Terra À Vista - Análise de Discurso

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1 t.

1 oh, ,1 ,111al isa discursos sobre o


111 ,1\tl cm distintas formas de con-
t.uo entre o europeu e o brasilei-
1 o e entre a sociedade ocidental e
o índio. Procura compreender os
efeitm de sentidos produzidos nes-
~as condições culturais e históricas.
Observando desde o reconhecimen-
to da injunção ao sentido imposto
pelo colonizador até a explosão de
sentidos com seus muitos matizes, Terra à vista
navega no movimento que constitui
discursos como os do conhecimen-
to, da religião, da ficção, do poder,
que produzem e deslocam sentidos
para os brasileiros. Questões teóricas
se impõem: Como do nonsense se
faz o sentido? Como, diante de um
novo mundo, com coisas, seres e pai-
sagens ainda não nomeadas, se vão
constituindo sentidos e sujeitos? No
discurso das descobertas caminha-
se em um processo em que sentidos
chegam e se transformam em outros,
abrindo um vão para a especificidade
de uma história particular, na sua
forma no entanto plural: as histórias
do Brasil. Este livro mostra o que são
o trabalho de arquivo e a prática da
compreensão pelos discursos.
Eni Puccinelli Orlandi

Terra à vista
DISCURSO DO CONFRONTO:
VELHO E NOVO MUNDO


UNIVERSID ADE ESTADUAi DE CAMPINAS

Reitor
JOSÉ TADEU JORGE

Coordenador Geral da Univer,idade


FERNANDO FE RREIRA COSTA

~EDITORfJ
'I MNWI M
Conselho Editorial
Presidente
PAULO FRANCHETTI

ALCIR PÉCORA - ARLEY RAMOS M ORENO


EDUARDO ÜELGADO AssAD - JOSÉ A. R. GoNTIJO
JOSÉ ROBERTO ZAN - M ARCELO KNOBEL
5EDI HIR ANO - YARO 8URIAN JUNIOR
IE D I T O R A 8 8 NMW·M:+)
1
FIC H A C A T A L O G R Á F IC A ELA B O R A D A PE LO

SIST E M A D E BIB LI O T E C A S D A U N IC A M P

D IR ET O R IA D E T R A T A M E N T O D A IN FO R M A Ç Ã O

O r vr O rl a n d i, F. n i P u c c in e ll i , 19 4 2 -

Te rr a à vista - Discurso do confronto: Velho e Novo Mundo / Eni Puccinclli


Orlandi. - 2'cd. - Campinas, sr: Editora da UNICAMP, 2008.

1. Análise do discurso. 2. Linguagem e cultura. }· América - Civilização -


Influência européia. 4. Europa - Civilização - Influênci.a americana.
L Tírnlo.
CDD 401.41 A Angelina,
410 minha mãe.
ISBN 978-85-l68-0748-8 901.9

Índices para catálogo sistemático:

1. An.ilise d o discurso 401. 41

1... Linguagem e cultura 410


}. Amfrica - Civilização - Influênci,1 européia 901.9
4. Europa - Civilizaç,lo - Iníluência americana 901.9

Copyright 1/'l by Eni Puccinellí Orlandi


Copyright (i.) 2008 by Editora d,1 UNICAMP

1,1 edição, Cortez Editora-Editora da UNICAMP. 1990

Nenhuma parte <le,ra public.1ç.io pode ccr gr.w,1d,1, armazenada


cm visrcrru eletrônico, fotocopiada. reproduzida por meio, mecânicos
ou outros quaivquer "em auroriz.rçào prévia do editor.

And whenever rhe way seerncd long


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Rua Caio Graco Prado, 50 - Campus UNICAMP
Or his heart began to fail,
Caixa Povral 6074 - Barão (Ieraldo She would sing a more wonderful song
\f.P, 3083-891. - Campinas - sr - Bra. .. il Or reli a more marvellous tale.
lel./F,1x: (19) 1s21-7718h7l8
www.editor,1.unicJmp.br vcndas@cd iro ra. u n ic.uu p. b r LüNGFELLOW
Sumário

Pré-liminar li

INTRODUÇÃO

O discurso das descobertas

1. Terra à vista! 17
11. Um percurso de sentidos 23

1• PARTE

Em torno do método e do objeto

1. Observações sobre análise de discurso 31


11. Não o outro, mas o diferente ..... 45
111. Civilização e cultura 53
IV. Silêncio e sentido 57

2• PARTE

Os relatos

1. Pátria ou terra: o índio e a identidade nacional 65


11. A dança das gramáticas. 85
III. Reimpressão do singular: um olhar francês
sobre o Brasil
Pré-liminar
115
IV. Domesticação e proteção: o discurso dos padres
na raiz do latifúndio 139

3·' PARTE

Situações

Sobre a língua: algumas palavras 175


I. Os pataxós, sua língua, sua terra 181
II. O sujeito-índio e o seu texto: um mito assurini ... 193
III. Uma retórica do oprimido: o discurso dos
representantes indígenas 233
,, 11111 \,11 a construção deste texto, por volta de 1982, a inten-
CONCLUSÃO ' , 1 1,1 !.1l.1r sobre a retórica de contato entre índios e ocidentais.
Falando a torto e a direito ,,11H1, .uravés da linguagem, eu poderia apreciar o que se passa
1111111 1 1 l l.1~,10 entre seres tão radicalmente diferentes corno o índio
1. Ainda um discurso da descoberta 261 , 111 1dl'11t.1I?

II. Contcudisnto: a perfídia da interpretação 269 l 'l 11,\\ comecei o trabalho e já me vi diante de outra forma desse
III. No vão da voz 275 11 11H1 .iv.unto: os discursos da construção do "outro". E, como
IV. Corpus e corpo do discurso 279 11111 11.il de análise produziu um recorte específico, delimitei o
Bibliografia 283 1111 "m discursos dos missionários sobre o Brasil". ~e não ficou
,1 111111LO tempo nesse lugar, pois a delimitação deu mais um
, " 'o discurso francês sobre o Brasil" (já que os missionários
, 111111,111ce,es e havia também discursos de franceses que não eram
1111 1n11,\1 iov). Nessa altura, fiquei seduzida por outro título: "O
,1 1 , , l 1 .uicê'> sobre o Brasil", pois o "ver" alçou-se em seu sentido
l ,111111.11He. Título que imediatamente me lembrou o parentesco,
11 q 11 l onfuso, entre descobrir e conquistar. Este último, marca-

i,, 111 l.1 1 .l.içáo entre Europa e América, transfigurou-se em: "O
li , 111 ,o d.1 colonização". No entanto, não podia parar aí, pois fui
111 d 111do conta de que a colonização tem muitas formas, entre
1, que n.io são categorizadas sob a rubrica "colonização".
l 1111l' h ivrória, antropologia, literatura e lingüística, o tema
11111 \<lll .1 ~e mostrar como um percurso em linha reta: as formas

11
TERRA À VISTA PRÉ-LIMINAR

colonizadoras do discurso do conhecimento. Descobrir, conquistar, Nessa longa caminhada, outros escreveram sobre algumas das
dar a conhecer. Isso, no interior da perspectiva foucaultiana, não coisas que eu estava observando. Mas não apressei meus passos,
acrescentaria grande coisa ao par saber/ poder, mas, na perspectiva mesmo correndo o risco de não ser a primeira a dizer. Porque não
do discurso em que trabalho, me dizia muito mais: aposto no "conteúdo", no "dado", na "informação", mas na construção
dos sentidos, e este meu texto será sempre este meu texto no seu
a) O apagamento da história pela noção de cultura; modo de significar, com sua contribuição específica.
6) A produção material do que, apagado, torna o nome de ideo- Porém, sempre se corre o risco do engano. E sei menos hoje
logia; o que é que descobri do que acreditava saber no início de meu
c) A intervenção crítica na história da ciência através de um modo trabalho. Para me sustentar com algum peso nessa afirmação,
de observação que propõe um confronto entre o discurso da lembro Fellini, que, falando de um seu novo filme (A voz da lua,
descoberta (de lá para cá) e o da origem (daqui para cá); inspirado no título de um livro que se chama A voz do poço), disse
d) Finalmente, a viagem como descoberta, a viagem como posse, a um repórter, como resposta, sobre "o que" era seu filme: "Não
a viagem corno administração, a viagem como missão, a viagem sei". O repórter insistiu: "Mas o senhor não terminou o filme?".
co 1~0 diário íntimo, a viagem como possível, a viagem como Ele respondeu, não exatamente com estas minhas palavras:
tunsmo.
Terminei. Mas não sei sobre "o que" é. Não sei "o que" significa. Ele
Na relação de contato entre culturas diferentes, entre conti- tem algo a ver com outros filmes que fiz e que lembram minha infância.
nentes diferentes e com diferentes histórias, não deixou de ser 0 Filmes em que uso grandes espaços, árvores, e que vão construindo sentidos
centro de minhas atenções a questão crucial da linguagem. E, por corno transparências sobre transparências.
um certo tempo, estive convencida de que o mais importante da
minha pesquisa, aquilo que me interessava fundamentalmente, ~er dizer, as transparências não fazem ver melhor, não de-
era o estabelecimento e a circulação de formas de discurso (polí- finem com maior precisão. Elas complicam, con-fundem. Dão
tico, científico, literário e religioso) na Europa, em sua relação espessura.
com a América (sobretudo o Brasil). Dito de forma mais breve e A cada vez que releio meu texto, vejo outros sentidos que já
direta: como a descoberta do Novo Mundo refletiu na retórica estão, ou poderiam estar, aí mais desenvolvidos ou trazidos à tona
européia, isto é, na própria configuração das suas formas de dis- com mais convicção. Mas deixo o texto um tanto transparente.
curso? O objetivo seria, então, compreender a formação de mo- Porque eu mesma não sei todas as conseqüências de falar, ou de
delos discursivos e as práticas ideológicas produzidas no confron- compreender, isso que foi meu objeto de atenção e de reflexão
to da ciência, da religião, do direito e da política (sobretudo nessa pesquisa: algumas das falas ou algumas situações de fala da
social). nossa história passada e presente.
Mas, para não ficar no passado, puxei para mais perto a relação Mas sei que é ao conceito de discurso e à curiosidade de en-
entre ser índio e ser brasileiro: os discursos das lideranças indíge- tender o que se aloja na noção desgastada e malcompreendida da
nas refletindo a relação do contato, o imaginário de urna língua ideologia que devo esta minha escrita.
nossa apagando a nossa língua mais real, os limites confusos entre É assim que eu gostaria de saber lido este meu trabalho: senti-
o índio e o brasileiro. dos que chegam com a mesma incerteza do viajante que acaba por

12 13
TER R A À VISTA

dizer sobretudo o que não sabe sobre aquilo que, desconhecido,


veio a conhecer. E que está sempre mais além. Como está sempre
mais além o sentido profundo do que imaginamos ser o que cha-
mamos Brasil.

A Autora
Campinas, fevereiro de 1990

INTRODUÇÃO

O discurso das descobertas

14
I. Terra à vista!

Esse é o enunciado inaugural do Brasil. Repetido ritualisticamente


a cada vez que navios encontram onde aportar, não se trata de uma
fala original. É chapa cristalizada, estereotipada. Comentário de
aventureiros. Fala de piratas. De descobridores: o discurso das
descobertas. Des-cobrimento.
Se nos aproximamos mais desse enunciado podemos ainda
especificar que é uma exclamação. De que natureza seria: de júbilo,
de surpresa, de alívio, de apreensão, de curiosidade?
De todo modo, por significar porto, ele pode indicar, de um lado
(daquele dos que ancoram), a chegada (porto seguro) e, de outro
(o dos que aqui estão), entrada (invasão). Promessa ou ameaça?
Visitantes ou invasores? Terra a servir de berço esplêndido? A ser
pilhada? De quem, essa terra?
À vista.
"Ver" tem um sentido bem específico nesse contexto: o que
é visto ganha estatuto de existência. Ver, tornar visível, é forma
de apropriação. O que o olhar abarca é o que se torna ao alcance
Gentes da Europa: nunca vos trouxera
O mar e o vento a nós. Ah! não debalde
das mãos. O visível ( o descoberto) é o preâmbulo do legível: co-
Estendeu entre nós a natureza nhecido, relatado, codificado. Primeiro passo para que se assente
Todo esse plano espaço imenso de águas ... .1 sua posse. A submissão às letras começa e termina no olhar. O

BASÍLIO DA GAMA discurso das descobertas dá notícias do que vê. Considerando, dizia

17
TERRA À VISTA TERRA À VISTA!

·1 hcvct ( 1567) em seu relato, "a minha longa e penosa peregrinação, de que os acontecimentos históricos não o são por si, mas porque
realizada com o desígnio de ver. ..". reclamam um sentido.
Podemos assim concluir que "Terra à vista" - a primeira fala Nossa análise incide basicamente sobre os relatos dos capuchi-
sobre o Brasil - expressa o olhar inaugural que atesta nas letras a nhos franceses, e a primeira coisa a se notar, em termos de história,
nossa origem. Pero Vaz de Caminha dará o próximo passo lavrando ~ .1 inscrição dos discursos dos capuchinhos no registro ~o discurso

nossa certidão, com sua Carta. Ao mesmo tempo, para os euro- d.is descobertas. Mesmo as traduções para o portugues se fazem
peus, essa exclamação diz o início de um processo de apropriação. no registro desse discurso. Assim, ele não pertence ao discurso da
Descoberta significa, então, conquista. história mas ao da etnologia:
Mas pode significar muitas outras coisas. De qualquer modo,
o discurso das descobertas é um discurso que domina a nossa [ ... ] tomei a resolução de descrever os factos ou coisas mais notáv~is
existência como brasileiros, quer dizer, ele se estende ao longo de que cuidadosamente observei em minha viagem [ ... ] localização e dis-
toda a nossa história, produzindo e absorvendo sentidos. . - d os l ugares [ ... ] reinperatura, do ar , costumes e maneiras de viver
po,1çao
Há urna cumplicidade do discurso das descobertas com o cien- do, habitantes[ ... ] (A. Thever, 1557)
tífico que lhe dá um modo de existência ideológico, que vai assim
resultar em um "fechamento": descobrir é dizer o conhecido. A história se faz assim com um imaginário que, nesse caso, o
Os discursos estabelecem uma história. A história, em nossa dos relatos, os inscreve no discurso das descobertas que, por sua
perspectiva discursiva, não se define pela cronologia, nem por seus vez, é O discurso que "dá a conhecer o Novo Mundo".
acidentes, nem é tampouco evolução, mas produção de sentidos O princípio calvez mais force de constituição do discurso co~
(Paul Henry, 1985). Ela é algo da ordem do discurso. Não há lonial, que é O produto mais eficaz do discurso das descobe1:tas, e
história sem discurso. É aliás pelo discurso que a história não é só reconhecer apenas O cultural e des-conhecer (apagar) o histórico,
evolução mas sentido, ou melhor, é pelo discurso que não se está
0 político. Os efeitos de sentido que até hoje '.1os ~u~metem ao
só na evolução mas na história.
"espírito" de colônia são os que nos negam h1~to,nc1dade e nos
O discurso das descobertas institui uma modalidade para o .lpontam como seres-culturais (singulares), a-históricos. _
estabelecimento e a existência da nossa história, dos nossos senti- De nossa parte, queremos pensar a singularidade e a pluralidade
dos. Esse modo tem de específico o apresentar-se justamente sob n io no domínio da cultura, mas da história.
a forma do discurso etnológico.
É a partir desse fato de linguagem (apagamento de sentido~ pela
Este nosso trabalho representa um esforço de intervir no modo sobreposiçâo de um discurso a outro) que resolvi embarcar, nao no
pelo qual a institucionalização dessa forma de discurso científico
c.uninho das Índias, mas no da desconstrução de um certo olhar
torna o lugar do discurso histórico, produzindo o brasileiro como
que não nos dá outro direito senão o de termos particularidades,
um sujeito-cultural e negando-lhe o estatuto de sujeito-his-
,ingularidades, peculiaridades culturais. Procuro saber alguma outra
tórico.
forma de nossa história. Des-cobrir sentidos. Não nos embala, no
A prática ideológica do discurso das descobertas é tal que a
entanto, a ilusão de "recuperar" a nossa história "verdadeira". Assim
instituição se apropria desse discurso e, despossuindo dele o antro-
corno sabemos que, como diz Pêcheux (1984):
pólogo, folcloriza-o ao mesmo tempo em que elide - elidindo a
materialidade histórica sob o pretexto da cientificidade - o fato

18 19
TERRA À VISTA TERRA À VISTA!

1 ... J l'an:ilysc de discours ne prétend pas s'instituer en spécialiste de essas práticas de linguagem, as relações de colonização .aparecem
l'inrerprérarion mairrisant "!e" sens des texres, mais seulernenr construire não em seu lugar próprio, mas sim como reflexo md1re~o. Isso
dcs procédures exposant le regard-lecreur à des niveaux opaques à l'action
.icontece sempre que um discurso se faz passar por outro d1~curso.
srratégique d'un sujet [ ... ]. Lcnjeu crucial esr de construire des inrerprétations
Nesse caso, apaga-se O discurso histórico e produz-se um discurso
sans jamais les neutraliser ni dans le "nimporre quoi" d'un discours sur !e
discours, ni dans un espace logique srabilisé à prétention universelle.
sobre a cultura. Como efeito desse apagamento, a cultura resulta
cm "exotismo". Paralelamente, apagam-se as razões políticas, que
Por isso, distinguimos interpretação e compreensão. Não ~c apresentam então como um discurso moral, de apreciação: o
perseguimos "um" sentido para a nossa história. A proposta é brasileiro é julgado por suas "qualidades"; ele aparece como s~per-
"compreender" os processos de significação, ou seja, o que ficou ficial e, lógico, alegre, folgazão, indolente e sensual. Tambem. se
atestado ao longo da produção de linguagem sobre o Brasil. diz que ele é dotado de inteligência que, infelizmente, desperdiça
Não pretendemos tampouco definir o brasileiro. O que visamos é ~cm objetividade (razão). . .
observar como o discurso que define o brasileiro constitui processos Concluir que esses ditos são clichês é banal. Mais mteressante
de significação, produzindo o imaginário pelo qual se rege a nossa é procurar compreender como se produzem esses sentidos que se
sociedade. Ou, dito de outra forma, procuramos compreender dão por evidentes e definidos.
os processos discursivos que vão provendo o brasileiro de uma
definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginário
da sociedade brasileira.
Em suma, analisamos as falas que definem o brasileiro e que
constituem o nosso imaginário social.
Não se trata, pois, de falar da "identidade", mas antes do ima-
ginário que se constrói para a significação do brasileiro. Qual é a
concepção de brasileiro desses textos e como essa concepção vai
trabalhando tanto a exclusão como a fixação de certos sentidos ( e
não outros) para o brasileiro? Como resultado, tem-se efeitos de
sentidos que nos colocam uma marca de nascença que funcionará ao
longo de roda a nossa história: o discurso colonial. É esse processo
que faz com que o "ter sido colonizado" deixe de ser uma marca
histórica para significar urna essência. Uma vez colono ...
A ideologia tem, pois, uma materialidade, e o discurso é o lugar
em que se pode ter acesso a essa materialidade. Conhecer o seu
funcionamento é saber que o discurso colonial continua produzindo
os seus sentidos, desde que se apresentem as condições.
E um dos seus efeitos - que não é o menor - é o que chamo
a "perversidade do político". Isto é, no imaginário construído por

20 21
II. Um percurso de sentidos

Corno impulso, a análise de discurso e o desejo de virar o Atlântico


na direção inversa das descobertas. Corno objeto de reflexão, os
capuchinhos e viajantes franceses que vieram ao Brasil nos séculos
XVI, XVII e XVIII. Como questão de método, a possibilidade
de deslocar o estatuto dos textos que historicamente foram cate-
gorizados corno "documentos" aqui tomados como discurso: lugar
de significação, de confronto de sentidos, de estabelecimento de
identidades, de argumentação etc. Corno uma das finalidades, sair
do já nomeado, do interpretado e procurar entender esses textos
como discursos que produziram e produzem efeitos de sentidos
.i serem compreendidos nas condições em que apareceram e nas

de hoje.
Não se trata, no entanto, de, a partir da história da época, ler
esses textos como a sua ilustração e acrescentar detalhes ou peri-
pécias. O que procuro atingir é a historicidade mesma dos textos.
Lembrando que a história, para quem analisa discursos, não são
os textos em si, mas a discursividade. Para atingir a historicidade
dos textos assim concebida, o procedimento será o de seguir a
trama discursiva que tem estabelecido sentidos para o encontro
do europeu com o índio, do europeu com o Brasil das des-
cobertas.

23
TERRA À VISTA UM PERCURSO DE SENTIDOS

~e história nos é contada e com a qual nos identificamos Nem índios, nem europeus, somos produzidos por uma fala que
enquanto brasileiros? ~e silêncios nos acompanham ao longo não tem um lugar, mas muitos. E "muitos" aqui é igual a "nenhum".
dessa história? Desse lugar vazio fazemos falar as outras vozes que nos dão urna
Quais são os modos de constituição e funcionamento dessa identidade. As vozes que nos definem. Europeu falando de índio
historicidade que podem ser apreendidos (lidos) quando anali- produz brasilidade. Nós, falando do que os europeus dizem de suas
samos sua construção nos processos discursivos? descobertas, falamos o discurso da nossa origem.
Como o silêncio divide, significativamente, 0 que se conta e Fazemos falar os outros. O brasileiro se cria pelo fato de fazer
o qu_e_ não se conta, produzindo assim uma configuração para a folarem os outros. E não é por assimilação' mas, ao contrário, pela
brasilidade? Esta é, aliás, uma das formas eficazes da prática da distância, pela instauração de um espaço de diferença, de separação,
violência simbólica, no confronto das relações de força, no jogo que construímos nosso lugar mais "próprio". Não temos o lugar do
de poder que sustenta efeitos de sentido: o silenciamento que a centro preenchido, em um movimento de assimilações. Em nosso
acompanha. imaginário, não nos identificamos com o índio, mas também não
Procuramos entender, nesses discursos, como o sentido trabalha reivindicamos o português como igual.
as suas muitas ( ou seriam afinal poucas?) direções. Somos urna mistura, já disseram muitos. Mas urna mistura in-
Mais fácil então dizer que o fio condutor dessa reflexão sobre definida. Uma mistura que se diz menos por colocar junto "coisas"
o discurso das descobertas é o discurso sobre o índio, ou, enfim, 0 diferentes e mais pelo fato de que há trânsito entre as diferenças.
discurso sobre o Brasil. Trânsito. Circulação entre os lugares. Movimento. Entre uns e
Isso resulta em pelo menos uma divisão sensível e significativa outros. Diferenças que não remetem senão à diferença. Nada de
que procuramos compreender: cópia, ou de modelo. Delineamentos que se movem continuamente.
Perfis moventes.
a) Como os europeus, em contato com o Novo Mundo, vão co- Aí está talvez um possível esteio dessa reflexão. No que diz
dificando esse conhecimento para si mesmos ao mesmo tempo Oeleuze (1974) da diferença entre cópia e simulacro. A cópia se-
em que padronizam uma forma de conhecimento "modelar" ria a imagem dotada de semelhança e o simulacro, a imagem sem
sobre o Brasil; semelhança. Isso se referirmos ao "modelo". O que, formulado,
fica assim: "os simulacros teriam de moralmente condenável o
b) Como nós temos aí um discurso sobre a nossa origem: a consti-
estado das diferenças livres oceânicas, das distribuições nômades,
tuição da brasilidade e suas conseqüências, ou seja, como vamos
das anarquias coroadas, toda essa malignidade que contesta tanto
formando - significando - esse jeito de ser brasileiro.
.1 noção de modelo como a de cópia" (Oeleuze, idem).

Essa pode ser a metáfora que nos diz a relação do brasileiro e


Discurso das descobertas, discurso das conquistas ou discurso
do europeu: somos a imagem rebelde sem semelhança interna.
da dominação.
Se pensamos a análise de discurso (AD), esta também pende -
Procuramos nos conhecer conhecendo como a Europa conhece
enquanto forma de conceber a linguagem - para a diferença sem
o Brasil. E no discurso das descobertas não encontramos senão
modos de tomar posse. O móvel primeiro dessa nossa reflexão foi
uma questão simples: "E nós, brasileiros?". Um exemplo: a idenr idadc do- fr.mccses, no nacionalismo. se faz por .issimilaç ào .10~
gauleses, me dizi.. O. Ducror 11,1 MSH, confirm,rndo .1 direçào de minh.rs reAcxôcs.

24 25
TERRA À VISTA UM PERCURSO DE SENTIDOS

fundo, considerando o sentido como errância, dispersão sem punhada pelo dominado - nesse embate forte: de um lado, os
origem, sobre a qual pudesse assentar-se no domínio da represen- europeus procuram absorver as diferenças, projetando-nos como
tação. Os sentidos, para a análise de discurso, erram, no duplo cópias em seus imaginários, cópias malfeitas a sere'.11_ passa~as a
sentido, porque não representam modelarmente e porque se mo- limpo; enquanto, do outro lado, assumindo a condição de simu-
vimentam, circulam. Em uma palavra: desorganizam. E também lacros - imagens rebeldes e avessas a qualquer representação-,
a desordem é constitutiva da identidade do sujeito e do sentido. os brasileiros às vezes aderem, às vezes não, ao discurso das cópias.
As duas fórmulas (Deleuze, apud L. Orlandi, 1989) "só o que De rodo modo, é com esse discurso que têm de lidar, às vezes in-
parece difere" e "só as diferenças se assemelham", segundo o autor, corporando-o, outras explodindo-o pela radicalização dos seus
devem ser referidas, a primeira, como a fórmula do "mundo das efeitos: sendo mais europeu do que o europeu. Na questão da
cópias ou das representações" ( o mundo aí vira ícone), a segunda, identidade, já vimos (cf. aqui mesmo, p. 224), a semelhança para
reverso da primeira, é precisamente a fórmula do "mundo dos mais é tão corrosiva quanto a semelhança para menos. Isso quer
simulacros, sendo que o mundo nesse caso vem a ser fantasma". dizer que o excesso de semelhança também é ruptura. Esse jogo
Ainda segundo esse autor, elas representam distintas "leituras de complicado mostra, além disso, um direito e um avesso. Do lado
mundo": a primeira pensa a diferença a partir de uma identidade de lá, 0 europeu, do de cá, o brasileiro: à retórica da indiferença,
preliminar (e é assim que, a meu ver, funciona a lingüística: os do desconhecimento, operada pelo europeu (que assim constrói
sentidos derivados têm uma origem comum, uma unidade ini- a nossa in-significância), responde a retórica da antropofagia, que
cial); a segunda pensa a similitude e mesmo a identidade a partir devora O europeu ao parecer lhe dar excessiva importância.
de urna disparidade de fundo. Segundo L. Orlandi (idem), nesse Parafraseando L. Orlandi (1989), eu diria, agora a propósito
fundo" [ ... ] a unidade de medida e de comunicação [ ... ] é o díspar, da nossa condição histórica: o que se passa com os simulacros (os
o diferenciante eminentemente apropriado a essa profundidade brasileiros), essas "imagens rebeldes e sem semelhança"?
ocupada por uma disparidade constituinte" (Lógica do sentido, Como simulacros eles vão permanecer dóceis a urna linguagem
Deleuze, p. 267, apud L. Orlandi, 1989 ). Aí podemos ver o discurso que os dispersou corno imagens a que falta semelhança inten~a? En~
e sua concepção de sentido e de sujeito, ambos sem origem. E é daí nosso caso, consideramos que aí se abre a possibilidade de um outro
que "olhamos" a relação entre a Europa e o Brasil da descoberta: a discurso, que, em nossa reflexão, procuramos compreender.
disparidade de fundo, os fantasmas, presidindo as relações. E aqui vale a observação: os sentid~s vistos nesse jogo de simu-
O nosso fato - o olhar europeu sobre o Brasil - tem a lacros são, corno dissemos, erráticos. E nesse vaguear pelo tempo
disparidade como constitutiva e o nosso método - o da análise e pelo espaço do sentido de ser-brasileiro que vamos procurar
de discurso - pensa o sentido ( e o sujeito) corno não-transparen- apreender nos textos que tomamos como material significante.
te, como movimento, como historicidade. Ou melhor, considera, Sem deixar de lembrar que, em um discurso que não nasce no
tal como o dispõe a teoria do discurso, a determinação histórica interior da colonização, a relação entre diferentes pode ser vista só
dos processos de significação. Determinação essa que, considerando corno uma relação entre diferentes e não corno uma relação entre o
a relação Europa/Brasil, coloca-nos de forma particular frente à diferente e O original. Original que faria intervir, em conseqüência,
questão dos simulacros. a idéia de cópia e de imitação.
E, se já podemos adiantar alguma coisa, é que haverá uma Entre O espontaneísmo das "lembranças" - ilusão da não-deter-
grande margem de silêncio - produzida pelo dominador e em- minação histórica dos "acontecimentos" - e o curso petrificado

26 27
TER RA À VISTA

da memória estabelecido por essas falas eternalizadas, a análise


de discurso - que se propõe uma relação conflituosa com os
sentidos - procura desatar os sentidos contidos. É aí que incide
nossa prática e é assim que entendemos a historicidade do texto,
sua discursividade.

lª PARTE

Em torno do método e do objeto

28
I. Observações sobre
análise de discurso

A língua adâmica, fala sem memória e solitária, é o mito


mais tenaz da Lingüística. De fato, um texto, escrito ou
oral, nunca tem uma inicial absoluta.
P. SÉRIOT, "La bngue de bois et son double"

A análise de discurso visa construir um método de compreensão


dos objetos de linguagem. Para isso, não trabalha com a lingua-
gem enquanto dado, mas como fato. Ela tem sua origem ligada
,10 político ou, melhor dizendo, como afirma Courtine (1986), a
análise de discurso procura "compreender as formas textuais de
representação do político".
Mais do que isso, ela acaba por inaugurar uma nova percepção
do político, pela convivência com a materialidade da linguagem,
materialidade essa ao mesmo tempo lingüística e histórica. Em con-
sequência, ela desloca tanto o que se considera como "lingüístico"
como aquilo que se entende como "político" e como "histórico".
E, para levar em conta essa complexidade do fato-linguagem, a
análise de discurso se constrói um lugar particular entre a disciplina
1 ingüística e as ciências das formações sociais.
A análise de discurso se concebe como um "dispositivo que
coloca em relação, sob uma forma mais complexa do que a de uma
<imples co-variaçâo, o campo da língua (suscetível de ser estudado
pela lingüística) e o campo da sociedade apreendida pela história
( nos termos de relações de força e de dominação ideológica)"
( (;adet, 1989 ). Essa concepção da análise de discurso encontra eco
no fato de que o discursivo materializa o contato entre o ideológico
e o lingüístico.

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OBSERVAÇÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO
TERRA À VISTA

conta, os "ismos" (psicologismo, sociologismo etc.) e as ciências


Na origem da análise de discurso francesa, tal como é pensada
sociais porque se iludem com a "instrumentalidade" das ciências
por M. Pêcheux, seu fundador, está a relação da linguagem com
da linguagem.
a ideologia. De forma particular, esse autor trata da relação entre
A lingüística, na vaga do estruturalismo, colocou-se como ciência
a "evidência subjetiva" e a "evidência do sentido", colocando o
piloto das ciências humanas. Como retorno, foram-lhe colocadas
discurso no lugar particular em que se articulam a linguagem e a
questões que se originam nessa sua relação com as outras ciências.
ideologia. No entanto, diz Pêcheux ( 1969 ), a teoria do discurso
No entanto, elas ficaram sem resposta, pois, para se constituir
não pode, de forma alguma, substituir uma teoria da ideologia, não
nesse seu lugar, a lingüística teve, justamente, de se livrar disso que
mais que uma teoria do inconsciente ( embora suponha um sujeito
interessa mais de perto às outras ciências humanas e sociais, e que
afetado pela ideologia e pelo inconsciente), mas pode intervir no
diz respeito à relação da linguagem com a exterioridade.
campo dessas teorias.
Por seu lado, essas ciências têm como instrumento de trabalho
A análise de discurso contradiz as concepções de ideologia tal
com a linguagem a análise de conteúdo, que não é um instrumen-
como esta é tratada, pois, ao ser crítica à forma de constituição
t_o adequado - nem de descoberta, nem heurístico -, pois não
das ciências sociais, produz um deslocamento quanto às teorias
faz senão ilustrar o que já está dito anteriormente, mediante as
sociais da ideologia. Assim, se, de um lado, na análise de discurso,
categorizações já estabelecidas pelas próprias ciências: opera uma
a lingüística ocupa um lugar crítico, também as ciências sociais
simples ilustração do seu ponto de vista.
são questionadas: a análise de discurso mostra que o sujeito e
A análise de discurso constitui-se nesse intervalo, entre a lin-
a significação não são transparentes e aponta para uma relação
güística e essas outras ciências, justamente na região das questões
problemática das ciências sociais com o político, na medida em
que dizem respeito à relação da linguagem ( objeto lingüístico)
que estas supõem essa transparência da linguagem.
com a sua exterioridade (objeto histórico).
Ela recorre, de um lado, à lingüística (à materialidade da língua)
Definindo-se como uma semântica, a análise de discurso
e, de outro, à ciência das formações sociais mas, paradoxalmente,
pressupõe a lingüística e, nessa medida, distancia-se da análise de
ao pressupô-las na sua constituição - afinal, a teoria do discurso
conteúdo, pois trabalha a especificidade mesma da materialidade
partilha o campo epistemológico de sua formação com a lingüística
lingüística. No entanto, também se distancia desta na medida
e com a(s) teoria(s) da ideologia - critica seus fundamentos, já
em que considera como constitutiva do seu objeto ( o discurso) a
que não se deixa usar como instrumento neutro (seu uso supõe
determinação histórica. Isso significaria responder adequadamente
uma mudança de terreno e uma desconstrução de conceitos de
:\s questões das ciências sociais e colocar-se, pois, a serviço ( como
base para ambas) e nem se coloca como se o que é próprio ao
instrumento) delas?
discurso viesse depois, como algo secundário e acrescentado (ou
Estranho destino esse da análise de discurso, que dá bem adi-
excrescente) ao que é lingüístico.
mensâo do seu cisionismo e de toda a sua errância: ao se constituir,
Mostrando que a semântica é o "ponto em que a lingüística
ela muda de terreno e, ao mesmo tempo em que coloca questões
tem a ver com a filosofia e as ciências das formações sociais,
para a lingüística, no próprio interior da lingüística, também coloca
freqüentemente sem o reconhecer", Pêcheux (1975) explicita o
problemas para as ciências sociais no seu interior, ou melhor, acerca
lugar do qual a análise de discurso considera criticamente tanto
dos fundamentos que as ciências sociais se constroem para se cons-
a lingüística quanto as ciências sociais. A lingüística, porque não
tituírem. A análise de discurso problematiza fundamentalmente,
pode se formar senão produzindo, no resíduo do que não pode dar

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OBSERVAÇÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO
TERRA À VISTA

isso que Pêcheux diz quando afirma que "a linguagem serve para
para as ciências humanas e sociais, a natureza da concepção de
comunicar e para não comunicar" (1975).
sujeito e de linguagem sobre as quais essas ciências se organizam.
Assim é que a própria noção de ideologia é outra na análise de
Nesse ponto, a crítica de Pêcheux, diz P. Henry (1990 ), ao modo de
discurso. A noção de história é outra. A noção de sujeito é outra.
servir-se dos instrumentos nas ciências sociais se confunde com sua
Porque só se define pelo seu caráter eminentemente constituído pelo
crítica às ciências sociais em si mesmas, na crítica que diz respeito
outro termo do sintagma de que participa, ou seja, da linguagem. A
à sua ligação com o político (o ideológico, o histórico etc.).
relação sintomática é a que existe entre o sujeito da linguagem e o
Pêcheux, sob o pseudônimo de T. Hebert (1973), faz uma análise
sujeito da ideologia. Se a linguagem aparece nesse quadro teórico
das raízes históricas da epistemologia e da filosofia do conhecimento
como a materialidade específica do discurso, este, por sua vez, se
empírico. Segundo ele, as ciências sociais se desenvolveram prin-
define como materialidade específica da ideologia.
cipalmente nas sociedades em que, de modo dominante, a prática
Não é, pois, de urna "simples aplicação" que se trata, ou do
política teve como objetivo transformar as relações sociais no seio
uso de um instrumento para dar maior cientificidade à ciência
da prática social, de tal modo que a estrutura global desta última
das formações sociais. Esse é um "instrumento" que, ao ser usado,
se conservasse. As ciências sociais estão, assim, no prolongamento
transforma tanto o ponto de partida ( os conceitos e pressupostos
direto da ideologia que as desenvolveu no contato estreito com
teóricos) quanto o de chegada (as conseqüências analíticas). Não é
a prática política. Uma outra forma, mais atual, de se observar
um instrumento "neutro" e não o é pelo reconhecimento da espessum
e de dizer isso, em conseqüência dessas concepções formuladas
semântica da própria linguagem. A historicidade - voltaremos
no interior das ciências sociais, são os discursos que propagam o
a isso freqüentes vezes - é a historicidade do texto, ou seja, sua
fim do político, a morte das ideologias, o que renova na ciência
discursividade (sua determinação histórica), que não é mero reflexo
o trunfo do positivismo. E o que o discurso tem a ver com isso?
do fora, mas se constitui já na própria tessitura da materialidade
Tudo, justamente, pois para Pêcheux o instrumento da prática
lingüística. Trata-se, por sua vez, de pensar a materialidade do
política é o discurso, ou seja, "a prática política tem como função,
sentido e do sujeito, seus modos de constituição histórica.
pelo discurso, transformar as relações sociais reformulando a
Não é, no entanto, tão simples assim.
demanda social".
Porque a teoria do discurso tem como base urna teoria não-
Por isso, Pêcheux, querendo
subjetiva da leitura (Pêcheux, 1969 ). Essa teoria não-subjetiva

[ ... ] provocar uma ruptura no campo ideológico das ciências sociais, representa urna relação específica, isto é, urna relação crítica da
escolhe o discurso e ;i análise do discurso como lugar preciso onde é possível análise de discurso com a lingüística. Nessa relação crítica, a análise
intervir teoricamente (teoria do discurso) e praticamente, construindo de discurso inclui - como não o faz a lingüística - o sujeito, ao
um dispositivo experimental (P. Henry, 1990). mesmo tempo em que odes-centra, isto é, não o considera fonte
e responsável do sentido que produz, embora o considere como
O modo de romper, pois, com a forma corno as ciências usam parte desse processo de produção. Tampouco o sentido se apresenta
seus instrumentos de análise está na própria concepção discursiva corno transparente (Orlandi, 1987).
de linguagem, que não a coloca como instrumento de comunica- Como diz P. Henry (1985):
ção de significações que existiriam e que seriam definidas inde-
pendentemente da linguagem (ou seja: corno "informações"). E é

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TERRA À VISTA
OBSERVAÇÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO

[ ... ] não há fato ou acontecimento histórico que não faça sentido,


que não espere interpretação, que não peça que se lhe encontrem causas e a) políticas: entre as diferentes "esquerdas" (anos 60-70 );
conseqüências. É isso que constitui, para nós, a história: essefazer sentido, b) na relação direta dos intelectuais com a política;
mesmo que se possa divergir desse sentido em cada caso. c) entre a prática política e o trabalho teórico.

Essa concepção de história inerente à análise de discurso ultra- É o que diz Courtine (1986), acrescentando que, no início, a
passou em muito a de cronologia (diacronia etc.) e a de uso (prag- análise de discurso estava ligada ao desenvolvimento do pensamento
mática). E a linguagem é sentido e a históriafaz sentido. O ponto crítico, então identificado ao marxismo e fazendo da lingüística
nodal é a semântica (Pêcheux, 1975), que, se como diz P. Henry, é uma referência metodológica essencial na análise de textos. Visto
uma questão aberta, pois é uma questão filosófica, também é uma que aparece como tentativa de apreender as formas textuais do
questão que coloca o analista da linguagem no domínio da ética e político, ela certamente sofrerá conseqüências desde o momento
da política. em que se trata de viver, como é o caso, os "efeitos do desejo de
Assim, a questão do histórico liga-se à da linguagem, à do su- que não exista mais o político" ( Courtine, idem).
jeito e à da ciência, em nosso caso, as ciências humanas e sociais. Essa questão é ainda mais relevante numa área de reflexão em
Por outro lado, pensando a questão da produção de sentidos em que a "objetividade" do conhecimento sempre expulsou o político
relação ao domínio da ética e da política, podemos aí inscrever a de suas proximidades: a área da lingüística, que nem sequer admitiu
questão da análise de discurso para a América Latina. Basta-nos a contradição, ou a dialética e, no seu cientificisrno, passa direto
lembrar que a produção de conhecimento da América Latina do racionalismo para o positivismo.
sobre a América Latina pode adquirir uma forma crítica de modo Os signos do refluxo do político são muitos. Interessam-nos os
a não ser mera reprodução do olhar europeu ou norte-americano da academia: o silêncio dos intelectuais, a indiferença, o voltar-se
e assim por diante. Na prática, isso significaria reproduzir apenas para si mesmo, a renovação do individualismo, que se desdobra em
os modelos e teorias, preenchendo-os com dados "específicos" um espaço considerado politicamente vazio. O "fim" do político
para engordar os paradigmas já definidos lá fora. Ao contrário, marca a "emergência" de um duplo esquecimento: "o recobrimento
essa outra forma de conhecimento de que estamos falando pode, da relação de dominação política e o esquecimento do movimento
entre outras coisas, contribuir, em seu modo, para o conjunto de do pensamento que se extenuou na análise da dominação política
reflexões que compõem a história das ciências. e não tratou de outras" (Courtine, ihid.).
Assim, podemos dizer que, nesse processo discursivo que ana- Essa vontade de esquecimento toma, na política, a forma do
lisamos, há uma equivalência entre o "corno o brasileiro é dito" e "pragmatismo", esse "reflexo de urna sociedade que não tem mais
a "prática de um conhecimento", ou, dito de maneira mais direta, tempo de se lembrar e de meditar" (Horkheirner, apud Courtine,
o "como o brasileiro é dito" importa e determina a prática de um ibid.).
conhecimento. ~e forma toma essa vontade nas ciências humanas?
Voltemos, pois, às considerações sobre o discursivo.
A análise de discurso já tem sua história marcada por uma - O valor operacional, prático, instrumental apaga seu valor
certa unidade que conjuga, no entanto, muitas diferenças. Seu crítico;
desenvolvimento é marcado por rupturas: - A observação suplanta os saberes gerais;
- O fato desqualifica a interpretação;

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TEHRA À VISTA OBSERVAÇÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO

- O especialista se alça frente ao intelectual; transformação parcial do colonialismo clássico em neocolonialis-


- Os pesquisadores se afastam das alturas das idéias e reencontram mo trouxe a questão política da distância científico-técnica a ser
o solo firme das coisas e os rigores do cálculo. absorvida. Nesse quadro se colocam as questões sociolingüísticas
do multilingüismo e da estandardização das línguas nacionais.
Em suma, o desejo de que não haja mais o político, diz Courtine O outro fenômeno é o desenvolvimento das contradições nas
(iúidon), se "encarna em uma razão disciplinar e instrumental: a instituições escolares dos países mais desenvolvidos, com dife-
renovação do positivismo". Isso fez com que a análise de discurso rentes formas de escolarização de massa, acarretando problemas
se tornasse uma prática dividida entre uma função crítica e uma de fracasso escolar.
função instrumental. Há um progressismo na sociolingüística que pretende contri-
Em sua função crítica, a análise de discurso interroga a própria buir para resolver essas dificuldades e suprimir desigualdades. É
existência das disciplinas, desterritorializando-as. Mas, ao mesmo um humanismo.
tempo em que o faz, constrói seus procedimentos, delimita seu Mudar de terreno, nesse caso, é antes de tudo reconhecer que as
objeto e tende, ela mesma, a se territorializar. Isso, para alguns, dificuldades e desigualdades não são "imperfeições" das sociedades
para aqueles que só reconhecem e exercem uma ciência em solo industriais, mas são estruturais, são inerentes à essência mesma
firme, ou seja, quando ela fala sobre si corno ciência. da sociedade capitalista. Mudar de terreno é falar em relações de
Para outros, a expansão de termos - como interdiscurso, produção e não em "relações sociais".
formação discursiva - ou de princípios teóricos - corno o de se
afirmar que nem a linguagem nem o sujeito são transparentes - que - O logicismo recobre a questão do Estado, considerando as
aparecem nas reflexões atuais, não como um dispositivo teórico determinações jurídico-políticas inscritas no funcionamento
global mas ponto a ponto (Gadet, 1990), são a marca da análise do aparelho de Estado como se se tratasse de propriedades psi-
de discurso na reflexão sobre a linguagem. Essa reflexão estabelece cológicas e morais inerentes a uma natureza humana universal
que o sentido deve ser apreendido ao mesmo tempo na língua e na e eterna;
sociedade. Isso, se pensamos a Europa. - O sociologismo recobre também a questão do Estado, substi-
~nto à América Latina, a questão da análise de discurso tuindo a análise das relações de produção por uma teoria das
é ainda mais viva e expressiva. Logicismo e sociologismo, diz relações sociais que é na realidade uma psicossociologia
Pêcheux (e Gadet, 1977 ), decorrem da filosofia espontânea que das relações interindividuais (status, papel, prestígio, atitude,
acompanha a lingüística, constituindo duas formas específicas de motivação).
denegação do político.
A tendência logicista nega o político falando aparentemente de Por isso, essas tendências não têm nada a dizer a respeito do
outra coisa, enquanto o sociologismo o rejeita falando, ou acredi- neocolonialismo que não tem a concretude psicossocial das relações
tando falar, justamente dele. A tendência lógico-formalista parece de parentesco, de idade, de sexo, de raça, de nível cultural.
se desdobrar na região das "idéias puras", longe de quaisquer outras Mudar de terreno é tomar uma posição teórica face à questão da
considerações. A sociolingüística se desenvolve depois da guerra forma-sujeito de direito e da subjetividade moral-psicológica que a
fria, ligada a fenômenos que é interessante observar. Um deles é envolve. A noção de discurso e de formação discursiva desempenha
a evolução do que se convencionou chamar Terceiro Mundo. A esse papel de dessubjetivaçâo da teoria da linguagem.

