se pode incluir no terceiro recorte Por outra parte, registre-se que a grarnatizaçao hrasilcuu do POI ruguês se
vai de trabalhos como os de Cândido de Figueiredo, João Ribeirto, até traba- faz a partir do segundo período de nossa pcriodiznção. lisrc pCI(odo é forte-
lhos atuais como os de Napoleão Mendes de Almeida, por exemplo. Pode-se mente dividido pelos dois primeiros recortes que estabelecemos. Ou seja, esta
incluir aqui, também, o estabelecimento da NGB. gramatização está ligada a uma militância a favor da cspccificidadc do
Quanto ao quarto recorte, podemos nele incluir uma produção como a de Português do Brasil ou contra isso e a favor do classicismo, do purismo. Isto
Said Ali, Souza da Silveira, Anternor Nascentes, Serafim da Silva Neto, leva a ver, então, que a gramatização brasileira do Portugues tem em si um
Mattoso Câmara, até os estudos atuais ligados às pesquisas em Pós-graduação. efeito contraditório que inclui o efeito imaginário de que no Brasil não se rala
Interessa obserar que o estabelecimento claro de uma filiação teórica corretamente. De um lado, a "independência", de outro a inferioridade como
fazendo com que o rigor das descrições seja mais definido e maior tem um efeito ideológico da relação do brasileiro com a língua que fala c/ou escreve,
ponto de inflexão a partir do qual esta exigência se generaliza, Isto se dá no A dominância não militante vai-se desenvolver a partir do terceiro perío-
início do que consideramos o terceiro período, que se inicia no final dos anos do, quando cresce e passa a predominar a produção com aporte teórico-
30.5 A partir daí esta preocupação teórico-metodológica se aprofunda, tal como metodológico bem definido. Isto leva a uma queda da disputa pelo purismo,
se vê no quarto período. pelo classicismo da língua escrita. Ao mesmo tempo, a questão da unidade da
língua do Brasil e de Portugal se repõe em outros termos, a partir das posições
5 Trazendo para a reflexão o conceito de gramatização desenvolvido por teóricas e metodológicas em prática, não desaparecendo, no entanto.
Auroux (1992), poderia dizer que a gramatização da Língua Portuguesa se dá, Neste ponto não se pode deixar de considerar a questão do estabeleci-
no Brasil, a partir da segunda metade do século XIX, em meio, inicialmente, a mento da Nomenclatura Gramatical Brasileira. Esta ação do Estado Brasileiro,
uma discussão sobre as diferenças entre Português do Brasil e de Portugal. na medida em que ela se faz como nomenclatura brasileira, é parte do movi-
A gramatização brasileira do Português se fez, por um lado, como o movi- mento do recorte da especificidade, portanto da independência do Brasil. Mas
mento oposto ao da gramatização na Europa. Segundo Auroux a gramatização aparece, mais especificamente, como uma ação do Estado para unificar o ensi-
foi um modo de a Europa, o ocidente, conhecer e dominar o resto do mundo. no da Língua Portuguesa no Brasil. A NGB não esconde a intenção de acabar
Para o Brasil a gramatização surge como um procedimento de independência de com as diferenças termino lógicas das gramáticas brasileiras. Ou seja, no
Portugal. E se desenvolve tanto na busca de outras fi liações teóricas que não as processo da gramatização brasileira do português este acontecimento traz em
vindas somente através de Portugal, quanto na medida em que os estudos do si o movimento de afastar-se de Portugal estabelecendo, ao mesmo tempo,
português no Brasil se dedicam a especificidades brasileiras do Português. uma unidade lingüística brasileira específica. E isto pelo estabelecimento de
Poderia lembrar aqui um texto de Antenor Nascentes, "A Filologia Portuguesa uma terminologia, uma metalinguagem.
no Brasil". Neste artigo é interessante ver algumas razões pelas quais ele dá A grarnatização brasileira do Português é, também, um modo til' l'onsl i
importância ou não a certos textos. Lembro aqui o caso de "Epitome da Gra- tuir o português como língua única e nacional. Esta ação homogcncizadora c
mática Portuguesa" de Antonio de Moraes Silva, escrito em 1802, em Pernam- uma ação do Estado pela via do ensino. Como sabemos, as nossas l'sl'olas
buco, e presente na segunda edição de seu dicionário. Segundo Nascentes este chegam a ensinar, ou ensinavam até bem rouco tempo, que no Ihasd so Sl' I,tla
texto "se pode considerar um livro português pois não se detém nas direrenças uma língua. Ou seja, não era só que a lei estabelecesse o pOItU~'Ul'Scmuo lín
que já apresentava o falar brasileiro" (Nascentes, 1939, 23). A este livro gua nacional, e num certo momento estabelecesse uma nOllll'llliallll., olu r.tl
Nascentes contrapõe um outro "Compendio da gramatica na língua nacional", brasileira. Mais que isso, o ensino apagava todas as dcmals línguas luladns no
dl' IH15. Segundo ele este livro inicia o que considera o segundo período dos Brasil: todas as línguas indígenas (quase duzentas) c as Itn!-!uas dos 11l1l~'lalllcs,
() 1IIlIIOI IlgOl" mctodológico sobre os estudos do Português a partir da instalação dos cursos de
1.11il\ lill' Indicado por Nascentes (1939) e MallOSO Câmara (1972), 6. Sobre sua periodização, ver Nascentes (1939),
1:\/1 137
c> nlahclecimento da Língua Portuguesa como língua do Brasil, como
1'11" \·•.•.0 de apagamento de outras línguas, vem do século XVIII, quando o Go-
\\1110 Português obrigou o ensino da língua portuguesa nas escolas e estabele-
,,'\1 que a língua do Brasil era o Português. Isto se produz, inicialmente, por uma
C;IIta régia de 1727 de D. João V, que mandava os jesuítas ensinarem Português li
uos Índios nas suas escolas. E depois por um ato do Marquês de Pombal que
expulsa os jesuítas em l757 e oficializ.a o ensino do Português no Brasil.
Assim, o efeito contraditório entre afastar-se de Portugal ou reproduz.ir
suas ações de Estado manifesta-se ainda hoje no imaginário da língua única do A GRAMÁTICA DE ANCHIETA E AS PARTES DO DISCURSO
Brasil, que, de língua única do Estado, é apresentada como língua única em
um País (em uma geografia).
Neste movimento, a gramatização brasileira se aproxima da busca de uma José Horta Nunes
unidade de língua escrita com Portugal, mesmo hoje, em ações, ligadas à
política lingüística, de muitos estudiosos da língua portuguesa, em particular,
ou da linguagem, em geral, no Brasil. Esta nossa pesquisa se insere em uma perspectiva históricodiscursiva de
estudo das práticas linguageiras. Trataremos aqui a questão da construção e
utilização da gramática enquanto um instrumento lingüística. A Arfe de José
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS de Anchieta foi a primeira feita no Brasil e apresenta uma importância funda-
mental na história da gramatização das línguas indígenas brasileiras.
AUROUX, S. A Revolução Tecnoiágica da Gramatização. Campinas, Editora Freqüentemente os lingüistas classificam as gramáticas antigas como
da Unicamp. 1992. "gramáticas tradicionais", estabelecendo uma oposição em relação aos estudos
COSTA, C. Contribuição à História das Idéias no Brasil. Rio de Janeiro, gramaticais da lingüística moderna. Essa oposição corrcsponde também à
Civilização Brasileira. 1967. separação entre o normativo ou prescritivo (gramática tradicional) e o des-
critivo (lingüística). Problematizando a noção de norma ou regra gramatical,
DIAS, L.F. Os Sentidos do Idioma Nacional. Campinas, Pontes. 1996.
visamos situar a gramática de Anchieta em meio aos estudos lingüísticos da
NASCENTES, A. "A Filologia Portuguesa no Brasil". Estudos Filológicos. época. A posição aqui sustentada é a de que há diversos tipos de normas -
Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 1930. morais, técnicas, pragmáticas, etc. - e, conforme o tratamento dispensado ao
MATTOSO CÂMARA Jr., J. "Os Estudos de Português no Brasil". fato gramatical, a descrição ocupa um determinado lugar. Portanto, desse
Dispersas. Rio de Janeiro, FGY. 1972. ponto de vista, as gramáticas antigas, de certo modo, trabalham o aspecto des-
critivo e, inversamente, as descrições gramaticais contemporâneas se inserem
em uma prática normati va.
Como referência teórica e metodológica gostaríamos de mencionar os tra
balhos do projeto "História das Idéias Lingüísticas". Especialmente, no que
toca às gramaticas, aqueles da revista langages 92 ("Les partics du discours"),
que compõem um panorama da tradição gramatical ocidental, tomando como
ponto de partida as divisões das partes do discurso. Diante desse contexto 1I1<11S
amplo, queremos mostrar por um lado o trabalho teórico, nocronul c conccuu
ai em Anchieta; por outro, o funcionamento desse instrumento no 1I1t'IO1lI11111
língüe brasileiro.