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TERRA À VISTA OBSERVAÇÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO

Essas nossas considerações nos permitem situar a natureza da e desconhecer. Trata-se de estabelecer uma relação em que pro-
análise de discurso na América Latina. curamos nos situar criticamente em certas regiões de sentidos,
Por sua história cisionista e pelos pressupostos de sua teoria não impô-los, mas sustentá-los em nossas relações intelectuais
que tem uma relação fundamental com o político, a análise de com o que não é a América Latina.
discurso permite à reflexão sobre a linguagem levar em conta as A análise de discurso, nessa forma crítica de relação com o modo
especificidades histórico-políticas dos diferentes contextos em de produção do conhecimento, nos permite uma primeira contri-
que se desenvolve. buição: o da crítica a propósito da utilização de certos modelos de
Assim, o modo como a análise de discurso se desenvolve na análise de língua. Por exemplo, os modelos de análise de línguas
América Latina pode, e deve, ser diverso daquele com o qual indígenas são aqueles que, embora se inscrevam na antropologia
esta se desenvolveu na França. É isso que eu expressaria dizen- lingüística, perpetuam a indiferenciação ou, mais que isso, pro-
do que a análise de discurso, se somos conseqüentes com seus movem o apagamento e a remissão do diferente ao mesmo, isto é,
pressupostos, ao mesmo tempo em que produz uma certa forma o apagamento da especificidade das línguas indígenas em relação
de conhecimento, nos obriga a uma tomada de posição frente à às línguas ocidentais (o inglês, o latim etc.).
história das ciências. Desse modo, a descrição (com a chancela da ciência) se sobre-
Se, de um lado, tudo é político e, de outro, tem-se procurado põe a questões cruciais que se inscrevem numa política da língua.
minimizar ou desprezar a importância do político, não é menos Um exemplo flagrante é o do Summer Instirute of Linguistics
verdade que hoje é mais ou menos claro para todo intelectual que (Surnmer ou SIL). Essa entidade, que se apresenta sob a dupla
o que ele produz corno conhecimento é submetido já de saída a forma (Orlandi, 1987) lingüístico-religiosa, promove a exclusão
tensões que nascem de embates que nada têm a ver com a pretensa dos brasileiros do campo de pesquisadores pela imposição de um
neutralidade da ciência, mas com as relações de força que presidem modelo equívoco, o do Sumrner, que traz o prestígio dos padrões
um imaginário social como o nosso. da ciência norte-americana de produção "universal" do saber,
A lura pela aceitação ou não, pela legitimidade ou não, de um enquanto pratica atividades missionárias.
trabalho, quando se ultrapassa o mero lance do tráfico de prestígios E, a mais longo prazo, na história, temos os relatos que são
acadêmicos, representa justamente o lugar em que se chocam o tornados corno documentos, enquanto se impõem como modelos
poder de dizer e o seu parceiro, o silenciamento. de ciência: como história, corno etnografia, como lingüística.
E, se pensamos a América Latina em relação aos outros conti- Procuramos deslocar isso propondo uma desconstrução, através
nentes, podemos observar um grande vigor no confronto dessas do método da análise de discurso, considerando os documentos
posições. não como documentos, mas como discurso. Expor "o olhar-leitor
Reagimos muito bem aos processos de exclusão a que estamos à opacidade" significa ler nesses relatos tanto a construção de
submetidos há séculos e que nos deram como herança o paterna- outros sentidos para a história, como compreender o que signi-
lismo e o exotismo ( o "dever" de termos certas "singularidades"), fica a codificação do conhecimento etnográfico, assim como a
corno seres "culturais" que apresentamos particularidades às vezes forma histórica em que se dá a relação do tupi com o por-
atraentes, às vezes marcadas pela barbárie. tuguês.
Não se trata de não estabelecermos relação alguma com Se, para o europeu, os relatos dos missionários são tomados
outros centros de produção de conhecimento, voltar as costas como artefatos que integram seus objetivos científicos em sua

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TERRA À VISTA
OBSERVAÇÕES SOBRE ANÁLISE DE DISCURSO

tradição, para nós são uma forma de nos passar a limpo em uma O que a análise de discurso faz com respeito a isso é explicitar
história contada por europeus para europeus. o funcionamento do discurso em suas determinações históricas,
O modo de produção de conhecimento latino-americano, pela ideologia. Quanto à ideologia, é ainda em relação ao poder
quando se faz de forma crítica, implica, insistimos, uma tomada que ela é considerada na perspectiva discursiva.
de posição frente à história das ciências. Isso implica não apenas Mesmo sendo necessária à concepção de discurso - não há
se deslocar o texto, mas reconhecer que as relações de força que discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia-, não é tal
presidem a produção de sentidos se dá em "outro" lugar. O deslo- como ela se define no campo das ciências sociais que a concebe-
camento se faz, portanto, desse outro lugar, de "lá", do científico. mos. Não partimos da ideologia (como dissimulação, ou não, do
Como dissemos, o brasileiro se cria pelo fato de fazer falarem real) para o sentido, mas procuramos compreender os efeitos de
os outros. Há um espaço de diferença. O português se fala do lugar sentido, a partir do fato de que é no discurso que se configura a
próprio: o brasileiro é deslocamento de falas. relação da língua com a ideologia.
Nesse deslocamento - e são vários os modos de apreendê-lo, Sujeito e linguagem encontram a sua unicidade na sua relação
de explicitá-lo e de interpretá-lo - joga fortemente o fato de que mútua: o sujeito não tem unicidade, produz unicidade na sua re-
a fala de nossas origens é a fala do conhecimento: é o discurso lação com a linguagem; do mesmo modo, a linguagem tampouco
que dá conta, que classifica (taxonomia) e explica (etnologia) o a tem, e é só relativamente ao sujeito que ela se apresenta assim.
Novo Mundo. E o que há nessa relação é uma organização para um fim. ~e só
Os discursos dos missionários que, por suas condições, são da se produz nessa articulação (linguagem-sujeito). Esse é um dos
ordem do religioso, deslizam assim politicamente do religioso efeitos ideológicos elementares constitutivos do discurso: o efeito
para o etnológico e, ao se deslocarem, produzem um resíduo. Esse de unicidade do sujeito e da linguagem.
resíduo é o que dá os efeitos de sentido desse jogo de discursos: Nessa perspectiva, a ideologia pode ser compreendida como a
silenciam aspectos cruciais da nossa história. direção nos processos de significação, direção essa que se sustenta
E insistimos no sentido particular do que é a história para o no fato de que o imaginário que institui as relações discursivas ( em
analista de discurso. A história está ligada a práticas e não ao tempo uma palavra, o discursivo) é político.
em si. Ela se organiza tendo como parâmetro as relações de poder As evidências são, assim, cristalizações, produto naturalizado,
e de sentidos, e não a cronologia: não é o tempo cronológico que e só podem sê-lo pela relação da história com o poder.
organiza a história, mas a relação com o poder (a política). Assim, Finalmente, podemos dizer que a ideologia não é dissimulação,
a relação da análise de discurso com o texto não é extrair o sentido, mas interpretnçáo do sentido (em uma direção). Não se relaciona à
mas apreender a sua historicidade, o que significa se colocar no }zltt1, mas, ao contrário, ao excesso: é o preenchimento, a saturação,
interior de uma relação de confronto de sentidos. a completude que produz o efeito da evidência, porque se assenta
A relação com a história é dupla: o discurso é histórico porque sobre o mesmo, o já-lá.
se produz em condições determinadas e projeta-se no "futuro': Então é isso a ideologia, na perspectiva do discurso: há uma
mas também é histórico porque cria tradição, passado, e influencia injunção à interpretação, já que o homem na sua relação com a
novos acontecimentos. Atua sobre a linguagem e opera no plano realidade natural e social não pode não significar; condenado a sig-
da ideologia, que não é assim mera percepção do mundo ou re- nificar, essa interpretação não é qualquer urna, pois é sempre regida
presentação do real. por condições de produção de sentidos específicos e determinados

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TERRA À VISTA

na história da sociedade. O processo ideológico, no discursivo, está II. Não o outro, mas o diferente
justamente nessa injunção a uma interpretação que se apresenta
sempre como a interpretação. Esse é um dos princípios básicos do
funcionamento da ideologia, apreendido pelo discurso.
A análise de discurso, entretanto, procura ver o sentido como
o possível (não-preenchido), sendo assim uma abordagem crítica
da ideologia.
Com efeito, a relação entre imaginário e simbólico se apresenta,
dessa perspectiva, com a seguinte forma: o simbólico funciona sob
o modo do como-se-fosse e o imaginário, sob o modo do faz-de-
conta, mas, suspendendo, ao mesmo tempo, a relação da produção
de sentido com o "seu lugar" para levá-lo para "outro" como se
fosse o próprio. Apaga assim a materialidade das condições de
produção. É, pois, a interpretação que atribui sentido de um lugar A reflexão sobre o "outro': como constitutivo, parte da teoria da
só, "universalizado". enunciação e, com alguma extensão, relaciona-se, sob a influência
O que nos leva a finalizar esta parte afirmando que fala-se reli- da psicanálise ( o inconsciente), à questão do sujeito, materialmente
giosamente sobre o Brasil do lugar da etnografia como se esse fosse ligada à questão da ideologia (o des-conhecirnento). Um princí-
o seu lugar próprio. E é esse o processo ideológico que constitui pio geral da linguagem, agora menos marcado por esta ou aquela
os discursos da des-coberta em seu jogo de sentidos. disciplina, vem coroar a presença do "outro" como constitutiva da
O discurso histórico estabiliza a memória. Ao se negar, na fala de qualquer sujeito: a dialogia.
ordem dos discursos, um discurso histórico sobre o Brasil,' ou Entendida amplamente, apenas como conversa, passando a ser
seja, o estatuto do "memorável", desqualifica-se o Brasil como referida com mais profundidade teórica como interação e chegan-
lugar específico de instituição de sentidos. Produz-se um discurso do mesmo a ser entendida como confronto, a dialogia acabou por
etnográfico, parte da história européia, esta sim como uma história, encerrar a reflexão da linguagem em malhas estreitas.
ou melhor, a História, a verdadeira, a única. Não há mais solidão possível, não há descontrole na linguagem:
a relação com o "outro" regula tudo, preenche tudo, explica tudo,
tanto o sujeito como o sentido.
Gostaríamos de colocar nossas reservas a essa "onipotência"
do conceito de dialogia e, através dele, à concepção mesma de
enunciaçâo, ou à expansão, eu diria, desmedida desse conceito.

Consider.unos que o-, "discursos sobre" sáo uma d.1\ forrru-, cruciais d,1 instirucionaliz.iç.io
No interior da teoria do discurso, há um conceito que trouxe
dos sentidos. É no "discurso sobre" que se trabalha o conceito da polifonia. Ou sej.i, o maior especificidade a essas noções: é o conceito de "heterogenei-
"discurso sobre" é um lug;1r importante para urganiz.1r a-'> diferentes vaze.') (dos discursos
dade" (J. Authier, 1984).
rle). A))Íl11, o discurso JOÚre o s.unba, o discurso sobre o cinema são p,1rre integrante d,1
,uregimentação (interpretação) dos sentidos dos discursos do s.unba, rio cinema etc. O A heterogeneidade constitutiva (J. Authier, idem) diz que "cons-
mesmo :-.e p,1ssa com o discurso sobre o Brasil (no domínio da história}. Ele org.111iza, titutivamente, no sujeito, em seu discurso, há o Outro". É a idéia
disciplina .1 memória e ,1 reduz.

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TERRA À VISTA
NÃO O OUTRO, MAS O DIFERENTE

de que o sujeito da linguagem é determinado por sua relação com circunstanciada e relativa a um contexto específico de uma seqüência
a exterioridade: é um sujeito des-centrado, dividido, essa divisão discursiva concreta.
tendo um caráter estrutural ou estruturante. A heterogeneidade
A relação do intradiscurso com o interdiscurso é que remete o
mostrada é coisa já diferente: as suas formas são aquelas pelas dizer do sujeito ao Outro constitutivo ( o interdiscurso: a memória
quais se altera a unicidade aparente do fio do discurso, pois elas aí do sentido, o repetível): falamos com palavras que já têm sentido.
inscrevem o "outro". Essas formas representam "uma negociação É aí que se insere, para nós, a questão da heterogeneidade, ou
com as forças centrífugas, de desagregação, da heterogeneidade melhor, da diferença.
constitutiva: elas constroem, no desconhecimento desta, uma Embora a noção de heterogeneidade, tal corno é formulada
representação da enunciação que, por ser ilusória, é uma proteção por J. Authier, problematize a noção de enunciação e seus efeitos
necessária para que um discurso seja mantido" (J. Authier, idem). ilusórios, é urna noção que trabalha muito com a "formulação" (cf
Por elas, o sujeito se apresenta corno tendo domínio do que é seu Courtine, 1982.) e pouco com a "constituição" do sentido, ou seja,
e do que é do outro, no "seu" dizer.
com a historicidade do discurso no sentido lato (inrerdiscurso). E é
Como diz essa autora: "face ao 'isso-fala' da heterogeneidade essa dimensão que nos interessa. Daí uma das razões de preferirmos
constitutiva, responde através dos 'como-diz-o-outro' e o 'se-me- a noção de diferença à de heterogeneidade.
é-permitido-dizer' da heterogeneidade mostrada" (ibid. ).
Na concepção de J. Authier, a heterogeneidade aparece mais
Formulada desse modo, a heterogeneidade coloca em pauta o corno uma mistura (tZ + b ), sendo tl e b distintos e recuperáveis
visível (mostrado), que, na perspectiva do discurso, corresponde (de certo modo, dados, homogeneizáveis). A ilusão do sujeito de
ao "dizível".
estar na origem do sentido tem marcas lingüísticas que permitem
Na análise de discurso, o dizível é definido, para o sujeito, pela recuperar o seu processo. A possibilidade de "explicação" resulta,
relação entre formações discursivas distintas. em grande medida, da recuperação da homogeneidade. Apesar do
Cada formação discursiva define o que pode e deve ser dito salto teórico, a noção de heterogeneidade convive com o paradigma
:1 partir de urna posição do sujeito, em determinada conjuntura.
do lingüístico corno nuclear: o visível, a unidade.
O complexo das formações discursivas, em seu conjunto, define Para nós, o que existe é uma combinação ab, não se recupera
o universo do "dizível" e especifica, em suas diferenças, o limite a origem. São só efeitos que estão lá. Não se detectam os elemen-
do dizer para os sujeitos em suas distintas posições (remissíveis a tos como componentes (a e b); se os reconstroem pelo jogo das
diferentes formações discursivas). diferentes formações discursivas. Logo, a ilusão só é dizível pela
Esse jogo de formações discursivas remete o texto à sua exterio- teoria e não pelas marcas, pois a heterogeneidade constitutiva não
ridade, isto é, à relação com o interdiscurso,' com o Outro. O que é representável, já que ela é do escopo do inrerdiscurso,
chamamos interdiscurso é definido justamente corno o complexo Além disso, a noção de heterogeneidade não considera a natu-
de formações discursivas à dominante. Ele representa o domínio rezn da relação entre diferentes. Acreditamos que isso se dá pelo
do "saber", da memória da formação discursiva. É no interdiscurso
compromisso dessa noção com a enunciação. Ao se fazer entrar
que se constitui o dizer, sendo a noção de intmdiscurso reservada :1 noção de enunciação, pelo mesmo movimento, se expulsa a de
não à constituição mas à farrnultZção, ou seja, à produção efetiva, contradição e se reduz a importância do histórico e, de certo modo,
reproduz-se a divisão: de um lado, as sistematicidades, de outro, a
O interdiscurvo corre-ponde ao "isso-fala" o . . enrido j.i-lá, obscuridade e a desordem.

47
TERRA À VISTA
NÃO O OUTRO, MAS O DIFERENTE

No entanto, o trabalho de J. Authier traz um deslocamento


O conceito de heterogeneidade, de certo modo, domestica a
importante ao modo como se considera a enunciação, pois a
noção de diferença, pois ela rege a con-fusão entre os diferentes.
heterogeneidade refere o "enunciável" e não apenas o "gramati-
Para a noção de diferença como a pensamos, por exemplo, em
cal". Além disso, refere a produção do sujeito à ilusão necessária
relação ao discurso da colonização, com suas diferentes formações
e constitutiva do seu modo de enunciação. Produz, no dizível, discursivas, não é possível fazê-lo.
um recorte importante: não o que não se diz ( o não-dito de O.
Os sentidos circulam. Os processos de produção são encon-
Ducrot), mas o dizer do outro no um.
trados mediante os jogos de paráfrases e as formações discursivas.
Esses deslocamentos são fundamentais, embora não suficientes
Inscrever um sentido na relação das diferentes formações discur-
para tratar, na questão da diferença, o que consideramos particular-
sivas, encontrar o seu lugar, o seu modo de significar, é o trabalho
mente sob a rubrica do silêncio. Para nós, falar é o que, em francês, do analista do discurso.
se pode dizer "inter-dire": a) dizer entre outras palavras ( o que seria
Considerando-se que a relação com a alteridade, longe de ser
a heterogeneidade), mas também b) proibir, apagar outras palavras
direta, unívoca e clara, é con-fusa e des-organizadora do sujeito,
( o que é mais propriamente o que chamamos silêncio). Esta última
podemos prever o esforço teórico e analítico que esse trabalho
é esquecida na noção de heterogeneidade.
exige. O analista tem, pois, antes de tudo, que considerar a des-
Em nossa perspectiva, há um jogo de "transparências" (evidên- organização das relações entre eu e tu.
cias, efeitos de discurso) que permeiam a produção dos sentidos e
À não-comunicação - que, como afirma Pêcheux, é igual-
dos sujeitos na relação com o outro, resultando paradoxalmente
mente constitutiva da linguagem - corresponde um movimento
na obscuridade dos limites dos sentidos e dos sujeitos.
de identidades, função da incompletude do sujeito e do sentido.
Daí a importância metodológica da noção de paráfrase: por
Movimento que desemboca nades-organização dessa relação, já
ela pode-se observar a relação entre diferentes, tanto no interior
que ela é da ordem do inconsciente e do ideológico.
das mesmas formações discursivas, como entre distintas formações
Há um des-controle nessas relações. E ao des-controle, à des-
discursivas, pois são todas elas relações de paráfrase.
organização, à di-fusão, à con-fusão corresponde, a meu ver, não o
Na diferença, um é diferente do outro. Estão na mesma distân-
heterogêneo, mas a diferença: o silêncio ( e não o implícito) como
cia, e é no movimento entre um e outro que podemos apreender
constitutivo, em que a metáfora tem o estatuto, não do desvio,
as suas relações. Não é um o modelo e o outro a cópia. Não se
mas do lugar da necessidade do sentido (que circula) e, enfim,
trata de considerar um primeiro e um segundo (hierarquizada e
a paráfrase como matriz em que o um remete ao outro, mas sem
reguladamente), nem tampouco dois iguais e separados claramente
porto originário (ou seguro). O sentido não tem origem. Não há
entre si, em si.
origem do sentido nem no sujeito (onto) nem na história (filo).
O jogo de paráfrases é que dá as distâncias (relativas) dos sentidos O que há são efeitos de sentido.
na relação de diferentes formações discursivas. Pelas paráfrases, os
Como dissemos, para dar conta da exterioridade que constitui
sentidos ( e os sujeitos) se aproximam e se afastam. Confundem-se
o discurso, é preciso apreender as relações entre formações discur-
e se distinguem.
sivas. Essas relações, representantes da relação com a exterioridade,
É isso o que se percebe se, ao invés de se tomar como referência
remetem-se ao interdiscurso, sendo este definido como o lugar de
(na produção do sentido) o sujeito centrado em si mesmo, pensa-se
constituição dos sentidos, a verticalidade (domínio da memória)
o jogo de relações entre formações discursivas diferentes.
do dizer, que retorna sob a forma do pré-construído, o já-dito.

49
TERRA À VISTA
NÃO O OUTRO, MAS O DIFERENTE

Podemos dizer que a relação entre as formações discursivas combinados, difusos ou dispersos. O "mesmo" e o "diferente" às
é "soldada" pela existência do interdiscurso. E a exterioridade vezes não são passíveis de distinção no discurso.
que consideramos como constitutiva só se define em função do
interdiscurso, ou melhor, essa exterioridade tem o seu modo de
b) O espaço em que se espraiam os sentidos é o da multiplicidade,
existência definido pelo interdiscurso.
da largueza, mas também da truncação: um sentido se desdobra
em outro, em outros: ou se emaranha no seu mesmo e dele não se
FD 1 / FD
solta. Fica à deriva. Se perde em seu mesmo ou se multiplica.
EXTERIORIDADE

INTERDISCURSO J c) O tempo é o da fugacidade. O sentido não se deixa pegar.


Instável, errático. O sentido não dura. O que dura é seu "arcabou-
ço': a instituição que o fixa e o eterniza. Ele, no entanto, se move
Assim, há uma relação entre limites de diferentes formações em outros lugares.
discursivas que atesta a relação do discurso com a sua exterioridade.
Isso é marcado pelo interdiscurso e por seu modo de funciona- Aí retornamos à distinção cópia/simulacro. A cópia: o mesmo a
mento ( o pré-construído) que atesta, por seu lado, a presença do partir de uma origem. O simulacro: a diferença sem fundo. Situação
inter (o já-dito) no intradiscurso, sendo este a seqüência que se particular de significação em que jogam o sentido e o seu duplo:
está efetivamente realizando (formulando). in-diferença, in-significância, in-disciplina, in-constância.
É nessa linha de reflexão, pois, que pensamos a questão da Nesse nosso modo de ver, o sentido seria, em grande medida,
heterogeneidade e da diferença: todo discurso atesta sua relação des-controlado. Discursos como o discurso das descobertas seriam
com outros (que ele exclui, ou inclui, ou pressupõe etc.) e com o uma forma de controlá-lo. Aí o jogo da paráfrase e da metáfora
interdiscurso (que o determina). atua fundamente no estabelecimento do um, do mesmo e da
Vejamos, agora, o que se passa quando pensamos o sentido permanência do sentido.
quanto: É nesse plano que é Útil a noção de Instituição tal como é traba-
lhada por Foucault: lugar da regularidade, da normatividade que
a) à natureza do processo de sua produção; preside o discurso. O funcionamento dessa regularidade pode ser
b) ao espaço; apreciado, no discursivo, pelo movimento que articula metáfora
c) ao tempo. e paráfrase. A metáfora, que é condição de uso da linguagem, diz
do uso de urna palavra por outra. A paráfrase é o uso do diferente
a) Essa natureza está - este é um princípio por nós adotado no mesmo, do outro no um. Repetição. A relação entre metáfora
desde o início de nossa reflexão em análise de discurso -, essa e paráfrase pode nos dar a larga dimensão do "sem fundo" do
natureza está na relação entre "paráfrase" e "polissemia", o que, sentido. A verticalidade ( o interdiscurso, o repetível), ao mesmo
em outra linguagem, se diz o "mesmo" e o "diferente" ( o "outro"). tempo, fixa e desmancha qualquer origem.
Agora não vendo mais, como víamos, em primeiro plano, apenas O assujeitamento supõe a repetição. Há o repetível dos enun-
a tensão entre esses dois processos, mas também a con-jus.io entre ciados, mas também há enunciados que são feitos para serem repe-
eles. Confusos, pois obscuros e transparentes, misturados ou tidos ("O Brasil foi descoberto por Pedro Álvares Cabral': "Nessa

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51
TERRA À VISTA

terra, em se plantando, tudo dá"); ou melhor, há enunciados que


pertencem a essa zona de repetibilidade e que aí se representam
III. Civilização e cultura
na produção dos discursos.
Há modos de se reproduzir esse efeito do repetível. Por exem-
plo, falar sobre o "outro" para instituir a imagem de "si", cria sua
tradição (sou-sempre-já), além de sua imagem (como deve ser).
O pré-construído ( o já-dito) em seu retorno produz a inter-in-
compreensão (desconstrução do "outro") num movimento de
concentração de sentidos.
Esse é o sentido radical da instituição na linguagem. É assim
que o sentido ganha "corpo" como história, nessa relação tensa
entre o fixar-se e o transmudar-se.

A noção de "civilização", diz N. Elias (1973), liga-se "a dados


variados: ao grau de evolução técnica, às regras do saber-viver, ao
desenvolvimento do conhecimento científico, às idéias e usos reli-
giosos". Mas, se a gente pensa a função geral dessa noção, descobre
algo muito simples, ou seja, "a expressão da consciência ocidental,
poder-se-ia dizer, o sentimento nacional ocidental".
Podemos perguntar, desse outro lado do Atlântico, como essa
função geral "molda', "modela", mesmo aqueles que não estão no
centro de irradiação da "civilização"?
Aí é interessante observar que junto à noção de civilização há
outra, a de "cultura", e que distingue nações do Ocidente. Segundo
esse mesmo autor (N. Elias, idem), nota-se a diferença entre o uso
que fazem da noção de civilização, de um lado, os franceses e ingleses
e, de outro, os alemães. Nos primeiros, essa noção resume "orgulho
da nação, progresso do Ocidente e da humanidade em geral", mas,
para os alemães, civilização designa algo útil, porém de importância
secundária. Para exprimir o orgulho de suas civilizações e de sua
própria natureza, eles empregam a palavra "cultura".
Daí o autor conclui que a noção de "civilização" apaga, até
certo ponto, as diferenças dos povos, coloca a ênfase naquilo que,
na sensibilidade daqueles que se servem dela, é comum a todos os
homens ou ao menos deveria sê-lo (grifo nosso).

52 53
TERRA À VISTA CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Exprime a auto-satisfação dos povos cujas fronteiras nacionais semelhança interna. Por sua vez, eles nunca se colocam na posição
e as características específicas não são mais, há séculos, colocadas de serem nosso "outro". Eles são sempre o "centro" dado o discurso
em questão, pois já estão definitivamente fixadas, povos que há das des-coberras, que é um discurso sem reversibilidade. Nós é que
muito já foram além de suas fronteiras e realizaram atividades os temos como nossos "outros" absolutos .
colonizadoras.
• E nossa postura, aqui, não é estacionar no discurso que "define"
A noção de "cultura" não se tinge desse expansionismo e remete o brasileiro e parar assim na sua definição (é "x", ou é "y"), mas
a um sentido de limites, de "interno": "reflete a consciência de uma pensar esse discurso que define o brasileiro como um "sintoma",
nação (no caso, a Alemanha) obrigada a se perguntar continuamente como um discurso que é constitutivo dos processos de significação
em que consiste seu caráter específico, em procurar e consolidar que constituem o imaginário pelo qual se rege a nossa sociedade,
sem cessar suas fronteiras políticas e espirituais". ou seja, como ela nos significa. Procuramos, assim, atingir o modo
Na divisão das perspectivas européias, civilização se liga à idéia de produção disso que funciona como "evidências" em nosso sen-
de processo e cultura, à de produto. timento de brasil idade, isso que se dá corno "ideologia".
Daí decorre o militantismo embutido na noção de civili- Nosso objetivo não é falar da "constituição da identidade",
zação. Daí a catequese, o universalismo religioso ("todos" os mas antes do imaginário que se constrói para a significação do
homens etc.). brasileiro. Qual é a concepção de brasileiro desses textos e como
Essa divisão - civilização/ cultura - transplantada para o essa concepção vai trabalhando tanto a exclusão como a fixação de
colonizado, instala-se, no mínimo, em uma contradição. Nós, certos sentidos, efeitos de sentidos que produzem um imaginário
submetidos aos desígnios ( dever ser) da civilização ocidental, somos que coloca no brasileiro uma marca de nascença que funcionará
seres culturais, sobretudo quando resistimos em nossas diferenças, ao longo de toda a sua história: o discurso colonialista. O que
mas para isso perdemos a possibilidade de termos uma história.já significa "ter sido" colonizado em um discurso que funciona para
que é pela parcela que nos cabe na civilização ocidental que somos que seja essa uma marca a-histórica e de essência.
contados em uma história (a da colonização). Por aí vemos que a ideologia não "aparece" em um passe de
Voltamos, pois, à questão da identidade. mágica. Ela tem uma materialidade, e o discurso é o lugar em que
Nossa concepção (como poderá ser observada nos diferentes temos acesso a essa materialidade.
escritos sobre identidade no contato) é a de que a identidade é um Processos de discurso vão provendo o brasileiro de uma defi-
mouimento, tanto no seu modo de funcionamento ( entre o eu e o nição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginário da
outro) como em sua historicidade (devir, mas também multipli- sociedade brasileira.
cidade na contemporaneidade etc.). O efeito ideológico - colonialista - não nasce do nada. Sua
~em é o brasileiro? Onde termina o índio (no contato), materialidade específica é o discurso.
o português (na colonização), o italiano (nos movimentos mi- Em nosso caso, veremos como, pela determinação histórica dos
gratórios) e começa o brasileiro? Há situações interessantes que processos de produção de sentidos sobre o brasileiro, se constitui (se
merecem nossa atenção no estudo desses casos-limites, como se fixa) a relação colonizador-colonizado. De tal forma que, mesmo
poderá observar no corpo deste livro. depois do período colonial, a marca de nascença do brasileiro se
O europeu nos constrói como seu "outro" mas, ao mesmo reproduz toda vez que se instalam, nas relações, as condições para
tempo, nos apaga. Somos o "outro", mas o outro "excluído", sem que esse mesmo discurso colonialista se realize (retorne).

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TER R A À VISTA

Veremos como esses efeitos se produzem através de um jogo


entre formas de discurso: a) o discurso de nossa história (nossa IV. Silêncio e sentido
origem) é o discurso missionário que, por sua vez, regido pelo
religioso, produz entretanto uma etnografia, elidindo a histórja;
b) por outro lado, ainda mostrando a dominância do discurso do
conhecimento, o discurso sobre as línguas e sobre nomes de lugares,
objetos e faros é um discurso científico: o discurso lingüístico.
Com a característica importante de que, ao falar de "nossas"
coisas, ressaltam-se sempre as suas "particularidades" (singulari-
dades).
Resulta que nós brasileiros somos singulares. Somos singulares
em relação a quê, a quem? A um padrão-lá. O outro-europeu. O
discurso da singularidade é o discurso da cultura ( dominado pelo
da "civilização"), que a-historiciza.
Fica sempre como se só nós tivéssemos um "outro". O nosso Também o que não é falado significa. Seria bana] esta afirmação
outro é o português, o italiano, o francês etc. Como nos constro- se ela apenas indicasse na direção do não-dito entendido como
em uma história em que somos apagados como alreridade, somos implícito: aquilo que não se diz, mas que faz necessariamente
apenas "singulares", temos "particularidades". Não somos o outro parte do que é dito (cf Ducror, 1972.).
constitutivo porque não "somos" (seres históricos etc.). Em minhas reflexões, tenho-me dedicado a compreender uma
Em suma, vemos o discurso que define o brasileiro como outra vertente do não-dito, a do silêncio. Esta se origina no faro
constitutivo dos processos de significação - indefinidamente em de que a linguagem é política' e que rodo poder se acompanha de
circulação - do imaginário constituído por uma sociedade como um silêncio, em seu trabalho simbólico. É o que tenho chamado
a nossa. Nessas condições, não é o discurso do Brasil que define o "política do silêncio', que, aliás, se subdivide em duas formas de
brasileiro, é o discurso sobre o Brasil. exercício da significação:
E como é que o brasileiro, nas malhas do discurso colonialista,
produz os seus sentidos? .1) O silêncio constitutivo, ou seja, a parte do sentido que neces-
sariamente se sacrifica, se apaga, ao se dizer. Toda fala silencia
necessariamente. A atividade de nomear é bem ilustrativa: toda
denominação circunscreve o sentido do nomeado, rejeitando
para o não-sentido tudo o que nele não está dito;
h) O silêncio local: do tipo da censura e similares; esse silêncio é
o que é produzido ao se proibir alguns sentidos de circularem,
por exemplo, numa forma de regime político, num grupo social
determinado de uma forma de sociedade específica etc.

1\ l111gu,1gem é polític.1 porque o sentido 'iemprc tem uma direção, é ,;empre dividido.

57
TERRA À VISTA SILÊNCIO E SENTIDO

Terno-nos dedicado ao estudo das diferentes formas de silêncio seu modo de significar, inscrevendo-se, portanto, no domínio do
e de silenciamento, já que partimos do pressuposto de que, assim poder-dizer. O silêncio fundador não recorta: ele significa em si. E
como a linguagem, o silêncio não é transparente e significa mul- é ele, afinal, que determina a política do silêncio: é porque significa
tiplamente (Orlandi, 1985, 1988 e 1989). em si que o "não-dizer" faz sentido e faz um sentido determinado.
Nessa perspectiva histórica de nossa análise discursiva dos É o silêncio fundador, portanto, que sustenta o princípio de que
discursos sobre o Brasil - ou, o que dá no mesmo, análise da pro- a linguagem é política.
dução dos diferentes sentidos da brasilidade -, o silêncio nos tem Na perspectiva do nosso trabalho, importa menos saber o que
aparecido como nuclear na determinação histórica desses processos ficou silenciado e mais a própria política da palavra: que "x" se disse
de significação que estamos procurando detectar. para não se dizer "y"? Como esse "y" silenciado acaba por significar
O discurso sobre o Brasil ou determina o lugar de que devem falar ao longo das diferentes falas e dos seus apagamentos?
os brasileiros ou não lhes dá voz, sejam eles os nativos habitantes ( os O silêncio do nomear faz intervir o "interdiscurso" do outro
índios), sejam os que se vão formando ao longo da nossa história. ( o europeu), fazendo-nos significar ( quer queiramos quer não) na
O brasileiro não fala, é falado. E tanto há um silêncio sobre ele, história dos "seus" sentidos.
corno ele mesmo significa silenciosamente, sem que os sentidos Dessa forma, ele intervém no jogo da memória: o brasileiro,
produzidos por essas formas de silêncio sejam menos determinantes para significar, tem como memória (domínio do saber) o já-dito
do que as falas "positivas" que se fazem ouvir categoricamente. europeu. Essa é a "heterogeneidade" que o pega desde a origem.
Mas, como o silêncio não fala, não é possível traduzi-lo em pala- A sua fala é falada pela memória do outro (europeu).
vras. Desse modo, em nosso trabalho, são os próprios mecanismos É no cruzamento da verticalidade do enunciado - constituído
de funcionamento dos diferentes processos de significação que lá fora e em que a história distribui o já-dito - com a horizontali-
mostram o silêncio (que os constitui) que procuramos explicitar. dade da enunciação (formulação de seus sentidos) que o "nativo"
Vale dizer que o silêncio a que nos referimos não é visto apenas intervém, presentificando sentidos. É aí nesse viés que situamos
em sua "negatividade". O silêncio é. No silêncio, o sentido é. Há nosso trabalho de análise.
história no silêncio porque há sentido no silêncio. Essa maneira de considerar tal relação de discursos leva-nos a
Brasileiros, não falamos no discurso das descobertas, mas faze- duas situações:
mos outros falarem por nós e, mesmo quando não o fazemos, o que
existe não é o vazio, mas o silêncio que significa no contexto em a) De um lado, se "explode" o outro discurso ( em sua homogenei-
que se produz. Podemos, assim, distinguir três formas de silêncio dade), mostrando que "nesse" discurso há outros discursos;
(Orlandi, 1989): b) Se retorna ao risco que é a marca de nascença: a fala do brasileiro,
quando pega pelo discurso da descoberta, o reduz ao discurso
a) o silêncio fundador; do mesmo.
b) o silêncio constitutivo;
c) o silêncio local, A tensão ou a convivência com essas duas formas de relação ao
sentido está presente em todos os textos que analisamos.
sendo, esses dois últimos, parte do que chamamos politicado si- O silêncio trabalha os limites das diferentes formações dis-
lêncio, já que imprimem um recorte ( entre o dito e o não-dito) no cursivas; ou seja, o jogo do dizer é regido pelas relações entre as

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TERRA À VISTA SILÊNCIO E SENTIDO

diferentes formações discursivas. Cada formação define "o que desses processos de significação, trazer para o jogo da linguagem
pode e deve ser dito numa conjuntura dada, a partir de uma certa o "silenciado". Para isso, é preciso sempre se observar: o que o
posição do sujeito" (Fuchs, Pêcheux, 1975). colonizador não está dizendo quando está dizendo "x"?
Relativamente à política do silêncio - e, em conseqüência, ao E é esse procedimento que nos conduziu na compreensão
poder-dizer-, esse jogo entre as formações discursivas entra como da discursividade que foi objeto de nossas análises. Este aspecto
uma retórica do antiimplícito, ou seja: se diz "x" para silenciar "y", também compõe o que chamamos historicidade do texto.
este sendo, como já dissemos, o sentido indesejável, descartado,
que se inscreveria em "outra" formação discursiva. O "y" representa
então o não-dito, necessariamente excluído do dito.
É assim que se apagam os sentidos que se quer evitar, sentidos
que poderiam fazer funcionar o trabalho significativo de uma outra
formação discursiva. Esse silêncio trabalha os limites das formações
discursivas, determinando, conseqüentemente, as margens do dizer.
E isso em dois níveis: r) a política do silêncio em geral: o que é
preciso não dizer para poder dizer (ex.: mecanismo de nomeação:
se digo "selvagem" para o índio, não posso dizer "cidadão") e 2)
aquilo que do dizível (isto é, do que é determinado sócio-histori-
camente como tal) é proibido dizer pela censura (não posso falar
em ditadura numa ditadura).
Dito de outra forma, o mecanismo do silenciamento é um
processo de contenção de sentidos e de asfixia do sujeito porque
é um modo de não permitir que o sujeito circule pelas diferentes
formações discursivas, pelo seu jogo. Com o apagamento de sen-
tidos, há zonas de sentido, e, logo, posições do sujeito que ele não
pode ocupar, que lhe são interditadas.
No caso do discurso da colonização, o sujeito colonizado não
pode ocupar posições discursivas (com seus estatutos e sentidos)
que o colonizador ocupa. Mais do que isso, é a partir das posições
do colonizador que são projetadas as posições possíveis (e impos-
síveis) do colonizado. Seu dizer está assim predeterminado pela
posição do colonizador.
Mas se, de um lado, o silêncio serve para pôr em funcionamen-
to o apagamento de sentidos, ele serve também para produzir a
resistência. Em uma fala (a do colonizador) já vem o que o outro
não pode falar, e assim conseguimos, mediante a explicitação

60 61
2ª PARTE

Os relatos
I. Pátria ou terra:
o índio e a identidade nacional'

1. Introdução
Ciência, religião e política social

O amor a Deus, pelo qual o poder assegura a submissão do homem


medieval, é substituído, nas sociedades capitalistas, pelo amor
à pátria, dever do cidadão. Embora se instalem essas diferenças
no desenvolvimento da história, tanto o poder religioso como o
político se exercem pelo amor e pela crença. Estes são o suporte
da autoridade.
Assim, também não é só pela violência física ou verbal que se
encontram os meios de se obter a submissão. Há urna violência
mais insidiosa e eficaz: a do silêncio. E o poder, além de silenciar,
também se exerce acompanhado desse silêncio. Este, por sua vez,
numa sociedade como a nossa, se legitima em função do amor à
pátria e da crença na responsabilidade do cidadão.
Tais reflexões levam CI. Haroche (1984) a dizer que, com esse
silêncio, o Estado procura manter à distância, ignorar, e mesmo
sufocar, a questão crucial do sujeito, isto é, dos modos com que o
Para atravessar oceanos sujeito pensa, deseja, critica, resiste.
e tempos
Para traçar percursos
e memórias Texto publicado 11,1 revivt.i Prredrç.io, Campin.i-, 1984.

65
TEl{ R A À VISTA PÁTl{IA OU TERRA

Nos trabalhos em que procurei refletir a respeito da questão lítica social (o indigenismo)' e a religião (a catequese) estão arti-
indígena - sobre educação indígena (1982), sobre discurso das culadas.
lideranças indígenas (1984) e sobre a relação entre língua e cultura A ciência, a política social e a religião se apresentam como três
dos pataxós (1985) -, pude constatar que, no caso do contato modos de domesticar a diferença: a primeira pelo conhecimento,
cultural entre índios e brancos, o silenciamento produzido pelo a segunda pela mediação e a terceira pela salvação (catequese). As
Estado não incide apenas sobre o que o índio, enquanto sujeito, três contribuem para que, de algum modo, se apague a identidade
faz, mas sobre a própria existência do sujeito índio. E, quando do índio enquanto cultura diferente e constitutiva da identidade
digo Estado, digo o Estado brasileiro do branco. Estado este que nacional.
silencia a existência do índio enquanto sua parte e componente A ciência torna o índio observável, compreensível, e sua cultura,
da cultura brasileira. legível; o indigenismo o torna administrável; a catequese o torna
Nesse Estado, o negro chega a ter uma participação. De segunda assimilável. Diríamos, pois, que a compreensão amansa o conceito
classe, é verdade, mas tem urna participação, à margem. O índio índio, a pacificação amansa o índio como corpo e a conversão
é totalmente excluído. No que se refere à identidade cultural, o amansa o índio como espírito, como alma. Essa domesticação
índio não entra nem como estrangeiro, nem sequer corno ante- representa o processo pelo qual ele deixa de funcionar, com sua
passado. identidade, na constituição da consciência nacional.
Esse processo de apagamento do índio da identidade cultural O modo como cada um desses elementos - o conhecimento,
nacional tem sido escrupulosamente mantido durante séculos. a pacificação e a catequese - contribui para o seu apagamento é
E se produz pelos mecanismos mais variados, dos quais a lingua- diferente e, dependendo da posição do cientista, do indigenista
gem, com a violência simbólica que ela representa, é um dos mais ou do missionário, a forma e o grau de apagamento serão um ou
eficazes. outro. Isso nos leva a dizer que não é, por exemplo, o discurso do
"Os portugueses descobriram o Brasil". Daí se infere que .mtropólogo em si, mas a sua articulação (aliás inevitável) com os
nossos antepassados são os portugueses e o Brasil era apenas uma outros que contribui para esse apagamento. Em suma, o apagamento
extensão de terra. "Havia" selvagens arredios que faziam parte da tem um de seus lugares nas relações entre essas três ( e certamente
terra e que, "descobertos", foram o objeto da catequese. São, desde há outras) instâncias. Importa que essas três, cada uma a seu modo
o começo, o alvo de um apagamento, não constituem nada em si. l'. articuladas, contribuem para que ele se dê.
Esse é o seu estatuto histórico "transparente": não constam. Há Insiste-se, há séculos, na unicidade da nossa cultura. Diluem-
uma ruptura histórica pela qual se passa do índio para o brasileiro, ~e ,1s diferenças. O "outro" que elegemos como contraponto de
através de um "salto". nossa identidade é o europeu: como nosso antepassado e como
Não me estenderei sobre a questão da imagem do índio na imigrante. Há mais um "outro': de outra história que, corno diz o
história que se conta do Brasil, pois esta já se encontra, de alguma senso comum, "entrou pela porta da cozinha": o negro, no processo
forma, adequadamente rematizada. de escravidão.
Interessa-me, nesta primeira aproximação, mostrar de maneira
ainda incipiente - e enquanto parte de um projeto mais amplo
f.')t,lllHh unli,r.mdo 11111 do- sentido, do indigeni..,mo: o que, lev.mdo cm conr.i o conheci-
de estudo sobre a história do contato - como a ciência (a antro- menro d.1 cultur.i mdígcna, tund.uncnr.i unto .1, rcflcxócv como .1 ctenv.. rcl.iç.io de conr.iro
pologia, a lingüística, a análise do discurso, a história etc.), a po- com C':i\,l cultura. Tudo ivso num.t per"-pcctt\.,1 de polmc.i -ocioculrur.il. Escolhemo', rr.ir.ir
Nunuend.iju como um '>CU rcprcsenrante típico.

66
TERRA À VISTA
PÁTRIA OU TERRA

Quando falamos do Brasil como cadinho de raças, excluímos


deixa de existir na própria constituição da nacionalidade. Diríamos,
o índio; além dos negros, são os europeus e, em menor grau, os
pois, que esse discurso que coloca o índio como objeto de obser-
orientais que contam na mistura que resulta em nossa morenice
vação, paradoxalmente, resulta na produção de sua invisibilidade.
matreira. A rematização do índio nesses discursos funciona como indício
Mulato é a mistura de branco com preto, mas caboclo nem sempre
de seu apagamento.
indica a mistura de branco com índio. Só no dicionário é que há
Existir em nível da consciência nacional - tal como esta
consenso. Caboclo, no uso que se faz dessa palavra em grande
existe no cidadão cm geral - significa, para esse apagamento,
parte do território nacional, é o caipira, o mineiro. É um termo que
funcionar como um pressuposto em qualquer (e todo) discurso.
não se refere à raça (à história) mas à vida rural (à geografia). O
O pressuposto, em lingüística, é aquilo que não é dito, mas que
índio, na constituição mestiça da nacionalidade, não se misturou,
acompanha necessariamente o que é dito. É aquilo que no dizer
sumiu. E mais recentemente reaparece com sua "incômoda" pre-
já está sempre lá, implícito e inegável. Por exemplo, a necessidade
sença física. de dizer "índio é gente" pressupõe a possibilidade de se dizer que
O Estado estabelece com o índio uma relação tal que não são só
"índio não é gente". Quando afirmamos que o apagamento do
as diferenças que se apagam: o próprio índio deixa de existir como
índio existe como pressuposto na "consciência nacional", estamos
índio. O modo corno o Estado rege suas relações com a ciência, a
dizendo que qualquer discurso que se refira à identidade da cultu-
religião e a política social, trabalha os sentidos dessas. A necessária
ra nacional já tem inscrita a exclusão do índio, necessariamente,
relação com o Estado faz com que os discursos científico, religioso e
como um princípio.
político se apresentem sob a modalidade do discurso liberal: o que
Assim é porque o apagamento é do domínio da ideologia. Não
se funda na igualdade jurídica de direitos e deveres. No entanto,
está marcado em lugar nenhum como tal. Funciona através dos
tratar o índio corno igual já é em si apagar a diferença que ele tem
silêncios, de práticas 9ue o atestam, mas que não se expõem como
e que é o cerne de suas relações. A mera aplicação do discurso
tal. Daí sua eficácia. E claro que esse silêncio, uma vez estabeleci-
liberal já é um mecanismo de apagamento. Essa fala sustenta-se
do, volta sobre o mundo com toda a sua violência. Dessa forma,
na relação de dominação do branco; é porque considera o índio
do apagamento ideológico se passa para o extermínio, que tem,
como igual que pode desqualificá-lo, ou seja, esse discurso traz
por sua vez, formas mais ou menos diretas de violência: desde o
o índio para o interior das categorias de igualdade estabelecidas
assassinato puro e simples até a exclusão do índio da discussão de
pelo branco, e pelas quais o índio passa a ser visto pelas qualidades
problemas que o afetam diretamente.
que não são suas.'
Como em toda vez em que entra em consideração a ideologia,
Esse discurso sobre o índio funciona de modo que ele existe
devemos cuidar para não tratar essa questão de forma redutora e
enfaticamente no discurso do missionário, do antropólogo e no
mecanicista.
do indigenista e deixa de existir na "consciência nacional", isto é,
É preciso reconhecer que essas relações entre ciência, religião
e Estado são bastante complexas.
S,lo e\!1,l\ .1, condiçóc-, em que tem -ido tr.it.id.i ,l quc-r.io d.1 crn.mcrpaçáo indígen.r. Por
um l.ido, cl.i 1110..,cr,1 que, corno ,l'> 110~:-..1s lci-, incluír.un o índio como menor (caregori.1 Nessa nossa primeira aproximação do problema, faremos apenas
do br.mco}, ,10 incluí-lo, dcix.i-o cm devv.inr.igcm. Mevmo qu.mdo querem em.mcip.iIo, algumas referências, bastante restritas, ao discurso da ciência, e
continuam tu me..,111.1 dircç.io: qu,111to m.us igu.11, mai-, forre ,1 excluv.io, po1..,, como m.uor,
de C m.iis desqualificado, uma vez que, enqu.uuo adulro, tem .iutonomi.i e responsabilidade procuraremos mostrar o apagamento, analisando dois materiais
p.1r.1 ver o que l·: 11urg1n,diL.1do. lingüístico-discursivos: 1) o relato de Nimuendaju sobre a pacifica-

68
TERRA À VISTA PÁTRIA OU TERRA

çào dos parintintins e 2) o relato da conversão do índio Pacamào, discussões de ordem etnográfica ( o índio deve ser pacificado ou
no Maranhão do século XVII, por Ivo D' Evreux. exterminado? o índio é ou não um povo inferior?), econômica
O primeiro trata a questão da "pacificação", que, neste nosso (relação entre desenvolvimento e colonização) etc. ~er dizer, a
estudo, envolve sobretudo a função do Serviço de Proteção aos questão da criação do SPI serviu para fazer vir à tona, e se con-
Índios (SPI) criado cm 7 de setembro de 19w <: que, por sua vez, está frontarem, discursos de naturezas diversas e que configuram as
na origem da Fundação Nacional do Índio (Funai). No segundo, relações de força e de poder instaladas na sociedade republicana
o objetivo específico é a questão dos missionários e da catequese, em seus primórdios.
isto é, a quesrào da "conversão". Em meio a essa multiplicidade de discursos, interessa-nos
mostrar como o SPl se apresenta e qual a sua função.
Começaremos por dizer que o SPI é necessário para organizar
,1 tomada da terra e controlar a resistência indígena.
2. De quem é a terra Nesse sentido, diríamos que o SPI é, na verdade, um serviço
de controle do índio e de proteção ao branco, ou melhor, de
Historicamente, um momento importante para se observar a
,ilguns brancos. Tanto o SPI como os missionários organizam as
questão da pacificação é, sem dúvida, o da criação do SPl, no
relações com os índios; selecionam quem deve ter contato e como
começo do século XX.
ele deve ser.
A passagem do Império para a República, com sua caracterís-
Náo se pode falar da criação do SPl sem falar em episódios de
tica de descentraçâo do poder, traz um movimento acelerado de
conAito entre índios e brancos.
avanço fronteiriço no país inteiro. A marcha colonizadora para
Ao avanço do branco, o índio respondia com violência: "A
o Oeste e a penetração das comissões de limites, as comissões
resistência dos índios estava especialmente obstinada em São
responsáveis pela instalação de linhas ferroviárias e telegráficas,'
Paulo e nos estados meridionais", conta Staufer (1959) em um
assim como as expedições etnológicas e geográficas, caracterizam
trabalho que procura dar conta das condições histórico-sociais e
esse período de extenso e profundo contato entre brancos e índios.
políticas em que foi criado o SPI. Referindo-se a incidentes ocor-
Acontecimentos importantes vão-se dar em relação a uma cultura
ridos cm 1910 na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, ele diz que
dita "primitiva" - e aqui entende-se o termo "primitiva" como
"seu construtor notificou o ministro da Viação e Obras Públicas,
selvagem e não como primeira - que, segundo o que parece, não
no Rio de Janeiro, de que as obras estavam no ponto de ficarem
tinha sido muito perturbada no fim do período colonial e nos
paradas por causa da impossibilidade de continuá-las em face da
inícios da independência.
oposição indígena".
A criação do SPI colocou em discussão fatos de ordem política
O momento da criação do SPI é um momento em que se ficava
(centralização ou nào do governo), comercial (venda de terras e
111.1is consciente da presença do índio, já que os embates dos seus
exploração do trabalho) e religiosa (responsabilidade e supcrvi-
confrontos causavam "um dos maiores problemas da nação" (Scau-
sáo [controle] dessa cultura "primitiva"). Deu também origem a
ler, idem ). O índio, em 1908, tinha-se tornado um grave problema
nacional. Ou seja, o índio ( e sua resistência) ficaram mais visíveis.
Como podemo- ver, nào é ,ó ,l Nov.i Repúblic.i que e..: prodig,1 n.t invt.il.içào de c ornivvócv, Era preciso apagar essa visibilidade. Como fazê-lo? Em primeiro
Sena intcrcvs.intc refletir m.u-, demor.ul.uncnre sobre ,l funçJo d.1~ corniv.óc-, n.1 i1uugur.1ç."10
lugar, não tematizando a invasão do branco e a resistência do ín-
d.11 rcpúblic.is.

70 71
TERRA À VISTA PÁTRIA OU TERRA

dio, mas colocando o foco do discurso na extinção do índio. Esse tas brasileiros a esse respeito, os argumentos e disputas ganharam
foi (e é)4 o modo de deslocar a questão do índio para o branco. matizes nacionalistas muito favoráveis à construção do espírito
O segundo passo é dividir o universo indígena. Fala-se, então, da republicano.
distinção entre índio "civilizado" e índio "selvagem', não-tratável, Voltando, pois, às condições de criação do SPI, podemos dizer
o que é um jeito de racionalizar o apagamento. Assim corno se fala que, de um lado, pela colonização das regiões "desabitadas" ( e
em pobre "honesto" e pobre "vagabundo" etc. A sociedade sempre "ameaçadas" por índios), se leva avante, na prática, um programa
encontrou formas de categorizações "legítimas" para poder exercer de apagamento pelo avanço violento, ou não, do branco, Será
seu poder de exclusão. Em seguida - este é o terceiro passo -, violento se o índio resistir, sendo que as categorias do branco
rematiza-se a sua "fatal" extinção. transformam "resistência" em "crime" e seu autor em "selvagem"
Assim é que as discussões - corno a polêmica de Von lhering (índio que resiste é índio não "tratável"). Resistência e selvageria
(Staufer, ibid.) - se voltam para as questões do branco. A respei- se equivalem nessa formação discursiva. Por outro lado, o discurso
to dessa polêmica, dirá Staufer (ibid.) que "toca-se uma música sobre o "choque cultural" é um modo de apagar a perspectiva de
nacionalista contra a ciência importada". Eu diria que é, antes, a resistência indígena, indicando uma solução paternalista para os
necessidade de o Brasil representar-se como República que joga conflitos criados. O branco se apropria, desse modo, da questão:
nessa questão. propõe que se proteja o índio, É assim que a República pode res-
A denúncia feita por Fric no XVI Congresso de Viena, em ponder no interior da posição humanística - que deve ser a sua,
1908, de que se processava um extermínio deliberado dos índios no no estilo do regime republicano - à sociedade nacional e frente
Brasil, entre outras coisas, suscita a explicitação das várias posições às relações internacionais,
dos cientistas e indigenistas em seus conflitos.
O cientista Von Ihering aproveita-se dessa denúncia para de-
sencadear uma discussão que mostra a necessidade de proteção
3. A Comissão Rondon e os seus serviços à nação
governamental para os colonizadores alemães estabelecidos nas
fronteiras dos estados meridionais (Staufer, 1960). Para ele, o
Também a análise de relatórios, conferências, exposições, feita por
desaparecimento do índio era inevitável, e ele, mesmo antes das
membros da Comissão Rondon pode levar-nos a essa perspectiva
denúncias de Frié, havia optado1 por resolver o problema dos colo-
que estamos indicando, de que a função do SPI - do ponto de
nizadores exterminando os índios:" [ ... ]No otherfinal result seems
vista do apagamento de que estamos tratando - era, antes de
possible than that oftheir extermination" (Von Ihering, 1904).
tudo, a de gerenciar os conflitos entre índios e brancos, dando ao
Como grande parte dos cientistas que trabalhavam com os
branco o poder de controle tanto em sua dimensão efetiva quanto
índios, na época, era alemã, e havia descontentamento dos cientis-
retórica, ou seja, a função de dar sentido aos conflitos, ao contato
etc. Isto é: o branco é quem possui esse saber e esse discurso. É ele
+ Cf. Daniel Cabix: em A Conjuntura rl.z t,'r/ur,z1tlo lnrlígen,1: "o índio cst.ir.i sujeito .1
desaparecer [ ... ] não por G1tJ1,,1 dos rumo- históricos que parecem prederennin.idos, pois
quem diz o que é o conflito e como resolvê-lo.
.icrcdir.un ruuitos f.rn,í.rico, .ivido . do dcsap.uecimcuto do povo indígen.t [ ...
.l\\ill1 r Tornamos o texto Pelo índio e pela sua proteção ojficial, de L.
(cf: Orl.mdi, E., "Um,1 retórica do oprimido").
B. Horta Barbosa ( 1923), como exemplar de material lingüístico
"Optado" ou .1pen.1s constatado a cxisrênci., de um processo que assim se conduzia? A
diferença entre o que era uma propo\t,l de Von lhering ou apenas um.i previsào ,1,u.1. é ,l produzido por integrantes da Comissão Rondon. Pudemos verificar
lura de sentidos que ..,e tr.iv.i entre o~ conrendore-, d.1 polêrnic.i de cnr.io. que a estratégia desse discurso - que é uma prestação de contas ao

72 73
TER R A À VISTA PÁTRIA OU TERRA

ministro da Agricultura e Comércio - orienta-se em duas direções: do que a República consigna dos seus, nos dias de hoje, para atender às
a) para o exterior, enquanto justificativa da necessidade de o Brasil necessidades de rodas as tribus do seu território."
explicitar a sua posição em relação aos índios diante da opinião
internacional, e b) internamente, para se colocar corno um meio Reforçando a perspectiva do discurso republicano - que se
eficaz, e pouco dispendioso, de administrar os conflitos. define pela modalidade liberal -, o discurso da Comissão visa a
Para ilustrar o caso (11), comamos a seguinte citação do texto: integração nacional, diferentemente da catequese, que se definia
localmente, no período imperial. Os textos da Comissão são
Si no extrangeiro o nosso Serviço de índios é assim conhecido e exemplares para a análise da passagem Império/República e para
cvr im.ido como um "exemplo a ser imitado, para honra da civilis.içáo a observação de uma outra passagem: a da catequese religiosa
univcrval', como poderia ele ser desconhecido da Nação e não merecer a para a leiga.
convideraçáo do País?
Em ambas as direções - para o exterior e para as relações
internas-, esse discurso produz um apagamento, na medida em
Para comprovar a afirmação (b), tomaremos a seguinte se- que não fala para o índio mas para o branco, e de suas (do branco)
qüência desse texto:
representações política, social e econômica. Não fala com o índio.
Não o reconhece como seu interlocutor.
Esses índios, sob o nome de coroados, infundiam rào grande terror,
que em 1910, ao se fundar o serviço de Proreção, o Ministro da Viação
sustentava cm reuniões ministeriais, presididas pelo Presidente da Repú-
blica, que o governo tinha de escolher entre a alternativa de enviar uma
4. Nimuendaju e o conceito de pacificação
grande força do exército para os bater e exterminar ou consentir na pro-
pmta da emprcs,1 construtora de suspender as obras de que se achava
encarregada[ ... ]. Foi sob a pressão destes .iconrccirnentos e do nervosismo
É no interior dessa perspectiva que procuramos compreender o
público por eles causado, que o Serviço encerrou os seus trabalhos naquele relato de Nirnuendaju sobre a pacificação dos parintintins. Des-
sertáo, em fim de 19w. Em 1911, conseguiu ele suprimir as "dada," conrr.i tacamos dois fragmentos do texto que tratam diretamente dessa
m índios, isto é, as expedições organizadas por aventureiros mercenários, quesráo.
contratados para irem ao interior das matas em busca dos selvicolas e No primeiro, ele fala que o melhor meio de pacificar uma tribo
exterminá-los em suas aldeias; logo depois, e como conseqüência disso, hostil não é fazer uma expedição pacífica às suas malocas, mas
viram-se cessar as correrias dos índios contra ,1 Estrada. cujo, trabalhos ,e
puderam continuar sem novas perturbações.

O ~IL (~ummcr lnvnturc otLiugur-ucv) tem rido no Br.ivil urn.i Cunç:to que lOll'iegue
E, para comprovar o argumento financeiro, podemos atentar .iliar ,1, rrê':i Iorm.rs de .1p.1g,1mcnro - ,l d,1 ciênci., (como l111gui1:-t,1•J ,t d,1 c.1rcque'le (corno
miwion.iriov) e .1 do ind1gen1..,mo (corno frente de contato) - com cxcmpl.ir dic.1c1.1 e
para o seguinte fragmento desse mesmo texto, que sucede uma
vem ónus p.dp.h e! p,1r.1 o p.ií-, E n.io )Ó -1qu1. () rcl.uo de um faro no Equ.idor é relevante.
minuciosa prestação de contas: Tr.u.i-vc de um vol.inre do ~IL .ip.irec ido em 19-11: "A Shell perdeu v.iri.is \ 1d.t') n,t'> m.iov
do.., mdio . .. Qu.indo volr.ir.un [a Shcll];o- membros do SIL for,un 11,1 frente e o- [o'> indios]
persu.rdir.un-,e de que dcvcri.un deix.ir o c.umnho. I.;,,0 foi feito por índio, crisri.iniz.idov,
Assim, pois, o Brazil, no tempo do Império (com a c.ucchcsc ) ga,tava,
.m-avé-, de alcof.il.uue-, 111011t.1du\ cm .ivi.io. Como rcvulr.ido dc'>\,1 coordcn.rç.ro por r.ulio
,ó com algumas pouca, rribus indígenas de duas de suas províncias e com r rcld(rne, .ur.ive-, d.1 b.i-,c cm O!:ito n.io \(_" perdeu nenhum.i , 1d,l .1te o momento. Bendito
um serviço restrito na capital de outra, muito mais de seu orçamento, 1:>lj,1 Deu1,!". Ai,-.im o SIL prc..,tou "eu rele, .mtr ,1.:rvi~o ',,th.rndo .1 .)hei! d,1.., nüo.., do, índio,
no [q11.1dor.

74 75
PÁTRIA OU TERRA
TERRA À VISTA

Isto é, pacificar, desta vez, se define como intervenção em


estabelecer-se permanentemente no território delles e obrigá-los com esta
outro espaço: o do poder e o da representação política do branco
medida a entender-se pouco a pouco com elle, depois de ter-se convencido
da inexpugnabilidade da sua posição e das vantagens que a permanência sobre o índio.
delle traz para a tribu toda (Textos tndigenistns, 1982, p. 59). Em suma, em quaisquer dos fragmentos do texto, constrói-se
um sentido para a pacificação que tem sempre a mesma direção:
Isso significa que "pacificar" é intervir no espaço físico de forma colocar o branco entre o índio e o branco, e, mais radicalmente,
permanente. colocar o branco entre o índio e o outro índio. Isto é intervir: co-
O segundo fragmento traz para a reflexão o que, para Nimuen- locar o branco, com sua forma de governo e de poder, mediando
daju, define a pacificação. Relatando o estado em que encontrou o o índio com sua própria cultura.
posto que havia deixado sob os cuidados de Garcia, ele dirá que, Daí, pacificar é produzir o apagamento da cultura indígena,
em seu retorno, não lhe pareceu que a pacificação estivesse em anular qualquer forma de resistência; e a imagem que se tem do
bom caminho. Ele achava que Garcia tinha dado aos parintintins índio é a daquele que "deve" submeter-se ao branco, que "deve"
uma confiança quase exagerada. Dirá, então: reconhecer a autoridade do branco.

Com tudo quiz me parecer que a pacificação não estava em bom cami-
nho. Seguramente a questão de mais importância para nós não era esta
de alcançar a maior intimidade possível no trato com estes índios, como 5. Catequese e apagamento: um caso de conversão
parece ter sido o ideal de meus substitutos, e sim esta de constituir-mos
uma autoridade para esta tribu [grifo nosso J a qual ella se podia dirigir Vejamos, agora, alguns aspectos da catequese. Para tal, tomare-
confiantemente, mas que também a atendesse e que seus maus elementos
mos o texto de Ivo d' Evreux ( 1929 ), sobre a conversão do índio
temessem. Só assim se podia dar cabo às guerras e tirar da pacificação dos
Pacamão.
Parintinrin as últimas conseqüências. Para este fim uma intimidade como
cu encontrei na minha volta só podia ser prejudicial: e, por isso, fiz o pos-
O que salta aos olhos desde o começo da leitura do texto sobre
sível, durante as 5 semanas da minha última estada no posto, para enver- a conversão de Pacamão é que, na descrição da figura do índio, são
edar para outro caminho a evolução das nossas relações com os Parintin- usados adjetivos que fazem com que a imagem que se tenha dele seja
tin. Antes de tudo expliquei aos índios que nós não formávamos uma muito negativa: "Pacarnào é pequeno no corpo, vil e abjecto a tal
empresa particular, avulsa, mas que havia atraz de nós um poderoso chefe ponto que, quem não o conhece, não faria caso d'elle" E, quando
cujas ordens cumpríamos e que era senhor de rodas estas coisas que elles a descrição não é física, mas de qualidades espirituais, d' Evreux
das nossas mãos estavam recebendo, e de muito mais ainda, e que este
utiliza adjetivos com não menor violência: "É fino e velhaco tanto
chefe não queria que fizéssemos guerra uns aos ourros ] ... ] índios que eu
quanto pode ser um selvagem". Não mais generosa é a imagem que
nunca tinha visto chegavam ao posto, levavam-me para o terreiro e, deante
de rodos pediam: Conta do Nosso Chefe! Tu mesmo foliaste com elle? ele estabelece para a mulher de Pacamão:
O que foi que elle te disse? O que elle manda dizer a nos?[ ... ] Tudo isto
demonstra que os Parintintin não podem mais reunir os elementos Ordenou à sua mulher, que se prevenisse para carregá-lo até a casa do
necessários para um combate em regra ao posto, como dantes: o enrhu- governador, e foi obedecido promptamente [ ... ]: sua mulher era negra
siasmo para taes empreza, já não é mais táo geral entre elles [ ... ]. (Idem, como o diabo e pintada desde as plantas dope até a cabeça com o sueco
PP· 65-67) de genipapo.

77
TER R A À VISTA PÁTRIA OU TERRA

Ao meio dessas desairosas imagens não falta um apelo cúmplice Primeiro: esse discurso da conversão, que encena um diálogo,
ao interlocutor: "Antes de ir adiante pensae si era possível conter na verdade põe na boca do índio as palavras do branco ou, mais
o riso, vendo-se um dos Principaes do Brazil montado em tão precisamente, as palavras que o branco quer (precisa) ouvir dele.
bello cavalo". Essa é a sua dissirnerria fundamental: a voz do índio é dominada
Diante de tais imagens, não nos resta outro desejo senão o de pela do branco; ou, dito de outra maneira, há uma simulação pela
apagá-las, transformá-las em uma certa direção: a do ocidental qual o branco fala de si e para os seus como se fosse o índio. E essa
cristão. Transformar o índio em um "novo" homem, de acordo simulação não faz do índio um seu representante - ao contrário,
com nossas convicções civilizadas (e civilizantes). o anula.
Eu gostaria de observar que, sob certo aspecto, há urna caracte- É assim que é construída a concepção da conversão: "Quando
rística desse discurso que se assemelha à do discurso de Nimucn- me ensinardes o que é Tupan, terei autoridade e serei mais estimado
daju: quando se trata do índio cm geral como povo, como raça, o que actualmente, e em meo paiz ocuparei o primeiro Jogar depois
discurso tende à invocação dos valores humanísticos e igualitários, de ti". E observa-se que isso é antes de tudo a expressão de urna
mas quando se trata de falar de um ou outro índio, em particular aliança política. Continua Pacarnâo: "Dize o que queres que eu faça
e concretamente, vêm à tona categorizações que ou o excluem ou, e quando meos sim ilhantes virem que sou filho de Deos e lavado
no mínimo, são ambíguas: lavrador sofrível, vadio etc. E, mesmo todos desejarão sei-o, buscando imitar-me". Eis a contrapartida
quando a avaliação parece ser positiva, deriva de categorizações "oferecida" pelo índio.
que a rebaixam: "Maria Chavantes [ ... ] é uma mulher decente e Não faltam nem mesmo as imagens refletidas no espelho. Temos
trabalhadora: declarou-me o seu marido (um italiano) que a não assim a imagem que o missionário quer que o índio faça dele:
trocaria por qualquer branca" ( Textos Escolhidos, 1982, pp. 39-40 ).
A medida-padrão é o branco. É verdade, respondeo, porem vos, e outros padres, sabeis grandes
O resultado - e esta é mais uma propriedade que se pode coisas, sois mais sabios do que nós, porque não prestamos atenção às
coisas de nossa terra, que vemos rodos os dias, e vós em tão pouco tempo
acrescentar às que rematizamos mais acima a propósito do discurso
já as conheceis.
liberal - é que, embora pretendam ser críticos ao discurso da
exclusão, essas falas acabam por trazê-lo consigo. Não o ultrapas-
É assim que, segundo o branco, o índio deve vê-lo. Clara
sam na medida em que o supõem e apenas invertem o sentido da
encenação do etnocentrismo: o índio reconhece a superioridade
argumentação, mantendo o mesmo denominador comum. Não
do branco.
o deslocam.
O que esse primeiro modo de apagamento nos mostra, do
Esse é um discurso que mantém os pressupostos que colocam em
ponto de vista de seu funcionamento, é a utilização radical do
causa o índio e sua cultura. E isso é observável com mais facilidade,
mecanismo da antecipação. Esse mecanismo é que regula as res-
como dissemos, quando falam de casos concretos, de índios parti-
postas. Por ele, o locuto.r se coloca no lugar do destinatário. Em
culares. Voltando, entretanto, ao discurso da conversão, podemos
geral, no discurso, isso se dá para que o locutor oriente sua própria
dizer que há, entre outros, dois modos de apagamento do índio
fala para controlar o lugar em que seu destinatário o espera: visa,
que aparecem como importantes e que são complementares, na
então, deslocá-lo (se for um adversário) ou reforçá-lo (se for cúm-
medida em que o segundo é acarretado pelo primeiro.
plice). Na encenação da conversão, esse mecanismo é utilizado

79
TERRA À VISTA
PÁTRIA OU TERRA

sem considerar a cumplicidade ou oposição do destinatário en-


mentos cristãos, na verdade se desenvolve uma peça de teologia.
cenado. Não pára nele. Atravessa-o para atingir o outro destina-
Ao referir ("indicar") as palavras do índio ao discurso religioso, o
tário - este, o visado - que é o próprio branco, que detém o
intérprete é quem lhes dá o sentido devido.
estatuto de interlocutor objetivado.
Há, ainda, um outro aspecto interessante a ressaltar: trata-se da
O que se constrói, finalmente, é a imagem do branco, para o
forma pela qual aquilo que é resistência cultural é convertido em
branco, através do índio. O índio é mero pretexto para o branco
erro ou pecado. Considere-se o seguinte enunciado: "não fazendo
mostrar-se a si mesmo e para os seus.
acção alguma sem refletir, pela qual possam ser mal apreciados pelos
Segundo: o discurso da conversão é uma ilustração de lições
seus inferiores, tão levianos e imperfeitos como elles" Podemos
de teologia.
observar que, em uma primeira parte, se está falando do cuidado
Encontramos nas reflexões teológicas da época (cf Abbeville,
dos índios "principaes" ("não fazendo acção alguma sem refletir")
1975) o correspondente discurso intelectual que está encenado
c1ue, em uma segunda parte, sofre um corte repentino para cate-
no diálogo da conversão de Pacamão. Nesse sentido, o relato é
gorizações que diluem as qualidades referidas, transformando-as
antes uma peça teológico-literária do que um documento. Em-
em ~efeitos ("tão levianos e imperfeitos como elles").
bora se coloque como documento, corno relato de experiências,
E de notar também a ênfase que se coloca na insistência de
tem características do discurso literário - enquanto relato de um
Pacamão em ser batizado. Como ele insiste por razões que, se-
caso, uma ilustração - ao mesmo tempo que trata de questões
gundo o cristianismo, não são as adequadas, cria-se o pretexto
teológicas.
para a explicitação das razões "verdadeiras". O texto se estrutura,
A estrutura do texto é, na verdade, simples: coloca a fala do
então, com perguntas e respostas, ao modo de um catecismo.
índio, seguida da interpretação do relator, ou seja, do padre Ivo
É mesmo um catecismo ilustrado. E assim Pacamão é levado à
D' Evreux. Essa interpretação já é em si um conjunto de ensina-
compreensão de Deus - "porque elle era bom, eu o amo e n'elle
mentos bíblicos:
creio", ele dirá -, preparando-se para "recebei-o" de acordo com
Vamos notar muito bcllas particularidades n'csrc discurso, que não as prescrições cristãs.
seriam entendidas ou passariam desapercebidas si não forem indicadas. Vale a pena, ainda, observar que o tipo de discurso colocado
Em primeiro lugar o alto zelo d'estes selvagens em conservarem sua au- na boca de Pacamão é o discurso religioso cristão, o catequético.
toridade e prestígio entre os seos, não fazendo acção alguma sem refletir, Mesmo quando ele ainda está mais ou menos mal informado,
pela qual possam ser mal apreciados pelos seus inferiores, tão levianos e produz nobres palavras do discurso cristão:
imperfeitos como elles, e por conseguinte tão incapazes de entreter os
espíritos familiares como cllcs [ ... ]. Pensando n'isro, vêde como os diabos Soube também que Maria era mãe de Tupan, sendo Virgem, porem
abusam da luz natural do homem, que claramente no; faz vêr [ ... ]. Em
Ocos mesmo fez corpo para si no ventre della e quando cresceu mandou
segundo lugar notarei os effeitos do espírito diabólico que são a soberba
Maratas, Apóstolos para toda a parte, nossos paes viram um, cujos vestígios
e a grande presumpção [ ... ]. Assim procedia Simào, o mágico, para com
ainda existem.
S. Pedro, procurando com seo dinheiro o Espírito Deos [ ... ]. ~e grande
cegueira julgar Deos vassallo de vaidade.
No desenvolver do discurso, tanto o conceito de Maratas
É fácil perceber, por esse trecho, o que acabamos de dizer: (apóstolo) como o da concepção da Virgem Maria serão retomados
simulando um diálogo e depois interpretando-o à luz dos ensina- com mais especificações e detalhes, para o leitor apreciar melhor

80 81
TERRA À VISTA PÁTRIA OU TERRA

os mistérios religiosos e o trabalho missionário.' Assim, também Nossa intenção, com esta rápida abordagem dos discursos
muitos dos símbolos cristãos serão rematizados: a água do batismo, sobre a pacificação e a conversão, foi iniciar urna discussão que se
a cruz, o altar etc. Nem faltJm referências à própria ordem: "quem estenda de forma mais sistemática - sempre por meio da análise
é aquele que está vestido como tu? É, disse eu, o pae de nós outros de linguagem - sobre a questão do contato e da constituição do
padres, que assim se vestem"," quadro cultural brasileiro, tendo o discurso sobre o índio corno
O discurso religioso adere a Pacarnâo." E vem de fora para referência. Como toda fala, a nossa também constrói, certamente,
dentro. É posto. Isso se evidencia pela sua estrutura, que é típica muitos outros silêncios e apagamentos. O que nos propomos,
do discurso teológico e do catecismo. entretanto, não é falar de um lugar "neutro", já que sabemos que
Nem poderia deixar de ser assim. Essa necessária reprodução do ele não existe, mas é apenas tornar tenso, problematizar, o campo
discurso religioso em suas formas está em que se trata de questões de de reflexão sobre as questões indígenas. Meus interlocutores vi-
fé e da verdade, da "palavra revelada". Não pode haver modificação sados neste texto nâo sáo, evidentemente, os índios. Mas tenho a
substancial. É pela colagem, pela repetição estrita de um discurso pretensão de escrever para eles.
ocidental cristão que o apagamento do índio e de sua cultura se
realiza e se mostra,
O principal nesse processo é dar ao missionário a função de
intérprete, de mediador. De posse dessa função, ele hxará J direção
do contato ( do branco para o índio) e o valor dado a cada cultura.
Enquanto mediador, hca também p3.ra ele J função de estabelecer
o estatuto da religião reconhecida como tal. Contra qualquer
princípio da liberdade de culto, não reconhece, nas formas da
cultura indígena, a legitimidade de suas crenças.
Em suma, em nome do amor à pátria, não se considera o índio
como um compatriota, em nome do amor a Deus, não se reco-
nhecem suas crenças.
Corno vemos, o "choque cultural" não acontece casualmente,
ele é produzido. Nossas estranhezas e familiaridades resultam de
processos histórico-sociais claramente inscritos em nossas insti-
tuições, sejam elas cientíhcas, políticas ou religiosas.

Olv;crv.11110:-. um U\O de mer.itor.i-. que revela <l inugem que o mivsion.irio fll do índio: em
ger.tl, ,l'> mer.itor.is \C í.izcm com trutos, .1111111,ti.., ou outros elcmcnro-, do mundo n.irur.il,
Supõe-se .iv.irn. p.trd o índio, urna "ccrr.i" Iorm.; de rcticx.io "primitiva"
Obvcrve-se o estilo <ocr.irico d.1 retórica (m.uêuric.i) com forre rr.idrção clcric.il,
Vile .t pcn,1 reAenr sobre ,1 rel.iç.io entre língu.is ditcrcnres e sobre o faro de que d'Evreux
faz o relato d,1 convcr-..1.o em su.i língu.1. Enrr.iri.i .u rodo o .l'>pecro d.1 tr.rduç.io (pJv;,,.1gem
de um,t lí11gu.1 .1 outra) que repre..,ent.1 o .1p,1g~uncnto d.1 língu.t indígen,1, .1p.1g,uncnro de
certos scntido-, e de um rr.1ço de identidade cultur.il decisivo.

82
II. A dança das gramáticas:

Os efeitos da catequese:
"la grace de Dieu, ou ses effets, se sont répandus jusques
sur les corps des lndiens selon l'aveu des Portugais, aussi
bien que la remarque des Indiens mêmes leurs enfants
naissancs plus beaux et ayans plus d'esprir. Les adulres
rnêrnc qui sont Chrétiens ayans perdu cet air affreux
qu'ils avoienc auparavanc, et qui érait comme le carac-
tere de la bête, je veux dire du demon, sous l'ernpire du-
que! ils vivoient, et l'ayanc changé dans un air gracieux
et une maniêre affable et honnête, en sorte qu'on les
distinguoit facilement des autres sans les connaitrc"
M. DE NANTES, Relation Succirue et Sincére ... , 1952, p. 39

1. Introdução

A história do contato entre os índios e os brancos, no Brasil, traz


contribuições cruciais para a história do saber e a observação dos
jogos de poder que se construíram a propósito dos índios.
Através da análise do conjunto de discursos produzidos sobre
os índios, desde o século XVI, temos procurado mostrar como a
ciência (a antropologia, a lingüística), a política social (indige-
riismo) e a religião (a catequese) se articulam para apagar apre-
sença do índio na constituição da identidade cultural (política)
brasileira.
Propuserno-nos fazer um estudo das condições históricas desse
apagamento, analisando os processos discursivos que estão na sua
origem. O objeto de nossa reflexão compreende as práticas dis-
cursivas dos missionários, sobretudo os missionários capuchinhos,
dos séculos XVI, XVII e XVIII. Interessamo-nos igualmente pelo
século XIX, a título de comparação.

Apresentado no Colóquio de Nice, Fr.mç.i, em setembro ele 198-.

85
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

Na medida em que restabelecemos essa trama discursiva, aparece A língutZjluidtZ - língua-movimento, mudança contínua -
um fato historicamente muito significativo: a redução do índio a pode ser observada quando se focaliza a história dos processos
um mgumento da retórica colonialista. discursivos que constituem as formas dos sentidos da linguagem
Por outro lado, nossa análise produz um deslocamento teó- no seu contexto.
rico: os textos, considerados tradicionalmente como documentos De seu lado, os modelos de sistematização, fundados nos estudos
históricos, são tomados aqui como discursos cujo funcionamento lingüísticos (gramaticais), produzem suas obras, objetos-ficção
procuramos compreender: lugar de argumentação, de enunciação, não-contextualizados, que chamamos línguas imaginárias: línguas-
de constituição de identidade, relação de sentidos etc. sistemas, normas, coerções, línguas-instituições, a-históricas.
Assim, aprendemos diferentes dimensões do apagamento do No entanto, há vários modos de produção da língua imaginária,
índio. Entre essas, a dimensão lingüística propriamente dita reteve e seus produtos são bastante diferentes: a língua-mãe ( o indo-eu-
particularmente nossa atenção: (I) O apagamento dos traços do tupi ropeu), a língua ideal (a lógica), a língua universal (o esperanto),
no português do Brasil, assim como (II) A construção da imagem .l língua-de-base (btZSic english ), assim como, em nosso caso, o tupi
que é feita das línguas indígenas, representadas pelo tupi. jesuítico e a língua nacional ( o português standard].
Problematizando a noção do "empréstimo", tal como ela é
definida pela sociolingüística, determinamos alguns aspectos dos
1) A INFLUÊNCIA DO TUPI NO PORTUGUÊS DO BRASIL processos de construção das línguas imaginárias tais como o tupi
jesuítico e o português standard, e as conseqüências em relação
ao contato (Orlandi e Souza, 1986).
1) Língua imaginária e língua fluida Sabe-se que os missionários estudaram e estudam a língua com
finalidades utilitárias de evangelização. Isso favoreceu a criação
~e língua apagamos para ter uma língua nacional ( o portu- das línguas "francas" ( Câmara, 1977 ). Além disso, em sua prática
guês)? De que língua ( ou línguas) foi necessário nos distanciarmos religiosa-colonizadora, eles produziram a "disciplinarização" das
historicamente para termos uma língua portuguesa? línguas dos povos colonizados: "o tupi das primeiras exposições
Ei5 .llgumas questões que nos colocamos. dos Europeus [ ... ] é uma sistematização simplificada feita para a
Empreendendo a "desconstrução" do apagamento, a análise propaganda religiosa no contexto do índio" ( Câmara, idem ).
discursiva nos permitiu tornar visíveis os traços da história da Os missionários disciplinaram o tupi - instituindo o tupi
relação de contato entre o tupi e o português. jesuítico -, a fim de instalar o seu poder de controle sobre os
Para isso, distinguimos duas concepções de língua: a língua índios e o seu poder de negociação com o governo português:" [ o
imaginária e a língua Auida. missionário] fez um trabalho de disciplinarização, de interpretação
A língua imagitJtírúi é aquela que os analistas fixam com suas do tupi segundo certos ideais [ ... ]. Ele utilizou a língua assim discipli-
sistematizações e a língu,1fluidtZ é aquela que não se deixa imobi-
1
nada na catequese e o índio se aculturava religiosamente ao mesmo
lizar nas redes dos sistemas e das formulas. tempo em que se adaptava lingüisticamente" ( Câmara, ibidem).
A "disciplinarizaçâo" teáricn, isto é, da construção de um saber
Cf. Cadcr e Pêcheux (198,), .1 p,1rtilh,1 entre "o corpo pleno da lingu.1gcm" e "o, proccw,s ,1 propósito das línguas dos índios, se mistura aqui com a "disci-
de con-rruçào d,1'l gram.Ít1c.h". De Milner (19Xi.) ,l unli/.iç.ro do conceito de ''1.1 Lrnguc"
(,f L1c.rn). pl inarizacâo" exercida na prática linguageira dos missionários no

86
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

curso do seu confronto com os índios; construções imaginárias do português standard apagou qualquer relação com as línguas
das quais analisaremos o processo de formação e as conseqüências indígenas.
histórico-discursivas. Por intermédio do conceito de língua fluida - na qual se articu-
Quando os missionários falavam a língua do índio ou quando lam processos heteróclitos em que há movimento, multiplicidade,
falavam dos índios, não falavam com eles nem os tomavam como heterogeneidade -, pudemos mostrar que a contribuição das
interlocutores reais. O destinatário efetivo era o governo português línguas indígenas não é negligenciável: ela está no interior mesmo
ou ainda os outros organismos do poder europeu de Estado ou da determinação dos processos de significação e na produção das
religioso, ou simplesmente os europeus. formas do português brasileiro.
Pela disciplinarização da língua indígena, pretende-se "saber"
a língua, mas se está sobretudo modificando-a no sentido dos 2) A força do imaginário: a palavra "cultura"
modelos ocidentais (europeus). e seus efeitos de sentido
Não somente os missionários, mas também os viajantes e os
pesquisadores, nas suas menções (ou reflexões), "aperfeiçoaram" a A dimensão da produção de uma língua imaginária não deixa
língua dos índios em direção ao ideal da gramática ocidental. Eles de ter conseqüências sobre a história das línguas.
desempenharam um papel tão importante quanto a catequese. No O tupi jesuítico se constituiu em língua de uso geral. Ele
seu conjunto, todos produziram a domesticação da língua indígena tem sua história e adquiriu uma realidade enquanto projeto do
pela gramática ocidental cujo modelo é o latim. Estado. Essa construção imaginária se revestiu de uma realidade
Assim como há vários modos de produzir a língua imaginária, institucional.
há várias conseqüências que dela decorrem. Procurando atingir o real histórico do contato entre o tupi
A instituição do tupi (imaginário) jesuítico serviu de imediato e o português do Brasil, pudemos compreender os processos
à sustentação de uma forma de governo, mas teve outras conse- que subentendem a história que a gente se conta quando reduz
qüências, das quais uma de importância crucial: ela embaralhou, a influência do tupi à inserção de uma simples lista - acessória,
ou melhor, ela reduziu a importância da relação entre o tupi e o marginal, folclórica - de palavras ou sufixos no vocabulário do
português do Brasil, num domínio em que a etimologia popular português, palavras que não fariam senão atestar a riqueza da
e a ideologia se misturam. nossa fauna e flora.
Tomando o sufixo rana (do tupi: "como se fosse") como centro De fato, a língua portuguesa do Brasil, para se estabelecer,
de nossa argumentação ( Orlandi e Souza, idem), pudemos verifi- teve que excluir aquelas com as quais ela coexistiu: entre estas se
car a extensão do seu uso em português. A presença generalizada encontra, com toda evidência, o tupi.
(sagarana, cajarana, tatarana etc.) de um uso coerente desse sufixo Esse conjunto de considerações deriva de um só e mesmo
nos serviu de pista para verificar a presença da "modalidade" nos princípio teórico: quando não se trabalha apenas com o conceito
nomes em português (e não somente nos verbos, como foi estabe- de "cultura", mas se faz intervir o de "história", pode-se apreciar o
lecido), atestando assim a presença efetiva do tupi no português processo de constituição daquilo que, enquanto produto, se apresenta
do Brasil. como "cultura", atestando assim o seu caráter ideológico.
De um lado, houve disciplinarização das línguas indígenas Desse ponto de vista, podemos dizer que o uso indiferenciado
em função do imaginário tupi-jesuítico; do outro, o imaginário d.1 palavra "cultura" resulta do apagamento da história. As razões

88
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

culturais, em ciência, podem ser o efeito da falta das razões histó- Tomando como objetivo a análise do contato entre os homens ( cf
ricas, breve, políticas. aqui mesmo, p. 2.09 ), mostrei como se apaga a capacidade do índio
A explicitação do papel da coleta de dados que concerne às de reelaborar a sua identidade face às relações de contato. Cheguei
línguas indígenas nos permitirá fazer aparecer outras conseqüências então à conclusão de que, segundo uma visão cristalizadora, ou se
históricas e teóricas dessas construções imaginárias. tem o índio dito "puro", isolado, ou ele é julgado "aviltado". É assim
que se fixa ,z priori o sentido do contato e seus resultados.
Projetando isso sobre a longa história da relação entre os índios
II) COLETA E APRESENTAÇÃO DOS DADOS: A PRODUÇÃO e os europeus, pudemos ver que a mesma imagem foi produzida
DE UMA LÍNGUA E DE UM MODELO DE DESCRIÇÃO pelo conflito das l!ngum: a língua dos índios é apresentada como
incapaz de historicidade e de evolução.
Um homem aviltado e uma língua pobre: eis aí o produto da
1) Uma língua sem historicidade retórica da opressão que se transforma em predição. Essa retórica
se apresenta como um modo de observação e de produção de
A forma com que se obtêm os dados e com que se os apresentam
conhecimentos.
é já uma forma de fabricar uma língua e de instituir uma relação Nos relatos de catequese e/ou de costumes nos quais nos
determinada com ela e seus locutores. informam "sobre" a língua, construiu-se pouco a pouco um
Essa imagem das línguas produzidas historicamente é consti- modo de conhecimento "da" língua ameríndia. Há, assim, um mo-
tutiva da relação de contato. delo de descrição, uma "disciplina" que, como se verá, se inscreve
Os padres, os pesquisadores, no momento mesmo em que no interior mesmo dos relatos e na forma dos catecismos, das gra-
falavam as línguas dos índios, elaboravam uma etnografia na qual
máticas, dos dicionários e até na compilação da produção poética
essa imagem da língua era um componente fundamental.
( das canções).
Se se toma a perspectiva da história da ciência, pode-se dizer
Colocamos, pois, que o objeto - o índio e/ou a língua indí-
que a forma com que se conduziu a pesquisa sobre as línguas dos gena - e a forma de conhecimento que lhe corresponde cons-
índios, e sobretudo a forma com que se produziu a coleta dos dados, truíram-se mutuamente numa orientação que foi determinada
estigmatiza a língua indígena como incapaz de desenvolvimento
pelo apagamento.
interno, matéria sempre inerte, sem história. Uma língua que não Nosso objetivo é compreender o sentido que manifesta o modo
somente é incapaz de influenciar as formas das outras línguas, mas,
de produção das línguas dos índios, no período colonial: quem
muito mais que isso, é ela mesma rígida, simples e pobre.' produziu os objetos de conhecimento sobre as línguas dos índios?
Nossa hipótese é, entre outras, a de que a coleta dos dados e
Segundo que modalidades? Com que firwlidade?
a forma de apresentá-los, tal como se produziu na sua história, Como a coleta de dados é fundamental para a construção do tupi
fabricaram uma língua imóvel face a ela mesma e às outras. imaginário, nossa atenção está centrada nas questões segu inres: quais
são esses dados? Como foram coletados (em que condições)?
Num documento (Barb.ido, II)., propósito do Sununcr Insriturc ofLinguisrics (SIL) pode-
Nosso processo de análise foi examinar, nos diferentes mate-
\e ler: "f o~ I L l vuvtcnt.i ,l ideologia do car.ircr .i-luvrórico. est.irico, e regre'J!:>JVO d,1>; língu.lS riais discursivos produzidos pelos missionários, viajantes e alguns
indíge11.1..,, ;>egundo o qual c-y.,_1.., língu.1.., seriam inc.ip.izes de ,1h . . orvcr dinanuc.uncnrc ,1,
pesquisadores, as observações sobre as línguas indígenas.
nov.i- cxpcriôncias coletivas dos po, o, oprimidos nos ':>CU.., confronto'>" (Orl.mdi, 198-).