Segundo Colombat (1988), o consenso geral nas gramat icus dos seculos
XV e XVI é de admitir oito partes do discurso (de a!!OI[\ em diante »1)):
"nome", "pronome", "verbo", "advérbio", parucula", "l'OIlIUIl(;;IO",
"preposição", "interjeição". Há muita variação, conforme a grarmuicn, no
número de partes, na importância atribuída a uma c outra, assim como na ler-
minologia. Colombat chama a atenção rara o fato de que nessas gramáticas a
I 'H 139
1',1111 do discurso ou parte da oração ("pars orationis") não é definida, haven- 1 FINALIDADES PRÁTICAS
dll idade e circularidade no discurso de definição. Esse conjunto de
li11I higü
'l .inuuicas européias constituem um espaço diferencial em relação às gramáti- O encontro das línguas indígenas na época da colonização é uma marca
l"il~ brasileiras. Adiantamos que na gramática de Anchieta, tal como nas da produção de conhecimentos lingüísticos no Brasil, cujos efeitos ainda estão
européias, há uma certa indefinição dos conceitos, com a predominância do em grande medida por estudar. A gramática de Anchieta constitui um lugar
aspecto tecnológico e instrumental. fundador nessa história, trazendo questões próprias do contexto brasileiro.
Na apresentação de uma edição fac-similar da gramática de Anchieta dis- O estudo da língua pelos jesuítas constitui em um meio para se conseguir
cutem-se os modelos utilizados pelo jesuíta. Segundo Edith Pinto (1990), a a conversão dos índios. Com esse objetivo, ao lado da gramática, os jesuítas
Arte segue aproximadamente as gramáticas de Nebrija e João de Barros, e produziram também: traduções de textos religiosos, catecismos, cantigas, poe-
também a gramática latina, porém não se prendendo totalmente a elas. Mas mas, textos dramáticos, sermões, sem contar os rituais religiosos: missas,
apesar de poder ter conhecido diversas gramáticas em sua passagem pelo batismos, casamentos, confissões, etc. Essa produção esteve diretamente rela-
Colégio das Artes em Coimbra, como nos indica a autora, Anchieta não as cita cionada aos interesses de colonização: unidade política da colônia, civilização
em seu texto. Isso é mais um motivo para que levemos adiante a análise, dos índios, mediação de conflitos.
explicitando a função de autoria na produção do missionário. Podemos resumir os pontos de interesse da Arte nos seguintes itens:
Com relação ao modelo europeu é preciso considerar, de início, que a 1 Definição de uma escrita para a língua indígena. Já em si um gesto inter-
elaboração de instrumentos gramaticais para as línguas indígenas resultou de pretativo, a atribuição de uma escrita para uma língua de tradição oral intro-
um movimento próprio com respeito à transferência tecnológica. Essa elabo- duz esta no horizonte das línguas com tradição escrita. Isso se dá dentro de um
ração fez parte de imenso processo de grarnatizaçãa das línguas a partir da contexto pedagógico-doutrinário que tem como modelo a "Escritura Santa",
tradição latina. De acordo com Auroux, entendemos por gramatização "le com a prática de escrita e leitura que lhe corresponde. Sabe-se que os jesuítas,
processus qui conduit à décrire et à outiller une langue sur la base des deux percebendo a dificuldade da utilização do latim e do português para a cate-
technologies, qui sont encore aujourd'hui les piliers de notre savoir linguis- quese, voltaram-se para o estudo da língua indígena, com o desenvolvimento
tique: Ia grammaire et le dictionnaire" (Auroux, 1992:28). Trata-se aqui da de uma considerável produção escrita.
transferência a partir de uma língua (o latim) em direção a outras línguas (os 2 Aprendizado da língua. As regras da gramática são elaboradas de modo
vernaculares europeus, o tupi). Enquanto no caso dos vernaculares europeus a permitir aos missionários o uso da língua para a conversão. Instrumento para
ocorreu, de acordo com a terminologia de Auroux, uma endo-transferência (os missionários e colonizadores, mais do que para falantes nativos, os manus-
sujeitos que efetuam a transferência são locutores nativos da língua alvo), no critos desta gramática circularam nos colégios jesuítas e nas missões desde
caso do tupi ocorreu uma exo-tranferência (os sujeitos que efetuam a transfe- 1556 antes de serem publicados em 1595 (Leite, 1938). Salientemos também
rência não são locutores nativos da língua alvo). a filiação da gramática de Anchieta às práticas Iinguageiras do tempo das
Visto que nos interessa mostrar o funcionamento do instrumental da cruzadas, a saber, aquelas que derivam do "targum" ("tradução ou paráfrase
gramática, torna-se necessário historicizar os conceitos que aparecem nela, das sagradas escrituras, desde os primeiros séculos da era cristã, para uso, e
bem como mostrar seus contextos de utilização. O que temos dito até aqui nos transmissão oral, dos povos que as mantinham") e as que visavam o estudo e
indica algumas condições da produção de duas "formas de silêncio" (Orlandi, sistematização das línguas dos povos em contato, com fins de pregação do
1992) envolvidas na construção das gramáticas: primeiramente um "silêncio Evangelho (ver Castro, 1986:261). Daí a atuação no Brasil dos "turgimões",
local", em relação ao espaço de identificação mencionado acima. Os conceitos também chamados "línguas" ou intérpretes", assim como dos missionários.
aparecem como um "já-lá", como um "pré-construído", enquanto que a rela- 3 Delimitação de espaços lingüísticos e geo-políticos. A gramática de
ção deles com os discursos que os constituem, por exemplo, com as gramáti- Anchieta trouxe condições para a formação de unidades e divisões lingüísti-
cas européias (as latinas, as das línguas nacionais em vias de gramatização, as cas. O jesuíta considera a presença de várias línguas ou dialetos no meio
de finalidade religiosa, etc.) é silenciada, depois um "silêncio constitutivo" na brasileiro; porém, ele constrói uma denominação caracterizadora do imagi-
relação dessas construções com os discursos - religioso, político, geográfico, nário colonial de língua: "a língua mais usada na costa do Brasil't.Pcrccbc-sc
econômico - em jogo na conjuntura da colonização. Segundo Orlandi, "o que não se confere um nome próprio à língua. A unidade é determinada pelo
silêncio significa" e é só através de um método discursivo que se pode obser- uso que se faz dela (a mais usada) nos diversos locais do país, especialmente
VlII os seus sentidos, historicizando-os. É assim que observaremos alguns sen- na costa, sendo este o ponto de partida das expedições explorat6rias e das mis
lidos produzidos em nossa história de gramatização. sões catequéticas. O discurso geográfico de nomeações dos lugares e das
coisas é uma marca do discurso de colonização (Nuncs, 1992), o que se nota
aqui na nomeação dessa língua. A rigor, esta não seria apenas a língua dos
Idll [41
I
11\11111'111i1''1111a dos falantes em situação de contato, ou seja, além dos índios,
111I\,l!ll1óIlIO:-',bandeirantes, intérpretes, colonos. Juntamente com as noções de composição e de construção aparece a
I
I Produção de textos. Adefinição de uma escrita foi imediatamente garan- noção de mudança, que também pode ser relacionada ao discurso naturalista
lul.l pela elaboração de material doutrinário em tupi e em português, além de da época. Os seres se transformam, passando de um estado a outro da natureza.
l'1I1 luum. A gramática serviu como um instrumento para a escrita; encontram- Anchieta usa o termo "amphibologia" rara caracterizar as mudanças nas PD e
't' nela observações sobre o modo de escrever e traduzir. O próprio Anchieta as transcategorizações, provocadas pelas operações de composição e cons-
COl11pÔSmuitas cantigas, poemas e outras obras em tupi, latim, castelhano e trução. O "ser" lingüístico se transforma: "mudam", "perdem", "ganham",
português (Anchieta, 1989). "acrescem", "contraem" elementos, decorrendo mudanças de forma, função e
categoria.
A fim de desenvolver um instrumento que respondessse a todas estas
necessidades, Anchieta não se prendeu a uma ordoxia sistemática. Nesse sen- Passando à organização da gramá: ica, notemos a disposição dos capítulos.
tido, sua gramática não tem pretensão nem de exaustividade nem de comple- A Arte é redigida em dezesseis capítulos, do modo como segue:'
rude, mas antes de senso prático, dando margem a erros e limitações das
Capo I Das letras
regras. A redação do texto muitas vezes não respeita unidade temátiea e
Capo 2 Da ortografia ou pronunciação
divisões dos capítulos, de modo que alguns temas se repetem aleatoriamente.