90 91
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

2) O período colonial 2.1) Os missionários

A) Quem são os autores? Seu conhecimento é um conhecimento prático, tendo finalidade


religiosa: catequizar.
a) Missionários (em nossa pesquisa, analisamos capuchinhos Para o contato com as línguas indígenas, os missionários ser-
(Y. d'Evreux, Martin de Nantes, em particular); 6) viajantes (Hans vem-se inicialmente de intérpretes' e, depois, utilizam materiais
Staden,Jean de Léry), c) pesquisadores em botânica e em geografia organizados pelos outros missionários, aos quais ajuntam as pró-
(A. Thevet, por exemplo). prias contribuições. Elaboram, assim, uma prática de observação
(paracientífica) que tem uma função didática:
B) Qye modalidades?
Je difleray cinq mois entiers à partir du f!euve pour la Baye afin d'insrruir
a) Relatos em que se encontram: citações de palavras, listas de dans la langue le Pere Bernard et le rendre capable d'adrninistrer les Sa-
palavras organizadas, frases, observações gramaticais, diálogos de crements aux Indiens des deux Aldées que j'administrois. Je lui laissay le
contato (simulados ou contextualizados historicamente), orações Dictionnaire que j'avois cornposé de la langue des cariris, l'art ou rudirnent,
un examen de conscience et directoire de Confession, et quelques vies de
traduzidas; 6) catecismos; e) gramáticas; d) dicionários; e) com-
Saints, le rour traduit en la langue des Cariris, avec le portugais à l'opposite;
pilações e traduções de canções ou hinos.
et comme il avoit beaucoup desprit et la memoire fort heureuse, je le lais-
Nós nos limitaremos, aqui, à análise dos relatos (modalidade say capable d'administrer les Sacrements, et lui donnay connaissance de
B.a.). tout ce qui éroir nécesssaire pour gouverner les indiens, outre ce qu'il vir
A produção das gramáticas, dos dicionários, dos catecismos, no en pratique pendam cinq mois. (Martin de Nantes, 1707, p. 191)
entanto, é igualmente importante para compreender a história do
contato. Gostaríamos de lembrar que, na Europa, nesse momen- Segundo o que podemos ler em M. de Nantes, os missionários
to, é a época da construção das gramáticas e do estabelecimento ensinam a língua para tornar outros missionários capazes de ad-
de uma tradição de estudos teóricos sobre a linguagem, que terá ministrar os sacramentos e governar os índios.
conseqüências cruciais tanto para a política da linguagem quanto
para a ciência. Eles produzem um conhecimento que tende, no imediato, ao
mesmo tempo:
C) Com quefinalidade?
a) a desenvolver seu trabalho missionário, tendo assim umaji,mção
Trataremos desse problema mais em detalhe ao longo desta didático-religiosa;
reflexão. 6) a comunicar com o índio para governá-lo, tendo, portanto,
Para o momento nos é suficiente lembrar que, em geral, essa umafunção política.
finalidade é de ordem prática e teve por função a consolidação da
colonização e da catequese.
M. de Nantes nunca teve interpretes. "j'ay experimenré ~ l'tgard de ces pauvrcs lndiens ce
que Saint Paul écrit [ ... ] car depuis c1ue j'eus appris leur langue avec bien de peine, foute
d'inrcrprête [ ... ]". Ele diz quanto tempo levou para aprender a língua: "je dis pendam !e
temps que je ne savais p.is la langue, qui fut plus de trais .ins''

92 93
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

A concepção de língua aí é utilitária: um instrumento de tra- je leur jetasse quelquc sort qui les fit mourir [ ... ] ils ne m'auroienr pas
balho. Mesmo que a finalidade imediata seja prática, o conheci- épargné (p. 11).
mento que resulta dela é prático ( comunicar, catequizar, governar)
ou erudito (sistematização das gramáticas, dos dicionários, arte da Em seguida, a forma com que ele exalta o valor (cristão) da
doutrina cristã, novas do Novo Mundo). Palavra divina:
Na sua produção de conhecimentos, o modelo adotado é o
[ ... ] jc leur ordonnay trois jours de jeúnc, pendam lesquels nous fimes
modelo europeu: o do latim, do francês, do alemão. Seus relatos
chague jour une Procession, chanranr des Lit.inies, et aprcs avoir béni une
produzem, antes de tudo, um conhecimento da "terra desconhecida",
bonne quanriré d'eau je la partageay à tous [ ... ] ct tous les rats disparurenr
de que a língua é a ilustração. A língua tem um efeito de euocaçao. [ ... ] Toures ces merveilles qui onr été desgrace, de la pure bonté de Dieu [ ... ]
Está aí o centro significativo da relação entre língua e cultura, nessa (p. 31).
perspectiva do trabalho missionário relatado: "Quelques jours apres
que nos gens furem arrivez en certe contrée, ils mirent à chercher Ao longo do seu relato, há uma grande quantidade de refe-
les Tabajares er leurs habitations; ils rrouverent des Ajoupans er rências a essa oposição. Parece, pois, que a concepçdo mesma de
dcs chemins nouvellcment frayez [ .. .]" (Y. d'Evreux. 1615). lingu,zgem que eles expressam é um reflexo da partição: índios
As referências à língua fazem, pois, parte desse conjunto, o que (sem religião)/europeus (cristãos) e por conseguinte, na ordem
nos leva a dizer que os missionários produzem, de preferência, das palavras, feitiçaria/sacramentos. Por outro lado, a imagem
uma etnografia e não uma lingüística. Por outro lado, eles dão da língua indígena que eles produzem é tão rústica quanto a do
origem a uma "cultura local": eis aí a realidade como resíduo dessa índio e sua cultura.
construção (imaginária). Acrescentemos, a propósito dessa relação língua/cultura, que
O que os missionários descrevem, finalmente, é essa "cultura o seu modo de observação realiza aquilo que hoje chamamos ,z
local" (situação de contato) que eles estão produzindo, com todos obseronçáo participante, mas no sentido inverso: eles não se integram
os prcssupostos das relações que aí se estabelecem, pois eles não na vida local a fim de fazer a sua pesquisa, mas ao contrário, são
transpõem os seus limites. Ver-se-á que isso tem conseqüências obrigados a fazer a sua pesquisa, a produzir conhecimento, a fim
consideráveis sobre a imagem da língua. de intervir na vida local. Assim, eles imprimem uma transformação
A fim de ilustrar esse conhecimento a propósito do índio, que necessária a tudo que observam: "encarnam" a cultura local e a "di-
eles constroem na medida em que falam da sua língua, faríamos zem". Está aí o traço definidor do seu "método" de observação.
apelo a M. de Nantes (idem). Quando fala da relação que o índio
tem com a linguagem, M. de Nantes se refere à crença (superstição) 2.2) Viajantes e pesquisadores
do índio aos poderes mágicos da fala, que ele trata de "feitiçaria".
No entanto, quando fala dos "sacramentos" e das intervenções A imagem da língua que os viajantes e os pesquisadores produ-
miraculosas das falas de Deus, ele fala daquilo que é "sagrado". zem nos seus relatos não difere muito daquela dos missionários.
Observemo-lo nos dois fragmentos seguintes: Quando analisamos os relatos de Hans Staden ( 155 7 ), de Jean
de Léry ( 1578) ou de A. Thevet ( 1557 ), verificamos a mesma coisa
Ces pauvres aveuglcs s'irnagincnr LJUe les Prêtrcs ct les Religieux som
que observamos a propósito dos missionários, quanto à produção
les sorciers des Blancs [ ... ] lcurs abus nú servi [ ... ] car sans la crainre que
da imagem da língua dos índios.

94 95
A DANÇA DAS GRAMÁTICAS
TERRA À VISTA

Suas finalidades são, talvez, diferentes no imediato: neste caso, aos fatos de linguagem e faz um elogio às maravilhas do mundo
trata-se de construir um conhecimento menos utilitário, mais europeu: a escrita.
Assim, falando do índio, ele realiza um gesto ritual muito
voltado para ele mesmo.
Os viajantes e pesquisadores falam do seu conhecimento prático, importante: reafirma a crença em sua própria cultura.
da sua experiência e, pela inserção dos dados da sua observação Suas observações têm um objetivo muito claro: mostrar o
mundo desconhecido. Entretanto, se os viajantes têm, por um lado,
sobre a língua, produzem relatos que ilustram os costumes dos
habitantes do Novo Mundo, dando-o a conhecer. finalidades específicas, as suas finalidades gerais, ou seja, catequizar
e/ ou colonizar, fazer conhecer, estão tanto nas suas relações quanto
Pode-se, mesmo aí, ver o embrião da formação de uma disciplina
científica de observação explícita. Ao mesmo tempo, como os mis- nas dos pesquisadores e dos missionários.
sionários, eles contribuem, com seus relatos, para a formação de uma
forma de literatura: a crônica sobre as terras desconhecidas.' 2.3) A língua dos índios

Seu modo de observação não nos parece distinto daquele dos


missionários. Ele se faz pela vida cotidiana. Vamos ver, agora, como eles se referem à língua dos índios, ao
Em geral, os viajantes e missionários também se servem de longo desses relatos.
intérpretes ou do conhecimento (das informações) daqueles que À medida que falam da língua, os viajantes, os pesquisadores e
os precederam. Entretanto, em seus relatos, eles vão, às vezes, além os missionários caracterizam a cultura indígena construindo uma
do conhecimento prático. etnografia, como observamos neste relato de viajante:
Um bom exemplo é o relato de Jean de Léry (1580 ), que nos
"Kauiuim pipeg", c'esr à dire il allait coulcr beaucoup de cauim. li
conta que ele fazia anotações a propósito da língua:
signifiait par là qu'il allair préparer le cauim à l'occasion de la reunion dans
laquelle ils allaienr me devorei· tous cnsemble (Hans Staden, 1945).
[ ... ] quand du commencemem que je fus en leur pays pour apprendre
leur langage, j'écrivois quelques senrences leur lisant puis apres devam,
eux estimans que cela fusc une Sorcelerie disoient l'un à l'aucre: n'esr-ce Ou neste relato do missionário:
pas merveille que cescuy-cy qui n'eusr sceu dire un moe en nostre langue,
en vcrru de ce papier qu'il tient, et qui le fair ainsi parler, soit maintenanr J'ay pris garde p,ir plusieurs fois que quand ils voyoient un Français en
entendu de nous? (1580). colere ils esroienr com me hors d'eux mesme changeans de couleur en face
cr se reriroicnr arriere de sa voye disanr l'un à aurre Ymari Touroussou.
li esr grandement en colere, il cst grandement fasché [ ... ] Si le debac des
Ainda uma vez, entretanto, aparece muito claramente que, ao
paroles et la colcre leur est facheuse bcaucoup plus le sonr les debats en
mesmo tempo que fala do seu aprendizado da língua dos índios,
effect, quand quelques uns d'enrreux tombem cn querelle, ce qui est fort
ele fala da falta de objetividade do índio (feitiçaria) em relação rare et viennent à s'entrebattre, qu'ils appelenr Ianoupan "enrrebattre" [ ... ]
(Y. d'Evreux, 1615, p. 147).
4
Quanto a isso, encontra-se sempre, 110_1, seus textos, a afirmação de que eles não queriam
escrever e que só o fizeram pela insistência de seus amigos ( que tinham o poder), o que nos Nas suas referências à língua, sempre seguidas da tradução
conduz a crer, de um lado, em uma espécie de mecenato e, de outro, na atestação do poder
e dos comentários, os viajantes e pesquisadores produzem uma
da escrita: escrever é ter poder. Dizendo que foram obrigados a escrever, eles dão à escrita
um estatuto de necessidade e, em conseqüência, legitimidade, credibilidade documental, imagem do índio (e dos seus costumes) pela descrição do uso que
objeri vidade.

97
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

ele faz das palavras mencionadas. É preciso observar que, fazendo É essa mesma finalidade didática que produz os recortes das
isso, eles superpõem a voz do europeu, da sua forma de falar, à do situações estereotipadas, segundo o modelo europeu evidente-
índio, que, assim, se perde: mente:

Elles s'cn viendront à vous de mesme gràcc que les hommes, avec [ ... ] Et pour ce que ie sçay que cela apportera une consolation au Lec-
teur'' i'ay mis cy dessom la forme et maniere ordinairc de lcur pourpaler
quelques fruits [ ... ] disant en leur langue: agatouren, qui csr auranr à dire
qui est telle:
comme tu es bon, par maniere de flatteric: aori asse pia, monsrre moy cc
que tu as[ ... ] Sinon, d'un visage rebarbatitvous diront, hipochi va, tu ne
Le matin quand ils se levent ils ,e disent:
vaux rien, dangaiã-pa aiouga, il te faut ruer, avec plusieurs autrcs rnenasses
et iniurcs [ ... ] (A.1hevet, 1878, p. 268).'
Tycn de Koem Bonjour
Nein tyen de Koem À vous aussi
Nestes exemplos, pode-se observar que a língua indígena não
é nem o ponto de partida nem o ponto de chegada: trata-se das Le soir quand il reviennent du travai! et qu'ils se séparent ib se discnt:
palavras dos brancos na boca do índio. Eles falam do índio para
falar deles mesmos e dos seus costumes. Sua técnica repetida é a Tyen de Karuq Bonsoir [ ... ]

seguinte: constroem uma situação de linguagem, produzem uma


(Y. d'Evreux, 1864, p. 14))
palavra, uma frase, ou mesmo um texto, em língua indígena e os
traduzem, juntando sempre os seus comentários e as suas inter-
Este exemplo evoca as técnicas modernas (rápidas) de ensino/
pretações.
aprendizagem da língua no estilo dos métodos comunicativos, em
Esse procedimento nos revela dois aspectos discursivos impor-
que se criam situações de uso e fragmentos de discurso que lhes
tantes: a) as referências à língua servem a uma finalidade didática,
correspondem.
na situação de contato; 6) a tradução contribui para a assimilação
de uma língua a outra e para sua desqualificação.
6) A tradução

a) O contexto didático do contato Chega-se finalmente a outra característica discursiva importante


Eles criam relações pedagógicas - sob a forma de um relato
dessa apresentação das línguas indígenas pelos europeus, nos seus
informal - de contato com a língua: "Les indicns saluaient les
relatos: a tmdução.
français d'apres les costumes de la cerre les uns apres les autres, en
Há - para além da tradução dos fragmentos lingüístico-re-
prononçant le moe Caraiabé que cest le même que 'bon voyage'
ligiosos (orações, hinos) que são diretamente ligados à doutrina
ou 'bienvenu'" (A. Thevet, 1878).
cristã- - três modos de traduzir, que são muito reveladores:

E,..,c exemplo é interess.mtc ponp1e pode ver encontrado r.imbém cm Jean de Léry, b,..,o
l:,1,...,.1 ju,t1fic1ç.lo ("il C\t ,tgré,tblc .tu lccteur'') deix.,1 \ cr .t intcnç:to Je con<..t1tuir um.1 for-
nos 1110..,rr.1 .t crivr.ilizaç.io de certos fr.tgmcntO-'> dcs-c discurso ( viruaçócs estereot ipadas)
nu de C'>Lritd liccr.iri,1, face .1 um leitor e':.pedficu, o J,1::- n.u-r.lti\,l..,, do, rcl,tto.., do<.. p,ll\C'i
que -;;10 repeud.rs de torrn.r qu.t'>C idêntica cm vários autores. Por outro lado, encontra-se
<..k-,conhecido-.. Ê .1 in-.nruiç.lo d.1, crr);u,11.:- de z i,1gem.
1

cm Thever um.i ourr.i vcrv.io de- . . e mesmo texto em que ele jun t.t um corncnr.irio: "de
Iaçon que ce pcuple .ivcc tourc s.t courroisic ne dorme que ".li ce n'est cn rccevanr" Eis um Ore-nwe l'llt1rpetecu,1re = p,1i nO'i".iO que c1it.l!-. no céu. }Jnot1ep01rerfrrere-touo == •..Jntihc.1do
corncnr.irio de natureza etnogdfica. -.ej,1 o vo""º nome.

99
TERRA À VISTA
A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

b. I) A tradução que indica várias possibilidades da língua euro-


econômica, ora perfeitamente incapaz de exprimir as nuances dos
péia para a mesma expressão indígena: "Apres ces paroles il vous
usos das línguas européias.
dit Marapé derere? Comment t'appeles-tu? ~e! est ton nom?
Uma vez que o uso está ligado a situações culturais, a "falta"
Comme veux-tu que nous r'appelions r Quel nom veux-tu qu'on
será relacionada a situações sociais, de elaborações das relações,
t'irnpose ?" (Y. d'Evreux, 1864, p. 243).
sejam afetivas, políticas, científicas etc.
Esta multiplicidade de possibilidades pode ser compreendida
Chamamos esses efeitos de efeitos caricaturais. É a caricatura
tanto como a confissão da incerteza do europeu face à língua
corno imagem. A língua dos índios aparece como língua menor,
desconhecida, quanto, ao contrário, como a constatação das rnúl-
pobre, inexistente.
tiplas opções próprias às línguas européias, comparadas à rigidez
Acrescentamos aqui, em relação ao efeito caricatural, um outro
da língua indígena.
aspecto relativo ao corpo mesmo das palavras: sua transcrição.
As línguas indígenas são línguas de tradição oral. Escrever as
!1.2) A tmduç.u: que apresenta já uma interpretação, estabele-
palavras da língua indígena como elas soam é trabalhar uma sua
cendo inicialmente a tradução "literal" e, em seguida, a forma de
imagem fora de sua história, de seu modo de existência.
compreendê-la em língua européia. Essa tradução vem, em geral,
Devemos lembrar que, mais urna vez, os europeus, nessa relação,
precedida da expressão "quer dizer" ou o equivalente:
estão "codificando" o que encontram de novo - no caso, as línguas

le François luy repond Pà "ouy ?" Repense qui signifie tout cecy, "ouy, de
indígenas - de acordo com o seu código de conhecimentos, do
bon coeur: je r'ay choisi pour derncurer avec roy et pour estre mon compere já-conhecido. E essa é a forma geral da relação entre diferentes:
et du nombre de la familie: je t'ay préfere à un aurre car ic tairne ct nús a redução do outro ao um. No entanto, os modos de fazê-lo e as
semblé estre bon hornme" (Y. d'Evreux, 1864). conseqüências é que nos interessam mais especificamente. Porque
esses modos e suas conseqüências é que produzirão efeitos de sen-
Essa forma de traduzir acrescenta já muito à simples expressão tidos específicos à nossa história, ao sentido que se vai construindo
(Pa) indígena, o que produz uma impressão de rusticidade da para o Brasil. Sermos falados pela memória, pelo domínio do saber
língua indígena. Mas ela não é tão des-identificadora quanto o europeu (seu interdiscurso), resulta em certos efeitos que reAetem
terceiro processo. esse modo de fazê-lo.
Podemos evocar, aqui, a distinção entre discurso indireto/dis-
b.3) A "tradução cultural'; que interpreta diretamente. "Le sauvage curso direto, tal corno foi elaborada por Voloshinov ( 1976). Os
luy dit -Auge-y-po voyla qui est bien i'en suis infinirnent aise, tu europeus, quando transcrevem a língua indígena, o fazem a partir
m'honores beaucoup, tu sois le bien venu et tu ne sçaurois ou aller da oralidade; e, no entanto, eles não relatam em discurso direto:
pour estre mieux teceu" (Y. d'Evreux, 1864, p. 243). eles transcrevem a partir da sua própria escrita européia. Assim,
Neste último procedimento, a tradução européia completa produzem a elisão da história da relação entre a oralidade e a es-
de tal modo a língua indígena que esta aparece como "falta". A crita. Como resultado, fabricam uma língua indígena que soa mal
tradução simula completando aquilo que a língua dos índios pa- como se escrevêssemos nossas línguas (ocidentais) diretamente a
rece não poder dizer. A língua indígena fica, assim, considerada partir do oral, sem a mediação da historicidade da escrita. Elas se
nas suas falhas. Ela é pensada ora como sendo exageradamente tornam simulacros viesados.

100
101
T E R ll A À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

É esse efeito "caricatural" que nós temos, face à língua indígena. 2.4) O rnnterinl lingüístico nos relatos
Por tal procedimento, eles tornam natural aquilo que deveria se
explicitar na sua historicidade. Não fica senão o produto de uma A) As referências à língua se fazem fundamentalmente em
simulação, deixando de lado aquilo que deveria ser o resultado de termos de vocabulário: palavras isoladas ou listas de palavras.
urna elaboração específica: uma escrita para uma língua de tradição Essas referências cumprem, em geral, como dissemos, a fina-
oral. Sem esquecermos que mesmo hoje, com os rigores da ciência lidade de transmitir (anunciar) o conhecimento sobre o Novo
da linguagem, não temos senão aproxirn.içócs malfeitas. Mundo: as palavras correspondem a seres, costumes, aspectos da
Feitas essas observações a propósito d,1 construção das carica- natureza, espécies animais.
turas, voltemos, pois, à questão da tradução. Sendo dado que essa referência à língua se realiza, primordial-
Se, nas perífrases (explicativa,) das traduções, se pode apreender mente, através de abundantes citações de palavras, com os seus
a intervenção das concepções européias, um outro aspecto que sentidos, podemos concluir que a atividade que ocupa o núcleo
podemos aí observar é igualmente rico em conseqüências. da atenção e os esforços de documentação dos europeus, face ao
Trata-se do faro de qll(: as perífrases - além da expressão das índio, é a ação de nomear.
concepções européias - são sintomas da "científicidade", isto é, Para os europeus dessa época, "conhecer" é "saber os nomes",
de certa análise ( etnográfica, semântica). Poder-se-á apreender esse é dar os nomes, é nomear'
aspecto de uma maneira mais clara nas traduções que se referem A esse respeito - quem finalmente é objeto do conhecimento:
a fatos de ordem gramatical: "D'aveugles tout à taicr ie n'en ay o questionador ou o questionado? - queremos reafirmar o que
point veu, et toutestoie ils en ont qu'ils appellent Thessa-urn diz Sartre (1986):
'aveugle, Cheressa-urn 'je suis aveugle; et Ressa-um 'tu es aveugle"'
(Y. d'Evreux, 1864, p. 156). Todo homem-objeto suscita uma remissão a alguma coisa que cu não

No seu aspecto didático, não se trata somente de se referir à chamarei o hornern-sujeiro, o que não é correto, mas que cu ciumarei
antes o horncm-qucstion.idor. O questionador deve ser escudado enqu,111to
língua, mas também de fazer aparecerem princípios de sistema-
coloca a quesrào e não enquanto questionado.
tização (nomes, verbos). Sem deixar de lado, evidentemente, as
observações de ordem etnogr.ifica:
~,nto a mim, são sempre os índios que quero conhecer. E é
ainda Sartre que nos indica essa possibilidade porque, cm seguida a
lls .ippcllcnr l'amc rln, 111011 ame, ché-rl n, ron ame De.t» nos ames
Ürc.tn, vos .nncs Penn, leurs .unes y,m: et cccy rant que l'arnc dcrneure isso que foi citado acima, ele dirá: "O índio, na sociologia clássica,
eníermée d,111s le corps, car ih appellenc d'un aurre nom l'arne separée du na etnografia clássica, eu não o compreendo [ ... ] no entanto cu
corps, sç.ivoir, .ln-çouérc (Y. d'Evrcux, 1864, p. 157). compreendo Lévi-Strauss, e percebo neste momento que posso
igualmente compreender o índio". Não é preciso, diz ele, "senão
Ver-se-á, mais adiante, como isso está explicitado mais clara- aprofundar as diferenças".
mente em Jean de Léry. B) Temos, além das palavras, cm número mais limitado:

Veremos que .1 rcl.içáo com o v.ibcr, de seu Lido, ,e define diferentemente p,u.1 c.irólico , e
prore\r,1nrc..,.

102 103
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

a) Expressões do gênero "ma teste", "le foyer des portugais", que colocados no contexto da língua européia. É preciso observar que
apresentam sempre no seu contexto específico para fazer conhecer o contexto de que se fala aqui é o contexto histórico (amplo) e o da
os índios, para mostrar como eles são aos olhos do estrangeiro. enunciação (imediato), assim como o próprio contexto lingüístico
b) Algumasftases, como, por exemplo, "Regarde: Notre repas" (a gramática latina como paradigma). Não é, pois, no contexto
qui arrive" (Hans Staden, 1945) aparecem nesses mesmos contextos lingüístico e/ou situacional indígena que aparecem as palavras, as
com a mesma finalidade. Essa frase, na sua aparente contingência, frases ou os textos da língua indígena, mas no contexto cultural,
corresponde a objetivos bem dirigidos: ela serve para ilustrar conversacional, lingüístico (gramatical) das línguas européias. Daí
a antropofagia (e mostrar o "natural" do índio e a coragem do a existência permanente de uma refração de imagem que resulta
europeu, face a ela). no efeito de estranheza, e mais freqüentemente no sentido de
Essas referências se organizam sempre no sentido de mostrar uma caricatura.
"particularidades", "caracterizar" a língua, os índios e sua cul- Nesse caso também se confirma o que dissemos mais acima: os
tura. relatos produzem urna "cultura local", que é o resultado da situação
c) Alguns textos também são mencionados nos relatos. de contato cujo contexto é descrito pelos relatores, e que é consi-
Eles aparecem sempre de dois modos: derada por generalização como a "cultura" indígena no seu todo.
A menção da língua, de seu lado, se vê engajada pelas informa-
- como reproduções, para documentar situações de discurso ções que devem produzir sobre a cultura, por sua necessidade de
vividas; produzir um saber que ilustre o Novo Mundo. Engajamento tanto
- como textos fixados produzidos pelos relatores: traduções de mais marcado quanto essa menção da língua tem como referência
orações, de hinos etc. a cultura européia: é preciso tornar esse Novo Mundo legível pela
cultura européia. Daí a unicidade da língua (há, no entanto, várias
Entre os textos que aparecem como documentos, podemos línguas indígenas), a transparência dos comportamentos etc.
incluir as conversações que visam a didática do contato no estilo
dos métodos de ensino de língua estrangeira, da tendência co- 2.5) Um caso excmplarijean de Léry
municativa.
É preciso, no entanto, chamar a atenção para dois fatos: Não podemos deixar de fazer menção particular a esse autor,
dada a sua importância quanto às questões estudadas aqui.
1) Em geral, esses textos apresentam situações muito estereoti- Jean de Léry é conhecido, entre os tupinólogos, como o autor
padas, à moda européia, e são simulacros que, em vez de fazerem das primeiras observações gramaticais explícitas sobre a língua
aparecer a língua dos índios, fazem aparecer a forma européia de indígena, e o primeiro a publicar um texto nào-traduzido." que
se apropriar dela, reduzindo-a. reproduz conversas típicas dos índios (Rodrigues, 1987 ).
2) É preciso, finalmente, considerar que pouco importa que se Seu texto, o mais célebre, constantemente reproduzido pelos
trate de palavras isoladas, de frases ou de textos; eles são sempre outros relatores e pesquisadores, é o "Colloque de l'entrée ou arrivée
en la terre du Brésil entre les gens du pays nornrnés Tupinarnba et

A releiç.io (rep,is) aqui é H.1m Staden, ele mesmo. A. Thcvcr rinh; publicado (11"1) textos de oraçócs rr.iduzidos em rupinarnb.i.

104 105
TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

Tupinaki en language sauvage et français" (cap. XX de sua Voy,zge abordagens da língua dessa época, esse texto faz parte da produção
á !tZ Terre du Brési/, 1580 ). etnográfica, produzindo assim urna relação com a linguagem que
Além do respeito que inspira, em razão do seu texto, Jean de é, antes de tudo, a expressão do europeu face à cultura que ele
Léry apresenta ainda outra particularidade: ele não é considerado coloniza, e não o documento da situação cotidiana do falar dos
um missionário, mas um viajante: "Simples sapateiro, estudioso de índios, "autêntico".
teologia, ele embarcou com os outros para colaborar com a empresa O colóquio, simulando urna conversa entre o francês e o índio,
colonizadora de Villegaignon" (S. Milliet, 1980). Ele observou e adquire a forma de um exercício pedagógico segundo um esque-
anotou aquilo que viu "enquanto simples curioso, homem honesto, ma estrito de questões e respostas, o qual, de seu lado, organiza
desejoso de levar a seu mestre Calvin informações detalhadas" (S. campos semânticos bem fixados: fórmulas de saudação, os nomes
Milliet, idem). de partes do corpo, de cores, de plantas, de armas, de animais, de
Como se pode ver, colonização e trabalho religioso se articulam povos indígenas etc. É uma aula (método) de língua, cujo para-
de novo ( mesmo que se negue a Léry o nome de missionário), de digma é o europeu:
maneira significativa. É Léry, ele mesmo, quem dirá:
T. Maé pérérour, de cararnérno poupé? ~elle chosc cst-ce
Com me doncques mon inrention est de pérperuer ici la survenance que tu as .1pportez
d'un voyage fait expressemenr cn l'Amériquc pour establir !e pur service dedans rcs coffres?
de Dieu, tant entre lcs françois qui s'y estoyenr rerirez que parmi lcs Sau- F. A-aub. Des vêtemcnrs.
v<1ges habitam, en ce pays-la aussi ay je esrimé estre mon devoir de faire T. Mara v.ié? De quclle sorte ou
entendre à la posrcriré combicn le louange de celuy quí cn fut la cause er coulcur r
le motif doit esrre à jamais recornandable. ( 1980) F. Sóbouy-cré De bleu
Pirenc Rouge
De nosso lado, gostaríamos de mostrar que: Ioup jaunc
Son etc Noir, etc.

a) Seu "Colóquio" é marcado por finalidades prático-religiosas.


Não se trata de um discurso de viajante: sua prática de teologia A relação com a língua imaginária constrói aqui um diálogo.
está, ao contrário, muito presente nos seus escritos. O que o A forma com que eles recolhem esse material é a mesma de que s<:
diferencia de outros missionários, nos seus relatos, é que ele servem todos os viajantes e os missionários da época: pelo intérprete
fala do lugar do protestante. ou por informações dadas por aqueles que os precederam. Sem
esquecer que Jean de Léry disse, no seu texto, que ele anotava as
6) Considerar seu "Colóquio" corno alguma coisa de especial,
palavras no momento mesmo da sua observação, o que nos conduz
enquanto primeira reprodução de um texto não-traduzido,
a outra particularidade apreciada nesse autor:
autêntico, espontâneo, é, a meu ver, um equívoco.

c) Sua preocupação em ser "científico". Vejamos o que podemos


Seu "Colóquio" é fortemente contextualizado nas situações
dizer disso. Suas finalidades "científicas" não o impedem de
de linguagem européia e é, como as outras manifestações, afetado
manter relações estreitas ( e engajadas) com finalidades religiosas
pelo "efeito de caricatura" do qual falei acima. Como todas as
e colonizadoras.

106 107
A DANÇA DAS GRAMÁTICAS
TERRA À VISTA

igualmente ser observada, ainda que de forma bem menos clara,


Como disse1;1os, Jean de Léry, em seu discurso, ocupa O lugar
no s~u modo de observar o índio, seus costumes e sua língua.
do ~rotestante. E preciso saber o que isso significa, para a época, e
E no modo de observação - de descrição e de compreensão
agudo que concerne à questão da língua dos índios, a qual tenta-
do índio e da sua cultura - que Léry atesta a sua abordagem mais
mos responder aqui.
"científica": conhecer profundamente a língua, não ficar satisfeito
. Luter_o, no século XVI, colocou em causa as estruturas rígidas
em saber somente o necessário para comunicar (conhecimento
h1er_arqu1zadas da Igreja e deu também muito mais importância
prático). Tudo isso o torna menos sensível ao preconceito face à
ao s1'.np!es_fiel. O sujeito, submetendo-se, sabemos, não ao papa,
língua dos índios e face à sua cultura."
mas a Blblia, para ter acesso à significação das Escrituras, terá ne-
A questão da língua, na Reforma, como dissemos, torna-se uma
cessidade de conhecer profundamente a língua. É um dos traços
questão crucial na relação entre o sagrado e o profano, estando o
da Reforma.
problema da relação do sujeito com o saber ligado ao problema
Isso conduziu CI. Haroche (1984) a mostrar que Lutero pre-
do domínio da língua.
figurava, assim, já o individualismo do século XIX, estando a li-
É daí, pois, que deriva o caráter de científicidade que Jean de
berdade do indivíduo conjugada ao culto da pátria: é um verda-
Léry dá às suas observações sobre o índio e sua língua, sendo en-
deiro manifesto humanista que vai conduzir à idéia de
tão parte de suas convicções e de suas práticas religiosas. A forma
não-determinação do sujeito. É um manifesto político também,
científica de mostrá-lo é a explicitação das regras da gramática da
observa Haroche, que faz pensar, sob vários aspectos, no Contra-
língua dos índios.
to Social de Rousseau.
Seu gosto pela ciência, sua objetividade não o impedem no
Pela crítica sistemática dos textos e da autoridade, pela rejeição
entanto de filtrar suas observações gramaticais por modelos eu-
da tradição e proveito de urna pesquisa das fontes, pela insistência
ropeus: compara fatos da língua indígena ao latim, ao grego, ao
no pape! d~ sujeito, o humanismo da Reforma parece fazer pro-
hebreu (consoantes guturais, difíceis de pronunciar), para tornar
gredir a idéia de liberdade.
suas observações mais "familiares" (Rodrigues, 1987).
Trata-se, na realidade, de uma nova forma de assujeitamento.
Podemos concluir, assim, que, ao inverso daquilo que se pode
Com a Reforma, se esboça uma acepção nova do sujeito, 0 qual se
crer, em Léry a cientificidnde, ajzmçdo colonizadora e a mtequese
define entre dois pólos que não pararão de ganhar importância nos
não se excluem, mas são parte de um mesmo procedimento.
s~culos que se seguem: o pólo da objetividade ( caracterizado pelo
No Brasil, esse modo de relação com os índios não parou de se
ngor e as crfras) e o da subjetividade ( caracterizado pelo inefável
fazer e é hoje, ou melhor, está hoje fortemente estabelecido. Pelo
e pe!a indeterminação) (Haroche, idem}.
estudo desses discursos do período colonial podemos observar
E nesse contexto que aparece Jean de Léry. Ele tem, pois, um
as origens de uma tradição que se constituiu em paradigma do
papel missionário: o da confrontação com o catolicismo, sua forma
contato (Orlandi, 1987).
de existir, de estar na América, de conceber o índio, de catequizá-lo.
Faz também parte do seu trabalho ver no índio esse outro sujeito
possível, na perspectiva humanista da Reforma. 10
E, no cnt.inro, n.io e mcrios sensível ,1 e-.,c, rncvmov preconceito\ quando <,(.' tr.it.i de \U.l\

Se essa confrontação se explicita nos ataques constantes contra cxpcriénci.i-, individu.ii- - e nio d,1.., idéi.i-, ger.ti.., - Cice a um índio particul,ir e "ilhl
culrur,i. de fab, ent.io, d.1 \lia supcrvtiçào extravagante, dos turorcs que os lev.un .1 morder
A. Thevet - que estava no Brasil como cosmógrafo, mas era padre cu1110 º" '\_,ln cnr.iiv ecido-" ou enr.io ele faLi do interlocutor "estúpido" que ele encontrou
francrscano e se fez tratar por Léry de grande mentiroso-, ela pode e que o .unc.içou de morre.

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TERRA À VISTA A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

3) Do imaginário fantástico ao Nada de muito diferente com os textos dos missionários e dos
imaginário científico viajantes que não são portugueses, quando se trata da América
lusitana.
Referindo-se aos cronistas portugueses do período colonial, A partir da análise que nos deixaram esses relatores, podemos
B. de Holanda ( 1977) diz que se pode aí discernir "um realismo estender as afirmações aos cronistas em geral que falam da América
cornumente desencantado voltado para o particular, o concreto". lusitana: os missionários, os viajantes não-portugueses (os alemães,
Ainda que, diz ele, seja "uma curiosidade relativamente moderada, os franceses). Assim, podemos dizer que o imaginário que conta é
submetida a uma inspiração prosaicamente utilitária que dita as aquele que se instalou na América lusitana, mesmo se não foram
descrições destes aurores', desde Pero Vaz de Caminha. os portugueses os seus autores (os seus agentes diretos).
Eles não se deixam seduzir pelo impossível. Eles não se deixam Gostaríamos, no entanto, de fazer algumas observações àqui-
guiar por razões fantásticas. "Eles têm um verismo natural, pura- lo que diz B. de Holanda. Em vez de falar daquilo que ele deixa
mente descritivo, feito de fragmentos, falho, por assim dizer, de entender por "imaginário pedestre", preferimos afirmar que,
perspectiva: a característica do cronista e, na verdade, do escrivão paralelamente ao empreendimento mercantilista-colonialista, o
medieval, é precisamente a acumulação de minúcias justapostas", imaginário de que os europeus se nutrem não é mais o imtZginti-
ao contrário daquele do Renascimento, que permanece mais na rio j'intdstico, mas o im,Igin,írio "científico" ( a ser colocado entre
visão de conjunto do que no detalhe. aspas). É esse imaginário que é necessário para a Europa face ao
Os bens materiais se mantêm corno medida do seu ima- Novo Mundo. A construção desse imaginário faz parte das suas
ginário. formas de conquista. Um imaginário que, no fim do século XVIII
A precisão com a qual os cronistas falam/revelam aspectos e começo do XIX, se disciplinou e se explicitou nas suas formas
da fauna e da flora, da utilização das drogas locais é de um rigor de objetividade, constituindo uma ou outra ciência.
quase científico ( eles rematizam as novidades e as vantagens delas). Em relação à forma de conhecimento de que acabamos de falar
Entretanto, isso não significa, diz B. de Hollanda (idem), "um ao longo de nossa análise, trata-se da constituição dos métodos
gosto pela natureza". Eles se comportam como pilhadores: o que de observação ou, como diz De Gerando (in Copans et Jamin,
os atrai são justamente as "particularidades" que se libertam da 1978): "A ciência do homem também é uma ciência natural, uma
própria ordem natural. ciência de observação a mais nobre de todas" ( Considérations... ).
É uma ação mercantilista que os portugueses empreendem. Momento no qual a própria observação se torna objeto de reflexão.
Assim, B. de Holanda (ibidem) confronta o realismo "pedestre" Essa diferença entre a época colonial com sua observação "cientí-
português ao imaginário "edênico" espanhol face ao Novo Mundo. fica" e aquela que se instaura no século XIX é assim expressa por
Ou, como ele diz: Leclerc (1979):

Não é menos verdade que todo o mundo legendário nascido d.is con- Os guias de observação dos século, XVI e XVIII dizem que coisa
quistas castelhanas e que suscitaram o Eldorado, a, Amazonas, montanhas observar, sua atenção incide sobre os objetos a observar, enquanto que a
de prar.1,, lagos mágicos, fontes de juventude, tende a se enfraquecer ou metodologia da observação que se elabora a partir do século XVIII diz
a se ofuscar desde que penetramos na América. como os observar.