Capo 3 De acento
Tem-se a impressão de que há uma acumulação de anotações esparsas que não
Cap.4 Dos nomes
foram suficientemente organizadas para a edição.
Cap.5 Dos pronomes
Capo 6 Dos verbos
Capo 7 Anotações na conjunção
2 ESTRUTURA NOCIONAL-CONCEITUAL DA GRAMÁTICA:
Capo 8 Da construção dos verbos ativos
AS PARTES DA ORAÇÃO
Cap.9 De algumas maneiras de verbos cm que esta anfibologia se tira
Cap.IO Das preposições
Para compreender as noções utilizadas em Anchieta, é preciso considerar
Capo II De sum, es, fui
alguns conceitos herdados da gramática latina e trabalhados na Arte, dentre os
Capo 12 Dos verbos neutros feitos ativos
quais os de "composição", "construção" e "mudança".
Cap.13 Dos Ativos feitos neutros
Na gramática latina, há uma oposição entre as palavras "simples" e "com-
Cap.14 Da Composição dos verbos
postas", empréstimo do discurso cosmológico dos antigos. Ao realizarem, por
Cap.15 Da repetição dos verbos
exemplo, a descrição do globo terrestre, cosmógrafos e viajantes falam de sua
Cap.16 De alguns verbos irregulares de Aê
"formação" ou "composição", apontando os "elementos" que o constituem
(água, ar, terra, fogo). Desse modo, eles descrevem as "partes do globo". Assim,
a América é caracterizada como "a quarta parte do globo" (as outras três seriam Há três capítulos para letra, ortografia e acento, um para nomes, um para
Europa, Ásia, África). O Brasil é referido também como "essas partes do pronomes e um para preposições. Os verbos tomam importância acentuada,
Brasil". Por via da combinação dos elementos, das partes, chega-se à descrição contando com dez dos dezesseis capítulos. Outras partes da oração também
do todo, distinguindo-se as coisas, que se dividem em "simples" e "compostas", são introduzidas nos capítulos: advérbio, numeral, pronome, partícula.
e a variedade delas. Na descrição de plantas e animais também se nota esse dis- Como já foi dito, na maioria das vezes não se definem as partes da oração,
curso, com o enfoque em suas "partes", sua "formação" ou "composicão". trabalha-se com elas: produzem-se classes e subclasses, formam-se listas de
O mesmo acontece no domínio gramatical. A operação de composição exemplos, paradigrnas de flexão, contextos de variação, arranjos e ror-
indica a formacão das PD, através da combinação entre os elementos lingüís- mações com as classes e subclasses. Esboçamos a seguir as classificações
das PD com que deparamos:
ticas: (palavras + acréscimos ou crementos), (verbos + verbos, nomes + ver-
bos, pronome + adjetivo, etc.). Trata-se assim de regras morfológicas de for-
mação das palavras. Por seu lado, a noção de construção, empregada por
Anchicta, tende a se relacionar mais com os aspectos sintáticos e atua na for-
IIHH;ao das orações. Nas gramáticas latinas houve por volta do século XVI-
\ V I1 um interesse crescente com relação à construção, ou seja, com relação à
'"II:lx\:. Isso se acentuou ainda mais com o desenvolvimento da lógica nos Para facilitar a leitura transcrevemos as citações com a ortografia adaptada ao portuguc« IIllldcl
I \llul()\ Ilnrliíslicos, como no caso da gramática de Port Royal. no e realizamos algumas traduções de termos latinos. No entanto, visto que ViS:UIIIlS unnhxm a
historicidade dos conceitos, mantivemos a terminologia e mesmo a sintaxe COIIIO no 1l11~lnill
1,1'1
143
1 I'. lil 2 O acento. Já foi notado que o acento é usado de modo particular na Arte. Ele
I
NIIIl1l! simples indica a tonicidade e a grafia (Pinto, 1990). Além disso, o uso do acento apon-
composto ta uma diferença quanto à unidade da palavra. Em latim só se permitia um
acento para cada palavra, enquanto Anchieta permite que se usem dois acen-
Pronome relativo tos na mesma palavra:
absoluto
recíproco "No cremento dos tempos até o futuro do conjuntivo exclusive, pode ficar o
verbo com seu acento natural que tem no presente do indicativo e por-se outro
Verbo ativo simples
no crememo porque este pode-se apartar do verbo futuro, aimondõnê" (p. 36)
passivo composto
neutro
3 A composição de nomes e verbos. Ao se trauu do "crememo", ou seja, dos
acréscimos, como afixos e terminações nas "D, fica subentendida uma parti-
Advérbio
cularidade da língua: todas as partes podem ser conjupudu», diferentemente
Numerais (simples)
dos modelos europeus:
ordinais
Preposição "crememo há não somente nos verbos, mas também noutras partes da oração
Partícula porque todas se podem conjugar, como verbos" (p. 35)
Há subclasses que não recebem nomes próprios e são definidas através de 4 Os nomes admitem sufixos que marcam tempo passado e futuro:
enunciados como os seguintes:
"Em todos os nomes há pretérito, que é oera ou uera, e o futuro âma, como em
(1) "nomes que têm o acento na penúltima" mbaê, coisa, mbaêpoéra coisa que foi, mbaêrâma, coisa que há de ser" (p. 87)
(2) "nomes começados por t"
(3) "Os prepostos que têm acento na penúltima" 5 Conjugação. Anchieta aponta duas conjunções para o tupi: a afirmativa e a
(4) "nos futuros dos verbais que têm mi, ut, minupa'" negativa. Essa distinção correspondeu para autores posteriores àquela entre a
(5) "vocábulos que têm diversa significação" conjugação com prefixo e a conjugação com forma pronominal:
(6) "nomes de ervas, frutas, animais, materiais, começados por t"
(7) "Nos verbais que perdem o ç" "Ainda que todos os verbos têm uma só maneira de conjugação, contudo
(8) "Verbos neutros feitos ativos" podemos dizer que têm duas porque o negativo acrescenta algumas partículas,
(9) "os que mudam o b em v" que sempre têm juntas consigo para se conhecer ser tal e ambas se porão aqui.".
(p. 56)
Podemos observar alguns critérios de partição' para as subclasses:
critérios morfológicos (I a3), morfológicos flcxionais (4); semântico semio- 6 Nota-se a inexistência do verbo "sum, es, fui". No entanto, comentando-se a
lógico (5) e semântico ontológico (6); de mudança e variação (7 a 9). construção com pronome-adjetivo, afirma-se que esse verbo fica subentendido:
Ao analisarmos as formulações, percebemos que muitas vezes o modelo
latino não se mostra suficiente para explicar os fenômenos do tupi e o mis- "Os nomes conjugados como verbos incluem em si o verbo surn, es fui, em
sionário tece comentários que fogem a ele. Ressaltemos alguns pontos em que duas significações: ser e ter. Para a significação destas há verbos particulares
emergem as particularidades do tupi: e próprios, estar sentado, deitado, andando" (p. I] 3)
1 As letras. As inadaptações do alfabeto latino e português levaram Anchieta 7 A noção de subordinação já está presente na Ar/e, por exemplo, quando ~('
a propor distinções gráficas especiais: o "i" (i com um ponto em baixo) para o descreve funcionamento do pronome recíproco:
chamado "i gutural"; os grupos gráficos "mb", "nd" e "ng",
"Havendo dois verbos numa oração, que fazem como duas 01 iI~'(lI'S Ikp('"
I i\ Il'u", IIl-sWS critérios de partição adotamos de Auroux C"Les critêres de définition des par- dentes uma da outra, sempre se há de ter respeito ao principal Vl'1 ho 11:1 1Ij'fllnll
I,,·, du d"l'ours", l anguges 92, 109-112, Larousse, Paris, 1988). e ao suposto dele se há de referir o recíproco se ou S/./II.I''' (p. 'I \)
ljl.\ Ijl
H 11" IIh'L'1 vu<;úes singulares com respeito aos pronomes, dentre as quais a apresentar através de enunciados técnicos, como através de formas descriti-
diIL 111Il'iI entre I ,\ pessoa inclusiva e exclusiva: vas tais como "escreve-se (x)", "usa-se(x)", "o mais universal uso é (x)", "o
mais comum é (x)".
t tn: vaudê, são também adjetivos, noster, a, um, diferem nisto, a saber que Além da classi ficação conforme o tipo nonnativo, realizamos a seguinte
0/(',exclui a segunda pessoa com quem falamos daquele ato, de que se trata, divisão das regras:
rumo em orê oroçõ, nos imos e tu não, orêmbaê, nossas coisas e não tuas,
porém, yandê inclui a segunda pessoa, como em ya ndêyaçõ, nos imos e tu 1 Regras fonético-ortográficas. São regras que servem à definição de uma
também Yandêmbaê, nossas coisas e tuas também," (p. 45) escuta, uma leitura e uma escrita para a língua indígena. Relacionam pronún-
cia e ortografia, incluindo-se aí as regras de acentuação:
\) Anchieta só de passagem trata da conjunção, comentando que algumas
prcposicões valem como conjunções. "para se conhecer ser este i. áspero se escreve com um ponto em baixo e ficará
jota, subscrito i. porque faz muito diferente significação do i Iene" (p. 34)
10 Exernplificação e tradução. Na exemplificação das regras a tradução pode
apontar por um lado uma dificuldade, por outro uma certa produtividade no 2 Regras de mudança. Incluem as operações de "mscrçao", "intcrposrção",
português. Os exemplos são um modo didático de apresentar o funcionamen- "perda", "transformação", "contração", e por outro lado as noções opostas ü
to da língua, de modo que utilizam-se enunciados agramaticais em uma língua mudança: "conservação", "retenção", etc. Pode-se tratar de mudanças rnor-
(ex., em português: "traze peixe come-Io-ei") para demonstrar o funciona- fológicas, sintáticas, semânticas. As regras de mudança envolvem pro-
mento de outra: priedades de diferentes partes das orações, de modo que elas se misturam, se
combinam, se distribuem, condicionando as formas de composição:
"E como esta maneira de futuro não é resoluto sofre muito bem a linguagem
do português, para que, por exemplo, Erüpirâ, taüne, traze peixe para que "(Opab) Tem força de advérbio para fazer as mudanças no fim do verbo, como
coma eu, quer se siga o efeito de comê-lo, quer não, ainda que a própria lin- acima, mas para o princípio tem necessidade de substantivo expresso, como
guagem, ao pé da letra, diz traze peixe come-Io-ei". (67) opã abâçou, opã abãjucâu. "
"Os verbos neutros se fazem ativos, pondo-Ihcs mo ou ro, depois do artículo,
Note-se que as formas de tradução, no confronto entre línguas, trazem se o tiuer, como Ayebir, eu torno, redeo, Aimomaraâr; estou doente. Aimogebir;
uma certa produtividade ao português, efeito do trabalho da língua sobre ela arogebit; faço tornar." (p. 117)
mesma.
3 Regras de composição e construção. Na composição consideram-se as
"partes", a "matéria" que constituem os elementos, e o modo de composição.
3 AS REGRAS GRAMATICAIS A composição se refere mais à morfologia enquanto construção diz respeito à
formação das orações, sendo que em ambas se desenvolvem noções semânti-
Ao analisarmos as regras, consideramos diferentes tipos de enunciados cas. Podemos, a partir disso, subdividir esse conjunto de regras em:
norrnativos.' Salientamos quatro tipos de enunciados em Anchieta: os morais,
os pragmáticos, os técnicos ou paradigmáticos, os descritivos. Esses dife-
rentes modos de normatização se apresentam por meio de formas discursi vas 3.1 Morfolôgicas
específicas. Os enunciados morais se constróem por meio de formas como:
"deve ser (x)", "o melhor uso é (x)", "o mais certo é (x)", "pode ser (x)", "não "Os verbos além das maneiras de composição sobreditas se compõem com
pode ser (x)". Os pragmáticos introduzem expressões do tipo "conforme o algumas partes da oração e na conjunção não se faz caso senão da última ler
LISO", "o uso ensina", "como melhor parecer": "Em nomes compostos pode- minação como,
se interpor, ou não, quod usus docebit, como Antána, ibã, Mamánibâ, Amán". Com advérbios, aicuãb. sei, catü, bem, etê, aicuãcatü, aicuâbetê.
()s técnicos ou paradigmáticos são os que se valem de técnicas de c1assifi- Com outros verbos, açô, vou, aipotâr, quero, açopotâr; ir quero, aracõ. levo,
l.l,·flo com Iisias, tabelas, paradigmas, modelos, como no caso dos paradig- aipouçãb, arreceio, Araçôpouçúb, arreceio de levar." (p. 52)
111:1, de conjunção e das listas de preposicões. Os descritivos tanto podem se
I S\II,IIII AIIII"I\ "\.<lIS. nouucs ut rcglcs", Histoire Epistémologie Ll/Ilfi{/fie 13/1, Paris. 1991.
141h 1<17
"/lI [o suttcuicas Potencial
Coniunctivi modi Praesens
"O" nomes substantivos se compõem com adjetivos precedendo sempre os Praeterito imperfeito
~lIh"lillltivos e se tem acento na última ficam inteiros, como mbaécatú, mbaé Imperfeito segundo
ntuha, nhungatú, nhúaba. " (p. 38) Futuro
Gerundio
Particípio
3. ~ Funcionais
Algumas particularidades da conjugação se encontram na conjunção dos
"este nome jru", o mesmo i. que tem lhe serve de relativo e nunca o perde, ut verbos com "artículos" e com "pronomes"; na dubiedade da classificação das
jmA, socius, e eius socius, xeiru/; meus, oiru/', etc" PD, como por exemplo, entre o concessivo e o conjuntivo, na inclusão dos
nomes enquanto se teoriza a conjugação dos verbos.
3.4 Semânticas "Todos os verbos ativos e muitos neutros se conjugam com estas pessoas,
as quais chamamos artículos à diferença das pessoas expressas, que são os
a) semiolágicas e contextuais pronomes, com os quais se conjugam muitos verbos neutros, e não com
"O macho chama à irmã pei"; guaupira, minha irmã, e a menina sobrinha, itô, os artículos, mas na mudança e variação do fim seguem li conjução
titô, guaitõ, A irmã ao irmão, AiA, guaiã, o pai e mãe ao filho macho, piã ao pai porque não há mais que uma, como acima" (62)
ou senhor, pai, A fêmea a sua senhora ou qualquer mulher honrada, Tapê" (p. 50) "De propósito se pôs em sua linguagem Tajucâ, mate eu, 'Icrcjucâ, males
tu: e não, como eu mato, ainda que mate, etc. porque se não ral. caso do
b) etimológicas nome do modo, quer lhe chamem concessivo, quer cojunctivo, senão da
"Estes nomes de bõra, formam-se do verbo, lpôr; que significa estar alguma voz porque neste presente se acham todos eles" (66)
coisa dentro de outra, e assim, maraãbõra, significa homem que está dentro
da doença" (p. 84)
5 REGRAS DE USO
c)psicológ icas.
Estas regras ressaltam a divisão "expresso" versus "subintelecto": "Algumas vezes se usa do fiá ou chiâ, soa, e então comumente quer dizer,
"Alguns outros nomes há que guardam o mesmo (o relativo), mas tem subin- vai, ou ide vos diante, como convidando a algum, vamos a tal parte responde
telecto o adjetivo meus em todos os casos, como em AiA, minha mãe" (p. 50) tiã ou nei/: peitiâ, etc. como quem diz, sus vai diante."
Anchieta sugere alguns modos de composição práticos, como o uso difu-
4 Regras de conjugação e de declinação. Nestas regras temos questões de so de preposições:
enunciação e de contexto, envolvendo as noções de "pessoa" e "voz".Ao se
falar sobre a conjugação, são delineados contextos de uso da língua, relações "A construção dos neutros é ao tom dos advérbios e preposições em todas
entre sujeitos, noções psicológicas e culturais. Eis a estrutura básica de conju- as pessoas, como Anheêng, Pedro çupê, loquor Petro, Aiür oca çui, venho
gação dos verbos: de casa; Açôócupé, vou a casa, e por isso se porão logo difusamentc,
porque nelas está muita parte do bom desta língua" (p. 101)
Indicativi modi Praesens
Imperfectum
Perfectum CONCLUSÃO
Plusquam perfectum
Futuro Assim como a maioria das gramáticas do século XVI, sejam as de línguax
românticas (endo-transferência), sejam as de línguas indígenas (exo uunstc
lmpcrati vo rência), a Arte de Anchieta parte do quadro latino e ao mesmo tempo introdu/o
Opuuiuo modo novas observações teóricas. A meu ver, os instrumentos lingüísticos ao mesmo
1'('lllIlssivo tempo entendem e limitam a capacidade dos sujeitos falantes em uma conjun
IIIH 149
I
1111 (I, " !'I.lllIllll/,ação do tupi levou a uma homogeneização de certas áreas 12
11l11'1I1 ...lll'as, com a formacão das línguas gerais. Por outro lado, reduziu teori-
1,IIIII'IIIcos fenômenos das línguas indígenas constrangi das pelos modelos oci-
dl'lIlillS, ainda que por vezes se fugisse deles. O DICIONÁRIO E O PROCESSO DE Jf)ENTIFIC'A(ÃO
Os comentários da gramática apontam noções particulares do tupi, que DO SUJEITO-ANALFABETO
mais tarde foram trabalhadas por estudiosos de línguas indígenas, Salientamos
i1Sdiscussões sobre as línguas aglutinantes, a incorporação, os grupos norni- Mariza Yicir« da Silva
nais com marcas temporais, a predicação sem verbo, questões já tratadas, a seu
modo, em Anchieta.