110 111
TERRA À VISTA
A DANÇA DAS GRAMÁTICAS

Nos relatos do viajante Príncipe Wied de Neuwied (1815-17),


às injunçóes históricas e políticas. Mesmo se não era codificado
podemos observar essa diferença do século XIX em relação ao pe-
estritamente sob a forma positiva de um modo de conhecimento
ríodo colonial. Preocupado com as regras de observação e a validade
científico sem aspas, o saber produzido pelos relatos do período co-
das suas afirmações, ele se vale de argumentos que respondem às
lonial é o germe de uma ciência, que se explicita no século XIX.
condições de legitimidade científica. Pode-se ler isso nos argumentos
Acrescentamos ainda: para as necessidades da época ( colonial),
que atravessam seu relato, os quais são uma espécie de diálogo com
o importante é a mistura entre as informações "científicas" a pro-
as "considerações" de De Gerando ( 1800 ): "Não é senão uma longa
pósito das novas terras e a constituição dessa forma de literatura
estada neste país que pode nos dar uma noção dessas línguas''. ou
no relato. É por isso que os relatos puderam servir aos viajantes e
"É em geral difícil fazer o selvagem repetir várias vezes os nomes
aos pesquisadores, assim como aos missionários.
dos objetos, o que no entanto é absolutamente necessário para
Religião, ciência e política encontraram no relato um modo
representar com exatidão os sons bárbaros [ ... )".
de coexistir, de construir o seu imaginário na imbricação das suas
Eis comentários que não se parecem de nenhuma maneira com
relações de sentido. No período colonial, os europeus que estavam
os relatos do século XVI e XVII, em que os fatos da língua são
engajados no contato e no modo de apropriação da América en-
dados a conhecer. A distância do olhar do observador ganha, no
contraram no relato uma forma privilegiada de acesso e de difusão
século XIX, seu estatuto de necessidade.
(reprodução).
Neuwied coletou seus dados através de um intérprete - mas
O modo que eles encontraram de fazê-lo - aliando crônica e
ele teve a preocupação de levar o seu informante para a Alemanha,
ciência - confere aos relatos a capacidade de juntar uma função
para ser objeto de observação de um especialista cm língua:
esclarecedora ( informar sobre o Novo Mundo) a uma função edi-
ficante (reafirmar a cultura européia) e cristianizar o mundo.
Eu escrevi em parte o Vocabulário quando eu estava à beira do Rio
É assim que, ao lado do conhecimento (prático) da língua, o qual
Gr:111de de Belomonte; eu o aumentei em seguida, à medida que o jovem
Qucck fazia progressos em alemão. Depois eu tive a ocasião de fazer era objeto de um trabalho cotidiano das relações colonizadoras, as
examinar este Botocudo pelo senhor Goetling, um sábio dotado de um notícias a propósito da língua eram, nos relatos, contextualizadas
singular poder de pcnerraç.io para o estudo das línguas, o qual teve a nesse modo de apropriação, no qual o conhecimento e a literatura
gentileza de me comunicar o resultado de suas pesquisas sobre a língua estavam a serviço dos mesmos desígnios, seja do Estado seja de
da qual nós nos ocupamos. Deus.
A forma com que eles se referem à língua indígena, a forma de
No entanto, todas essas precauções não mudam a velha pers- registrar os dados, de construir a sua imagem no interior de um
pectiva com a qual a Europa olha os índios e observa a sua língua: contexto, em que se dá a conhecer o Novo Mundo, é parte consti-
"Todos os índios do Brasil não têm a mesma pronúncia. Alguns tutiva desse imaginário, necessário aos mecanismos de dominação
pronunciam os fins das palavras como os alemães, e outros como da época: o imaginário "científico".
os franceses [ ... ] ". Gostaria de acrescentar que, tanto no período colonial quanto
O paradigma da observação nunca saiu do seu antigo lugar: no século XIX, eram sempre os estrangeiros (religiosos ou não)
no século XIX ele continua na Europa. que manifestavam interesse pelas línguas indígenas, dedicando-se
Por outro lado, mesmo se não é o centro da reAexão, o "como" ao seu estudo. No período colonial, esse interesse se manifestava
observar sempre correspondeu às necessidades do observador e da Europa em relação ao Brasil: os jesuítas, os capuchinhos, J. de

112
113
TER R A À VISTA

Léry, Hans Staden, com suas empresas de catequese ou coloni-


III. Reimpressão do singular:
zação. Em seguida, no século XIX, são os naturalistas alemães,
austríacos, franceses, vindos no cortejo de núpcias de D. Pedro I, um olhar francês sobre o Brasil'
que tomaram a si a empresa desse conhecimento. É com D. Pedro
II, atraído pelo romantismo, que muda a direção desse interesse:
ele se volta da América para a Europa.
8. de Holanda diz:
Aos leitores
A exaltação do antigo nativo do país só vai surgir verdadeiramente entre
os aurore, de língua portuguesa [ ... ) em uma época na qual, deixando de
corresponder, para a maioria dos autores, a uma realidade .irual, o índio está
apto a se tornar uma idealidade, um símbolo: o símbolo de que se servirão
os luso-brasileiros a fim de ,e opor ao, portugueses da Europa.

Mas é já um limite que não podemos atravessar com a presente


Os relatos dos missionários e dos viajantes europeus ao Brasil, em
análise. As condições nas quais se produziram desde então oco-
particular os franceses, que datam dos séculos XVI e XVI 1, foram
nhecimento e a rematização da língua e dos índios são diferentes
objeto de reedições sucessivas a partir do século XIX. A maior
e merecem outra reílcxào.
parte dessas reedições comporta um aparelho crítico, composto
Para concluir nossa reflexão a propósito dos relatos nos séculos
de prefácios e notas que remetem ao fio dos textos originais.
XVI e XVII: o ar horroroso do índio, o ar horroroso (a-histórico)
No quadro de nossas pesquisas sobre o que foi, e é ainda, o
da língua, passada a limpo pela catequese e pela colonização, na
"olhar francês" sobre o Brasil, assim como sobre as formas does-
civilização ocidental, adquirem, através dos relatos, o privilégio
tabelecimento da lingüística indígena no Brasil, interessamo-nos
de ter uma história, de fazer parte da História. E isso só é possível
por esses aparelhos críticos e pela sua evolução, pelo modo como
pela construção de um saber relatado, que se faz sobre o índio, mas
eles orientam, e mesmo determinam, a leitura desses documentos,
no qual ele não tem voz. É, pois, um dizer que impõe o silêncio ao
sua exploração e a produção atual dos seus sentidos. Esperávamos
índio. Silêncio de que ele se servirá para resistir.
que a codificação, a partir do século XIX, das regras de observação
etnográfica "objetiva", "científica", tivesse alimentado os aparelhos
críticos das reedições de tal forma que pudéssemos encontrar os
seus vestígios. É bem esse o caso. Entretanto, se esses aparelhos
críticos tentam extrair desses documentos o que aí apresentaria

Jog,unu.<-,, .1q11i, com .1 palavra rcnnprcsvào (n.·edi):to), que tem o sentido de rcpcuç.io e ,111..le1.1

de "imprev-.io" ( . . cnvaç.io): e ,l p.tl.tvra .'-iingul.1r. que tem o sentido do "único" e ~e refere ,\


obra de 'I hever (S111gu!t1rhlt1deJ rlil Frt1flfll, lnt.irttc.t). Agradecemo", .1 Paul Henry .1 conrri-
buiç.io de..,r.1 nor.i "Ao, lcuorc-," Evre texto foi apre-enr.ido no Colóquio Sobre Vr.ijanrev,
em 1988, 11.1 ENS, cm Paris.

114 115
TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

um interesse científico, descartando as "fantasias" (notadamente processo que chamamos de "ideologia". Não se trata, pois, como
pela confrontação dos relatos uns com os outros), ou procurando procuramos mostrar, de "ocultação" e de "engano", mas de um des-
corrigir o viés induzido pela óptica religiosa e política dos missioná- conhecimento de sentidos, desconhecimento esse produzido por
rios, a atualização que fazem dos textos se efetuou exclusivamente processos (históricos) discursivos cuja materialidade (lingüística)
numa perspectiva definida, aquela que denominamos o discurso pudemos observar e discernir. Ou seja, podemos compreender a
das descobertas ("O Brasil foi descoberto") e não no sentido da ideologia como o fato de que os sentidos são fixados historicamen-
abertura de outras perspectivas, de outras direções de exploração te em uma direção determinada. Até as margens dos textos (suas
desses documentos, de outras possibilidades de produção atual notas) contribuem para isso.
dos seus sentidos. Essas "atualizações" sucessivas descartam a pers- Do mesmo modo, podemos compreender que a história não
pectiva do que poderia ter sido e poderia ainda ser o "discurso dos se define em relação ao tempo, mas ao poder.
índios" ("O Brasil foi invadido") ou o "discurso da invasão", assim
como também descartam a possibilidade de um terceiro discurso,
que não é nem o da descoberta nem o da invasão: o da formação, 1. Introdução
com os imigrantes, os escravos vindos da África e os índios aqui
existentes, de um novo país, tendo a sua própria história. Melhor, Nosso objetivo geral é apreender as diversas maneiras que tem o
a "atualização" crítica, de configuração "científica", "objetivante", Velho Mundo de integrar, em seu saber, a diferença que represen-
manteve, sempre reforçou e mesmo enfatizou o fechamento da tam as línguas do Novo Mundo. Ao mesmo tempo, procuramos
leitura, da exploração ou produção de sentidos dos relatos no detectar elementos que estão na origem do estabelecimento da
quadro particular do discurso europeu da "descoberta". Isso é ver- lingüística indígena (antropológica) no Brasil.
dade mesmo para as reedições brasileiras recentes desses textos, No presente estudo, partimos dos resultados de uma análise
cujo aparelho crítico é, também ele, orientado antes de tudo no anterior (cf. aqui mesmo, p. 73) sobre a inscrição do tupi nos
sentido de uma atualização "científica", "objetivante". relatos dos missionários capuchinhos franceses, assim como nos
Desse modo, podemos dizer que a exploração dos relatos, que relatos dos cientistas e dos viajantes dos séculos XVI e XVII.
são de importância crucial para a história do Brasil, se efetuou Analisamos em seguida a reimpressão desses textos nos séculos
através de suas reedições sucessivas, sob o acobertamento do XIX e XX na França, assim como as traduções feitas no Brasil no
tratamento científico, de um modo que faz de fato obstáculo ao século XX.
estabelecimento dessa história do Brasil. É o que procuramos A finalidade desta análise é compreender os processos signifi-
mostrar, apresentando os resultados de nosso estudo da série de cativos que resultam dessas diferentes reimpressões.
aparelhos críticos das reedições sucessivas de certos relatos. O que a inserção de notas e de prefácios no século XIX significa
Este trabalho tem também um outro objetivo, concernente ao em relação ao discurso dos relatos do século XVII?
estudo de certas modalidades: da produção do sentido (que cha- Consideremos, inicialmente, o que esses discursos significam
mamos "processos discursivos") com suas condições de produção no século XVII.
e a evidenciação das limitações do ponto de vista "cientihcista" Esses relatos apresentam um discurso sobre o conhecimento
Por outro lado, e não menos importante, temos a possibilidade da terra desconhecida, seus habitantes e seus costumes, de que a
de observar a produção das evidências a que nos prendemos no língua é ilustração, tendo apenas um efeito de evocação.

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

Segundo o que pudemos observar, produz-se um apagamento lizadas em um modo de dizer no qual conhecimento e literatura
da cultura dos índios, e o modo como a língua aí está inscrita faz se juntavam a serviço do Estado e/ou de Deus.
parte desse processo. No século XVII utilizava-se a palavra "relation" ou "rapport"
A técnica discursiva utilizada é eficaz: eles produzem uma para significar "relato daquilo que alguém viu pessoalmente". Mas
palavra, urna frase, ou mesmo um texto, um diálogo, em língua podem-se observar já aí os começos de uma diferenciação progres-
indígena e os traduzem juntando sempre seus comentários, suas siva entre ficção ( narrativa) e ciência (relatório). O "rapport",
interpretações culturais. As referências à língua dos índios são sabe-se, especializa-se pouco a pouco para trabalhos técnicos e
filtradas pelos "modelos" europeus: a gramática latina, a língua científicos: relatório (mpport) de atividades, de pesquisas. Há
alemã e a língua francesa. disciplinarizaçào dessa forma de escrita. O relatório (rt1pport) de
Os autores dos relatos falam de seus conhecimentos práticos, pesquisa supõe hoje o domínio das regras de observação e de es-
de suas experiências no Brasil, e, pela inserção dos dados da língua, critas científicas. O relato (relation) se faz em outro lugar, na lite-
produzem discursos que ilustram os costumes dos habitantes do ratura. Essa separação de formas não era, no entanto, produtiva
Novo Mundo. Sua finalidade (científica) declarada - dar a co- no século XVII.
nhecer o Novo Mundo - carrega objetivos religiosos e políticos: Feitas essas observações, cabe então perguntar: o que a reim-
a catequese e a colonização. Conhecer, no século XVII, segundo pressão (reedição) desses textos, que configuram os discursos dos
esses textos, é nomear, o que, no discurso do colonizador, institui relatos sobre o Novo Mundo, significa em um processo discursivo
uma relação administrativa: nomear é governar. como este?
Por outro lado, esse caráter utilitário e empírico-descritivo im- A reimpressão intervém de forma determinada no discurso do
presso à inscrição das línguas no discurso das grandes descobertas texto original, em nosso caso, o discurso europeu sobre o Novo
lhes dá uma certa especificidade, pois, por não serem estritamente Mundo e seus habitantes, sua língua e seus costumes. Corno esse
codificados sob a forma positiva de um modo de conhecimento discurso europeu sobre os índios (sobre o Brasil) significa nessa
explícito (como se dará no século XIX), os relatos oferecem à reimpressão?
religião, à ciência e à política um espaço simbólico de coexistir. É essa questão que nos propomos responder.
Paralelamente, produzem as condições exatas para o exercício do
poder: são modos de administrar o Novo Mundo no interior do
contexto das relações de força estabelecidas pelos diferentes países 2. A incompletude do texto
colonizadores na Europa.
A maneira como se referem ao tupi, a forma de registrar os As reimpressões trazem um componente (de organização textual)
dados, de construir a língua do índio no interior do contexto em diferente: as notas e o prefacio.
que se faz conhecer o Novo Mundo, produzem uma forma de Consideremos inicialmente suas características gerais.
dominação da época: a passagem do imaginário fantástico para o O prefácio pode apresentar-se sob várias formas e diferentes fina-
imaginário científico. lidades: há os prefácios-justificativas, os prefácios-agradecimentos,
No entanto, mesmo que o conhecimento prático das línguas os prefácios-desculpas, os prefácios-críticas, os prefácios-desafios,
"exóticas" fosse o objeto de um trabalho cotidiano nas relações entre outros. Ele pode constituir um prólogo ou um epílogo. Seu
colonizadoras, as notícias a propósito da língua eram contextua- tamanho também é muito variável: há os muito pequenos e os

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

muito longos. Podem mesmo atingir o estado de gênero literário além de certos limites, e apagar as transformações de sentido
independente. trazidas pelo fato de que, na sua materialidade, eles são objetos
Entre eles, diz Carpeaux (1976), há aqueles que permanecem integralmente históricos (e lingüísticos). Procuram impedir que
como desafios para a admiração dos eruditos: o de Calvino para o sentido trabalhe a sua historicidade.
as suas lnstitutiones Christianae, o de TI1ou para a sua História e o No discurso de que nos ocupamos, esses limites - um início
de Casaubonus para a sua edição de Políbio. e as margens que são colocadas pelo prefácio e pelas notas - são
O prefácio pode ter, pois, toda forma de relação com o texto a função da contextualização do próprio texto em diferentes
do qual ele é prefácio. épocas. Nós os consideramos como o sintoma, os traços, de um
Se pensamos no faro de que todo texto não é senão uma parte deslocamento das condições de produção do texto. Mais adiante,
de um processo discursivo, pode-se dizer que o prefácio "limita" voltaremos a essas reflexões para falar da re-contextualizaçào desses
o texto: ele procura instituir-lhe um início, uma perspectiva, um textos dos séculos XVI e XVII.
modo de leitura, ou ao menos procura colocar-lhe uma referência,
um início particular. Ele o contextualiza e o insere na perspectiva
de um processo discursivo específico. 3. Verdade e mentira/ciência e literatura:
Paralelamente, as notas de pé de página, pelo próprio modo uma questão de autoria
de aparição, seriam a parte menos importante do escrito. Podem
mesmo não ser lidas, ou então podemos estudá-las, se estamos Não deixa de ser interessante fazer aqui um parêntese a respeito
interessados em detalhes, digressões de erudição, fontes de infor- da questão da autoria nos relatos.
mações (A. César, 1988). É forte, nessa época, a necessidade de separar verdade e mentira,
As notas podem ser tomadas como um movimento des-cen- sendo que o relato, que se procura legitimar como verdadeiro, se
tralizador do texto: comentário técnico de uma tradução, diz A. apresenta como lugar de conhecimento e como forma literária ao
C. César (idem), é inconscientemente conduzido por pontos mesmo tempo. Por outro lado, o modo da sua produção é carregado
centrífugos do próprio texto. de ambigüidade, como veremos.
Assim, trata-se de domesticar, pelas notas, a não-linearidade Segundo Lussagnet (1953), ao falar da popularidade dos fran-
do sentido e seu caráter "desordenado". ceses junto aos índios, muito antes de Villegaignon e seus colonos,
Des-centralização mas disciplina, preferimos, pois, acentuar o já os normandos haviam estabelecido um contato estreito com o
caráter contraditório das notas: elas são índices da dispersão dos Brasil, para o comércio da madeira. Muitos abandonavam os barcos
sentidos e ao mesmo tempo instrumentos de definição. e se instalavam na tribo, onde adquiriam rapidamente, segundo
Com efeito, as notas são o sintoma do fato de que um texto é Lussagnet, um grande prestígio, por seu espírito de iniciativa, e
sempre incompleto, e que se podem acrescentar novos enunciados, desempenhavam papel de chefe. Eram apreciados pelas mulheres
indefinidamente. Um texto é, por definição, interminável, e as e chegavam mesmo a participar dos rituais de antropofagia.
notas procuram ser as suas margens, limites laterais. O fato é que os franceses que aqui ficavam, e que dominavam,
Com os prefácios e as notas, os autores visam conter o texto portanto, a língua, desempenhavam o papel de intérpretes. São os
nos limites, ou melhor, procuram não deixar que ele signifique chamados "turgimóes" (truchements). Foi um deles, aliás, que se

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

tornou servo de Montaigne e que forneceu documentação para 4. Apresentação do material analisado
um de seus Ensaios, os "Cannibales" (e a construção do mito do
"bom selvagem"). Analisamos os textos dos capuchinhos franceses, e o recorte que
Com toda certeza, Thevet assim como J. de Léry e outros es- fizemos do corpus se organiza em torno da natureza dos textos e em
critores do século XVI são tributários desses "turgimôes" tunçáo das finalidades da análise. Há, além disso, razões práticas
Isso é visível no fato de que há narrativas idênticas que apare- que se acrescentam, como veremos a seguir.
cem um pouco em todos os textos da época. São repetições que se Observemos as notas e os prefácios dos textos seguintes, que
originam no fato de que a fonte era a mesma: os intérpretes. foram reimpressos ao menos urna vez:
Desse modo, pode-se entender por que, ficando só poucos
meses, os viajantes puderam escrever sobre ritos que levavam anos 1) Jean de Léry (XVI e XIX) ( trad. bras. XX): História de uma
para se cumprirem (o da antropofagia, por exemplo). ~er dizer, Vi,zgem Feita ,i Terra do Brasil.
grande parte dos "dados" era relatada por intérpretes: uma outra 2) Martin de Nantes (XVII e XIX) (trad. bras. XX): Relnç.io
estória do que seria documentado como História. Sincera e Sucinta.
Daí talvez venha a impressão do não-preconceito (desprendi- 3) André Thever (XVI e XIX) (trad. bras. XX): Singu!tiridades
mento) dos autores: muitas vezes eles nem conviveram com os e Cosmognift~i.
índios ou viveram os fatos; contam o que lhes contavam as suas 4) Y. d'Evreux (XVII e XIX) (trad. bras. XX): Vi,zgem no Norte
fontes. do Brasil.
Voltando à questão da autoria, é importante observar que, não s) CI. d'Abbeville (XVII e XIX) (rrad. bras. XX): Historia d,z
raras vezes, os textos eram escritos pelos "negros" (negres), os quais Missão dos Padres Capuchinhos.
eram pessoas cujo ofício era escrever.
Assim, podemos apreciar a produção da autoria dos relatos: o
O texto de Martin de Nantes, que tem grande interesse para
relatado não era baseado na observação direta dos fatos, mas na
o estudo dos relatos dos capuchinhos, não oferece, no entanto,
obtenção de dados por fontes relatadas, nem tampouco era escrito
muitas referências à língua dos índios. Assim, o excluímos da aná-
por quem o "assinava" como autor.
lise. Observamos todos os outros textos, mas não retivemos, para
No entanto, os produtos dessa façanha não perdiam a sua "ins-
a apresentação deste trabalho, senão as Singularid,1des da Frnnçn
titucionalidade": eram considerados fidedignos e legítimos. Tanto
Ant.irtica, de A. Thcvet, em sua primeira edição, suas diferentes
assim que, séculos depois, ainda continuam a merecer o crédito
reedições e a tradução brasileira. Acrescentamos a Cosmografia
das reedições e a consagrar o mérito dos seus "autores".
Universal ( 1953), também de A. 1hevet, ao corpus, por causa das
Esta é, acredito, urna história exemplar para mostrar o fun-
características de seu prefácio e suas notas.
cionamento imaginário de nossas instituições e seus produtos: o
Assim, é o corpus que segue que foi efetivamente analisado
documento, o texto literário, a função do autor, em uma palavra,
neste trabalho:
a crônica. Voltemos a nossa análise.
1) 1878, Singularités, Paris, Maisonneuve er Cie, Librairies Éditeurs
(introdução e notas de Paul Gaffarel);

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

2) 1982, Singularités (fac-símile), Paris, Éditions du Temps (in- XIX mais conhecida e que serve de referência a rodas as outras:
trodução de]. Baudrey); a de Gaffarel.
3) 1953, Cosmographie Universelle, Paris, PUF (introdução de A. O prefácio de Gaffarel nos apresenta um Thevet cheio de de-
Julien e escolha de textos e notas de S. Lussagnet); feitos: "ele escrevia só pesadamente, às vezes até com pedantismo".
4) Tradução brasileira de Singularités, São Paulo, Editora Nacional, Mas ele contrabalança esses julgamentos com outros, mais positi-
1944 (introdução e notas de Estêvão Pinto e um anexo sobre vos do ponto de vista das leituras: "No entanto as Singularidades
"pian" do Dr. Eustachio Duarte); começam a ser muiro procuradas (por bibliófilos, americanistas,
5) 1983, Singularités, Paris, La Découverte, Maspero (introdução, pessoas que se interessam pelo século XVI)".
escolha de textos e notas de F. Lestringant). Quando se trata de falar do personagem Thevet, é a mesma
ambigüidade que nos é apresentada: "Um personagem de que se
É útil fazer algumas observações a propósito desses textos. pode falar mal mas que não se tem o direito de desdenhar".
Os prefácios ( introdução ou notas biográficas; a vida de Thevet Da mesma forma, segundo Gaffarel, não podemos ignorar a
e o contexto da sua época) que antecedem o texto são escritos, em "composição estranha de sua obra", "contos de fazer dormir ou
geral, por pesquisadores cuja autoridade no domínio já é reconhe- mesmo coisas absurdas", mas "uma fonte abundante de informa-
cida. Trata-se de edições cujo fim explícito é falar aos especialistas ções preciosas".
enquanto especialista. Assim, ele considerou útil editar de novo "essa preciosa cole-
Assim, as reedições já têm urna função (legitimadora) do ponto tânea em que se encontram tantas informações sobre a tentativa
de vista acadêmico: produzir o reconhecimento do grupo de es- de colonização empreendida pela França no Brasil". Não é uma
pecialistas no domínio, pelo reconhecimento da leitura proposta obra-prima, mas "nós só procuramos fazer conhecer essa obra
por seu autor, que se torna assim um mediador, uma passagem secundária mas útil e sobretudo interessante".
autorizada para o acesso ao texto do século XVI. Ele termina a sua exposição categorizando Thevet como "o
As notas de pé de página são feitas pelo mesmo autor da intro- primeiro ou ao menos o mais antigo dos historiadores franceses da
dução ou então elas se apresentam como um trabalho de pesquisa América". As discordâncias com Thevet aparecerão mais nas notas,
feito especialmente por outro autor, igualmente autorizado. pela citação abundante de seus adversários (sobretudo Léry), que
desqualificam seu discurso como "fantasista".
A introdução de Ch. Julien (escolha de textos e notas de S.
Lussagnet, 1953) apresenta Thevet corno um grandejornalista que
5. Prefácios e notas: os retornos do texto tinha a paixão das viagens, o cuidado da documentação inédita e
pitoresca, o desprezo pelo perigo, a curiosidade insaciável e a arte
1) Os prefácios de entrevistar. Outros méritos, como o de introduzir o tabaco na
França e de ser o pai do "bom selvagem" (a beleza do homem da
Os diferentes prefácios feitos a diferentes edições do século natureza), também são referidos. Segundo esse autor, Thevet "não
XIX ou XX nos trazem algumas informações úteis a propósito tinha idéias preconcebidas, recolhia fielmente as informações que
da contextualização (atualização) dos textos do século XVI. Co- lhe forneciam os intérpretes" (turgirnões: truchements].
meçaremos por considerações a propósito da reedição do século

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

É ainda como repórter que ele será objeto da admiração do A partir da apresentação de Thevet, de seu texto e das infor-
editor da edição Du Temps: "não é um gênio, é um viajante. Não mações a propósito da França Antártica, Lestringant nos faz re-
é um artista, é um colecionador. Não é um lírico, é um observa- Aetir sobre temas modernos e que transpõem (como as Singula-
dor". Essas mesmas qualidades permitiram que ele nos desse "um ridades?) as fronteiras traçadas entre geografia, história e
número muito grande de informações primeiras e únicas". Ao que literatura. Ele nos situa a obra de Thever no contexto histórico-
ele acrescenta: "os melhores dados que nos chegaram sobre o Novo científico moderno. Além disso, refere as outras reedições, con-
Mundo no meio do século XVI". textualizando-as.
A referência às "informações" preciosas trazidas por 1hevet Segundo Lestringanc, Gaffarel fez a reedição no momento
será uma referência constante em todos os prefácios. em que havia, de um lado, uma moda bibliográfica e, de outro,
A pequena nota "Olá! benevolente leitor", da edição Du Temps, um nacionalismo expansionista muito importante na França. A
é seguida por um dossiê volumoso sobre Thevet, em que J. Baudry propósito de S. Lussagnet (1953), ele dirá que, com a edição da
fala da perspectiva do século XVI (as descobertas, as invenções), Cosmografia e das duas Viagens, visa à coerência e à exaustividade,
passa pela análise de "quem" era Thever, por considerações a pro- isto é, à reconstituição etnográfica total.
pósito da expedição de Villegaignon, até dados (polêmicos) sobre Em geral, em todos os prefácios, as observações a propósito de
a querela Thevet/Léry. Thever e de sua obra indicam, ao lado de uma avaliação negativa
Como se trata de uma edição fac-símile, algumas observações (ele não era culto, era vítima de muita fantasia, ingenuidade, era um
que, em outras reirnpressócs, fazem pat te das notas, foram reunidas escritor medíocre), outra muito positiva: as informações sobre o
nessa introdução. Temos, em seguida, a reedição organizada ( escolha Novo Mundo, sobre o século XVI e sua contribuição antecipadora
de textos e notas) por F. Lestringant, editada pela Découverte. às teorias ( etnológicas sobretudo) atuais.
O subtítulo "O Brasil dos canibais no século XVI", acrescen- Aí estão os "lugares-comuns" pelos quais passam todas as re-
tado ao nome do livro (As Singularid,ules da França rintárticn] , edições em suas considerações a propósito de Thever, pendendo
assim como a qualificação das Singularidades corno "uma obra- para o lado positivo ou negativo.
farol da literatura de viagem no século XVI[ ... ] obra consagrada E isso coincide com a polarização da polêmica religiosa entre
cm maior parte aos índios canibais da baía do Rio de Janeiro", nos Thever (católico) e Léry (protestante).
indicam a direção da contextualização operada por F. Lestringant: No entanto, todos acentuam a importância dos seus escritos para
o canibalismo, o Rio de Janeiro e a vanguarda da literatura de o conhecimento da história, da etnografia e das ciências naturais,
viagens. das notícias sobre o Novo Mundo no meio do século XVI.
Esse texto, que Lestringant considera "uma descrição em forma A tradução brasileira acentua a importância das Singulari-
de relato de viagem", um "monumento etnográfico", constitui um dades para o conhecimento da história do Brasil. Eles traduzem,
"testemunho único sobre a aliança inesperada entre a visão huma- dizem os autores dessa edição, para "tornar acessíveis livros que
nista do mundo e a geografia das Grandes Descobertas". são importantes para o conhecimento da história do Brasil", assim
Por outro lado, diz Lestringant, trata-se de uma coletânea como aspectos da sua geografia, sua etnografia e contribuições
de "singularidades e disparates circunstanciais" que alia urna importantes ao domínio das ciências naturais.
"etnografia nuant l,z leure" a todo um "imaginário tradicional de O prefácio d:1 tradução brasileira é francamente simpático a
Heródoto e Plínio". Thevct, apresentando argumentos mais favoráveis a ele do que a

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

Léry (posição oposta à de Gaffarel). Um texto anexo, feito pelo clui, além dessas, referências a autores franceses modernos, assim
Dr. Eustachio Duarte, apresenta um longo estudo sobre o como a jesuítas portugueses (dos séculos XVI e XVII) e mesmo
"pian" a autores portugueses e brasileiros mais recentes ("M. Phillipson
É preciso observar que, no prefácio a essa obra, o tradutor bra- considera que a forma "Iouaiatz'... ", ou "como diz Nobrega (Inf.,
sileiro afirma que, das 607 notas feitas por Gaffarel, ele só utilizou 92), nós ... ").
40, dados os erros ou as imprecisões das observações feitas por A tradução brasileira, por sua vez, introduz, pelas notas, uma
Gaffarel. Ele corrige essas imprecisões e traz novos dados. referência maciça a textos dos portugueses da época de Thevet, do
A esse propósito, é interessante notar que a tradução brasileira mesmo modo que faz referência a autores portugueses e brasileiros
de Léry acrescenta seu "Colóquio", em que P. Ayrosa "interpreta" e modernos, sobretudo quando se trata de comentários a propósito
"re-estabelece" o texto tupi, mantendo a bibliografia de Gaffarel, da língua e das ciências naturais, assim como da geografia.
da qual suprime apenas s notas em grego. Na edição brasileira Mesmo se na edição de Lussagnet já há referências explícitas a
de Abbeville, a apresentação é de G. Ferri e a introdução de R. jztos de língua (" Cberipicounr corresponde verossimilhantemente
Garcia; estes explicam que não introduziram comentários para não ao conceito de alma mas à che rypykuere = meus ancestrais"... ),
não prejudicar o fac-símile. é na tradução brasileira que se pode observar um discurso lin-
güístico (sistemático) sobre as línguas indígenas, com comentá-
II) As notas rios de gramática e numa perspectiva histórica de evolução ("No
texto Morbichnousassoub, em Montoya mburubich, em Cardim
As notas diferem em cada reedição. Na edição Du Temps não Morubixaba, em EvreuxMuruuichave; em AbbevilleBruuichauues.
há notas e, por outro lado, o prefácio é muito longo. Já a reedição, Há ainda as variantes Tubichnb e ubichab, origem da palavra tu-
cuja autora é S. Lussagnet, tem uma introdução bastante reduzida xnua ... "). Trata-se já da construção de um corpo de comentários
e as notas são em grande número, tendo extensões variáveis, mas que caracteriza o discurso dos tupinólogos brasileiros.
que tendem a ser longas. Na edição de Gaffarel há um equilíbrio Os comentários de Gaffarel são antes etnográficos e históricos.
entre a introdução e as notas: elas são igualmente longas, enquanto Quando fala de fatos da língua, o faz em função da tradução; são
na edição brasileira as notas são mais importantes, mesmo sendo comentários para tornar possível a leitura. Os comentários de
a introdução bem longa. erudição que aí aparecem incidem sobretudo sobre os autores e
A introdução de Gaffarel não explicita a sua inclinação por Léry, a história.
o que, no entanto, se torna claramente visível na leitura das notas. Na tradução brasileira, entretanto, os comentários têm um aspec-
Nestas, ele valoriza Léry e desautoriza Thevet através da citação to etimológico acentuado. Incidem sobre fatos de linguagem.
constante de Léry e de outros autores da época que sustentam Se compararmos as duas edições, veremos surgir, na edição
argumentos favoráveis a este último. brasileira, comentários lingüísticos em que Gaffarel faz comentários
~anto a esse aspecto, um fato que mereceu nossa atenção etnográficos, ou bibliográficos, ou que derivam estritamente da
foi a natureza das citações. Lestringant introduz várias citações a tradução ("lvforbicha em língua tupi significa com efeito soberano
propósito de temas clássicos ("2, Eneida, canto VII: a referência ou senhor").
às troianas fugitivas ..."); Gaffarel insiste nas citações (ortodoxas) Em suma, as notas das diferentes reedições, mesmo com a
dos viajantes franceses dos séculos XVI e XVII; Lussagnet in- constante referência a Gaffarel, diferem sob aspectos diversos;

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

seja porque se endereçam a pontos diferentes do texto, seja porque ao texto, constituem não um discurso sobre o discurso, mas um
citam autores diferentes ou se aplicam a discutir aspectos diver- "discurso paralelo" ( e posterior), do qual analisaremos tanto a
gentes (geográficos, etnográficos, etimológicos) do mesmo ponto relação com o texto principal quanto os seus efeitos de sentido.
de entrada do texto-alvo. Esse discurso paralelo vai além da simples documentação:
Mas, em todas as reescritas, os prefácios e as notas asseguram através da documentação (pela citação de outros discursos) ele
a validade científica - as "informações" preciosas e a instituição propõe, na realidade, urna interpretação.
de um documento histórico - do texto do século XVI. Nossa análise não procura interpretar, mas compreender os
Para terminar estas observações, diríamos que o discurso das processos de significação instaurados por esse discurso paralelo
reedições intervém no discurso do século XVI de urna forma que intervém no interdiscurso (o mesmo) sob a forma do intra-
(significativa) particular que nos resta explicitar. discurso (acréscimos).
Cada reedição resulta em um outro discurso que trabalha os
limites (o início e as margens) do texto, ou melhor, da formação
discursiva constituída pelo discurso sobre as descobertas. É um
6. Contextualização e domínio efeito particular de sentido que vai contextualizar e, ao mesmo
tempo, produzir a a-historicidade: o efeito do eterno.
É preciso, de início, considerar que o que dizem os prefácios e as
Dada a mudança das condições de produção - os locutores,
notas poderia constituir discursos independentes, sob a forma
os leitores, a situação científica, religiosa e política-, os comen-
de livros ou artigos. O fato de que se apresentem corno notas
tários, através da acomodação científica, restabelecem o equilíbrio
ou prefácios "acrescentados" ao texto do século XVI não é, pois,
(o mesmo), produzindo uma correção de perspectiva.
indiferente; ao contrário, é particularmente significativo.
Manter o mesmo interdiscurso significa, nessa perspectiva,lyr11·
Por seu modo de aparição, prefácio e notas se alinham no
as mesmas relações com o discurso: manter as mesmas posições
que Foucaulr (1971) considera como comentário, "repetição mas-
dos sujeitos, isto é, as mesmas posições relativas dos locutores e
carada". interlocutores. Como? Pela cristalização das identidades: man-
O comentário, diz Foucault, "conjura o acaso do discurso,
tendo o movimento das identidades nos mesmos lug1zres, fazendo
manifestando-o: ele permite dizer outra coisa que não é o texto,
corresponder-lhes as mesmas posições (no caso, as do século XVI,
mas sob a condição de que seja o próprio texto que seja dito, e, de
que são os lugares da relação colonial).
certa forma, concluído". Segundo esse mesmo autor, no comen-
Em conseqüência, as leituras propostas (nos séculos XIX e
tário o novo não está no que é dito, mas no acontecimento de seu
XX) filtram o contexto científico e historiográfico de modo a,
"retorno". paradoxalmente, apagar (ao mesmo tempo que os atualizam)
O que é esse "mesmo" que se repete na reedição das Singulari-
os outros aspectos da "contemporaneidade" e perpetuar assim
dades? Por outro lado, que "diferença" aí se instala?
o discurso da dominaçáo cultural, isto é, aquele que se dá em um
Assim, é à compreensão do retorno do que foi dito no século
sentido (direção) único, "eterno".
XVI que nós visamos. A propósito da noção de comentário, Chaui (1983) dirá: "quan-
As notas e os prefácios aparecem corno formas discursivas que,
do pede permissão para falar, o comentador parece dar poder ao
colocando-se corno suplementares ou como acréscimos marginais

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REIMPRESSÃO DO SINGULAR
TERRA À VISTA

autor para, ao modo astucioso de Bacon, obedecer para melhor A recontextualização permite esse jogo enunciativo ( um enun-
dominar. Sub-repticiamente, a arte de ler e escrever se transmuda ciador universal) que, por sua vez, permite não mudar o lugar de
onde o Brasil é falado (visto: lido).
em arte de governar".
Estaremos de acordo com isso se pudermos acrescentar que Do ponto de vista das relações dinâmicas e contraditórias entre

não se trata, para nós, do poder do comentador (em relação a um as formações discursivas (Courtine, 1982), o que se passa é que o
discurso paralelo ( das notas e dos prefácios) trabalha os limites da
autor), mas da própria ação de comentar, no conjunto daquilo
que se pode chamar dominação cultural: o poder de comentar é, formação discursiva, os quais, por definição, são fluidos e móveis.

aqui, o de poder explicar uma ( outra) cultura e ao mesmo tempo Ele faz isso para não mudar as relações entre essa formação discur-
siva e as outras, o que poderia fazer aparecerem outros sentidos
silenciar certos sentidos, ou melhor, de não permitir que o texto
a partir do mesmo texto. As mudanças, desse modo, não trazem
signifique (como poderia) de outro modo ("La France Antarctique
auirement dit Amérique"). Não deixa, assim, que aí signifiquem transformações.
Assim, temos a mesma forrnaçâo discursiva com componentes
outras formações discursivas. É o poder de não deixar compreender
argumentativos adaptados ao contexto científico atual. Conseqüen-
que há sentidos em confronto num mesmo texto, que marcam
temente, o valor documental ("histórico") do texto é o mesmo, assim
constitutivamente a sua dispersão e heterogeneidade.
como seu valor científico ("fazer conhecer"), que não muda.
O paradigma dessa relação com a outra cultura foi defini-
Mesmo que haja outros interlocutores possíveis, isso garante
tivamente estabelecido no século XVI e é retrabalhado pelos
a manutenção do lugar (e da perspectiva) do enunciador oficial
comentários: o olhar francês sobre o Brasil tenta ser o mesmo nos
na Europa.
séculos XVI, XIX e XX.
Se considerarmos, no entanto, o confronto dos sentidos, pode-
remos constatar que o deslocamento das condições de produção
desses discursos está na presença de um outro olhar, nos séculos
7. As pistas
XlX e XX: o olhar brasileiro (através do olhar francês de
Se na reedição do século XIX ( Gaffarel) há poucos traços do apa-
Thevet).
gamento das outras leituras (a relação Thevet/Léry, no entanto,
No século XVI, os europeus, em seus relatos, falam aos europeus.
é um deles), nas outras reedições do século XX isso se torna mais
Não há interlocutores (leitores) no Novo Mundo.
detectável.
Entretanto, se no século XVI não havia senão índios (que não
É preciso inicialmente observar a heterogeneidade das notas
liam relatos), no século XIX há leitores brasileiros, cuja história
de Lussagnet, assim como a referência (na introdução feita por
resulta, entre outras, da relação entre os índios e os europeus. Há,
Ch. A. Julien) ao fato de que "nossos amigos brasileiros disporão
além disso, uma produção científica no Brasil, nesse momento.
de um instrumento de trabalho bem à mão ... ". Constatamos, aqui
No século XIX, o Novo Mundo faz parte do campo de interlo-
também, o mesmo aspecto utilitário do século XVI - "dar"
cuções instaurado pelo discurso das descobertas (sobre o Brasil).
condições ao menos aparelhado - e que faz parte do discurso
O discurso científico, sustentado por um enunciador universal
colonial. Entretanto, já há uma referência explícita aos brasileiros
nos séculos XIX e XX, permite às reedições fazerem considera-
como interlocutores. Além disso, a referência aos "conselhos dados
ções generalizantes, ao mesmo tempo que exclui mudanças de
por M. P. Ayrosa" às "informações eruditas que M.J.J. Phillipson
perspectivas no texto.

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

forneceu para uma parte das palavras lingüísticas" explicita a 8. Olhar e transformação
contribuição brasileira: os comentários lingüísticos.
Por outro lado, na tradução brasileira, estão inscritas diferenças: A relação do europeu e a do brasileiro com a história é diferente.
comentários lingüísticos, etimológicos, a propósito do tupi (an- É justamente desse lugar, do qual as relações podem ser diferentes,
tigo/moderno), a recusa de certas informações (das 607 notas de que as reimpressóes intervêm para produzir o "mesmo". Por outro
Gaffarel, só +o foram retomadas), precisões a propósito de dados lado, é justamente aí que é preciso trabalhar a nossa relação crítica
geogrM1cos, botânicos etc. com a linguagem para apreender os "outros" sentidos.
Esses deslocamentos não são suficientes para caracterizar urna Trata-se, assim, de uma questão de história e de identidades
diferença significativa (uma ruptura de sentidos) porque o modelo colocadas em relação com o discurso científico. Faz parte da relação
é s<:mpre europeu e os comentadores brasileiros são antes "falados" do brasileiro com sua história que o discurso europeu lhe explique
por esse modelo europeu, isto é, eles falam do interior do paradigma a sua origem. Assim, se o brasileiro deve observar a sua história
discursivo das reedições estabelecidas na Europa. necessariamente através do discurso europeu, uma abordagem
A formação discursiva é sempre a mesma, mas esses desloca- crítica deve permitir-lhe atingir o lugar da produção desses efeitos
mentos deixam entrever urna certa duplicidade do olhar; se para de sentido, para que ele possa compreender o deslocamento que
o europeu esse olhar sobre o Brasil organiza novos dados, para o preside a produção da sua identidade.
brasileiro é um discurso sobre sua origem. E esse sentido também Por outro lado, ele pode dessa maneira explicar o modo pelo
está inscrito no texto do século XVI. qual a relação com os modelos de análise é uma relação com a sua
Já o dissemos, a formação discursiva é ainda a mesma. Entretanto, identidade, com sua própria cultura.
podemos distinguir uma espécie de partição interna, uma fissura A análise de discurso permite - na medida em que não pro-
por onde se mostra essa duplicidade: os sentidos aí são tensos. cura explicar, tornar inteligível nem interpretar, mas conhecer o
Ao colocar em relação essas reedições, podemos fazer apare- funcionamento semântico dos textos - compreender esses pro-
cerem traços de um confronto de sentidos que corresponde a um cessos de significação. E, para que o analista possa compreender
confronto do olhar: o do europeu que vem e parte de novo, e o esse processo, ele tem de tornar uma posição face à história das
do que vem e fica no Brasil (o brasileiro). Podemos, pois, entrever ciências. Uma forma de fazê-lo é colocar o índio como matriz,
formações discursivas diversas, definidas por diferentes condições dando assim lugar a um outro olhar, o olhar "brasileiro".
de leitura desses textos. Pelo lugar estabelecido, tínhamos: a construção da imagem
Brasileiros e europeus lêem diferentemente esses textos. Lêem do tradutor, a imagem de Thevet, a imagem de Léry, a imagem
de "lugares" diferentes, necessariamente. Além da diferença, há de Villegaignon, a imagem do Novo Mundo e de seus habitantes
urna dissirnetria que resulta do apagamento de uma dessas leituras que, no conjunto da argumentação, produziam uma imagem do
(de uma formação discursiva, pois), tal corno o mostramos. Essa conhecimento (legitimação dos autores, autorização das fontes como
dissimetria se torna visível pelo fato de que as reedições mantêm documentos, institucionalização dos mediadores).
a bipolaridade estrita: índio/europeu. Se, no entanto, observarmos desse outro lugar, poderemos
explicitar o silêncio que é produzido quando se fala das grandes
descobertas e das Singularidrldes do Novo Mundo. Nessa outra
formação discursiva se falaria antes da Jàrrt111ção de um novo Es-

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TERRA À VISTA REIMPRESSÃO DO SINGULAR

tado, da fundação de uma nova "pólis" com todas as implicações É um discurso que rematiza, pois, a criação de um país: o Brasil
que daí decorrem. (Terra de Vera Cruz, Terra de Santa Cruz, Brasil). Nesse discurso
Há dois enunciados que podem ilustrar a produção desse si- sobre o Brasil, não há, pois, só o lugar do índio excluído e o do
lêncio. Nós os escolhemos porque eles são exemplares e porque há europeu distante em seu olhar que categoriza.
uma repetição desses enunciados que os torna muito produtivos Romper a polarização desses dois discursos é função do discurso
do ponto de vista discursivo. Vejamos: brasileiro, quando ele se coloca no encontro de duas negações,
cm que dois são negados pelo europeu: o índio, mas, também, o
I) Dizer que o "Brasil foi descoberto" ( cf. "A França foi desco- europeu que fica no Brasil, que adere. que se transforma.
berta (?)") e não dizer "O Brasil foi invadido" é apagar uma É desse lugar, o da construção de um país a partir dessas duas
descontinuidade, silenciada pelo discurso científico das notícias negações, que o brasileiro que intervém no discurso científico (na
a propósito do Novo Mundo e das descobertas. história da codificação do conhecimento) pode dizer que, nesse
discurso das descobertas, há outro. Só aí há sentido em se falar da
Há, pois, um outro discurso nesse discurso. Um outro discurso história do Brasil (e não sobre o Brasil).
que reconhece que a história do Novo Mundo não começa no As reedições com suas notas e seus prefácios, a tradução brasi-
século XVI e que já havia habitantes aqui. leira com seus comentários lingüísticos sobre o tupi, mesmo que
tímidos, são o sintoma desse outro discurso. Elas nos propiciam
2) O enunciado "Sem lei, sem rei, sem Deus': tantas vezes repetido, índices que nos orientam na busca dos outros sentidos. Pelo silen-
significa também de modos muito diferentes: ciamento, sabemos, um discurso diz para não deixar que se digam
a) Para o europeu é uma falta que justifica a razão de catequizar as "outras" palavras. Esses índices nos dirigem para o mecanismo
(Deus), de administrar (lei) e de governar (rei). pelo qual as palavras se desdobram em outras palavras.
b) Para o brasileiro significa que o índio não tinha escrita, não Todo processo identitário é constituído por uma falta ( o dife-
tinha um discurso institucional para a lei, a fé, o rei, tal como rente) e pelo desejo de completude (o mesmo). É esse o movimento
os europeus. das identidades. Está aí o movimento das formações discursivas.
A esse propósito, podemos lembrar o que diz Maingueneau
Temos assim, de um lado, o índio que não tinha voz no século (1984):
XVI e que hoje diz que "O Brasil foi invadido", e, de outro, temos o
europeu que afirma, sem cessar, desde o século XVI: "O Brasil foi No espaço discursivo, o Outro não é nem um fragmento localizável,
uma citação, nem uma entidade exterior[ ... ]. Ele é o que faz sistematica-
descoberto". Duas formações discursivas em confronto que impedem
mente falta a um discurso e lhe permite se fechar em um rodo. Ele é essa
outros discursos de significar, entre eles, o do "brasileiro".
parte de sentido que foi preciso sacrificar para constituir sua identidade.
Mesmo se na escola ele aprenda o discurso oficial que diz que o [ ... ] Esse intricamento do mesmo e do outro rira à coerência semântica das
Brasil foi descoberto, para o brasileiro não se trata de descoberta, formações discursivas rodo caráter de essência cuja inscrição na história
nem de invasão. Seu discurso só pode ser o de uma descrição, pois seria acessória: não é dela mesma que a formação discursiva tira o princípio
ele não pode senão descrever a formação de um país (seu relato de sua unidade, mas de um conflito regrado.
não pontual "foi"): "quando os europeus chegaram, havia índios
aqui". O começo de um longo processo.

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TERRA À VISTA

Podemos, assim, compreender o movimento de falta e de fecha- IV Domesticação e proteção:


mento, cujas margens ( as notas) e cujo início ( os prefácios) são a
cicatriz. Eis o movimento da identidade que passa pelo apagamento o discurso dos padres na raiz do latifúndio
da descontinuidade histórica de que os prefácios e as notas são a
margem indelével mas visível, e que permite as transformações
que fazem a história das identidades.
Para terminar, diríamos que o olhar francês é tão necessário Comme je les rrouvay plus beres qu'hommes dans leur
maniêrc de vie, je m'appliquay prernieremcnt à b for-
para a nossa história quanto a sua transformação possível.
rner peu à peu une vie raisonable et civile [ ... ].
M. DE NANTES, 1706

1. Introdução

Uma das finalidades deste trabalho é colocar em estado de questão


uma questão de fato: a de considerar certos textos como documen-
tos da nossa história.
O texto que é nosso objeto de estudo para tal finalidade é a
Relação Sincera e Sucinta de uma Miss/io no Rio S110 Francisco, do
Pe. Martin de Nantes, capuchinho francês que foi missionário
entre os índios cariris. Esse texto teve a sua primeira edição em 31
de dezembro de 1706.
Na introdução feita à edição brasileira de 1979, Barbosa Lima
Sobrinho se refere ao fato de que a terceira edição, fac-similar,
havia sido dedicada ao segundo Congresso da História da Bahia
e seu anotador, o historiador F. G. Edelweiss, observava que con-
siderava "impossível estudar o ciclo do curraleiro, o povoamento
do sertão baiano e das regiões limítrofes do Norte e do Nordeste
sem consultar Martinho de Nantes". Vale, assim, esse texto como
livro de história. Mais do que isso, corno dissemos anteriormente,
vale como documento, de acordo com as palavras do mesmo Barbo-
sa: "O depoimento de Frei Martinho de Nantes elucida [grifo
nosso] o que foi a ação da famosa Casa de Torre e, sobretudo, de

139
TERRA À VISTA
DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

Francisco Dias de Ávila, a quem eram atribuídas todas as terras Nessa construção, alguns discursos ganham autoridade como
do rio [ ... ]".
lugares privilegiados, definidores. Eles "se criam" como documen-
Fazendo uma análise discursiva, isto é, procurando reatar a trama tos da memória. Constroem-se e à sua tradição, como discursos
das falas que se deram em um certo período do Brasil - séculos da História.
XVI, XVII e XVIII-, queremos mostrar que esses textos não são Para nós, há assim uma distinção entre discurso histórico e
apenas documentos, mas sim a própria matéria de constituição dos
discurso da História. No discurso histórico, o homem elabora a sua
sentidos que vão definindo ( configurando, con-formando) a nação
relação com o tempo e com a memória. Por seu lado, o discurso da
br.ivilcira. Não serão, pois, trabalhados apenas como produtos da
História é um subproduto - com suas acentuadas características
época, mas corno práticas constitutivas da cultura da época e do
de instituição - do discurso histórico. As lendas, as canções po-
que hoje chamamos "memória nacional".
pulares, são outros dos seus produtos, da mesma natureza, embora
Pela análise de discurso, deslocamos a observação do produto menos formalizados institucionalmente.
para o processo. No caso presente, passamos do relato para a prática
Diríamos que há, por outro lado, uma temporalidade própria
discursiva que ele é, vendo-o então não como memória, mas corno
a certos temas que transcende as circunstâncias, sendo a História
lugar de constituição da memória.
organizada não pela relação com o tempo mas com o poder e com
A análise de conteúdo - aquela que geralmente é utilizada
a capacidade simbólica desses objetos de memoria.
pelas ciências sociais - fica aí na ilusão discursiva, produzida pelo
Assim, o discurso histórico abrange outros discursos que não
fato de linguagem, e pergunta: o que o texto diz? Pela análise de
o da História. Em nosso trabalho estamos procurando mostrar
discurso, perguntamos: ao dizer isto, o que estão fazendo?
como o discurso científico (etnográfico, naturalista) desempenha
Tomar esses texros como documentos é resultado de um efeito
um papel forte em sua constituição. Conseqüentemente, a história
ideológico discursivo elementar: toma-se como evidência o que
do estabelecimento de um saber é, em nosso caso, a história de um
na realidade já é uma construção do imaginário discursivo. Tomar
povo. É assim que propomos "ler" essa história.
esses textos como documentos é já alinhar-se numa interpretação
Do ponto de vista discursivo, em que nos colocamos, apreciando
dada da história.
esse jogo entre história, ciência, religião e política, consideramos
Nesse sentido, e pensando a questão do silêncio e do silen-
que a história aparece justamente não onde ela está construída
ciamento, tal como já o fizemos para outros textos de conversão
("preenchida"), mas onde elafàlttZ. Há uma história particular
(Orlandi, 1986), podemos dizer que o discurso histórico é o lugar
porque outra coisa ( o discurso etnográfico sobretudo) ocupa o seu
dil territorializnoio da identidade do homem na relaçâo tempo-
lugar, produzindo efeitos de sentido.
memoria. Na construção da sua identidade, é no discurso históri-
No processo de significação que esses textos instalam, estão
co que o homem se constrói em sua dimensão memoriável;
inscritas as relações de poder, os conflitos, as relações de força que
aquilo que - resultando política e ideologicamente do confron-
se dão no embate entre: a) o poder, instituído dos portugueses; b)
to das relações de força e de sentido, e instituindo o que chamamos
a instauração do poder da Igrejrz ( os missionários capuchinhos, no
"tradição" - se apresenta como aquilo que deve ser dito (e con-
caso específico) na sua relação com o governo; e c) os pretextos
seqüentemente também o que deve ser excluído, o que não deve
para essa relação, isto é, os índios.
ser diro), e, logo, "lembrado" (ou esquecido) a propósito dopas-
Como objeto da disputa está a terra, disputa representada nessa
sado, no que diz respeiro à constituição da sua memória.
guerra sob a forma da colonização ( o Estado) e a catequese (a Igreja).
TER R A À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

O conceito básico para se observar isso é a conuersâo, Daí a nossa Em grande parte, nossa tarefa na observação desse discurso
questão: o que significa converter, nesse contexto histórico? (relato) do Pe. Martin de Nantes é procurar tornar visível o modo
De forma mais especificamente discursiva, a nossa questão é: do corno os padres transitam pela guerra de posse das terras; no meio
que se está falando, quando se fala cm conversão? O que significa de índios e governantes. Através dessa prática discursiva - além
conuers/io para o índio? E para o europeu? Qual o sentido que a das outras, evidentemente - é que se vão dividindo as populações
história oficializa para a conversão? e funções distintas lhes são atribuídas, para separá-las. Vão-se
Esse processo de significação nos interessa porque, como sa- assentando pessoas e categorias, territorialização que vai dando
bemos, uma vez instituídos, os sentidos produzem os seus efeitos forma às relações sociais da época. Essas práticas, entre outras,
indefinidamente. Têm conseqüências importantes. servem para organizar essa sociedade.
Esse é um discurso que, ao instituir a separação índio converti- No momento visado, cuja historicidade constitui o texto de
do/não-convertido, prenuncia a "necessidade" do extermínio (índio Martin de Nantes, a relação com os índios é sobretudo a relação
selvagem/aculturado). Paradigma produtivo e eficaz na posse da dos padres com os sesmeiros. É nesse "dicionário" que as palavras
terra e na administração dos conflitos que dizem respeito a ela. têm sentido, ainda que aparentemente o seu destino seja outro. E
~e distribui sentidos em muitas direções e que desemboca, hoje, aí chegamos ao outro ponto crucial deste trabalho.
por exemplo, no discurso sobre a reforma agrária com a separação Contra a afirmação inocente de Edelweiss (p. 373): diríamos
entre o trnbnlliador rural assentado/o sem-terra inunsor. que os padres são tão violentos quanto os sesmeiros, fazendo eles
Pensando-se a época colonial e ampliando-se assim o sentido mesmos parte dessa agressão: eles produzem, junto com os sesrneiros,
dessa mesma disputa, podemos tomá-la como aquela que coloca a o estado de guerra sob o qual se vai delineando o latifúndio.
questão do povoamento e do ÍtZtifiíndio: o povoamento definindo Em análise de discurso, sabe-se que se fala de "x" para se folar
a população' e o latifúndio a posse e o modo de administração da de "y". Também se sabe que não há onipotência dos sujeitos, não há
terra, as sesmarias.
domínio consciente, nem controle pessoal dos processos discursivos.
Do ponto de vista do governo, trata-se assim da reorganização
O que fica no processo de produção de sentido, que é histórico e no
geral do território brasileiro, plano que era indispensável para o
qual há um jogo entre história e ideologia, é um subproduto (são
"progresso nacional".
efeitos de sentido). Esse subproduto, que as condições de produção
Do ponto de vista da Igreja, trata-se da conversão, indispensável
determinam, tem cm nosso material de análise uma direção: um
para a salvação de um "povo" sem Deus. O "progresso", aí, não é só
certo sentido para a identidade nacional, um cerro sentido para a
o da nação, é o da "civilização" ocidental cristã. É universal.
posição (exclusão) do índio.
Veremos a maneira como conversão e povoamento, ao se
O devotamento do missionário faz parte da derrota do índio.
definirem, vão disputando palmo a palmo os seus limites, dando
A violência do poder do Estado precisa ( é sustentada, tem seu con-
contornos e sentidos à fixação de proprietários e territórios (quem
traponto como sustentáculo) da generosidade' dos missionários;
é quem, o que é de quem). Em nosso texto, essas duas forças em
confronto são representadas pelo Pe. Martin de Nantes e por
Francisco Dias de Ávila. "A crucza do-, curr.ilciros scrt.mi-r.is foi .ircnu.rd.i cm rurte pelo zêlo do.., mi-vion.inos
jcsu ít.1, e capuchinho-, brctóe-, [ ... ][ ... ]"
Es-.e .1\pecto é hem rem.uiz.ido pelo povirivivmo, cm urn.i ourr.i época, No prct.icio do
"Cobem.ir CI l'obl.ir" (J. B. AllcnJi, 185,). Bnsrsv Punto, rlt P,m,r/,z p,11,1 (,z (hg,1111z,1w,n c.u ecivmo povitivivt.i de A. Com te, encontramos: "~.1nro ,\ bond.idc gcr.d, rio em vog.1
Politu.: rle li1 Rcpuhlui1 ,-hgo1/oltl. hoje, ela indica .111te\ .1 r.iiv.i do-, rico, que o amor do- pobrcv, Poi , ,t hl.rnrropi,1 moderna

143
TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

essa generosidade é estruturante, constitutiva do lugar subalterno o grande serviço que ele prestava aos portugueses e aos seus negros,
destinado ao índio. assim como também aos índios".
O assistencial é um jeito de desviar do confronto principal. Isso A Igreja mantém a discussão em aberto, discussão essa que se
permite que o conflito pela posse não fique em primeiro plano, faz de qualquer modo, não impedindo que Martin de Nantes lidere
mas no recuo, na defesa e não na agressividade do ataque. índios contra índios, como em uma luta em que esteve presente
Discursivamente, sempre que certas formas "tomam" o lugar de liderando "seus" índios contra outros índios nos arredores do rio
outras, se substituem a elas, há efeitos ideológicos importantes que São Francisco, a mando do governador da Bahia: "Mas os índios
se produzem. No caso, o jogo se dá entre a ordem do político e a da que deviam ir para a guerra me disseram que não iriam se eu não
moral mediada pelo científico ( o verdadeiro). Como resultado, o fosse com eles [ ... ] . Parti então com eles e com todos os portuguêses
assistencial dá ao missionário o poder de intérprete (mediador). que foram encontrados na região".
Essas falas tramam a origem do latifúndio, contemporâneo já Gostaríamos de fazer, aqui, uma digressão sobre o que propo-
da extinção dos povos indígenas. A guerra aos índios, aliás, sempre mos chamar discursofimdador. Seria este o discurso que mostra, de
foi um bom investimento. alguma maneira, alguém falando do lugar do brasileiro. Pensávamos,
Os sentidos funcionam pelo fato mesmo de circularem. Um no início desse trabalho, que esse seria um fato datado: dar-se-ia
discurso que fala do índio é corno o discurso sobre o pobre: é numa certa época, numa certa região etc.
produtivo nas relações de poder. Bastaria, com a análise, detectar, delimitar e caracterizar esse
A Igreja, de um lado, e, de outro, o governo enfrentam-se na "momento" privilegiado. Sabemos, hoje, que esse é um equívoco,
relação entre proprietários e índios. Ou, dito de forma mais direta, pois tal discurso se pode dar em qualquer época e mesmo hoje.
o confronto principal é entre os índios e os proprietários, sendo A "brasilidade" é um processo contínuo, incompleto, a se fazer
que a Igreja e o Estado disputam seus respectivos lugares nesse indefinidamente. No presente, há discursos que "fundam" a bra-
confronto, disputando o poder de dar-lhes os sentidos. silidade, como em qualquer tempo.
Os missionários não ocupam assim um lugar definido (e defi- Mas temos em Martin de Nantes um exemplo interessante de
nitivo). Vivem o estado de conflito latente. Como a guerra fria: discurso fundador. Trata-se, na página 61, do fragmento em que
tem de haver urna disputa para que os que têm poder demonstrem ele fala das intrigas que são "montadas" contra ele. E diz:
sua força, administrando essa disputa.
O latifúndio fica corno um resíduo dessas práticas políticas. Francisco Dias não se contentou com o caluniar-me junto a esse senhor
[ ... ] procurou desacreditar-me diante das pessoas mais consideradas da
Nessa disputa, com suas práticas, a Igreja não rompe o sistema
cidade e, como era o homem mais rico do Brasil e o melhor aparentado,
político. Ela encontra - com os confrontos - um jeito de estar
facilmente levantou contra mim todos os espíritos.
nesse sistema, de aí se representar com seu poder. Ela não discute
a propriedade; isso não lhe interessa. O índio, como poderemos
Ele vai, assim, ser falado por um personagem de inequívoco
observar no texto que segue, vem até em último lugar em sua enu-
prestígio, o "mais rico do Brasil". É na boca de Francisco Dias que
meração: "Enquanto estive na aldeia do padre Anastácio observei
Nantes colocará a fala que o vê corno "brasileiro":

exprime muito frequentemente urna prcren~.1 bo.i vontade sob ,l) tormas própnas J r.uv.i
ouà inveja"

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TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

Fui visto como um inimigo e não como um missionário, visto que me posse das terras e dos cavalos, outro pela liderança entre os índios.
opunha ao bem do Estado e às ordens, que o rei havia dado, para povoar Eis um dos sentidos da catequese.
as terras do rio para a subsistência das cidades da Bahia e Pernambuco.
Corno já dissemos, muita coisa vai-se definindo como resíduo
Foi assim que Dias me t1pontou.
dessas práticas políticas.
Não é em espécie que o poder funciona. É pelo conflito. Não é
Não é, pois, pela sua própria fala que ele mostra a sua diferen-
o quern da propriedade que importa, é a constituição desse poder-
ça, essa mesma que já começa a inaugurar um lugar específico em
ter, e de dar, quando é o caso. O índio não pode ter a terra. Pode-se
relação aos portugueses e outros estrangeiros que aqui estão. Algo
até mesmo dá-la a ele. E aí já se está gerenciando sua relação com
que aponta para uma brasilidade nascente. Mas ele vai ainda mais
,l sua sobrevivência, e sua relação com a terra significa sua relação
longe. Ele ostenta também o seu poder, vindo dos habitantes nativos,
com o Brasil, com a nação. Em suma, significa a qualidade da sua
com que ele ameaça os portugueses: "Dizia também [Dias] que eu
cidadania. De segunda mão: dada e não adquirida. Tudo isso vai-se
tinha grande crédito junto aos índios e que se podia temer que me
assentando sobre ( o )s senrido(s) da conversão.
valesse deles, em alguma ocasião, contra o próprio Estado".
O relato de Martin de Nantes é exatamente um relato de con-
Pela boca de Dias, vemos um personagem que já não é o mis-
versão. Descreve o antes e o depois. ~anto ao antes, "devemos
sionário, que não é o índio e que já tem uma fala específica no
admitir que esses pobres índios, não tendo Fé, nem Lei, nem Rei,
meio das outras. Não se trata mais só de defender os índios, que,
nem artes, que são ajudas e guias de uma vida racional e política,
nessa querela a que me estou referindo, disputam seu território
haviam caído em todas as desordens" (p. +).
com cavalos ("esses cavalos [ ... ] forçavam as melhores cercas e tudo
E depois da conversão, como ficam?
devoravam"). Martin de Nantes pede que tirem os cavalos da ilha
de Uracapá. Terras de Dias. Como não obtém resposta, "decidi
Vários deles estão bem instruídos, ajudados pelo mo dos sacramentos,
dizer-lhes que se valessem do direito natural e[ ... ] pusessem fora e concebem bem a gr,rndeza das recompensas que csper.1111 do céu [ ... ] . Há
da ilha os cavalos [ ... ]".Os cavalos morrem e Martin de Nantes, ele agora subordinação e justiça ] ... ]. Os oficiais castigam os crimes públicos;
próprio, se verá obrigado a emprestar cavalos para o seu desloca- [ ... ] . As mulheres estão agora submissas aos maridos e as crianças aos pais,
mento. Mas não se trata dos cavalos, nem dos índios. Trata-se de que os castigam com chibatadas, o que antes n.io acontecia. Eis os efeito,
exibir o seu poder de decisão e a sua capacidade de legislar ("que dos sacramentos [ sic].
se valessem do direito natural"). Trata-se de "fundar" (inaugurar)
sentidos no lugar de outro (ou de nenhum) sentido. Trata-se de Evidentemente, o que é contado é a conversão a partir da pers-
criar um "outro" lugar do qual falar.+ pectiva do missionário. Mas pode-se fazer falar o índio através dessa
Certamente o problema não eram, pois, os cavalos. fala de Martin de Nantes, já que, pela noção de heterogeneidade
Era a ocasião para a disputa entre Martin de Nantes e Dias (Authier, 1984), sabemos que o "Outro" atravessa os discursos
Ávila. Era o embate entre dois pretendentes a brasileiros. Um pela constitutivamente, e a relação com o "outro" aparece com suas
marcas no discurso.
No exemplo acima, a marca está em "o que antes não aconte-
Um do-, sentidos do que e~t,11110'> ch.un.indo drscurvo fundador pode ser lido em Benvenistc cia" (as chibatadas nas crianças que não são submissas, por
(itpud Pêcheux, l 9B2): "L'hommc .1 roujour- senti - er k, pocrcs onr -ouvcnr ch.inté - lc
pouvoir íond.ueur du L1ng.1ge, qui invt.mre une ré.iliré 1nuginJire, .mirne lcs choves inertes. exemplo).
jt'ut ,z 01ra qu1
1 n est p.tJ cruorr, r.uncncr ici ce qui .t di-p.iru" lgri(o nos-o].

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TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

O embate do texto é o que se dá entre a construção da forma- Espera-se que o "depois" do batismo mude, substancialmente,
ção discursiva cristã européia e a formação discursiva do índio .dgo "palpável" na condição do índio. A fala da necessidade doba-
primitivo pagão. Antes da conversão, temos um índio em estado uvmo vem sempre associada à morte, à salvação. Compreensível, do
de pecado e desorganização social, depois, o índio em estado de ponto de vista do missionário. Mas a coisa fica "descolada" quando
graça e civilizado. pcrcebernos, através da fala do missionário, o efeito dessa noção de
Todo o relato é a exposição do móvel - a graça de Deus - e indio. Salvação em que sentido? "Mal acabava eu de adormecer,
os meios dessa passagem pela ação efetiva da catequese: prêmios e quando ele morreu] ... ] razão pela qual ficaram surpreendidos quando
castigos, ameaças em nome de Deus ( e do sobrenatural) e outros o viram morto sem os sofrimentos de agonia, e passaram a respeitar
meios como a informação e a formação (fazer o índio ver as gran- 111.1is o batismo". ~er dizer, com o batismo o índio não deixa de
des cidades civilizadas). Tudo isso convenientemente apoiado no morrer, mas morre "feliz". ~e sentido tem exatamente a palavra
domínio da língua do índio. .urpreendido dita, pelo missionário, para os índios? "Morreram
O que se pode perceber é que a passagem - por mais que se muitos adultos depois de haver recebido os últimos sacramentos
diga o contrário - é feita pela coerção.' A conversão, que deve e com sinais certos de sua salvação." Sim, salvação na vida eterna,
aparecer como voluntária, é no entanto imposta, e o índio resiste. mas ... e nesta? Parece-me que a surpresa dos índios é antes a do medo
Não é fácil dominar o índio. Exemplo: diante de tamanho poder do missionário: é batizado e morre. O
batismo é instrumento de catequese e medeia vida e morte. Como
Porque depois que aprendi, com muito esforço, a sua língua, por falta esse "instrumento" é compreendido pelo índio? Não podemos
de intérprete, eu lhes fiz ver tão claramente o absurdo de seus erros [ ... ] saber com exatidão, mas certamente os "surpreende".
assim pouco a pouco os abandonaram; primeiro os que eram bem nascidos
[ ... ] e nos outros com relutância; por fim os últimos não se renderam senão Eu fui, cu mesmo, causa inocente da morte de um homem de outra
aos castigos que lhes abriram os olhos. nação que imaginou que eu o havia enfeitiçado,[ ... ]. Esse homem foi to-
mado de tal terror ao ouvir o tom de minhas palavras, pois não entendia
A resistência do índio fala, aí, na voz do missionário ("não se o português [imaginem o índio ouvindo o latim!], que não pôde sair do
renderam senão aos castigos"). lugar e[ ... ] morreu poucos dias depois, vítima da própria imaginação.
Salta, assim, aos olhos uma primeira característica desse discurso:
o deslocamento entre o que diz sobre a conversão, explicitamente, Continuando, M. de Nantes mostra como essa imagem, criada
e o que se pode compreender pelos sentidos que vai produzindo e no índio, do poder sobrenatural, através das palavras, o salvou, "pois
que deixa entrever o índio e sua resistência, e mesmo os sentidos sem o receio de que eu me valesse de alguma praga que os fizesse
que o índio atribui a tudo isso. Quando fala da predisposição do morrer, ou adoecer, ou sofrer algum mal, não me teriam poupado".
índio a ser convertido - " [ a conversão] tanto mais vantajosa [ ... ] A verdade é que o índio, em seu contato com o branco, já sabia a
quando esses índios estão dispostos a receber a fé[ ... ]"-, dos efeitos essas alturas que a sua vida valia pouco, que corria risco constante.
da conversão (relação conversão-morte), o discurso aponta para Era isso que jogava no batismo. O batismo era uma ameaça.
uma direção, mas é, no entanto, outra que vislumbramos. Diríamos, assim, já para anunciar a complexidade desse discurso
que joga sentidos para todo lado, que, do lugar do discurso religioso,
Vandersi S. de Castro apresentou um trabalho de final de curso (1985) cm que explorava
ele rege relações de sentido que se inscrevem no discurso etnográ-
ruais dcmorad.uncnre as formas e a-; consequências da cateque.')e como coerção. fico, no discurso literário e no discurso político. Isso mostra que os

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TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

discursos funcionam heterogeneamente, ou seja, um discurso traz muitos outros: por exemplo, o da transferência da hierarquia de
em si a sua relação com vários outros, que contribuem igualmente poder ( davam-se títulos aos índios corno o de capitão, oficial erc.).
para os seus efeitos de sentido. Além desses, os instrumentos da catequese, tal corno o enuncia o
No que está dizendo, em relação ao contexto imediato, esse próprio Martin de Nantes, são os seguintes:
discurso trabalha uma relação entre culturas e faz urna etnogra-
fia. Uma etnografia do "outro" enquanto "outro" a ser dominado [ ... ] fiz um dicionário da língua, uma arte de rudimentos da doutrina
("par:i livrar o índio de superstições e levá-lo a renunciar de suas cristã e um modelo de exame para confissão, e traduzi a vida de alguns
s.inros, elaborando cânticos espirituais sobre os mistérios da fé empregando
tradições").
o tom dos hinos, cujo canto é mais agradável, para facilitar aos missionários
Não podemos deixar de observar que o cristianismo é sempre
o uso da sua linguagem.
"transformador" (ou seria "intoleranteP), O olhar etnográfico
não é apena~ ernocênrrico, o que há é urna política do olhar. Cabe,
Aí vemos novamente a relação fundamental, no discurso da
pois, perguntar: quando e corno se inaugura o "olhar" etnográfico
catequese ou da colonização, entre discurso religioso e discurso
e quando se legitima esse olhar? ~estão crucial, pois isso dará
cicntftico. Desta vez, não mais na base de uma etnografia, mas de
simultaneamente, de um lado, a ciência e, de outro, o documento
urna lingüística: esta é a origem da produção sobre a língua indígena.6
que atesta a realidade desse povo. Questão crucial, pois essa et-
Rudimentos ou germes da iingüística ameríndia: catecismos, hinos
nografia, que é uma forma de relação do europeu com esse país,
sacros e gramáticas. Vale tudo.
caminha ao longo da história. O que se vai deslocando é o critério
Nesse discurso, por seus diferentes processos de produção de
de julgamento através dos séculos: entradas e bandeiras, dadas,
sentidos, assiste-se ao confronto entre a formaçào discursiva do
companhias. A guerra contra os índios é contínua, seja sob a forma
colonizador e a do colonizado. Ou melhor, assistem-se a con-
da catequese inicial, seja sob essas outras formas.
frontações de sentidos que indicam a relação dos sentidos entre
Por outro lado, se no contexto imediato esse discurso está pro-
colonizador e colonizado, em debate.
duzindo uma etnografia, no contexto amp!» ele está produzindo
No seu modo de organização, esse discurso está dividido em
a "cristianização". A sua heterogeneidade - discurso religioso,
duas relações. A primeira, que tem duas partes, arrebanha diferentes
etnográfico, literário, político - não é desorganizada.
espécies de discurso, produzindo, corno veremos, a dominância de
Façamos, neste passo, algumas considerações de ordem mais geral
um discurso etnográfico. A segunda relação, permeada por relatos
para compreender essa relação entre discursos, relação dominada
de bravatas do nosso missionário, constitui uma peça de retórica
em última instância, no caso em análise, pelo discurso religioso,
que é o "lugar", a posição de que fala o capuchinho.
As palavras, sabe-se, não têm o sentido que a gente quer dar,
"Une des plu-, gr.11Hks dífficulrez que !e, nussio nairc-, .1yent :t vaincrc d.m- l.1 convcrsion
mas o sentido que efetivamente tomam, dadas as condições de
de ces Pcuplc-, ,l e-ré Lt diversiré des L.1ngue,, qui rcgnoit p.1rm1 cu x. Pour rernedier ,\ un
sua produção. Em termos políticos, mais do que em qualquer -,i grand i_nconvenient, qu~i rer.irdorr be.iucoup 1c progrt'-, de l'Ev.mgile, on .1 choi-i parmi
contexto, a intenção de quem fala tem muito pouco a ver com o ('lu, de v111gt l.rngue, differenre-, ccllc qui csr l.1 plus génér.ile. er qui .1 p.1ru Li plu-, .iivée
·'. .ipprcndre, er on cn .1 I.iit l.1 L.rnguc Umverselle de rour ce Peuple, quí cvr obligé de
que significa realmente. 1 ª!1p_rendr~. On cn ,l cornposé une gr.unmaire qu'on en,eigne <Lrn.; lco;; Fcolcs cr que lcs
A catequese se fazia, pois, por muitos meios. A coerção por m1,;;\1~1rn,ure.1, C.".!t~1dienr cux rnernc-, [ ... ] " ilrrtr« riu Prrt' Nvr], missionnire rle /.z Comptrgnie
rltje\u:,, .iu P Peré lJe..: rle!t1 mf.\111e Cow/hl/l/llf, Peruu, le 20 nuy 1""105). Ei'> .l'i dua, fornus
palavras e atos não era o menor deles. Entre eles havia, porém, de domínio: ,1 língu.1 univer~c1l e ,l gramática.

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eclesiástica no interior de um discurso predominantemente político. Mas o próprio Deus desejava, Ele próprio, fazer justiça ] ... ]; pois que,
Na primeira, domina o científico, na segunda, a literatura. .irravessandoum rio numa canoa com três ou quatro pessoas, caiu de rosto
Como já observamos, os discursos funcionam heterogeneamente, no fundo da canoa, onde havia um pouco d'água e morreu subitamente,
ou seja, um discurso traz em si sua relação com vários outros ( com tornando-se disforme.
os quais estabelece relações de sentido), que contribuem igualmente
para o seu modo de significar os seus efeitos. Para entender essa duplicidade de lugares - temporal/espi-
No caso do discurso religioso, tal como venho estudando em ritual - de que fala esse discurso, basta observar que os sentidos
nossa história, nos relaros de missionários nos séculos XVI, XVII produzidos por uma mesma palavra - por exemplo, "povo" ou
e XVIII, ele aparece articulado ao discurso da produção de conhe- "justiça" - têm um efeito de sentido diferente se é a um padre ou
cimento - dando a conhecer o Novo Mundo e seus habitantes ( os a um partido político que a referimos.
índios), tornando-os "conhecidos" e assimiláveis sob a forma do Vista, agora, no contexto geral da sociedade, a Igreja nunca
conhecimento ocidental - e ao discurso político - produzindo teve, e não tem, neutralidade. Ela fala e age de um lugar determi-
sentidos enquanto discurso catequético (salvando o índio em nado pelas relações de força e de poder que constituem qualquer
sua espiritualidade), sentidos esses referidos à colonização (que formação social. Toda ação da Igreja tem conseqüências políticas.
administra o índio em sua existência material). O que se chama de "neutralidade" é justamente o calamento da
Evidentemente, o discurso religioso não faz isso de um lugar Igreja à ordem dominante. Mas não é só hoje que esse calamento
neutro, mas sim daquele em que a Igreja, ao estabelecer suas rela- exibe fissuras, distinguindo em seu interior os "conservadores" e
ções, se constrói, instituindo um lugar do qual falar (decidir). Esse os "progressistas"; aqueles que cuidam de suas almas, evocando a
lugar tem a sua especificidade e a sua força própria, que vai entrar hierarquia, e os que vão morrer ao lado dos oprimidos. Isso faz
em confronto com os outros lugares, os quais, nessa conjuntura, parte de seu funcionamento ao longo de toda a história.
se constroem como lugares que têm, cada um, a sua autoridade e Na época colonial, distinguiam-se diferentes ordens, como
o seu poder de decidir sobre as questões do "povo" em geral. os capuchinhos (ditos mais brandos) e os jesuítas (considerados
O que marca fundamentalmente o discurso religioso é que ele mais duros). Ou mesmo, entre os jesuítas, os pacíficos e os guer-
funciona a partir de uma dissimetria básica entre o plano espiritual reiros etc. Nem por isso eles deixaram de fazer, todos, parte
e o plano temporal. Em última instância, é a essa dissimetria que crucial da colonização. Ao contrário, por este ou aquele motivo,
ele recorre para situar as suas falas. Mesmo quando dirigido para todos acreditavam piamente na necessidade da catequese e do
o plano temporal, o outro plano, o espiritual, sustenta o processo estabelecimento de um governo entre os índios. O que reivindi-
de significação: cavam, isso sim, é que eles, padres, tivessem voz, ou seja, poder
de decisão, na administração dos conflitos da época. Sempre se
Teve tanto êxito, com o socorro rL1 gr,1ç,1 rle Deus, que eles se transfor- colocaram como mediadores, isto é, como intérpretes de forças
maram de todo, num raio de dez ou doze léguas [ ... ] . Razão pela qual era sociais e políticas.
muito estimado e muito querido nesse lugar[ ... ].
Na catequese, eram intérpretes na relação dos índios com a
colonização (povoamento, tomada de terra, governo etc.). Ao
Exemplo mais forte pode ser encontrado, quando a graça de
mesmo tempo em que "salvavam" a alma do índio, controlavam
Deus faz coisas terríveis (p. 20):
as formas de contato dos índios com a civilização ocidental. O

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índio era o argumento da retórica colonial, que servia a padres e a e) F, um documento, um relatório: visa a hierarquia da sua ordem,
governantes, às vezes do mesmo lado, às vezes em confronto. seus superiores;
No discurso das descobertas, falava-se do índio para se falar de d) É a construção de uma versão. Dirige-se para a História. Sem
tudo no Novo Mundo: da colonização, das terras, da codificação esquecer uma divisão que acompanha todo o texto, mas que
dos conhecimentos, do próprio europeu etc.' distingue especialmente a primeira relação da segunda: i) na
Se os sentidos dessa fala sobre o índio são muitos, um traço primeira, ternos a dominância da fala humilde: diante de Deus
característico seu é, como dissemos, a heterogeneidade. Nem podia ("prosternado aos pés de V... com os sentimentos da mais pro-
deixar de ser, pois são muitos os atores desse "drama": povoadores, funda humildade"), dos índios ("a cuja conversão vos aprouve
governantes, sertanistas, moradores da região (margens do rio chamar-me conquanto indigno") e dos missionários ( o "respeito e
São Francisco), índios (aldeados e não-aldeados), missionários, obediência que eu devia ..."); ii) na segunda, temos a fala heróica:
romeiros, magistrados, sargento-mor, capitão-mor etc. São atores, "[o negro] a quem eu defendi de um golpe de espada que lhe
sendo também interlocutores visados não diretamente no relato, teria atravessado o corpo se eu não tivesse desviado o braço de
mas no cotidiano da catequese. seu atacante e a espada parou sem o atingir, desviando o golpe
Do lugar do discurso religioso, esse texto fala com todos esses que visava o meio de seu corpo". São exemplos que mexem
personagens. Cada enunciado tem vários destinatários: cada enun- claramente com o político e que têm "intenções" literárias.
ciado tem vários sentidos. Promessas e ameaças andam muitas vezes
juntas, na mesma palavra, dependendo a quem ela se destina. Edificar é tanto construir a possibilidade das missões, pela lou-
Se pensamos, pois, que essa heterogeneidade discursiva não é vação dos valores ocidentais - que incluem coisas mais ou menos
apenas convivência de vários discursos no texto, mas também a concretas, como a consrruçào de cidades, a introdução da escrita,
remissão dos sentidos a vários destinatários, podemos entender do casamento etc. -, como também criar formas de linguagem
a complexidade desse funcionamento. próprias à civilização que cultua esses valores: o relato de aventuras
Vejamos um exemplo (pp. 62 e segs.) quando Martin de Nan- ( uma forma literária), as crônicas de viagem.
tes conta como age frente à questão das terras e dos índios num Do ponto de vista da materialidade do texto, o destinatário
confronto com Dias Ávila. No seu texto, podemos ver que: nomeado, na dedicatória da relação de Martin de Nantes, é Jesus.
E é isso que justifica o falar cm nome de Deus ao falar da catequese.
a) Ele ensina: é uma aula de retórica missionária. Dirige-se, pois, Mas, através desse mesmo texto, vamos vendo outros destinatá-
a aprendizes de missionários; rios, como, por exemplo, os "leitores" que aparecem nomeados
b) É uma peça, um instrumento político: os destinatários são os explicitamente: "desejo também que todos os leitores ...". Além
membros de sua ordem e o Estado; desses, o enunciado "pelo zelo ardente que vos infundiu o desejo
da salvação de nossas almas" sugere também as "ordens religiosas"
como interlocutores.
Hoje m.inr id.is ,l\ mcsrn.i-, form.1\ gcr.li'> de cvr.ir 11,1 <ocicd.ide, rna-, rr.uivtorm.rd.r .1 110,:-..1
Mas o que toma mais relevo nessa dedicatória é a propost11 de
íorm.: social e políric.i. n.io ,ó o, índiov, 111.1 , princip.ilmenrc ,1 pobreza, o, POBRF,S (e.ire-
gori.1 .unpla que coloca toda forma de oprev-.ro no mesmo s.ico}, é que s.io o argumento. E conuersno, Observando essa proposta, podemos começar a destacar
,e fal.i d,1 pobrcz.i pJr,1 ,e fal.ir de tudo (de rerr.i, de cducaç.io, de eleições erc.). A "pobreza" elementos para a compreensão de seus (da conversão) sentidos:
rcpre<:.enu hoje um do, "rerrnov" ncccvs.irio- p.1r.1 o confronto de forças e sentidos. t.1!
como fo1 com excluvividade o índio no di-cur-,o 1.fa coloniz.iç.io e c,1tcque1,e. "quando esses pobres índios estão dispostos a receber a fé e torna-

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rern-se bons cristãos, se todos [ a corte, os outros missionários) se senão pela vista". Este era o alcance do seu espírito. A sua falta de
aplicam como é necessário, ao trabalho de sua conversão". Este é racionalidade os impedia de admirar as grandezas da civilização
um discurso "militante", de arregimentação de forças (espirituais ocidental, "não podendo elevar-se ao seu conhecimento pela beleza
e materiais) para a catequese. das coisas sensíveis que não conheciam. Eis por que os mandava
Para entender isso, é preciso saber que havia uma bula, Subli- à Bahia".
mis Deus, do papa Paulo III, que dispunha sobre a liberdade dos Como vemos, a racionalidade já é parte dos desígnios da Europa
índios, datada de 2 de junho de 1537. Essa bula proibia a conversão cristã. E ela entra em nosso imaginário pela colonização. É o que
do índio pela escravidão, pela força. É um documento que, ao mes- devemos ser: racionais e civis. Essa imagem de racionalidade pesará
mo tempo, mostra a necessidade da catequese pelos missionários ao longo da nossa história.
("vão ensinar todas as nações", todas porque "Sem exceção, todos A conversão supõe a "civilidade" ( todos os homens são capazes
os homens são capazes de receber o ensinamento da fé"), mas sem de fé). Para ser convertido, é preciso estar na vida racional e civil.
submetê-los "como animais sem razão sob pretexto que vivem fora A nação de Deus supõe a nação dos homens. Mesmo porque o
da lei católica". Esta é a racionalidade (razão?) da catequese: no índio convertido à força não é índio convertido:
plano espiritual, a submissão a Deus substitui a escravidão, pela
possibilidade de ensinar a fé (conforme M. de Nantes, p. 42: "os E ninguém tem o direito de reduzi-lo à escravidão. ~e todo ato que
índios são criaturas racionais, filhos de Adão, como nós mesmos, vá ao encontro dessa disposição seja tido como nulo e não-válido: não
conquanto muito ignorantes") para, ao mesmo tempo que os tem nenhuma validade e nenhuma força. (Bula S11blimis.)
salvam no plano espiritual, transformá-los em seres racionais e
civis no plano temporal. Isto é, seres que se deixem "governar". Ainda mais grave é o caso, quando sabemos que a catequese
Civis, civilizados. e a divisão das terras vão juntas: estão definindo a "orbis" nesse
Veremos que razão e fé, cidadão e cristão, já brincam de mãos momento, entre os países colonizadores, bastiões da "defesa" da
dadas no início da colonização. Mais de uma vez, M. de Nantes civilização.
rematizará essa relação. E a forma mais explícita disso está no Há, pois, regras para a conversão e, dentre elas, não é a menor
início da segunda parte da primeira relação ("meios para a con- a que vincula alma e civilidade (p. 9: a "utilidade da vida civil").
versão") (p. 8): Voltemos ao texto.
No prefácio, a imagem do leitor de relatos de missionários -
[ ... ] como os encontrei mais animais que homens na sua maneira de aquele que espera "ações fulgurantes" - já convive com a imagem
viver, apliquei-me, primeiramente, a formar pouco a pouco uma vida que se vai criando dos habitantes do Brasil:
racional e civil, falando-lhes muitas vezes, em discursos de todos os
dias, do que se praticava entre pessoas policiadas, revelando pelos por- [ ... ] conversão dos pobres selvagens, que não tem Reis, nem Leis, nem
rncnores, segundo o alcance de seu espírito e de seu estado, a utilidade Governo, nem artes, nem ciências, nem escrita e que vivem antes como ani-
da vida civil[ ... ]. mais do que como homens. [ O que decerto merecerá nossa reflexão.]

A referência ao "alcance de seu espírito e de seu estado" se No discurso da conversão, a imagem do habitante brasileiro é
relaciona, no texto, a outra afirmação: "assim não sabiam o que montada pelo avesso, pela negação: o que ele não tem ( em relação
era beleza, magnificência, grandeza, nem mesmo quantidade, ao europeu).