A normatização em Anchieta não se prende a uma sistematicidade rígida "eu careço de que o {)()/11 srja /)1111I I' o t uitn ruim, que
nem a uma liberalidade sem medida, Vimos que há uma tensão entre regras dum lado esteja () prelo (' do III/Im (I ln anro, ({/I(' o feio
descritivas, pragmáticas, morais, técnicas, de modo que a distinção descri ti- fique bem apartado do bonito r U u{l'g/ /(1 IIII/g<' do II;S
vo/normativo, acentuada pela lingüística moderna, deve ser realizada ao con- teza! Quero os todos postos drnuurtuía» ('1111/0 li '1/1('
siderarmos historicamente a produção desse saber lingüístico. posso com este /IIII/Ir/O! Á vula (i inguua 1/11 nuuin dI'
si; mas Iranstra; ([ 1',I'PI'/WI\,([ 11/('.1'11/111/1111/1';11tlo/i'l do
desespero. Ao qtu', este 11111/[(10 (' 11/11;11I 1/I;.I'lll/wIIJ ..• "
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS (G. Rosa Grande senão: veredas)
ANCHIETA, José de. Poesias, Belo Horizonte/São Paulo Itatiaia/Univer- E eu conheço um bom lugar para se demarcarem todos esses pastos, para
sidade de São Paulo, 1989. apartar cada coisa da outra coisa neste mundo tão misturado das palavras; um
___ oArtes de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, São lugar em que as coisas são o que são e porque são, livrando-nos da deriva a
Paulo, Edições Loyola, 1990. que nos submetem as palavras: o dicionário.
AUROUX, Sylvain. "Les criteres de définition des parties du discours", Lá, o bom é distinto do ruim; as palavras são transparentes; o sentido é
Langages 92, Paris, Larousse, 1988. 109-112 correto, preciso e objetivo; não há o que interpretar, nem do que duvidar. As
palavras referem-se, sempre, a uma única e mesma coisa, todas as vezes que
AUROUX, Sylvain. "Leis, normes et rêgles", Histoire Epistémologie
lá vamos buscar informações e tirar dúvidas: um mundo construído pela ciên-
Language 13/I, Paris, Larousse, 1991. pp. 77-107,
cia da linguagem com a própria linguagem.
CASTRO, José Ariel. "Formação e desenvolvimento da Língua Nacional No dicionário, encontramos, cotidianamente, a partilha entre o que sig-
Brasileira", in A literatura no Brasil, Rio de Janeiro/Niterói, José nifica, a unidade e a permanência do sentido das coisas, e a certeza de um
Olympio/Universidade Federal Fluminense, 1986. reconhecimento certo e seguro dessas mesmas coisas. Coisas estas que dizem
COLOMBAT, Bernard. "Les 'parties du discours' (partes orationis) et Ia respeito, aqui, neste trabalho, ao saber ou não-saber ler e escrever no Brasil,
reconstruction d'une syntaxe latine au xvr' siêcle", in Langages 92, em sua dimensão histórica.
Paris, Larousse, 1988. 51-64 Analfabeto é a pessoa que não sabe ler nem escrever. Este enunciado foi
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus, Lisboa/Rio de Janeiro, tirado do "Dicionário de Língua Portuguesa" de Antonio de Moraes Silva, na-
Livraria Portugália Civil Brasileira, 1938. tural do Rio de Janeiro, que teve dez edições publicadas em Portugal, no
período de 1789 a 1949. Este dicionário exerceu grande influência na pro-
NUNES, José Horta. Fomação do Leitor Brasileiro: imaginário da leitura no
dução lexicográfica dos séculos XIX e XX, no Brasil e em Portugal, com todas
Brasil Colonial, Campinas, Editora da Unicamp, 1992.
as edições esgotadas.
RLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio, Campinas, Unicamp, 1992. Embora esteja datado e situado, o enunciado definidor constitui uniu
PINTO, Edith Pimentel. Artes de gramática da língua mais usada na costa do paráfrase do que é dito, a partir de então (1890), em outros dicionários l' di,
Brasil, São Paulo, Edições Loyola, 1990 {apresentação}. cursos sobre a alfabetização e seu sujeito. Ele funciona à maneira de UIIIcuuu
J{OI)RIGUES, Aryon Dall'Igna. Línguas Brasileiras. Para o conhecimento ciado consensual, isto é, diz o que todos sabem sobre o analfabeto em seu \111
ias línguas indígenas, São Paulo, Edições Loyola, 1986. tido próprio e literal, sentido este capaz de pôr em movimento as pl i1lll," l' ••...
teorias. Todos nós sabemos de quem falamos, quando falamos do "illlillliI
beto". Pode-se até discordar deste conceito, mas ele continua sl'lldo il 1\'l\'ll'lI
1'1(1 151
I
ill 1':11,1 li sua negação
111111:' c.ucgonzação.
ou para a exigência de uma outra definição, de uma
o interesse pela presença de um até e de um nem: palavras ardi losas que fazem
I
as coisas e os sentidos começarem a se remexer, convocando a exterioridade e
ANALPHABETO (ort. etym.) ou ANALFABETO s.rn, a alteridade para o interior do enunciado - o que é apagado posteriormente,
Pessoa que não conhece o alfabeto, que não sabe ler no enunciado de 1890 - e trazendo uma dimensão avaliativa reforçada
nem escrever, que não sabe o a.b,c. pelos adjetivos "ignorante e idiota" que é preciso compreender em um
§ Também adj.: homem analfabeto. tempo e um espaço determinados.
§ Muito ignorante, rude, estupido, boçal. E o Próprio Moraes ajuda a pôr em movimento essa maquina dos senti-
dos, dizendo sobre o até e o nem, respectivamente: "termo Intimo de alguma
Mas, este sentido não foi sempre assim, nem mesmo - e, principalmente série" e, "conjunção disjunctiva negativa". A que "serre" csun III referido o
- no próprio Dicionário de Moraes, onde ele faz uma caminhada histórica no analfabeto e as letras? Onde estaria a disjunçao ncgutivu c como se daria? O
interior do funcionamento lingüística e da produção científica lexicogrãfica. O que foi preciso não-dizer para dizer, embora deixando vesllglOs'! Se o analfa-
dicionário, enquanto tecnologia, faz-se por acréscimo e reutilizações e consti- beto não sabe nem o alfabeto que dirã o resto? O que Sl'1 Ia o resto? Quem
tui, sobretudo, uma técnica de produção de objetos teoricamente normatizados enuncia? De que lugar social é produ/ido este julgamento'> Como comprccn
e materialmente ordenados. der este funcionamento discursivo que ajuda a construu (I lncrnlrdudc, 0.\'1'/1
Este verbete, em seu funcionamento enunciativo, significou uma tido que ficou?
mudança, um deslocamento no modo de dizer, pois, em sua 2° edição de 1823
(não tive acesso à P), Moraes define analfabeto como "o ignorante até das * * *
Lettras do a.b,c," e, na 6" edição de 1858, como "o idiota, ignorante de lettras,
que não sabe nem o a, b, c. "Analisando estes três verbetes em sua estrutura e Na verdade estou descobrindo o dicionário, ou melhor, um espaço tempo
funcionamento, bem como as relações que venham a estabelecer com outros de linguagem fascinante e escorregadio: um mundo construído discursiva e
termos do dicionário, vamos nos dando conta de outros sentidos possíveis de imaginariamente para ser habitado por todos nós; um mundo em que a certeza
uma história de leitura e da escrita, que se lê e se escreve em diferentes com- e a completude se diluem no achar-e-perder dos elos de suas cadeias ilusoria-
passos. mente objetivas e seguras.