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TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

O relato não é só para distrair, mas para fazer "refletir". Tam- O discurso vai dividindo: os portugueses são separados entrego-
bém serve para "satisfazer vossa curiosidade e vossa piedade". A vernantes e locais (fora-da-lei); os índios, entre submissos (bons)
edificação, como vemos, também faz parte dos sentidos da con- e rebeldes ( maus, selvagens).
versão. Aparecem ainda outros destinatários para o texto: outros A fala dos padres ou empresta religiosidade aos índios, quando
missionários, os índios e os portugueses. confirma a disposição religiosa dos submissos, ou a nega radical-
A imagem do missionário é contraposta à dos portugueses mente: o índio (rebelde) não tem religião (só superstições, feiti-
com bastante nitidez: çarias erc.), Um exemplo que ilustra isso de modo interessante é
o da página 4, quando, ao falar dos deuses dos índios, Martin de
[ ... ] os missionários, entre os selvagens, são obrigado, a desempenhar a Nantes diz: "culto aos deuses que haviam im,lgin,ido [grifo nosso]".
tarefa de governadore,, de juízes, de pais e de mács e de protetore, contra Os cristãos acreditam em Deus, os índios imaginam os seus.
as injustiças dos portugueses, habitantes desses lugare, e dos quais na E assim se vai fazendo a divisão categórica dos paradigmas, sem
maior p.1rte sào criminosos exilados de Portugal ou gente viciosa, que, nenhuma nuance, sem nenhum pudor:
se encontrando afastados do governo 150 ou mais légua,, oprimiriam os
índio, e cometeriam desordem sem número, como faziam antes, à som-
HOMEM EUROPEU ÍNDIO
bra da impunidade se [grifo nosso] o~ missionários não se investissem de
razão e fé sentido,
autoridade e de decisão para combater tais excessos,
vida racional e política desordem

Para a "pacificação" são os indigenistm os delegados do poder


É rematizando os nativos que o discurso sobre o Brasil tam-
de intermediar, de mediar a relação do índio com o mundo e com
bém vai produzindo a imagem da "malícia" do povo, aos poucos,
os outros índios; na "conversão" é ao mission.irio que é delegada
através de citações a Deus: "Chegou mesmo a demonstrá-lo por
essa "nobre" tarefa.
terríveis castigos[ ... ] eles provocavam desordens e escândalos em
Pois, se é preciso se impor aos portugueses, também o é perante
nossas aldeias, corrompendo índias e retendo-as em suas casas
os índios: "é preciso também revelar coragem perante os índios
escandalosamente [ ... ]". Mas também com a ajuda do demônio,
para reduzi-los a seus deveres corno tantas vezes a experiência o
que do seu lado "Serviu-se da avareza de alguns, da preguiça e até
demonstrou". A palavra reduç/io ( mais tarde aldeamento) começa
mesmo do ciúme de outros, assim como da incontinência de vários
a ser aplicada ao índio ("reduzi-lo a seus deveres"). Intermediários
[ ... ] que levaram tão longe suas paixóes ] ... ]".
com sua força própria, os missionários se colocam entre uns e
Até mesmo ao explicitar as quatro coisas de que precisa o rnis-
outros, o seu poder circula e se alicerça.
sionário para o trabalho da conversão, a "malícia" está presente:
Já se constrói aí a idéia de que os primeiros habitantes (se não
são "selvagens") são fora-da-lei. De nossa parte, aceitamos o dito A primeira, aprender sua língua, sem o que seríamos bárbaros diante
e repetimos isso eternamente em nossas escolas: nossa origem de bárbaros. A segunda, uma grande caridade, para suportar tantas imper-
se fez com proscritos europeus; temos a origem comprometida feições, grosserias, ingratidões, até que se tornassem civilizados, porque a
com cidadãos de segunda ( ou de nenhuma) classe. É realmente ingratidão é a filha da bestialidade. Terceira, um grande desinteresse pes-
um discurso econômico, em termos de exclusão: exclui o índio, soal cm face de coisas temporais e um grande devotamento fazendo-lhes
negando-lhe a sua tradição ( que chamam de crendices) e o europeu todo o bem possível e protegendo-os contra todos os que os oprimissem.
que nos forma é "vicioso". Daí a necessidade de governá-los todos. Quarta, um grande amor à castidade, tornando a respeito nutit.tsprecauçàes

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DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO
TERRA À VISTA

[grifo nosso], por causa das solicitações perigosas a que se ficava exposto, 2. Estrutura geral
sendo os índios extremamente frágeis.
A estratégia do texto pode ser resumida em três momentos de
E comenta, depois, que é difícil que se seja muito casto (falando ~ignificação:
dos portugueses ... ):
1) A demonstração de humildade;
[ ... ] especialmente antes que as índias sejam cristãs e convencidas da z.) A exposição da variedade como característica das situações
e, Náo
ver d a d e d are. , são poucas as que se oferecem aos homens para o mal, enfrentadas e do Novo Mundo;
se neles percebem alguma fraqueza, ou se podem esperar algum proveito, ,) A necessidade da mediação, do intérprete.
pois que n/io têm vergonha natural [grifo nosso] nem temor a Deus.
Em um primeiro momento, ele se apóia na humildade (pequeno
Fora "os festins à sua maneira, verdadeiramente lascivos". Olhar diante de Deus e da tarefa, humilde servo de Deus, só fez o pouco
lascivo europeu, poderíamos dizer. Descrições do novo habitante que podia etc.): num segundo momento, relata a variedade das
do mundo que certamente sensualizava a leitura dos relatos de coisas, a multiplicidade de problemas, de imprevistos, de diferen-
missionários que, segundo o que se sabe, eram lidos pelos apren- ças do nativo etc.; o que justifica o terceiro passo: ele, missionário
dizes, no horário das refeições, coletivamente, ou em horas de já experimentado, torna-se imprescindível como intermediário,
lazer. E que já formavam o lugar de produção de senti~os ~ que se como intérprete.
recorre fortemente na atualidade para se produzir clichês sobre Através dessa estratégia, Martin de Nantes constrói a necessária
brasileiros e brasileiras. referência a ele, pelas qualidades que lhe são "imputadas": lealdade,
Outro componente desses clichês é a "indolência". Também simplicidade, ingenuidade, confiança.
rematizada sem nenhuma parcimônia: "Quand ils ont gagné Tudo isso é construído no texto pela maneira como ele alia os
quelque chose ils restent dans [oisivité jusqu'à ce qu'ils aient tout três momentos da sua argumentação.
dépensé" (M. H. L. Séris, 1881). Martin de Nantes sempre foi referido através dessas qualidades.
Além do "toque" de malícia brasileira que já se vai configurando Não só convenceu na época. Continua convencendo, pois é assim
nesses discursos sobre o Brasil, desde a fala dos missionários, há que essa memória é construída no discurso: deixa de ser memória
nessas passagens outro fato discursivo digno de nota. Trata-se da vivida para ser "memória intelectual", memória de significação, de
segunda e terceira condições que são enunciadas para a catequese: um sentido "partilhado". Não é mais memória do "outro"; é um
caridade e desinteresse. São as duas "exigências" nas quais, sob o "curso de memória". Memória fora do tempo: presente que não
signo da generosidade, se apóia o assistenciali,~mo, ~ue,,resulta na muda, memória eterna(lizada). Nesse curso, ou seja, nessa marcha
marca de inferioridade e de dependência do assistido . Genero- progressiva, os tempos da memória não se cruzam jamais; são
samente, 0 conquistador oferece a sua disposição para suportar independentes. E é com esses efeitos de sentido que falas como o
as grosserias e proteger o seu subalterno, como está dito no texto relato de Martin de Nantes se alojam no discurso da história.
que citamos acima. Dissemos que, instituindo-se em intérprete, instalando a au-
toridade e a necessidade do missionário, o padre, na colonização,
exerceu a função de mediador. No relato, Martin de Nantes se

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160
TER R A À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

apresenta com duas formas de mediação: a) na primeira relação, Quem consegue construir a feição da sinceridade (relato sincero e
ele aparece em sua ação (conversão) de fato entre os índios; b) na sucinto) é sincero. E, de quebra, é justo, é forte e consegue manter
segunda relação, ele apresenta sua ação no Brasil, com os portu- o seu domínio da terra.
gueses. Mediador de Deus e mediador do europeu com o Novo A palavra sincero organiza, em si, muitos modos de significados:
Mundo. Eis urna duplicidade que é muito significativa, recobrindo, sincero pode significar "científico", pode significar "bem-intencio-
dobrando os sentidos do que M. de Nantes diz. Sentidos que se nado" etc. Aqui veremos urna das formas de essa palavra produzir
multiplicam na refração do encontro com os diferentes destinatá- sentidos."
rios, sem no entanto perderem sua característica dominante: a de Uma vez que esse discurso se volta para a Europa - aliás, já
um discurso que domestica. Seja diante de Deus, seja diante dos parte dela -, ganhar a discussão tem um sentido aqui no Brasil,
homens (colonização). O traço comum é a obediência. mas não pode perder-se do sentido de lá. A presença da retórica
A primeira relação, como dissemos, rematizando o antes e o européia ganha contornos em sua "transferência" para o solo bra-
depois da conversão, insere-se frontalmente no discurso sobre o sileiro.Transfigura-se.
outro, pelo viés da cujtura, construindo o discurso etnográfico Qual a forma política dessa argumentação? Como se divide
é

que, por sua vez, objetiva a necessidade da catequese. entre o lá e o aqui? Um país desconhecido, ainda em formação,
A segunda relação acentua sobretudo a própria feição do escrito, 11.10 é um país visível:

a relação com a linguagem, a retórica do poder.


Tomemos um enunciado que eu chamaria de modelar: Não há pois que admirar se aqueles que vivem com pouca religião e
cvcassa consciência enganam os governadores que não podem saber, d.1cLi
distância dos lugares, a realidade do que lhes chega ao conhecimento.
.1
Nossos missionários viram-se obrigados a se opor à invasão [ em francês
Em conseqüência não faltam injustiças.
"usurpação"] violenta das terras dos índios pelos portugueses, uma vez
que os rebanhos devoravam as plantações dos índios e os obrigavam a
separar-se em diversos lugares para poder viver, o que acabava impedindo A não-visibilidade se traduz - imaginariamente - no tenso
a presença das missões. clima de "boatos". Versões que circulam produzindo sentidos e
relações entre pessoas, ao mesmo tempo em que vão definindo os
Isso nos leva a concluir que os desígnios de Francisco de Ávi- diferentes grupos de poder. A maledicência é forma de organizar
la, o vilão dessa história, eram prejudiciais às missões ( e não aos ,1 sociedade nascente. Nessa circunstância, as formas ( e relações)

índios). de poder se exercem com uma crueza estrita e que as torna, das
Por aí vemos que o motivo da solidariedade dos padres com os sim, extremamente visíveis ( e ferozes). São incontáveis, no texto, as
índios era menos os índios em si que a necessidade das missões. ocorrências de situações de linguagem em que jogam: a "perfídia', 0
Essa necessidade das missões vai-se dizer de muitas maneiras, "equivoco', as "perseguições", "sutilezas capciosas" "suspeitas" "falsas
a partir de argumentos variados em que o mais importante é
talvez a própria imposição de urna forma de retórica: a que joga Jo-.é- Hor,tJ Nunes ( 1990) cm seu rr.ib.ilho mostra .1 polisvcmi.r e .1 hcrcrogcncid.ide dc-.'hl
com o falso e com o verdadeiro, com a mentira e a informação palavra. Segundo Nune,_, cm "c.id.i posiç.io do sujeito (Martin de Nantes) esvc termo g.rnh.,
-.cn~1do-, peculiares. N.1 formaçâo divcurviv.i religio\,l, ele remete J noç.io de humildade l ... ]
segura, mostrando que o valor da palavra nessa lonjura ( o Brasil é 1u torm.iç.io divcurviva polític.r, cobre ,l'> noçóe- de neces . . idade, obrig,tç,lo [ ... ] 11 ,1 poviç.io
lá longe) atesta e vai construindo a força, o poder do imaginário. de .iuror .. , sinceridade remete ora .1 noç.io de virnpiicid.ide, or.i de rc-ponsabilidade,
à

verdade, n.io-conrradiçáo"

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TERRA À VISTA
DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

gentilezas", "ameaças", "boatos pérfidos". E isso t~do acom~an~ad?, A linguagem rende e há dois fatos discursivos que mostram
de um ir-e-vir quase inacreditável entre aldeias distantes, a capital , bem que esse relato pode ser lido como uma aula de retórica mis-
a casa do governador, a sede do arcebispo etc. sionária. Eles impressionam pelo espaço (e sentido) que ocupam
As tramas fazem caminhos longos com uma pertinácia que nos nesse relato e se remetem a esse contexto de falas enfatizando o
surpreende pela energia despendida. Gastavam dois, três m~ses para lugar que aí ocupa a argumentação.
ir até a Bahia fazer uma fofoca, voltar, esperar os desenvolvimentos E o que é interessante, teoricamente, é que esse movimento
e retornar para desvendar os equívocos. E morar longe certamente ,1rgumentativo nos mostra que argumentos diferentes, em seus
fazia parte desse ritual. O tempo deles era diferente e isso contava confrontos, longe de mostrarem urna separação de sentidos e
no exercício do poder e das "versões". Imaginário, ficção e inverdade urna separação de formações discursivas, significam justamente a
tinham relações que se faziam pelos caminhos longos e ásperos do dinâmica e a heterogeneidade interna constitutiva de urna mesma
Brasil nascente. Mas devia valer a pena: formação discursiva. Ou seja, os contendores se desafiam em seus
,1rgurnentos e suas razões, mas estão sempre do mesmo lado, ou
Levei para a viagem um pouco de peixe frito e ovos; o peixe logo se seja, na outra margem do índio.
deteriorou, e o negro que levava os ovos caiu e quebraram-se todos os ov_os, Voltemos aos dois fatos de linguagem. São eles: a) a distinção
de sorte que no segundo dia já estavam perdidas todas as nossas prov1soes
da violência retórica e da natureza de sua forma quando se trata do
[ ... ]. Não foi esse o maior trabalho pois que, não havendo caminhos batidos,
índio ou do português; b) o caso exemplar da contenda entre M.
era preciso romper moitas espessas e florestas de canas selvagen~ [ ..._] eu
esbarrava muitas vezes nas canas com muita dor, de sorte que nao tinha
de Nantes e F. de Ávila e o recurso à teoria dos equívocos.
mais dedo nos pés que não estivesse ferido[ ... ] para cúmulo de sofrimentos Vejamos o primeiro caso (a):
saí daí todo coberto de carrapatos.
Quando o capitão índio, que veio acompanhado de três de seus govcr-
n.idos, me viu na sala, não ocultou sua surpresa. Todos sentados, Francisco
Enfim, no uso da palavra como arma, são inúmeras as ocasiões
Dias de Ávila pediu a um capitão de ordenança português, que sabia a
de denúncias, calúnias, no labirinto das versões e das estradas. E
língua dos cariris, para lhes dizer, de minha parte, que eles teriam que
não se trata de saber a verdade. Trata-se de se fazer acreditar. Para
me obedecer sem me dar desgosto[ ... ]. Em seguida, com uma fisionomia
obter apoio, favores e, o mais importante, o direito à terra. cheia de cólera, olhando para o capitão índio que estava diante de mim,
Como exemplo, para mostrar a maestria de como a palavra cu lhe disse, em voz alta, com severidade, pondo o meu dedo diante do
é manejada nessas situações, trago o texto em que M. de Nantes seu rosto: "Olhai-me!" Repeti essa intimação duas outras vezes com as
procura desautorizar a ação de um português que ia à Bahia in- mesmas demonstrações, com algum intervalo entre as interpelações. Não
formar sobre as suas ações: era preciso mais para torná-lo surpreendido e fazê-lo tremer violentamente,
batendo os dentes, sem saber o que dissesse. Os outros sofreram as mesmas
Sem me mostrar preocupado, perguntei-lhe muitas coisas [ ... ]. Eu .1Aições, tornando-se muito pálidos.
não disse nada, para levá-lo a outras contradições [ ... ]. Quando o supus
suficientemente comprometido, retomei tudo o que ele havia dito e o Essa fala, assim como uma outra, em que ele diz "censurei-os
convenci de sua falsidade. severamente, e, tomando nas mãos a disciplina, bati indiferente-
mente a torto e a direito. Em lugar de se revoltarem contra mim,
As canas selvagens cortam menos que as palavras civilizadas lançaram-se por terra tremendo e pedindo perdão", aparece sob o
amestradas pela retórica eclesiástica. título "Terrores salutares para os índios". Não se trata, pois, apenas de
DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO
TERRA À VISTA

estabelecer a possibilidade de urna relação com os índios. A direção Podeis ver, meu Sr., a que estão expo,cos os pobres missionários a serviço
de Deus e do próximo ] ... ]. O Demônio não pode admitir pacientemente
dessa relação, o sentido delas, o "terror", tem que ser instalado.
que lhes arrebatem as almas que cativou. Faz guerra aos que as conquistam
~er dizer, a forma da retórica do missionário para o índio não
e ,empre encontra quem o auxilie. O próprio Jesus Cristo foi perseguido
tem muitas sutilezas: é a retórica da intimidação verbal e física. e nos deu os exemplos de que precisávamos.
~e ele aplica em nome de Deus:
Esta fala é também urna metáfora. O demônio é Francisco Dias
Eu o repreendi com tanta autoridade que empalideceu e não pôde
de Ávila ( e seus seguidores) e, ao se inspirar em Cristo, ele mesmo
susrentar-se nas pernas: teve que ventar no ch.io, para não cair. Creio que
aquele, que lerem o que estou escrevendo julgarão, como eu, que Deus se coloca nesse lugar. Isso está praticamente explicitado quando,
estava prncnte ne-scs sucessos verdadeiramente extr.iord in.irios, diante no parágrafo seguinte, ele levanta urna suspeita contra Ávila com
desses pobre, índios, encamiuh.indo-os para a sua salvação, o que me grande hipocrisia, e diz:
dava coragem p,1r.1 fazer o que excedia de muito as minhas forças, pois
que concorria para lhe, abrir o, olhos. Teria sido de todo impossível fazer [Eu] não disse o nome do português mas parece que ele suspeitou que
bons cristàos, ,e os 111,1m 11.10 f1w,cm c.1,tigado,. tosse Francisco Dias de Ávila, sem que eu o houvesse mencionado e sem
que eu mesmo desconfiasse de sua suspeita, uma vez que ele já admitia que
Os "sucessos verdadeiramente extraordinários" que ele credita ele fosse o autor, ou ,1 causa de toda essa perseguiçào.
a Deus são o medo do índio diante do uso violento da voz e da
palavra, acompanhado de feitos igualmente caracterizados pelo Perseguido, corno Cristo, pelo demônio de Ávila. Pelo menos
"excesso", e gue ele procura nos fazer crer que podem ser catalogados aos olhos do governador. O gue era, naturalmente, imprescindível
sob a rubrica literária de "intrepidez". para que a disputa entre eles tivesse a objetividade do poder.
Essa retórica - a do excesso quase físico - não é a mesma O dito popular "Falem mal, mas falem de mim" é aqui muito
quando se trata de outra população: esclarecedor. Porque não é o conteúdo do que se diz, mas o próprio
jogo das relações de força gue importa. É preciso fazer parte delas,
Vi o, eclesiásticos, os religiosos, os seculares de maior consideração ter um lugar e ter acesso à produção de sentidos. O resto fica para
e até mesmo o, parente, de Francisco Dias de Ávila, conquanto muito a força da argumentação. ~em pode mais, chora menos ...
prevenidos contra mim. Deixei-lhes, de começo, que manifestassem o O interessante é gue, depois dessa peça de maledicência ("in-
seu ressentimento e ouvi pacificamente tudo o que queriam dizer-me consciente", claro), ele chama o capítulo de "Má-fé do coronel
sem os interromper. Em seguida, em vez de me lamentar ou de censurar
Dias de Ávila".
a atitude deles, disse-lhes am.ivclmcnrc que até a considerava modesta, à
Enfim, para caracterizar essa diferença de retórica eclesiástica
vista d.is informações que haviam recebido [ ... ]. Conseguia assim o seu
consentimento e d.iva, em pormenores claro, e sucintos, ,1 narrativa do de acordo com o destinatário, ou seja, para os índios e para os gue
meu procedimento[ ... ] o, mais encarniçados contra mim mudaram de têm poder, temos uma citação exemplar:
atitude .iprovando o meu procedimento.
Mas a verdade quer ser sustentada corajosamente quando a repelem,
e pode-se falar com decisão quando ,e está certo de seu direito e quando
Desautorizava, e nesse caso com serena argumentação, o gue
se vê aquele que se combate já desarmado pela evidência dos focos. Foi o
era dito por outros (que eram mentiras, claro), para impor a sua
que aconteceu nessa ocasião em que, com a ajuda de Deus, convenci de
verdade, sempre apoiado em razões eternas e indiscutíveis:

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TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

tal forma o senhor governador, que ele me disse que o haviam enganado dissimulação do sentido ( e do sujeito). O sujeito aparece, assim,
e que ele aprovava meu procedimento. como mestre de seu discurso, consciente e no entanto imperfeito,
em suma, "humano", dizendo a verdade ou, ao contrário, mentindo
E esta conclusão vem depois de uma fala cheia de argumentos (Haroche, 1984).
"racionais" (e não emotivos e físicos como para os índios) do tipo: E é com os jesuítas em suas propostas de clareza (e em sua po-
"a verdade é sempre a mesma e não admite contradição" ou: lêmica eclesiástica com os jansenistas, ditos obscuros e tendentes
aos ambíguos) que a questão da verdade ideal da desambigüização
Meu senhor, estudei filosofia e teologia, sei escrever melhor do que desemboca em uma doutrina, a doutrina dos equívocos.
fabr, pois que me dá mais tempo para reAetir. Assim, peço a V. Sa. não levar
Essa doutrina, tratando o equívoco como interpretação ambígua,
a mal que vos diga, com um respeito cheio de sinceridade, que não posso
assenta-se no princípio de que se podem dar sentidos diferentes a
convencer-me de haver incorrido cm contradição, se não a demonstram,
pelo confronto. uma palavra dentro de um mesmo raciocínio. E ela dispõe sobre os
modos de, sem ferir a verdade, praticar-se "conscienciosamente" o
~er dizer, ele chama para a briga, mas a "contenda" aí se pauta equívoco. Ao ser instado a contar um segredo, por exemplo, dizer
pela agudeza do domínio da palavra. Essa é a natureza de seus outra coisa, ou dizer pela metade, completando o enunciado na
argumentos quando se trata dos donos do poder. São argumentos linguagem interior. Por exemplo, após dizer algo e ser obrigado a
de autoridade intelectual. jurar, responder-se à pergunta "Você jura que isso é verdade?", dizer
As cenas são, assim, muito distintas: de um lado, o excesso, em voz alta "Eu juro" e, em voz baixa, "que isso náo é verdade".
o grito, a intimidação e a obediência pura e simples; de outro, Isso põe em jogo, teoricamente, a concepção da elipse e da com-
a maestria, a paciência, a persuasão dos argumentos refletidos, pletude da linguagem. Como se vê, a relação com a palavra sempre
racionais, e o respeito. Isso já constrói o lugar de seus adversários foi alvo de muito cuidado, e a retórica missionária providenciou
em regiões distintas de significação: o do índio, marcado pela para que a relação com o sentido, visível por Deus, jogasse no
obediência cega, o dos que ocupam o poder português, marcado entanto com seus modos de transparência e dissimulação, quando
pelo reconhecimento das parcelas de poder. os parceiros são os homens.
Francisco Dias de Ávila, personagem principal dessa peça, terá Os jesuítas são especialistas nisso. Tematizam a justeza das
o que merece. E é disso que passaremos a falar. palavras às idéias, mas cuidam para que se passe elegantemente
A questão da determinação do dizer e sua relação com a verdade do domínio do religioso para a política religiosa, ou seja, uma
passam pela relação do sujeito com o conhecimento, com Deus, política que se sustenta na religião (as razões divinas para a cate-
com o jurídico. Isto é, uma questão "política". Uma das formas de quese, por exemplo) e finalmente para a política direta. Para os
tratá-la, ao longo da história da linguagem, é através do conceito jesuítas (Haroche, 1984), a língua e a gramática constituem, mais
de ambigiiidade. do que um problema religioso, um problema de política religiosa
A ambigüidade repousa em certas concepções de comunicação e de política em geral.
que decorrem do apagamento das noções de conflito, de contra- Voltemos, agora, ao texto de Martin de Nantes para ver como,
dição, de mal-entendido, de lapso, de jogo de palavras, pensando no conhecimento dessa doutrina, ele a praticou estritamente tal
a relação do sujeito e do social como repousando na distinção como nos relata.
clara e irrecusável entre, de um lado, a transparência e, de outro, a

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TERRA À VISTA DOMESTICAÇÃO E PROTEÇÃO

Em sua disputa com Francisco Dias de Ávila, M. de Nantes foi de Portugal, certifico que há ,ete anos nós fazemos pacificamente, meus
instado insistentemente por esse a escrever uma certidão à corte de companheiros e eu, nossa missão entre os índios cariris referidos.

Portugal, favorável ao senhor da Casa da Torre, isto é, Francisco Feito na Bahia de Todo, os Santos, tal dia e t.1! mês, do ano de 1783.

Dias de Ávila. Diz ele:


Frei Martinho
[ ... ] eu o consegui fazer tão conciso, que não tinha mais de seis linhas
e, usando um vocábulo equívoco e que bastava para tornar equívoca roda a Ajuntando logo cm seguida:
certidão, concentrei de tal forma a minha atenção, que até me surpreendi
de que o vocábulo houvesse surgido sem o haver procurado. Tive a intenção O equívoco está nos seguintes termos: "há sete anos nós fazemos
de lhe dizer e de lhe escrever no sentido que me era mais favorável, e que p.icificamenrc, meus companheiro, e eu, nossa missão". Ele entendia que
era o único verdadeiro. Ele a recebeu no sentido que [ele] desejava, lendo nó, fazíamos pacificamente nossa missào cm relação ,1 ele, o que seria falso.
,1 certidão [grifo nosso]. Por mim, não o entendia senão em relação a nós, que tínhamos realizado
,1 nossa missão em paz, não procur.indo senão a salvação desves pobres
índios: esse o sentido ex.iro, o sentido verdadeiro, na inteligênci,1 do qual
Assim, ele explicita a construção do equívoco, produzindo
eu o deixava intencionalmente enganar-se. Da mesma forma, Nosso Sen-
um sentido que se parte em dois, um para quem escreveu e outro
hor Je,m Cri-co deixou os judeus e11gan.1rem-se quando lhe, divsc: Sufuite
para quem leu, segundo a sua vontade e seu pedido. Passa várias lcmplwn boc, e/ in tribus diebus reoedijict1ho ill11d. "Destruí este templo e
páginas falando do acontecimento e de seus sentidos para que se em três dias o reconstruirei." Entendia falar do templo de Seu corpo e os
possa apreciar a sua habilidade no manejo do equívoco: judeu 5, ao contrário, acrcdir.ivam que ele faLw,1 do templo de jerusalém.
Nosso Senhor viu bem que eles tomavam essas palavra, num sentido
[Euj Esclarecia o sentido de minha certidão e a justificava como o dilcrcntc do que Ele lhes estava atribuindo e o, deixou no erro.
equívoco, que viera do exemplo dos santos, dos anjos e de Jesus Cristo
no Evangelho, mostrando que é possível ocultar a verdade aos que nos A doutrina é aí aplicada exemplarmente com todos os seus
querem enganar injustamente, permitindo que eles mesmos ,e eng,rnem
ingredientes: o engano, a voz sagrada e até a citação em latim, dão
na inteligência do que se disse.
toda a sua forma. Sem esquecer do texto que joga exatamente sobre
a questão da determinação (ambigüidade, completude e elipse):
Como são sempre os outros que querem enganá-lo, não lhe falta,
a palavra que duplica os sentidos é "pacificamente" ligada a "nós",
pois, o apoio sagrado e ele "concluía que minha certidão teria sido
mas passível de referir-se a "vós".
um falso testemunho em outro sentido[ ... ] pois que a palavra que
Creio que o relato sobre a construção e o sentido do equívoco
expressava o equívoco podia ser tornada em dois sentidos".
é exemplar para mostrar os vários modos de produção de sentidos
Assim, depois de mostrar demoradamente sua habilidade
nos relatos de missionários.
verbal, num discurso que é uma verdadeira aula de retórica, ele
Cumprindo várias funções e vários percursos, eles produzem
nos revela então o texto: efeitos de sentidos em várias direções ( com seus vários destinatários e
suas várias vozes) a partir de uma fala que já alia em si várias formas:
Eu, frei Martinho de Nantes, capuchinho francês, missionário apos-
o político, o religioso, o literário, o pedagógico, o retórico.
tólico no Brasil, junto aos índios chamados c.iriris, no rio São Francisco,
terras do senhor Francisco Dias de Ávila por doação do sereníssimo rei
O índio quase desaparece nos meandros desse discurso. E nos
aparece mais claramente corno - na intrincada relação das ditercn-

170
TERRA À VISTA

tes ordens missionárias, dos diferentes países europeus implicados


na colonização - a trama de sentidos se faz aqui, mas seu alcance
pretende sobretudo atingir os seus alvos, lá, de onde chegaram os
barcos. O discurso sobre o Brasil volta-se para a Europa e para o
Brasil na produção dos seus efeitos.
Essa fala européia sobre o índio alia proteção e necessidade,
redefinindo a propriedade (o habitar as terras). Na sua ambigüi-
dade (em que jogam o religioso e o jurídico), com seu discurso,
os missionários fundam o direito à propriedade, desfazendo-o
ao mesmo tempo. Fazem de forma a redefinir a posse: "prover"
os índios da sua sobrevivência a partir das suas necessidades. No
interior dessa estreita relação "sobrevivência/ necessidade" é que
circulam os argumentos. E não circulam livremente, mas atados ao
poder de dar (ou apagar) sentidos. Estes, feitos sob encomenda. 3ª PARTE

Situações

172
Sobre a língua:
algumas palavras

Apenas a matéria vida era tao fina.


CAETANO VELOSO

A idéia é a seguinte: a partir do que dissemos, na primeira parte,


sobre a construção historicamente determinada de um imaginário
para a língua indígena (e os índios), procuraremos mostrar, pelo
trabalho que segue, o imaginário dos limites, agora internos, no
Brasil, entre a língua indígena e a língua brasileira.
O apagamento determinado pelo modo europeu de ver a língua
brasílica (século XVI e seguintes), continua, embora com outros
sentidos, no modo como o brasileiro não vê a presença das línguas
indígenas na sua.
Tivemos, nós brasileiros, que nos acomodar em urna língua
que veio da Europa: o português. E essa acomodação se faz com
dificuldades que vão sendo passadas a limpo pelo nosso discurso
Meu pensamento sobre a língua portuguesa (brasileira).
fala francês Os conceitos que propus - língua imaginária/língua Auida
Meu corpo (cf. aqui mesmo p. 74 e também em Orlandi e Souza, 1987) - são
fala italiano uma tentativa de recuperar imagens da língua que têm endereços
Minha alm.i que é branca
diferentes, embora sempre atravessadas pelo político: a língua
fala latim
para a ciência (a imaginária) e a língua para o dia-a-dia (a fluida)
E as outras que as tenho muitas
falam tantas e outras línguas desembocam ambas, de qualquer modo, na construção de uma
Mas meu silêncio identidade para o cidadão brasileiro que todos nós somos no solo
é brasileiro pátrio Brasil.

175
TERRA À VISTA SOBRE A LÍNGUA

Parto da hipótese de que a história da constituição de uma É exemplar, nesse sentido, o que me disse um xerente a respeito
língua, embora não visível para os seus falantes, atravessa assim de sua relação com a língua xerente. Eu procurava aprender sua
mesmo as suas práticas (significativas) linguageiras. Desse modo, língua e, certa tarde, enquanto papeávamos em nossas redes, ele
a relação do brasileiro com a sua língua traz a sua história em seu me disse: "Melhor você falar com o pastor. Ele sabe melhor o
bojo. E significa. xcrente que eu".
O fato de termos em nossa origem as línguas indígenas - com Por essa resposta pode-se ver que o contato, intervindo na
sua especificidade, que é a de serem línguas de tradição oral, sem relação do índio com a sua língua, produziu o apagamento do
escrita - está presente de várias maneiras ( que é preciso determinar) locutor, do falante originário. Conseqüentemente, apagam-se os
em nossa relação com o português brasileiro. Mas não se trata só contornos móveis da língua e os sentidos próprios, restando apenas
da origem, trata-se de uma convivência contínua e atual. a simulação cotidiana do uso (gramatical) que o pastor pratica,
Se, em nossas práticas de linguagem, "desconhecemos" apre- regido pelo seu conhecimento lingüístico.
sença das línguas indígenas, também a ciência, feita pela lingüística Isso é o que chamo de modelização ( disciplinação, diz M. Câmara,
indígena, concorre para a reafirmação desse desconhecimento, aperfeiçoamento) da língua, ou seja, a projeção da língua imaginária
desse desinteresse, dessa negação. (a que tem como ponto de referência a sistematicidade, a escrita,
O discurso científico sobre a língua ajuda a constituir esse ima- a gramática) sobre a língua fluida (a que se faz no movimento, na
ginário para a nossa sociedade, em que a disputa por uma língua prática, na mudança contínua).
oficial e por uma gramática trabalha um projeto de organização A concepção das línguas indígenas construídas por essas formas
de nação por processos de linguagem que objetivizam um modelo de se estabelecer o seu conhecimento, tendo como parâmetro
de cidadão com uma língua, um rosto, uma presença institucional (atravessado pela relação de dominação) a língua portuguesa (ou
específica. uma língua européia qualquer e, em última instância, o latim), essa
Seguindo o processo de apagamento das formas de representação concepção coloca tais línguas não só como incapazes de desenvol-
da cultura indígena no encontro com o europeu, reproduzimos vimento histórico, incapazes de mobilidade, mas também lhes nega
internamente a mesma divisão: a língua primitiva (dos selvagens) a possibilidade de influir em processos e formas das línguas com
é observada na hierarquização que a vê do outro lado, à margem que estão em contato. E isso nos dois sentidos: assim como não
da língua portuguesa (brasileira). É uma língua primitiva nos dois se admite a influência mais substancial das línguas indígenas no
sentidos da palavra: de passado e de rudimentar. português, também não se reconhece a influência do português
Assim, o contato dessas línguas é relegado a uma coisa de passado nas línguas indígenas. Ficam, assim, essas línguas, apartadas. Seus
( em que se diz que o tupi desapareceu, deixando apenas algumas limites são rígidos e, quando se admite a influência de uma sobre
influências no léxico) e rudimentar no presente (contato fugaz e a outra, esta é parca e localizada.
incapaz de deixar marcas). O que a análise discursiva, ao contrário, procura reavivar é a
Não se questiona o real histórico do contato; lida-se apenas com percepção de que os processos de influência mútua em línguas,
simulacros ( os já herdados e os que construímos no presente) que culturas e seres diferentes em contato são complexos, permanentes
se diluem em aspectos documentais, etimológicos ou etnográficos e mesmo, sob certos aspectos, imprevisíveis.
superficiais e marginalizados. A contribuição das línguas indígenas está no interior da própria
estruturação da língua portuguesa como tal, se pensarmos a deter-

177
TERRA À VISTA
SOHRE A LÍNGUA

minação histórica dos processos de significação e representação, pretendemos fazer a mais longo prazo - :i estruturação mesma de
na produção de suas formas e sentidos. um mecanismo discursivo no qual a modalização vai muito além
Assim como a nossa relação com a história é atravessada pelo fato do que incidir sobre o sistema verbal. Esse processo, introduzin-
de que temos na origem uma cultura à qual negam historicidade, a do a questão da modalizaçào nos nomes, tem conseqüências que
nossa relação com a nossa língua é atravessada pelo esquecimento atuam nos processos discursivos de denominação e que são um
das línguas de tradição oral. Mais do que isso, se pensamos o uso da mecanismo fundamental na prática de qualquer língua.
Língua Geral, sabemos que não é pequena a forma corno a língua O sufixo -rnna me forneceu a pista para começar a apreender
indígena está presente na língua portuguesa-brasileira. .1lguns aspectos de uma língua portugues:i (a fluida) que tem sido
Assim, em vez de considerarmos apenas vestígios passageiros visremaricamente ignorad:i e que, no presente caso, mostra, entre
e localizados (os "brasileirismos") em nossa língua, se pensarmos outras coisas, a extensão da influência das línguas indígenas no
o discurso, veremos que as marcas do contato e os processos de português. Sem pensar nos modos de dizer que nos mergulham
influência lingüística são vivos e atuantes e podem ser surpreendidos totalmente na outra culcura, a indígena.
se não ficarmos na sua observação através de métodos científicos O que é preciso é estabelecer um método e construir técn icas
homogeneizantes. que tornem visíveis esses aspectos que estão apagados de nossa
Trago para a reflexão um exemplo que me fez ver a força do reflexão sobre o contato. Modos de compreender as diferentes
imaginário que torna "evidente" a ausência da influência indígena, formas de silêncio que constituem a nossa história. Esta seria
uma vez que esse imaginário se aplica em exibir a "normatividade" uma forma crítica, discursiva, filológica (no sentido moderno) de
(leia-se homogeneidade, unicidade) do português-brasileiro. estudar processos de linguagem que foram apagados, e dos quais
É o caso do sufixo tupi -rnnn, que é um modalizador de nome, nos restam produtos "neutralizados"
significando "como se fosse". Ele é de uso generalizado em por- Os estudos que se seguem procuram mostrar esses difíceis limites
tuguês: S1zgL1rant1 (como se fosse saga), cajarnna (como se fosse entre culturas, línguas e gentes. ~e se têm mantido separados não
cajá), tatarnnn (como se fosse fogo) e mesmo formas menos mar- só pelo esforço represante da ciência ( com argumentos descritivos,
cadas corno netnrann (como se fosse neta, de uso geral na região explicativos, que esquecem aspectos históricos e ideológicos da
Norte) etc. língua), mas também pelo discurso social, que reproduz no senso
Através da reflexão sobre esses casos, pode-se observar que a comum a consensualidade de uma história de exclusão que nós
rnodalização - que em português só admitimos, gramaticalmente, todos "partilhamos" mais ou menos "automaticamente", com
para o verbo - se estende também aos nomes. Demo-nos conta, "naturalidade".
a partir da observação de exemplos como esses, de como ainda A "nossa" língua é muito maior do que pretendem os gramáti-
estamos presos ao nosso português como língua imaginária, cons- cos e os políticos patrioteiros. E nela se passam coisas de que nem
truída pela relação com esquemas gramaticais rígidos, dos quais podemos suspeitar em nossos esquemas abstratos e nossas ilusões
excluímos (tornamos invisível) qualquer contato com as línguas subjetivas. Ainda que não queiramos nem possamos reconhecer,
indígenas que vá além de uma mera lista de vocábulos. Pudemos as línguas não têm os limites que, seja por razões históricas, seja
perceber que há, atrás dos vocábulos, como os que citamos acima, sociais ou políticas, gostaríamos de lhes impor.
toda uma história de contato e de processos de significação que são
postos em funcionamento. Além disso, pode-se ver aí - e é o que

179
I. Os pataxós, sua língua,
sua terra

1. Introdução

Este estudo faz parte de um trabalho mais amplo de documentação


da língua e da cultura pataxós. Entre outros, ele foi pensado junto
com a feitura de uma cartilha da língua Pataxó-Hâhâhài, intitulada
Lições de Baheta (sobre a língua pataxó-hàhâhâi).
Como esclarecemos (Lopes da Silva, A. e Orlandi, E., 1986)
na introdução da cartilha, ela resulta do trabalho de uma equipe
de pesquisadores que se propôs, a pedido dos pataxós, devolver
a eles o que fosse possível recuperar da língua pataxó-hàhâhài. A
posse da língua significa para eles o seu desejo de ser índio, em um
momento de ameaça de extermínio.
Como se sabe, os pataxós viveram inúmeras perseguições e
movimentos de dispersão. A partir de inícios de 1980, entretanto,
eles conseguiram estabelecer um espaço em que puderam reivin-
dicar seu direito ao território (tradicional) que haviam perdido.
Outras perdas acompanharam essa. Entre os bens perdidos, estava
a sua língua.
Como, no Brasil, a língua atesta a identidade e, para o índio, o
direito à terra, pode-se compreender a ambigüidade da noção de
língua no processo identitário: voltada para o interior do próprio
TERRA À VISTA OS PATAXÓS, SUA LÍNGUA, SUA TERRA

grupo, é um dos princípios da sua identidade; para o exterior, na pronunciado de "t.\-'', em contextos lingüísticos variados: kaptxtttzi
relação de contato, é um dos documentos que o identificam. (panela), atxe (perna), rflilngutxitÍ (estrela), ,íngtxai (dia), txnhn
A pesquisa foi feita em condições bastante difíceis: uma só (Aor), aktxe (papagaio), pakatxeó (galinha), txnkin (carrapato)
informante, Baheta, bastante idosa, sem interlocutores reais (só etc.
os da memória, imaginados), e experimentando a dificuldade Esse uso abundante ( e mesmo abusivo) nos indica que deve aí
de lembrar, em condições de guerra à sua cultura, uma parte da haver interferência do português local (na Bahia, o dialeto regional
identidade estigmatizada, já votada ao esquecimento. palataliza o t), já que a falante em foco, não tendo interlocutor na
Evidentemente, essas condições produzem conseqüências de língua, tem uma relação bastante afetada pelo contexto imediato
várias ordens, sobre a elicitação dos dados. Entre elas, temos as (o português regional).
que tocam questões dialógicas, de enunciação, e que se reAetem Outras questões relevantes a se verificar são: Por que as duas
na produção material da língua, ou seja, a sua forma. frases permaneceram? ~e condições de uso e de memória as fi-
Uma conseqüência imediatamente visível é de natureza quan- xaram mais que outras? Se os mecanismos de composição dessas
titativa: pôde-se obter um bom número de palavras (cerca de 100) frases se mantiveram, por que Baheta não os generalizou para
mas apenas d uas f.rases: "í),,, voce' tomou b an h o ,"
~ero comer " e "" .. outras frases? São questões que aguardam respostas.
Isso certamente tem um sentido, que merece ser analisado aten- A título de ilustração, transcreveremos algumas palavras e as
tamente. duas frases:
De certo modo, podemos dizer que o que há de produtivo em Kuin Knbnb miknbnb = ~ero comer
uma situação particular como essa é o fato de que se podem colocar rltxi mnanga = Você tomou banho?
muitas questões a respeito do processo de enunciação: sem interlo- Aoi (assobiar), bôh! (pano), pitÍi (dinheiro), hágum (deitado),
cutor, e dialogando apenas com a sua memória - com imagens que kúidti (pele), npekoi (corpo), apalai (pé), amahâi (joelho), ,1ptlh11b
cria de si, do outro, da língua etc. - caberia perguntar, já de início, (dedo), pnbnb (mão), akehe (barriga), iata (coração), 1mgôk1ú
se Baheta enuncia realmente em pataxó. Nossa hipótese, que deve (peito) etc.
ser verificada por outros estudos, é de que não é evidente que ela Queremos, enfim, dizer que este é um trabalho cuja origem é
enuncie. Até que ponto uma palavra é para ela um enunciado, com política. Para o pesquisador brasileiro que trata da questão indígena,
seus implícitos? Ela o é, na situação de pesquisa, para o pesquisador. essa é uma questão que sempre se impõe.
Seu valor é atribuído de fora para dentro. Descontextualizado e O índio, para nós brasileiros, não é o "outro" distante, do outro
recontextualizado pela mediação do pesquisador. Eu diria que o continente; o índio é o próximo. O índio somos nós. Estamos assim
discurso de Baheta, em sua maior parte, inclui o pataxó, mas não é mergulhados em um cotidiano em que o político, o identitário e o
em pataxó. É um discurso sobre, em que o interlocutor expresso ( e científico se trabalham continuamente, em suas relações. Separá-
visível) é o pesquisador. Isso não exclui que haja heterogeneidade, los é um custo teórico.
isto é, que, por momentos, seja em paraxó. Essa foi, portanto, uma ocasião importante de discernirmos
Além disso, o fato de não ter interlocutor expõe a falante, de o nosso instrumental metodológico de reflexão sobre a cultura
forma mais forte ou mais nuançada, à interferência do contato. indígena e, ao mesmo tempo, sobre a própria especificidade que
Podemos aqui referir, por exemplo, o fato fonético, para o qual podíamos dar a essa reflexão, a partir de nossas condições (lugar)
chamamos a atenção (Orlandi, 1986), de que há um uso muito de reAexão.