É importante lembrar que neste final do século XIX, o Brasil vivia um Uma descoberta, contudo, que não implica negação ou rejeição de um
período histórico em que se buscava implantar e dar visibilidade a um novo instrumento de trabalho lingüístico e intelectual necessário à vida de todo
ordenamento político-social fundado no Direito (leis escritas): a República, cidadão de uma sociededade letrada. Nem se trata de uma denúncia ou crítica
um regime no qual os governantes são eleitos por homens livres e iguais a mais um mecanismo de reprodução, de cerceamento da criatividade e da
através do sufrágio universal. Trata-se de um momento em que aumenta a liberdade de um sujeito autônomo e consciente para produzir sentidos.
urgência, a necessidade de acelerar e dar consistência ao processo, já iniciado, O meu interesse nos enunciados dos dicionários também não é da ordem
de construção de uma Nação e de uma identidade nacional una e indivisa. E da análise de conteúdo, da lexicografia, da etimologia, do implícito, da entre-
nada mais importante que uma nação una e indivisa na e pela língua, o que linha. Mas, sim, o de compreender os processos discursivos de produção dos
permite o estabelecimento de uma comunicação transparente e unívoca em sentidos em sua material idade lingüística. E mais especificamente: compreen-
que as diferenças sociais, raciais e lingüísticas se diluem e apagam. der como se produz pelo e no funcionamento discursivo do enunciado
A propósito, Sodré (1964:451) nos lembra que "enquanto as diferenças de dicionarizado os sentidos e a posicão de sujeito da alfabetização, da escola de
classes, no Brasil, foram a tal ponto profundas que, existindo as contradições ler e escrever no Brasil, em sua travessia histórica.
de interesses, ao escravo faltavam condições para lutar contra os senhores, o O dicionário enquanto lugar da completude, da certeza, da exaustividade,
problema de transferir ao saber e a todas as suas exteriorizações um papel, do dizível, que pretende dizer algo de tudo e tudo de cada algo, que pressupõe
uma função, nas diferenças de classe, careceu de sentido". Mas, quando os uma relação termo-a-termo entre linguagem-mundo e naturaliza a relação
outros sinais de exteriorização foram desaparecendo e houve a possibilidade palavra-coisa, pareceu-me um lugar discursivo importante em uma sociedade
de extensão do ensino a outros segmentos da sociedade, que não só aos filhos letrada, como a nossa, para seguir e analisar o perpétuo desdobramento das
de proprietários de terra, o saber, a escrita passam a ser um critério de seleção, palavras, no movimento social e histórico do sentido que produz os sujeitos
c lnxsificação c identificação. em seus processos de reconhecimento e de identificação.
) analfabeto "ignora até" e "não sabe nem", dizem os enunciados O que é ser um cidadão-analfabeto em nosso País em diferentes rnomcn
Ih'llllldmcs de Moraes até a 7° edição (1877-78). Estas construções despertam tos históricos? Como se construiu essa posição de sujeito capaz de enunciar e
de ser enunciado de forma a se reconhecer e ser reconhecido em sua dimensão
I
1<;"'
153
1'1i111h:1I dI' crdudúo? Como se construiu a unicidade, a coerência, a determi- tornar um sujeito do conhecimento, um sujeito da escrita alfabética. E os pas-
I
1I;!','rifl, .I vrxibilidadc de uma identidade sempre em movimento? O que pode e tos já desmarcados?
!lu\'(' \t'l dito do lugar de um sujeito-analfabeto? Estas e outras perguntas se Mas, vamos atrás do significante para compreender um pouco mais desse
1111\'111 neste momento. As respostas, contudo, extrapolam os limites do traba- resto que se insinua em nossa leitura através do "até" c do "nem", vamos
11111 que aqui me proponho. seguir a materialidade lingüística dos enunciados dcfinidorcs nesta cadeia de
remissões constantes dos dicionários. Sigamos outra trilha do jogo do dizer e
* * * do não-dizer ou do dizer em um lugar c não-dizer em outro, para que possamos
ampliar o foco de luz sobre o processo histórico de identificação do sujeito-
No dicionário, palavra-puxa-palavra, um significante-puxa-outro signifi- analfabeto no interior de um dicionário.
cante, em uma cadeia contínua e ininterrupta, marcada por uma aparente frag- Dentro do que chamei de campo do saber da leitura e da escrita, o termo
mentação e dispersão, mostrando-escondendo a presença da alteridade, da "alfabetização" tem lugar de destaque. Observo, no entanto, ao examinar as
memória, da história. Há uma multiplicidadde de "coisas-a-saber" (Pê- várias edições do "Diccionario" de Moraes que este termo só aparece na IQª
chcux: 1988) que o dicionário unifica, homogeiniza, regula, institucionaliza. edição (\949), quase cento e cinqüenta anos após a inserção do termo refe-
À medida em que fui seguindo os enunciados definidores por diferentes rente a um dos sujeitos do processo de aprender a ler e a escrever - o anal-
(scrá?) caminhos, enquanto uma prática discursiva determinada pelas for- fabeto -, o que acontece desde as edições iniciais (1813).
mações discursivas (FDs) e pela autonomia relativa da língua, um campo de
saber da leitura e da escrita - chamaremos provisoriamente assim - foi-se
mostrando e configurando, em toda a fluidez e opacidade próprias da línguas. ALFABETIZAÇÃO, s.I. (de alfabetizar) Acto ou efeito
Trata-se de um campo heterogêneo e disperso, em que a prática discursiva tra- de alfabetizar. Propagação da instrução primária.
balha com as oposições e as diferenças, com o dizer e o não-dizer, com o sen-
tido e o sem-sentido, produzindo, no entanto, o uno e a literal idade,
necessários na construção de enunciados objetivos, transparentes e universais, Sabemos, contudo, que em nosso país esta ação não se deu, não se
capazes de apagar a divisão, o múltiplo, a contradição, não importa se ilusori- propagou para toda a população; e que os analfabetos, ainda, são em número
amente, uma vez que funcionam, isto é, significam e nos significam. E é este considerável. Seria de se esperar, então, a existência de um termo que indi-
campo de saber, ao qual fui arremessada pelo significante, que quero conhecer casse essa ação contrária: ato ou efeito de não alfabetizar. No entanto, tal não
e compreender. ocorre, pois o que encontramos como oposição à alfabetização é:
* * *
ANALFABETISMO, s.m. (de analfabeto)
Se o analfabeto é aquele que "ignora", que "não sabe", então, parece que Desconhecimento do alfabeto; falta de instrução
cstamos no domínio do conhecimento, onde há objetos a conhecer, de um primária; estado ou caracter do que é analfabeto.
lado, e sujeitos capazes de conhecer, de outro. E a ignorância não é o vazio, a
ausência de algo, mas a presença do conhecimento, ou melhor, de um (des-)
conhecimento específico: a escrita alfabética, um conhecimento fora que afeta Tanto o processo de derivação quanto o enunciado definidor apontam para
o sujeito, que marca o indivíduo, identificando-o. O dicionário atribui a "igno- a assimctria de um par que se pretende apenas opositivo. No primeiro caso,
rar" o sentido de "ser incapaz de", "não usar de", "não praticar", "desco- temos uma ação de alfabetizar exercida de um indivíduo para outro indivíduo,
nhecer-se a si mesmo", o que aponta para o indivíduo como fonte e origem de tendo como objeto algo descritível e de sentido identificável, capaz, inclusive,
uma falta, de uma incapacidade. de propagar-se. No segundo caso, temos um desconhecimento, uma falta, um
Por outro lado, temos nestes enunciados um até e um nem a fazer da estado/caracter de um indivíduo isoladamente. Não se trata de uma ação não
palavra analfabeto, em sua unicidade, objetividade e neutralidade, um lugar de exercida por parte de quem a ela estava obrigado ou comprometido, pois nem
resistência a qualquer fechamento, um lugar de movimento e de deslocamen- mesmo existe o termo analfabetização. Ao contrário, aquele que alfabctizn,
to, e não só de negação e de incapacidade. O analfabeto ignora outras coisas que propaga a instrução tem sempre de lidar com alguém já afetado pOI um
"tnlrmns" que, segundo o enunciador, fazem parte de uma série estabelecida desconhecimento, por uma falta, que tem uma condição específica em rcluçao
\'111 :iI!!lIlll lugar, de acordo com categorias estabelecidas por alguém. Coisas a outros indivíduos de determinada sociedade. Não estamos, portanto, ao se
\:,-,1." que devem ser sabidas - e que vão além do alfabeto, do a,b,c - para se trabalhar a história da alfabetização 110 Brasil, em um campo em que as
I li 0\ 155
I
coisas-a-saber se relacionam de forma meramente opositiva, mas, sim, em um
campo marcado pela contradição.
tempo, por se tratar da contraparte necessária dessa oposição que se movi-
menta historicamente. Uma oposição que representa grupos de interesses e de
I
Não se vai à escola só para aprender o que não se sabe, preencher um relações de força distintas, constituída separadamente, no tempo e no espaço,
vazio, para se ensinar-aprender a usar uma técnica cultural - a escrita como mero par antiético.
alfabética - mas, também, para suprir uma falta, mudar um estado, uma E palavra-puxa-palavra, vou seguindo a própria lógica do dicionário em
condição. A escola não produz o analfabetismo, como pretende algumas busca de demarcações e identificações dos sentidos e do sujeito de nossa esco-
análises, pois essa já é desde sempre a condição do indivíduo que a ela tem la de ler e escrever neste mundo tão misturado das palavras e das
acesso. Há um já-lá-dito do "analfabeto" e do "analfabetismo" - palavra coisas ...Moraes, em seu dicionário, vai trilhando por caminhos que deixam
derivada da anterior -, que nega o sentido da alfabetização e garante o seu rastros e pistas para compreensão daquele "até" e "nem" e do imenso traba-
sucesso, uma vez que para que se possa alfabetizar um brasileiro é preciso lho de formulações aí contidos, mas apagados. Formulações sobre o "analfa-
colocar uma prótese no indivíduo, torná-Io um outro. Uma coisa cuja impos- beto" que abrangem, por exemplo, os campos não só da língua como também
sibilidade se amplia e aprofunda, historicamente, se pensarmos o que isto sig- da moral, da religião, da natureza, da ciência, da tecnologia e que partem de
nifica, olhando o "Novo Dicionário Aurélio", em sua ]4' impressão sobre um FDs diferentes demarcando a identidade do analfabeto, obrigando-o a ocupar
dos sujeitos da escolarização: "Analfabeto de pai e mãe" e "indivíduo ri- certas posições enunciativas.
gorosamente analfabeto". "Analfabeto" vem de "alfabeto" que nos remete a "lettra", mas também a
E quem é este outro em quem ele deve transformar-se? É o alfabetizado, "abecedário" e a "livro/cartilha", que é interessante observar em termos de
aquele que não só sabe ler e escrever como também sabe que o analfabeto não novas filiações:
sabe. No entanto, este outro sujeito do processo de escolarização ganha visi-
bilidade tão somente na 10' edição (1949) do "Diccionario" de Moraes, do ABECEDÁRIO, s.m. Livro de ensinar o alfabeto, e a combinar as letras.
mesmo modo que o termo "alfabetização":
I
ALFABETIZADO, adj. e pp. (de alfabetizar) Que ABECEDÁRIA, ABECEDÁRIO ABECEDARIA
aprendeu o alfabeto e os primeiros rudimentos de s.f. Planta S, s.m. pl. No, adj.
leitura e escrita. cuja mastigação Sectários Ignorante como
Que recebeu instrução primária. alguns julgam alemães do os
que estimula e século XVI, abecedarianos.
adestra a língua dissidentes do Estupido,
Esta não-presença explícita do outro no dicionário - e em outros tipos de das crianças. protestantismo, imbecil.
discursos já analisados - mostra que as relações enunciativas, na produção de que não
sentido, dão-se a partir do analfabeto, do negativo, do que não-é, pois o indi- aprendiam a ler,
víduo já nasce analfabeto, uma oposição historicamente construída que produz pois segundo
uma diferença, a partir da negação, algo constitutivo e constituinte do proces- criam, o estudo
so de escolarização. O sujeito da escolarização é uma unidade submetida a não deixava
uma divisão que é determinada pela falta: a divisão de um único e mesmo ouvir com a
sujeito por uma barreira invisível - lingüística e política - que se entrelaça devida atenção
com as fronteiras econômicas visíveis que marcam os pontos de acesso aos a voz do
bens e serviços distribuídos pelo Estado. Senhor;
Alfabetização X analfabetismo, alfabetizado X analfabeto constituem, pregavam a
portanto, dicotomias não só hierarquizadas, mas contraditórias, formadas por ignorância
termos de natureza distinta, evidenciada pela estrutura e funcionamento do absoluta como
enunciado, e que mantêm entre si relações ambígüas e conflitivas. Ao me meio principal
tornar alfabetizado devo aprender o alfabeto como também mudar o caráter, de salvação.
preenchendo a falta e eliminando, "erradicando" o analfabetismo. Esta tenta-
tiva de acabar com o mal pela raiz pode, contudo, acabar com o bem ao mesmo
156 157
I
CARTILHA, s.f. Livro elementar de ensinar a ler, nelle
se contem também o catechismo.
No primeiro caso, este movimento se dá entre as categorias de "substan-
tivo" e de "adjetivo", que parecem definidas no "Diccionario", que, excluindo
I
§ Dizemos, isso não está na cartilha: a má parte de a última edição, traz em sua estrutura o "Epitornc da Grammatica Portugueza"
commun, porque não é doutrina, maxima certa, ou já que "a gramática é arte, que ensina a declarar bem nossos pensamentos, por
cousa regular, mas novidade duvidosa, errónea. meio de palavras":
§ Ler por outra cartilha; seguir diverso systema.
§ Ler ou não ler pela mesma cartilha, ser ou não ser
da mesma opinião. NOMES OU ADJECTIVOS
§ Ler pela cartilha de alguém, imitá-lo no pensar, nas SUBSTANTIVOS - Nomes ATIRIBUTIVOS - Estes
palavras ou no proceder. são palavras, com que significão as qualidades
§ Padrão, maneira de ser, modo de viver; uso, costume indicamos as coisas, que existentes em algum objeto,
§ Por ext. Qualquer compêndio elementaríssimo existem por si, v. g. casa, v. g. branco, louro, manso,
de ciência positiva. homem (concretos); ou as leal, amável, quando
qualidades que coexistem com homem,
E seguindo o termo "analfabeto" em outra direção, encontro ainda: representamos como menino, ctc.
existindo sobre si,
ANALFABÉTICO, adj. (de ANALFABETICAMENTE, v. g. alvura, riqueza, doçura,
analfabeto). Diz-se das adv. (de analfabético). À mansidão, etc. estes se
línguas que não têm maneira dos analfabetos: dizem abstratos: significão
alfabeto, como o tupi, o "Considerando que a os atributos separados pelo
quimbundo, etc. pronúncia do Minho era nosso entendimento das coisas, em que estão.
analfabeticamente
selvagem, ... Camilo ..., Maria
da Fonte. Até a 7" edição (1877), o termo "analfabeto" era classificado apenas como
substantivo, na 8" edição de 1890, quando se adota a definição objetiva e
Estes novos caminhos apontam para outros sentidos contidos no campo genérica que ficou, acrescenta-se a categoria de adjetivo: "homem analfa-
de saber da leitura e da escrita que se aliam e se chocam, reforçando ou diluin- beto"; na 9' edição (s/d) retira-se a palavra "também" que antecedia a catego-
do o sentido literal, complexificando e dispersando o sujeito deste processo. ria de adjetivo; na 10", divide-se e inverte-se a entrada do verbete, pois há ver-
Aí, aparece a questão do índio, do negro, do selvagem e das línguas orais, não betes Analfabeto 1 e Analfabeto'Z, sendo o 1 adjetivo e o 2 substantivo, deriva-
transcritas, que é apagado no enunciado de 1890, de forma a conter todas as do de 1. É importante lembrar que nesta última edição, a Gramática já não faz
diferenças e heterogeneidades lingüísticas, econômicas, sociais, e políticas mais parte do corpo "Diccionario".
que marcam a nossa história. No entanto, ao dizer, ao convocar o analfabeto A este movimento, associa-se o do funcionamento sintático do enunciado
todos estes sentidos - e muitos outros mais a eles ligados direta ou indireta- definidor que vai de uma frase simples a uma construção relativa, com apaga-
mente - estão presentes, em sua historicidade, produzindo seus efeitos teóri- mento, do "até" e do "nem":
cos e práticos, mesmo que tenham sido apagados e transformados em um
enunciado de sentido unívoco. Essas diferentes filiações põem em movimen- (I) O ignorante até das Lettras do a,b,c.
to, no jogo da significação, outras dicotomias e sentidos que se acredita e (2) O idiota, ignorante de lettras, que não sabe nem o a,b,c.
creditam como esquecidas e superadas pela civilização e o progresso. (3) Que não conhece as lettras, que não sabe ler nem escrever.
(4) Pessoa que não conhece o alfabeto, que não sabe ler nem escrever
* * *
Estes dois funcionamentos discursivos, o da relação substantivo X adWllvl1
No funcionamento discursivo do verbete ANALFABETO, chamou-me a e o das orações relativas, remete-nos ao problema da determinacão X IlIdlll I
atenção, particularmente, a categorização gramatical a ele atribuída ao longo minação, da visibilidade opaca que a relativa confere ao objetivo qur ('\.1 dlllll
das sucessivas edições, ou melhor, a movimentação desta categorização, bem ta, designa ou refere. Coloca-nos, pois, o problema de substância uu tu ulcu«: di
('(11110 o da construção sintática do enunciado definidor. necessidade ou contingência, a que o "analfabeto" estaria suluuetul«, \I IIIH
15101 I~II
11I11·III.I\~oIos limites do lingüístico e do lógico e atravessa os domínios da
existente no país, pela incompletude e dispersão da linguagem e do sujeito e,
de outro, pejas relações de força, de poder e pelas desiguladades econômico-
I
11111'01111e tia política e, mais uma vez, apontam para outros sentidos e restrições sociais.
IIllpIIS(:I~ ao sujeito que ocupa a posição enunciativa de analfabeto. No enfrentamento destes conflitos e contradições, com vistas a diluí-Ios e
Pessoa que não sabe ler nem escrever: um pasto bem demarcado, apagá-Ios, produzem-se posições enunciativas para um sujeito pressuposto como
tkllll1itado, especificado ... "Pessoa" é um termo suposto para referir o autônomo e livre para decidir o que já está desde sempre rcgrado e regulado pelas
mcxrno, o idêntico, para homogeneizar diferenças e absorver especificidades, . instituições e convenções, que também são parte deste processo de produção do
para conferir universalidade, generalidade, neutral idade ao referente, de conhecimento. Apaga-se, portanto, o fato de que essas posições resultam de
forma a construir a literalidade, contendo a dispersão do sentido e do sujeito. relações de forças em que hegemonias se impõem. E esquece se, ainda, que essas
Mas há pessoas e pessoas, coisa sabida também por Moraes, conforme diz relações entre o sujeito e o objeto também têm sua historicidadc.
em sua 9' edição". Interessante, contudo, que, embora a representação que o anal fabcto tenha
de si seja dada pelo alfabetizado, em uma dicotomia os contrários se engen-
dram, em cada termo há uma produção de sentido dirigida para () outro, pro-
PESSOA, s.f. Criatura humana; ser racional, homem ou duzindo a diferença, ou seja, um termo é condição necessária para a existên-
mulher [...) cia e significação do outro. Assim, há um já-Lá-dito do analfabeto que afeta,
§ Há pessoas e pessoas, isto é, há grande diferença nega, exclui, divide também o sujeito e o sentido do alfabetizado, inscrito na
de uma pessoa para outra; nem todos são o mesmo. memória como condição de possibilidade de funcionamento da estrutura da
escolarização no Brasil, que tem o sujeito que sabe e o sujeito que não sabe
sempre presentes no mesmo indivíduo.
Nem todos são o mesmo ... Se há pessoas e pessoas, a relativa viria para Neste jogo de determinação-indeterminação produz-se o referente,
determinar, no conjunto da sociedade brasileira, os indivíduos a serem identi-
enquanto objeto imaginário, bem como efeito de estabilidade deste referente,
ficados, a serem reconhecidos e se reconhecerem como analfabetos. No entan-
o que nos faz crer na objetividade da linguagem, livrando-nos das ambigüi-
to, a possibilidade de significação está neste jogo de diferenças neste jogo de
dades e multiplicidades de sentidos, da angústia de estar a deriva, sem garan-
ser o que outro não é. A determinação, assim, não apaga a existência dos
tias para um reconhecimento certo e seguro de nós e dos outros, para a gestão
sujeitos aos quais a identificação não se aplica, antes, ao contrário, aponta para
da vida e da sociedade. Ou, ainda, estar correndo o risco de deparar-se com o
a sua existência. Um outro que como já vimos é de natureza distinta e sabe que
sem-sentido que, segundo Clarice Lispector, "é exatamente a assustadora
o analfabeto não sabe. A representação que o analfabeto tem de si é dada pelo
certeza de que ali há sentido, e que não somente eu não alcanço, como não
alfabetizado, por aquilo que não tem - a escrita alfabética - e por aquilo que
não é - leitor e escritor. Trata-se, pois, de uma questão do outro, que exclui quero porque não tenho garantias".
o analfabeto, e que está sempre lá como (pré-) suposto, reconhecendo e apon-
tando a diferença.
Desta forma, um membro da cultura oral entra na cultura escrita da REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
sociedade brasileira do século XIXjá como negado, excluído por um saber em
que, no entanto, vivendo em uma sociedade letrada, está irremediavelmente
metido. Neste sentido, a negação, a exclusão e a homogeneização dão a AUROUX, Silvain. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni
condição de possibilidade de produção de métodos e técnicas de alfabetização Orlandi. Campinas. Editora da Unicamp, 1992.
e de teorias pedagógicas, psicológicas, lingüísticas, sociológicas, dentre ou- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio da
tras, que descrevem e explicam ambigüidades e diferenças de linguagem e de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, l' edição, 14'
aprendizagem, sucessos e fracassos individuais e sociais, e propõem práticas impressão, s/d.
educacionais mais ou menos criativas.
GUIMARÃES, Eduardo. "Os sentidos da República no Brasil". Em Pro
Neste caso, a produção do conhecimento lingüístico - dicionários,
posições, vol. 2, n° 2, FE/Unicamp, agosto de 1991.
gramáticas - jogou e joga uma cartada decisiva no processo de identificação
do sujeito da escolarização. Aí, o indivíduo é inscrito em um sistema de dife- MORAES SILVA, Antônio de. Diccionario de língua portuguesa. 2' (Iac
renças lingüístico-sociais adequado a momentos históricos determinados, simile), 3', 6', 7', 8', 9",10' edições: 1813,1823,1858, 1878, 1890, s/d,
Illas que parece - e pode ser - sempre o mesmo, para dar conta dos confli- 1949.
(os e contradições provocados, de um lado, pela heterogeneidade lingüística
161
lhO
()I~I I\N()I, Eni. As Formas do Silêncio:
'umpinas. Editora da Unicamp, 1992.
no movimento dos sentidos.
I
1'1 \('11 EUX, Michel (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do til
O
ibvio" Trad. E. Orlandi et aI. Campinas: Editora da Unicamp, 1988. u '"o
E=
e ~ "il
o
(1988) O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. E. Orlandi. 0<
~
2
.~ o'" rl
,~ '"
.?; ..ê o
c
o
o
Campinas. Pontes, 1990. ~ ~ à5 > :5
~ Vi 0'<::
:-;:: ~
~
o~
.n .
...t::
§~
•..o
a:l •.•
o
"O ~.=
CI) ~ bD
era '" 8
"O
U
]8
._..,u O)
___ (1982). "Delimitações, inversões, deslocamentos". Trad. J.H. Nunes. ~ o "O~::1: '"O
"O
a:le:, e] o> o 0:;0 .
Em: Cadernos de Estudos Lingüísticas 19. IELlUnicamp, jul-dez,
1990",7-24.
C5
Q ...~
rl '
'" .
~e
"O .-
~a:l
~
.s
o:.:
.- 0"0
]
.-
O)
"O
O)
O' 1<
c,
.<::
Õ
o-
"O
o
Q.)
-ã
.!:l-
F"O.o
a< ~
o
o:s
o ~
~
.-
o
a
~ o '"
cn2 "00
~ c Jr"'....; ug;Z:",o
e.~
O)
SILVA, Mariza Vieira da. "A condição de analfabeto". Mimeo.: 1993. 'o otL: 0)"0
~O •..•bD
~ O I:!l §
E . "O •••
~ .... B.~.§
SODRÉ, Nelson Werneck. (1938) "História da literatura brasileira", Rio de ""
~ .- E
(5 e
C o
o >
~~
~
....;
.<::
E
'" o·~c
:s
eo c: E
O
00)
Tl
E e
~ u ::> o c
iO B
Janeiro. Editora da Civilização Brasileira, 1964. § ~8 >~ ~ s ::> O) o
<a:lO g'" ~ ~lJ.g<~
~
e ]
til
2
.~ .~
« O '"
19 Q:l
... a:l
ts
O ~f;ol
.<:: o
ta "O
O
"O
bD'" O
O !::
..::I ~ o
>
...l ::1:~ ~ '" O) ~
,~
Z til O) ~
"O ~
«e
~ .<:: .<::
O 8 '"~ ...
~ ta
o ~ bDu
~ ~
~ ~ ....;0 .<::
'" C
u-
O)
::1: ::1:
U 'o '"bD> '"O)
o 0< O)
"O
O)
"O
« ""
z til
c-
'E S-
••• O)
'õ "O
.<::'"
O
'5
o
'5
~ !:5 o c O o
oc3 C O
.-
p.. '"
•••• U U
Cj O
~
Q.,
I til
O
u
,8...l ~
.~
O
~ J3
O)
~~
0)"0
0::>
Q.,
til
O
-
8.-
'Orol~
o .-as
C eo
...
~
o-
Q ~E~ ~~O
',p :l ~
"O
til EOQ 'ü o o o
f;ol ~ p..
'o "O ~"O
O)
,5 U '§. ~ 'S-
~ ,g o.g "'0-':::3
c.n ~ .~ '2
~ .~ v ~ ~ se J3 '0
o::>
p ~ b tn ~~§ e '"co
,.." •.• 0)'<::
'" p..ou ..::<u ~ U
01;z: "''''00
r-c ov co c-, N("f')~V)
NNNN
00
'" ~ '" r-
'" '"
-",~r-o
\Q\C \C \C r"--
-o a-
r- r-
- a-
0000
O-r-V1O'\
0'\0\0\0\0\
----
00 00 00 00 00
-
00 00 00 00
-- ---
00 00 00 00 00
I
1(,
.......