182
TERRA À VISTA OS PATAXÓS, SUA LÍNGUA, SUA TERRA

Já é um adquirido na ciência que trabalhos teórico-científicos O branco, ao falar em direitos, estabelece os critérios legítimos
tenham implicações políticas relevantes. E muito se discute sobre para o exercício desse direito. No contato cultural que estabelece
isso. Em nosso caso, o percurso é justamente o inverso: partimos com o índio - e que tem a direção do dominador para o domi-
de um trabalho de características eminentemente políticas - em nado -, o branco extingue os fatos que satisfariam os critérios
meu caso específico, de questões que se referem à política lingüís- que inventou como legítimos. Ao apagá-los, os brancos tiram dos
tica - para chegar, como procurarei mostrar neste estudo, a im- índios, simultaneamente, os seus direitos.
plicações teóricas e científicas, que uma questão dessa natureza Isso quer dizer, mais simplesmente, que, dependendo das con-
(política) pode produzir como conseqüência. Na conclusão deste dições históricas de existência do povo, ou seja, da violência do
trabalho, retomarei essas implicações teórico-científicas. contato, sabemos que um índio pode não falar mais a sua língua e
ser do seu povo, ser índio. O que nos permite dizer que esse critério
só tem validade positiva: quando fala a língua, é índio; quando
2. Cultura e política científica não fala, não é certo que não o seja.
Logo, é preciso relativizar a função desse critério - língua -
A língua, enquanto idioma oficial, está vinculada à idéia de país, como definidor de um grupo étnico. Ele deve ser avaliado em função
de pátria, de povo. E assim quer a tradição que a língua seja cri- de uma relação historicamente consistente entre língua e povo,
tério para se ter reconhecida uma identidade nacional, cultural. não sendo pois um critério cuja aplicação seja mecânica.
No meu entender, como toda arma, esta pode ter muitos gumes, Há ainda algo a acrescentar a respeito da relatividade do crité-
principalmente quando ter uma língua, como no caso dos índios, rio lingüístico para a determinação da nacionalidade e que diz
é ter direito à sua própria terra. respeito, dessa vez, ao estudioso da língua e às posições que este
Face a essa questão da identidade e de direito à terra, tomando toma frente à sua responsabilidade histórica e social.
como critério a língua, temos visto, em nossa área de estudos - a Tomemos o caso das línguas indígenas. Há uma aleatoriedade
lingüística -, posições categóricas que podem levar a equívocos aparente do que foi estudado. Por que algumas línguas são estu-
ou a impasses: de um lado, estão os que, ironicamente, dirigem a dadas e outras não? Por que há mais dados sobre algumas línguas,
sua pesquisa para a mera documentação da língua com o fim de sua história, sua classificação, do que sobre outras?
preservá-la, já que os índios, dizem, se extinguirão como povo; Contam, nesse caso, as condições da vida acadêmica, e essas
de outro, os que, com alguma ingenuidade, orientam o seu traba- condições dizem respeito ao como se faz ciência em nossas insti-
lho no sentido de ensinar língua indígena para o índio, acreditan- tuições. Assim, podemos dizer que raramente se estuda uma língua
do assim manter viva a sua cultura sem, no entanto, atender a uma indígena a partir da necessidade histórica do povo que a fala. O
tática política ou a uma necessidade elaborada pelos próprios índios. estudo tem mais a ver com as necessidades do pesquisador e de
De um lado, uma língua sem povo; de outro, uma língua acima do suas relações com a instituição na qual trabalha, com a comuni-
povo. Em nenhum caso, de toda maneira, é da língua do povo que dade científica da qual faz parte, com o prestígio do grupo sobre
se trata. o qual trabalha etc.
Esses dois desvios nascem no mesmo lugar: no fato de se acei- Essas nossas considerações nos levam a relativizar também a
tarem os critérios e seus pressupostos sem questioná-los, sem levar função da própria ciência e sua neutralidade face a questões dessa
em conta as histórias que constituem esses fatos. natureza.
TERRA À VISTA OS PATAXÓS, SUA LÍNGUA, SUA TERRA

Embora sejam essas as restrições a serem feitas frente à posição 100 palavras de uma informante que talvez seja a última falante
categórica com que se colocam critérios e com que se responde a d<: hàhâhâi.
eles, é possível, diante de uma questão de fato e de uma situação Considerando o sul da Bahia, temos o pataxó falado mais ao
de prova colocada pelo branco e pelo contato, chegar a respostas sul e o pataxó-háhâhài, falado mais ao norte.
condizentes com as circunstâncias. Isso porque: 1º) a língua não O pataxó, por sua vez, é uma língua da família maxakali, que
desaparece sem deixar marcas e 2º) a lingüística tem instrumentos ptrtence ao tronco macro-jê (Rodrigues, A., 1958).
apropriados que lhe permitem, a partir de um certo número de O pataxó do sul já deixou de ser falado, sendo que o do norte, ou
dados, comprovar relações entre línguas, entre povos, entre culturas, pataxó-hàhàhái, está virtualmente extinto, tendo sido encontrada
entre fatos históricos. .1penas uma falante atual, Baheta, no PI Paraguaçu.
Dessa perspectiva, então, ter uma língua documentada não Utilizando a metodologia lingüístico-histórica, que trata de
é ter um corpo morto, mas uma história, um discurso. É nesta questões de tipologia, podemos mostrar a relação existente entre
perspectiva que passamos a apresentar os fatos lingüísticos que o pataxó e seu dialeto hàháhài (Urban, 1984).
levam ao reconhecimento da língua paraxó-háháhài, Para ilustrar esse procedimento, passamos a comparar palavras
do pataxó e do hàhàhâi, Encontramos, assim, possíveis cognatos
que permitem a construção de um quadro sistemático, como
3. A língua: suas formas, suas relações veremos.
Por exemplo, tomando a palavra "flecha":
Embora o pataxó seja uma língua indígena, do sul da Bahia, que
está praticamente extinta, os dados acerca da identificação do Patnxá Hahtihãi
paraxó podem ser encontrados ao longo de uma bibliografia
cuja referência constante é o príncipe de Wied-Neuwied (1958, Wied-Neuwied Azevedo Pickering Urban
pp. 510-511) e Loukorka (1939, pp. 5-15). (1815-1817) (1936) (1961) (1982)
De Wied-Neuwied, temos 90 palavras pataxós coletadas por
ele, de habitantes do rio Pardo, provavelmente, durante sua viagem Aechapohoi po'hoi bohoi/l/o'hoi po'hoi
na costa leste do Brasil, entre 1815 e 1817. Loukotka acrescenta à
lista de Neuwied 2 palavras coletadas por Marrius (1967, 3, t. I, Feito um trabalho de comparações sistemáticas, pode-se pro-
p. 309) e 3 outras obtidas através de urna análise científica. ceder a uma análise fonológica, estabelecendo-se em conseqüência
Recentemente, o pesquisador Greg Urban retoma, em um o seguinte quadro comparativo:
trabalho (1984), esses dados bibliográficos, acrescidos de uma
lista de 70 palavras do paraxó-hâhàhâi (inéditas) documentadas, a) ~nto às vogais:
Paraxó Háhâhài
em 1936, de residentes do Posto Indígena (PI) Paraguaçu, pelo
coronel Antônio Medeiros de Azevedo, e ainda 162 palavras pa- a a ou A
taxó-hâhàhãi coletadas na mesma área por W. Pickering, do SIL
(em Meader, 1978, pp. 45-50 ). G. Urban, por sua vez, coligiu - ele o O OU LI

mesmo e a antropóloga A. L. da Silva - em 1982, no PI Paraguaçu, J JOU A

186
TERRA À VISTA OS PATAXÓS, SUA LÍNGUA, SUA TERRA

6) Quanto às consoantes: Pataxó Hâhâhâi


Pataxó Hãhãhãi m;gwa a 'caa
p p ou 6
m onde, segundo o quadro apresentado acima, o pataxó /Yjg/ desa-
t k parece no hâháhâi.
e e
Entre os argumentos favoráveis ao estabelecimento de uma
k o relação entre pataxó e hâhâhãi, acrescenta-se o fato de que a relação
m m entre pataxó e hâháhâi corresponde àquela existente entre maxakali
p e hãhâhâi. Popovich (in Meader, 1978, p. 9) compara dados do
6 hâhãhâi, colhidos por Pickering, e conclui que as correspondências
o entre t:k e p:b entre maxacali e pataxó são idênticas às do pataxó e
n l']g hâhâhãi. Como os dados do pataxó são do período de 1815-1817, os
o dados atuais reforçam o fato de que aí temos mudanças históricas
l']g o que, seguindo uma direção determinada, são argumentos para a
h h vinculação do hâhâhâi ao pataxó.
w w Além desses, há ainda a lembrar o argumento histórico fornecido
X h ou y por Hamp ( 1969 ), que mostra que as oclusivas velares e nasais do
proto-jê desaparecem no carajá. Isso também está de acordo com a
Como há regularidades interessantes, quando comparamos o característica da direção da mudança histórica tal como observamos
pataxó e o hàhàhài (Urban, 1984), podemos considerar, entre outras, mais acima, que ocorre no desenvolvimento do hãhãhãi.
as que concernem às consoantes alveolares e velares: as oclusivas al- De modo similar, o e do proto-jê corresponde ao e no maxacali
veolares (/ti, por ex.) e nasais em pataxó se tornam oclusivas velares ea e no carajá. Isso é encontrado também na relação entre pataxó e
(/k/, por ex.) e nasais em hàhâhài, e as oclusivas velares e nasais em hâhãhãi. Além disso, o carajá mostra instabilidade na região alveo-
pataxó desaparecem em hâhâhâi. lar. Tal instabilidade também é encontrada no hâhâhãi, em que,
Essas regularidades permitem dar conta de relações entre palavras entretanto, as alveolares tornam-se velares, desenvolvimento para
que, aparentemente, não parecem estar relacionadas. É o caso, por o qual não há evidência em carajá.
exemplo, das palavras que significam "cabeça":

Pataxó Hâhâhãi
4. Considerações conclusivas
ntpntoi amako'(hai) rlmbA'koi âmA'ko(htll)
Segundo essas reflexões, podemos dizer que, do ponto de vista de
Outro exemplo de regularidade que vale mencionar é a que
fatos fonológicos específicos ou daquele apontado por processos e
detectamos em relação à palavra que significa "olho":
relações históricas de parentesco lingüístico, há pistas que levam ao
reconhecimento de vínculos entre o hâhâhâi e o pataxó. Podemos

188
TERRA À VISTA OS PATAXÓS, SUA LÍNGUA, SUA TERRA

então concluir, a partir dos dados disponíveis, que há uma relação 2. Mais importante teoricamente é o fato de podermos reafirmar,
dialetal entre o pataxó e o hàháhâi (Urban, 1984). a partir deste trabalho, a idéia de que a identidade é um moui-
É lamcnrávcl, entretanto, que não haja um número maior de mento,
dados para essa conclusão. Porém podemos nos apoiar no fato
de que essa análise de dados fragmentários opera em dois planos: Ela mesma se faz por um movimento (relação idcntidade/alte-
ridade) e, além disso, ela se faz como um movimento na história.
a) No plano das evidências internas, em que as oclusivas e nasais Isto é, ela tem historicidade.
sofrem processos paralelos em sua relação tanto com a Assim, e retornando, como dissemos no início, a relação entre o
transformação da alveolar em velar quanto na perda das brasileiro e o índio, podemos concluir que, na história de contato,
velares; essas são identidades que se fazem permanentemente, que estão em
b) No plano mais amplo da evidência comparativa, ternos aqui a movimento: qual é o limite entre ser brasileiro e ser índio?
repetição da instabilidade de alveolares que ocorre na diferen- Se entre ser índio e ser europeu há delimitações nítidas que
ciação do carajá em relação ao proto-jê. Infelizmente, esta é a mostram essa distinção categórica, historicamente demarcada,
única espécie de confirmação que se pode ter. Mas à qual não tornar visível essa zona cambiante - os limites entre ser índio e ser
podemos ficar indiferentes. brasileiro - já é mais complexo. Só não o é p:ira os que trabalham
com identidades fixas (e fixadas) de forma ilusória como as que se
traçam entre um índio "puro", do "passado", fixado de uma vez por
todas em nosso imaginário histórico-político e que tem como sua
5. Considerações finais contrapartida um índio aviltado, des-caracterizado, não-índio ( e
também ainda não-brasileiro), quando "aculturado"
Além dessas evidências, pudemos chegar, com este trabalho, a Não se admite, assim, a historicidade da identidade ( dos povos e
algumas conclusões teoricamente relevantes, como a de que deve das línguas), o seu desenvolvimento que se (re)faz continuamente,
haver urna relação historicamente consistente entre língua e cul-
a sua transformação.
tura para que o critério lingüístico se aplique à questão da iden-
tidade.
3. Como conseqüência do que acabamos de referir no item
Há outras conclusões que são igualmente importantes e que anterior, temos o fato de que se deve considerar como crucial
procuraremos desenvolver aqui.
a passagem do conceito de língua para o de "discurso" nessas
formas de reflexão.
1. A partir de uma demanda corno a feira pelos índios, pudemos
promover a integração de campos disciplinares distintos cm nossa
A noção de discurso acolhe a de movimento e engloba a de
pesquisa. Mais do que isso: este estudo é o resultado do concurso
contexto, pressupondo a relação da língua com suas condições de
de um trabalho não só interdisciplinar, mas interuniversitário.
existência, com sua produção.
O que nos mostra que, a partir de uma necessidade histórica,
Desse modo, como dissemos anteriormente, ter uma língua
pode-se mais facilmente integrar perspectivas disciplinares e
documentada é ter, não uma carcaça, um objeto formal, mas uma
institucionais diferentes.
história, um corpo vivo, um discurso.

190 191
TERRA À VISTA

Logo, no que diz respeito a este nosso trabalho específico, II. O sujeito-índio e o seu texto:
podemos concluir que, do ponto de vista estritamente científico,
apenas com algumas palavras e duas frases talvez não se possa um mito assurini:
falar em língua paraxó-hàhâhâi. Mas, certamente, podemos falar
no discurso pataxó-háhàhâi, em que essas palavras ou os vestígios
delas se dissolvem (?) no português brasileiro e o constituem.
Melhor dizendo, temos um discurso pataxó-hâhâhâi, que mostra
em si a relação desses índios com o português, em sua história: o
seu modo de estar no português brasileiro.

4. O discurso científico pode desempenhar, finalmente, um papel


político crucial.
1. Introdução
Como se pode concluir pelo desenvolvimento geral deste meu
estudo, a partir das condições, assim como das conseqüências
apontadas, a história de um saber (sobre os pataxós e dos pataxós) 1) Um campo de reflexão partilhado
é a história das condições de vida desse povo.
Foi isso que Baheta me mostrou. A forma como se pode fazer apelo à análise de discurso para a
compreensão do mito não faz concorrência com a análise tradi-
cional do mito, ou melhor, a análise antropológica que interpreta
omito.
A análise de discurso mostra o modo como funciona um
fragmento de linguagem em seu contexto: são antes os processos
de produção dos sentidos e os elementos que o constituem que
interessam à análise de discurso. Diríamos que sua finalidade é a
compreensão e não a interpretação, pois não se trata, nesse caso,
de atribuir um ( ou vários) sentidos a um mito qualquer. Em outros
termos, não se trata de dizer o que o mito significa, mas de explicitar
como ele produz sentido, qualquer que seja ele.

Este texto tem origem no trabalho de co-oricnr.içao d.1 tese de Regin.1 Miller (198°). n.1
p.ure relativa ci divcurso. Apresentei-o em uma primeir.i vcrsào no Congresso dos Ame-
ncanivr.iv em Am-rerda. em 1988, com o titulo O Índio no J\/110 (A,,ur/111): Um S1yetto?
ou ~l Prsso.: rnr Pedtlços, rendo Regina como co-autor.i, sobretudo no que -;e refere ,10.':i
elemento, do "modelo de interpretação"

193
TER RA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

A análise do mito e de seus conteúdos específicos a cada cultura, (111teligibilidade), para sentidos figurados (interpretabilidade).
sua interpretação, permanece, pois, sempre uma tarefa reservada Uma das contribuições mais importantes da análise de discurso
aos antropólogos. p,tra a análise antropológica seria a de restabelecer a espessura
Há, segundo certos princípios da análise de discurso, uma dis- \ignificativa, pela explicitação da instância,de c~mpreensã~ como
tinção possível entre: inteligibilidade, compreensão e interpretação mstância intermediária da interpretação. E assim que a analise de
(Orlandi, 1987). di\nirso, mostrando o feixe de leituras possíveis, pode fornecer à
A inteligibilidade é apenas a decodificação. Quando alguém ,1 ntropologia critérios para a comparação dos seus diversos métodos

diz "ele disse isso", nós ternos uma expressão inteligível, mas não interpretativos.
interpretável (quem disse? o que disse?). A significação é reduzida Corno um mito significa? Como se lê um mito? Eis as questões
,\ inteligibilidade do ponto de vista da gramática. que nos interessam.
A interprerabilidade é a atribuição de um sentido ao enunciado.
O contexto lingüístico e mesmo o contexto enunciativo são aqui
11) A relação entre análise de discurso e antropologia
levados em conta (no nível da formulação). Nessa instância, temos
a leitura produzida pela relação de um autor específico a um leitor Já tivemos ocasião de fazer algumas reservas ( Orland i, 198+
determinado. Este fixa e é fixado por um certo sentido previsto c 1935) ao que se pode chamar a aplicação mecânica (direta) da
nas condições de produção. an.ilise de discurso à análise do mito, dado que a análise de discurso
É nessa instância que trabalha a ilusão referencial ( o efeito de é uma metodologia cuja origem se liga a uma forma particular de
literalidade), seja sob a forma da transparência da referência, seja sociedade, a sociedade ocidental. Conseqüentemente, ela faz apelo
sob a forma da permanência do referente. constante a noções tais como "instituição", "posição de classe",
Finalmente, a compreensão: é a apreensão das várias possibi- "formação discursiva e formação ideológica", "lugar social" dos
lidades de um texto. Para compreender, o leitor deve apropriar-se locutores, noções que sáo muito marcadas pelo fato de que deri-
dos processos de significação que jogam no texto. Processos que vam da análise das formas das sociedades modernas ocidentais. Na
são função da historicidade - isto é, a história do sujeito e do análise, é preciso ter o controle sobre isso e, ademais, determinar
sentido - do texto, do discurso. É neste nível que intervém a bem os domínios distintos e específicos a cada forma de sociedade
análise de discurso.
que se analisa.
Essas distinções nos permitem distinguir a hermenêutica que, Por outro lado, faz parte da concepção mesma de análise de
face a um texto, busca fixar um sentido, da análise de conteúdo que discurso a constatação da relação teórica ( e histórica) a esses objetos
projeta um ou vários sentidos aprioristicamenre estabelecidos, e da de observação, o que acarreta, a cada nova análise, uma avaliação
análise de discurso que, esta, explicita os processos de significação, crítica do seu quadro metodológico.
tornando visível a espessura semântica do texto. Em suma, a análise Não propomos a simples transferência dessa forma de análise
de discurso faz compreender um texto, a hermenêutica o interpreta (com seus princípios, conceitos e técnicas), mas antes a problema-
e a análise de conteúdo o "explica", por algo que não é ele. tização de uma relação metodológica entre a análise de discurso e
A nosso ver, o antropólogo passa diretamente da inteligibilidade a análise antropológica, face ao mito.
para a interpretação. Ele é, assim, vítima da ilusão referencial: passa A adoção da perspectiva discursiva não significa a transposição
de um sentido abstrato (gramatical), tornado como sentido literal de um método, mas sobretudo a opçào por uma perspectiva teórica

194 195
TERRA À VISTA
O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

fundada em noções de des-centraçâo do sujeito e intertextualidade,


Uma observação inicial é, no entanto, necessária: não nos ocu-
tais como vamos expor mais adiante. Essas noções, como veremos,
paremos do sujeito em geral, seja psicológico, seja psicanalítico.
nos permitem observar com mais precisão características próprias
Não nos ocuparemos senão do sujeito-do-discurso. Considere-
ao campo da narrativa mítica e mesmo de outros domínios signi-
mos, inicialmente, as teorias do sujeito no domínio da análise da
ficativos da sociedade assurini.
linguagem em geral:
A consideração desses aspectos discursivos nos permitirá colocar
questões tanto para a análise de discurso como para a antropolo-
3.a) Na análise lingüística tradicional, o sujeito não é levado em
gia. Acreditamos que os resultados de uma análise discursiva do
conta enquanto tal. O sistema se impõe, e o sujeito, se pensamos as
mito podem ser teoricamente produtivos para a antropologia, na
teorias estruturais, é um mero suporte de linguagem; se pensamos
medida em que:
no transformacionalismo, o sujeito é um sujeito abstrato, ideal,
a) como a análise de discurso explicita os mecanismos de produção virtual: aquele que pode tudo compreender e tudo dizer, uma vez
dos sentidos, ela traz indicações fecundas para a sua interpre- internalizado um sistema de regras. Um autômato.
tação, e os resultados da análise discursiva fazem, assim, parte Nos dois casos, temos um sujeito formal, a-histórico.
do material etnológico; 3.b) No confronto com essas tendências formalistas - ca-
b) tornando visível o processo de produção de sentidos pela racterizadas, então, como teorias do campo do objetivismo abs-
remissão a fatores histórico-socioculturais do funcionamento trato-, as teorias da enunciação postulam um sujeito na origem
do texto mítico, a análise de discurso faz aparecer elementos da linguagem. Isto é, operando uma distinção entre o enunciado
contextuais muito significativos para o conhecimento da cultura e a atividade de enunciação, essas teorias colocam a necessidade
indígena. de levar em conta o sujeito da enunciação, assim como a forma
como ele se marca no que diz (isto é, seu enunciado).
A análise de discurso pode, assim, constituir em sua relação Segundo essa perspectiva, pelo próprio fato de dizer, o sujeito
com a antropologia um campo de reflexões comuns - lugar de se constitui sujeito, e as formas da linguagem se definem a partir
confrontação de suas diferenças teóricas particulares -, produ- do seu uso pelo sujeito.
zindo um conhecimento mais bem delimitado dos seus objetos Dessa vez, encontramo-nos face a uma espécie de onipotência
específicos. do sujeito: ele determina o sistema da linguagem e se apresenta
como unidade (a priori), fonte do seu discurso. Essas teorias enun-
ciativas do sujeito são consideradas como teorias em que trabalha
III) Análise de discurso e sujeito o subjetivismo idealista. São teorias em que o sujeito está em sua
própria origem. Por outro lado, ainda que já conte na análise, ele
Uma característica importante da análise de discurso, dissemos, continua a ser um sujeito a-histórico.
é que ela se interessa pelas condições de produção da linguagem, 3.c) A análise de discurso propõe a análise dos processos de
isto é, pelos interlocutores e pelo contexto de situação ( enunciativo produção da linguagem. Assim, ela se reveste de uma posição crítica
e histórico). É assim que o sujeito faz sua entrada no campo da face ao objetivismo abstrato (para o qual as regras em si produzem
reflexão sobre a linguagem. Vejamos alguns aspectos da natureza as formas da linguagem), tal como face ao subjetivismo idealista
do sujeito inscrito no discurso. (para o qual é o sujeito que determina tudo).

197
TER R A À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

A perspectiva discursiva propõe que se considere que a relação de textos cujas condições de possibilidade são sistematicamente
do sujeito com a linguagem é uma relação contraditória, em que articuladas sobre formações ideológicas".
há dupla determinação: do enunciado pelo sujeito e deste por sua Não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia. O
relação com a exterioridade, seu contexto sócio-histórico. Para sujeito não é um sujeito-em-si, livre de toda determinação, ele é um
que o seu discurso tenha um sentido, é preciso que ele )ti tenha sujeito socialmente (culturalmente, historicamente) constituído
sentido, isto é, o sujeito se inscreve (e inscreve o seu dizer) em urna (determinado).
formação discursiva que se relaciona com outras formações dis- Há processos históricos que produzem as formas da subjetivi-
cursivas. dade, isto é, as formas-sujeitos (Pêcheux, 1975). Assim, é próprio
A relação entre a situação social do sujeito e sua posição no de urna sociedade corno a nossa que o sujeito seja capaz de auto-
discurso não é direta. Há formações imaginárias que presidem nomia e de responsabilidade, sofrendo as coerções exteriores do
essa relação, de forma que o lugar de onde ele fala se reflete no seu contexto histórico-social, ao mesmo tempo cm que determina
que ele diz. É, portanto, um jogo de imagens que se projeta em o que diz. O sujeito (forma-sujeito) das sociedades ocidentais
todo discurso. é, pois, um sujeito (internamente) livre e submetido a coerções
É interessante lembrar, aqui, a definição de discurso (Pêcheux, (exteriores) institucionais.
1969): o discurso é menos transmissão de informação que efeito A idéia de um sujeito-em-si, livre de toda determinação concreta,
de sentidos entre locutores. A noção de "efeito de sentidos" nos é uma ilusão: a ilusão discursiva do sujeito. Essa ilusão é própria de
remete ao fato de que os sentidos são intervalares, eles se encontram urna sociedade como a nossa, em que o sujeito é, ao mesmo tempo,
nas relações: a) dos textos com as suas condições de produção (aí livre e disciplinado. Daí vem o sentimento que tem o sujeito: a)
incluídos o sujeito e a instituição); 6) entre os diferentes textos; de que o seu discurso nasce nele mesmo; 6) de que ele escolhe (em
c) do dizer com o que não é dito etc. abstrato) o que faz (e o que não faz) parte do seu discurso. Esses
Daí resulta o caráter incompleto e múltiplo do sentido: os dois componentes do "sentimento" do sujeito, de estar na origem
sentidos não são jamais fechados e acabados, mas múltiplos e do seu discurso, constituem o que se chama "esquecimentos n" 1

incompletos. e nu 2", respectivamente (Pêcheux, 1975).


Da tensão entre a multiplicidade possível dos sentidos (a polis- Esses dois esquecimentos que constituem a ilusão do sujeito
semia, o diferente) e a domesticação institucional da linguagem (a (Pêcheux, idem) se refletem nas teorias que se sustentam na con-
paráfrase, o mesmo) resulta todo um movimento das significações cepção da transparência da linguagem - em outros termos, a
que constituem o discurso. É também em relação a essa concepção transparência do sujeito e do sentido.
de linguagem e a essa definição de discurso que a análise de discurso A análise de discurso, ao contrário, se propõe mostrar a não-
define o que é o "sujeito". transparência do sujeito e do sentido. Sendo a relação do sujeito
A análise de discurso opera, dessa forma, urna des-cenrraçâo com a linguagem considerada como complexa, a relação lingua-
do sujeito. Ela propõe uma teoria não-subjetiva do sujeito que seja gem-pensamento-realidade não reflete o conhecimento objetivo
crítica face às formas da sua constituição histórica. A linguagem é da realidade; a linguagem tem a sua espessura própria. O sujeito
produzida pelo sujeito em condições determinadas. O conceito de tampouco é homogêneo; ele não é uma unidade definida a priori.
discurso, diz Maingueneau (1976), "despossui o sujeito falante de Em suma, a análise de discurso acentua o caráter material do sen-
seu papel central para integrá-lo nos funcionamentos de enunciados, tido e a historicidade do sujeito. Conseqüentemente, a identidade,

199
TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

vista nessa perspectiva, não é uma essência, mas resulta, entre Há, pois, uma heterogeneidade necessária na constituição do
outros, de processos de identificação do sujeito com o complexo discurso e do texto, que expressaríamos dizendo que o discurso
de formações discursivas historicamente (ideologicamente) de- ~ duplamente caracterizado pela dispersão: a do sujeito e a dos
terminadas. textos.
Assim, o modo com que a análise de discurso vê o discurso - Entretanto, em nossas formas sociais, há injunção à unidade:
ao inverso das teorias da enunciação que fixam já um sujeito na a do texto e a do sujeito. O nosso imaginário social funciona na
origem do dizer - nos permite pensar o sujeito em suas diferentes unidade do sujeito.
formas sociais, históricas, culturais possíveis. Em nosso contexto social e histórico-cultural - marcado de
É essa "forma-sujeito" que nos interessa, na medida em que forma crucial pela relação com a escrita, o que, em si, já é uma re-
a nossa finalidade, aqui, é a de - colocando-nos na perspectiva lação particular com a história-, esse efeito de unidade sobressai
da análise de discurso - procurar detectar, no mito enquanto inevitavelmente quando se explicita a organização do texto.
discurso, a relação estabelecida entre o sujeito-índio com o texto Há uma passagem necessária da dispersão do sujeito ( que
mítico, na produção dos seus sentidos. ocupa diferentes posições no texto) para uma unicidade que ele
Procuraremos, pois, responder às questões que se seguem: deve construir enquanto autor, ligando as suas diferentes posições
argumentativamente e produzindo, assim, as "qualidades" reque-
a) Qual é a relação do sujeito-índio com a forma de discurso que ridas: unidade, não-contradição, coerência, progressão e duração
é o mito? do seu discurso.
6) Como esse sujeito (forma-sujeito) se marca (se mostra) na O efeito de unidade é, então, regulado por um princípio, o do
sua historicidade, isto é, seu contexto histórico-cultural, e "autor" (Foucault, 1971): o autor é o princípio de agrupamento
no funcionamento discursivo do qual resulta um processo de do discurso,Joyer de suas significações. O autor se encontra, desse
produção específico de sentidos, no mito que ele produz e no modo, na base da coerência do discurso. Entre as diferentes funções
qual ele se (re)produz? que tem o sujeito cm um texto, a função de autor é a mais afetada
pela forma social e pelas instituições. É a função em que jogam mais
Em suma, qual é a forma-sujeito do índio assurini na produção explicitamente as coerções sociais (em que a escrita desempenha
do mito? uma influência paradigmática muito forre).
Podemos resumir tudo isso dizendo que à análise de discurso Considerando as diferenças culturais entre as formações sociais
não interessa o mito-em-si, mas o mito-para. ocidentais e as sociedades indígenas, faz parte de nossas finalidades
explicitar as características particulares da forma-sujeito-índio que
IV) Sujeito e organização textual podemos apreender no texto mítico assurini.
Por outro lado, os diferentes textos que constituem um
Do ponto de vista de sua organização, podemos considerar o discurso entretêm relações que derivam do jogo existente entre
discurso como uma dispersão de textos (Maingueneau, 1984) e o as diferentes formações discursivas. Há, portanto, propriedades
texto como uma forma de dispersão do sujeito (Foucault, 1969). que remetem diferentes textos a um mesmo discurso. As for-
Isso significa dizer que o sujeito é uma descontinuidade e o texto mações discursivas têm relações regradas. Em nossa análise do
é um espaço de dissensões múltiplas. mito, vamos mostrar como aí se articulam diferentes textos,

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TER RA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

diferentes práticas discursivas para produzir um discurso: 0 Pela análise do mito do desenho, na perspectiva da análise de
discurso assurini. discurso, procuraremos explicitar os princípios que orientam essa
relação fundamental no "pensamento" assurini.
Produzindo a convergência de três práticas discursivas - o
V) Os mitos
desenho, o mito e a concepção da pessoa nos rituais (no "pensa-
mento") assurini -, visamos compreender a "representação" da
Dito isso, consideremos aquilo que a análise de discurso pode
pessoa cm pedaços.
dizer do mito, ou melhor, o que ela pode dizer de um mito de-
Enfim, nesse estudo, pela análise discursiva de certos aspectos
terminado, de um grupo particular de índios: o mito do desenho
do mito assurini do desenho, limitar-nos-emos J explicitação de
assurini (grupo tupi, Xingu).
dois fatos discursivos fundamentais:

Mito I (Anexo)
I) A constituição textual ( a textualizaçâo) do sujeito-índio assurini
e a organização do seu discurso mítico;
Faremos referências eventuais ao mito do Kavara (a metamorfose
II) A observação, pelas configurações textuais, das relações de
vivo/ morto), pois as relações de sentido detectáveis pelos laços
contato intelectual contextualizando o mito em su.i situação
intertextuais entre esses dois mitos revelam aspectos significativos
histórica atual.
do mito do desenho e da caracterização da sociedade assurini.

Mito 11 (rinexo)
2. A textualização do sujeito-índio assurini
O mito do desenho se refere à aquisição, pela humanidade,
e seu discurso mítico
do desenho geometrico utilizado na decoração do corpo e dos
A partir dos princípios da análise de discurso e da análise da or-
objetos da cultura material assurini, assim como à sua utilização
ganização textual, mostraremos que na sociedade assurini não há
na transrn issáo do saber ( cultura) de geração a geração.
injunção J unidade do sujeito, assim corno também não há essa
No mito, os desenhos cobrem o corpo de um ancestral mito-
injunção quanto ao texto.
lógico, reproduzidos por outro ancestral no trançado. Esses dois
A forma-sujeito assurini que pudemos depreender do texto
ancestrais sào identificados com um personagem sobrenatural do
mítico não e a mesma das formações sociais ocidentais modernas;
cosmos assurini atual, o "anhynga". Este termo refere-se também
ela exibe, ao contrário, uma fragmentação, uma dispersão das posi-
a um outro personagem mitológico cuja noção está ligada à divi-
ções do sujeito que denominamos em nosso trabalho "pluralidade
são do "eu" (a pessoa em pedaços) causada pela morte, no mito
mostrada" das identidades.
do Kavara.
O princípio do autor nessa sociedade - quando formulamos
O mito do desenho e o mito do Kavara nas suas ligações
um para a sociedade assurini - nào tem as mesmas injunções que
tratam da relação entre a representnoio ( o desenho geometrico
o princípio do autor tal como foi formulado para os discursos da
do corpo do "anhynga") e a constiruiçâo do ser (unidade/divisão;
cultura ocidental moderna. O que nos confirma, ainda uma vez,
Kavara/ Anhynga).
o fato de que o conceito de autor e um conceito histórico.

202 203
O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO
TERRA À VISTA

Em suma, a transformação implica articulação ( interação,


Por outro lado, do ponto de vista de sua organização, a carac-
segundo essa autora citada) de mundos e de seres diferentes.
terística mais saliente do texto mítico assurini é a não-linearidade
Se consideramos a ação ritual como discurso - perspectiva
da progressão textual.
da análise de discurso quando se refere à prática discursiva -,
A análise discursiva do mito, como veremos, mostra proprie-
podemos apreender as propriedades e mecanismos que corres-
dades particulares do discurso assurini: não-causalidade, não-hie-
pondem a esses planos enunciados por Kaplan, a propósito dessa
rarquização, mas concomitância dos sentidos (isto e aquilo) que
noção de cosmologia.
correspondem à noção de "par" (co-pertença) e concomitância
A análise dos diferentes materiais expressivos assurinis (Miller,
dos estados de alteridade ("espalhamento" do sujeito) detectada
1987) foi baseada, entre outras, nas noções de inrertextualidade
também em outras manifestações do pensamento assurini.
e de prática discursiva (Maingueneau, 1983 e 1987 ).
De acordo com essa concepção, os sentidos derivam de relações
I) Práticas discursivas e intertextualidade estabelecidas entre diferentes discursos. Mais do que isso, é já o
modo de inscrição histórica de uma dispersão de textos que per-
Essas afirmações que acabamos de fazer acima são o resultado da mite defini-los como um discurso.
aplicação, de um lado, da análise discursiva aos diferentes materiais Nenhum discurso é fechado em si mesmo.
discursivos assurini e, de outro, das proposições teóricas propostas Distinguindo a intertextualidade (tipo de citação que uma
por Kaplan (1975 e 1982). formação discursiva define como legítima por sua própria
Segundo Kaplan ( 1982: 3), a concomitância dos planos ( tal corno prática) de intertexto ( citação efetiva de um texto), Mainguc-
a encontramos nos assurinis) corresponde à idéia de "universal neau (1987) mostra que há relações importantes que unem
transformacional" e "multiplicidade dos mundos na cosmologia". textos diferentes, afirmando assim o seu caráter necessariamen-
Essa concomitância não é uma relação metafórica, mas um resul- te heterogêneo.
tado de pressuposições ontológicas. Pode haver intertextualidade interna (citação de um corpus do
Há uma multiplicidade de mundos reais, segundo Kaplan seu próprio campo) ou externa (citação de um corpus que perten-
iidem ), separados uns dos outros no tempo e no espaço, mas ce a outros campos), o que alarga a possibilidade que todo texto
que estão em interação constante. Através dessa interação, novos tem de trabalhar a sua heterogeneidade.
mundos são criados e não se pode categorizá-los separadamente, Há em todo discurso uma rede de remissões de um campo a
de forma rígida. outro através de citações explícitas ou esquemas tácitos, ou mesmo
Kaplan chama "natureza transformacional do mundo" à pos- captações (Maingueneau, idem). Deste modo, confrontado a um
sibilidade de mudanças da identidade dos seres, o movimento dos discurso de um campo "x", um sujeito reencontra elementos
seres ou de certos aspectos do ser de um mundo a outro. Assim, um elaborados em outro lugar (campo "y"), que, intervindo sub-
ser pode ser isto e aquilo, e não metaforicamente. Na cosmologia repticiamente, criam um "efeito de evidência". É assim que o su-
assim constituída, as metáforas são a sua ontologia ( 1982: 5). jeito se "situa" nas práticas discursivas. O trabalho do analista é,
A história dá forma à ontologia. Os nomes Kavaryma e Kava- desse ponto de vista, estabelecer um sistema de operações semân-
ra, por exemplo, ilustram essa propriedade de transformação do ticas que possam dar conta das diversas dimensões da dis-
"mesmo" na história mítica: no mito, Kavaryma é aquele que será cursividade.
Kavara e que se manifesta no "ruré"

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

Finalmente, pelo conceito de "prática discursiva", Maingueneau II) A Análise do Mito


permite-nos colocar em relação a comunidade (ritos, cozinha,
artesanato) e os discursos (mito, narrações). É esse gênero de relações que encontraremos no texto mítico
Segundo esse autor, não existe relação de exterioridade entre o assurini. Segundo as relações intertextuais, observamos "continui-
funcionamento de um grupo e o do seu discurso. É preciso, então, dade" e não "oposição" entre o mito do desenho e o do Kavara.
pensar o seu intrincarnento. Ou seja, é necessário articular as coer- Eles fazem parte da mesma prática discursiva. Assim, é enquanto
ções que tornam possível a formação discursiva e aquelas que tornam "par" de textos (x e y) que eles constituem, em sua relação, o dis-
possível o grupo, já que essas duas instâncias são conduzidas pela curso assunru,
mesma lógica: "não diremos, pois, que o grupo gere do exterior um Não podemos, então, estabelecer um limite categórico entre
discurso, mas que a instituição discursiva possui de algum modo esses dois textos, do ponto de vista de sua relação de sentidos.
duas faces, uma social e a outra linguageira" (idem). Eles estão em relação de continuidade, e essa relação tem a forma
A prática discursiva é o processo de organização que estrutura de "par". Podemos dizer que elementos elaborados em um desses
ao mesmo tempo os dois lados do discurso. A noção de prática textos intervêm no outro.
discursiva integra, dessa maneira, esses dois elementos: a formação Do mesmo modo, quanto ao sujeito, podemos dizer que ele se
discursiva e a comunidade. representa (apresenta) em suas múltiplas posições - ele é "x" e "y"
O autor emprega a noção de prática discursiva (um pouco e "z" no interior do mesmo texto-, sem que haja necessidade de
deslocada em relação à "prática" em Foucaulr, 1969) para designar construir relações não-contraditórias (por palavras argumentativas,
tal reversibilidade ( intrincamento) essencial entre essas duas faces, por exemplo) no conjunto do texto como um todo. Vejamos como
a social e a textual. Há uma relação semântica irredutível entre isso se passa na própria materialidade do texto mítico.
aspectos textuais e não-textuais. O que significa que não se pode Pela observação da "estrutura da progressão" do texto, percebe-
pensar a comunidade sem o discurso e vice-versa. O objeto definido mos que, mais do que apresentar um desenvolvimento em que as
pela análise não é um "discurso", mas uma prática discursiva. unidades se seguissem em uma ordem linear umas após as outras,
Uma comunidade discursiva não pode, desse modo, ser com- essa progressão se faz por posposiç/io e [unçáo, Esse movimento do
preendida como uma noção que remete estritamente a um grupo, texto resulta em um efeito de sentido fundamental para o discurso
mas sim a tudo o que esse grupo implica no plano da organizaçào mítico assurini.
material e dos seus modos de vida. Os arranjos não seguem o paradigma "se ... então" (implicação
Tal perspectiva metodológica, como veremos, nos permite lógica) ou de "causalidade". Diz-se depois o que em uma "lógica"
colocar em relação (intersemiótica) materiais significativos di- textual ocidental deveria ser dito antes:
ferentes: a pintura corporal, os rituais, a cozinha, o artesanato,
os mitos. Isso nos permite determinar (explicitar) os princípios A, B ~ B, A
estruturantes, ou melhor, o sistema semântico qw.: rege tanto os
discursos como a comunidade assurini: a noção de "par" que se Evidentemente, isso é possível porque as formas de linguagem
estabelece pela operação de conjunção (x e y) e que assegura a assurini se ré-equilibram do ponto de vista da significação geral
"pluralidade mostrada" como forma ativa desse discurso (e, pois, do texto. Os nomes, por exemplo, lev am indicações temporais
do "pensamento" e das relações sociais) assurini. ou aspectuais: Kavaryrna/Kavaryra, em que temos "yrna" = o

206 207
TERRA À VISTA
O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

que será e "yua" = o que está investido da qualidade de. De toda faro de que ele as julgou "desnecessárias" (em português) em sua
forma, a progressão textual tem um movimento que não obedece relação com o interlocutor branco, o que mostra que, quando o
a injunções lineares, tais como a implicação. interlocutor é branco, a relação do índio com o mito inclui sua
Vejamos alguns fragmentos textuais. Nós os colocaremos na relação com as formas da narrativa do branco. O índio opera com
ordem em que aparecem no texto mítico; entre parênteses, as letras .1 diferença das estruturas dos relatos (narrativas) nas duas culturas
indicam a ordem que teriam em nossos textos: diferentes. Isso é muito significativo. Não só o esquema de repeti-
ções, mas a própria forma-sujeito se distingue nas duas culturas.
(B) Ele matou o veado e chamou Anhyngakwasiat. E, no contato, isso é dito pelo modo como Takiri procede face às
(A) Ele perguntou à sua mãe como deveria fazer para chamar repetições. Voltemos ao mito.
o seu tio. Ele lhe disse que ele deveria falar do desenho que A repetição dos nomes dos desenhos se dá cinco vezes: a segunda
ele tinha nas costas. Imitando o veado, ele fala do desenho, e a terceira no mesmo episódio, porque há repetição da confecção
chamando-o. do trançado. Essa repetição segue a enunciação do ato de observar
(B) Este (Anhyngakwasiat) foi-se e Anhyngavui voltou pra casa o desenho sobre o corpo de Anhyngakwasiat e a enunciação do
e lhe disse que já havia aprendido o ikwasiat (desenho). ato de fazer o desenho pelo trançado. Na quinta vez, a repetição
(A) Ele reproduziu cada desenho sobre as Aechas que havia levado. dos nomes segue a descrição dos objetos que os assurinis (atuais)
(B) Até hoje um homem faz uma criança e quando ela é grande pintam.
ele ensina também. O narrador repete, enfatizando, o nome do modelo (taynga-
(A) Ele ensinou como faz o biaakwasiat também. va) três vezes, associando-o à decoração da esteira, do corpo e da
peneira. ( O tradutor repete-o duas vezes somente.)
Por outro lado, pelo mecanismo da junção, há adição de uma Podemos dizer que, por esse procedimento de repetição, posposi-
informação a outra: à ação de matar o veado se junta a ação de çtio ejunção, se constrói, como efeito de sentidos, a pluralidade das
colocá-lo sobre o caminho, à qual se junta o chamamento de informações e o sentimento de concomitância: Anhyngakwasiat
Anhyngakwasiat por Anhyngavui, que é seguido pela agressão vem e bate no veado, e Anhyngavui observa e reproduz o desenho.
ao primeiro veado, à qual se junta a observação do desenho por O efeito é o da simultaneidade.
Anhyngavui. No desenvolvimento linear do texto, não seria possível dar conta
Esse encadeamento é repetido por três vezes. A partir da segun- desse efeito de concomitância (simultaneidade) dos acontecimentos.
da vez, a confecção do trançado por Anhyngavui se junta a esses Esse efeito é obtido formalmente pelos processos que descrevemos
faros. Como veremos, a repetição desempenha um papel central mais acima: posposição, junção e repetição. Esses processos, por
nessa organização textual. sua vez, têm características da língua como sua condição de base.
O mito foi contado por Voiava e ele foi traduzido por outro Assim, a progressão do texto estabelece pela sua materialidade
índio, Takiri. No relato de Voiava, paralelamente à repetição dos mesma a noção de "par".
fatos, há também a repetição dos nomes dos desenhos observados Por outro lado, esse efeito se acentua porque não há uma
e reproduzidos. hierarquia entre as informações do texto: uma informação não é
A partir da segunda vez, essas repetições dos nomes dos dese- colocada sob a dependência necessária da outra, não se subordina
nhos foram omitidas pelo tradutor. Isso pode ser explicado pelo à outra. A esse propósito, é interessante notar, do ponto de vista

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

da linguagem, que não há praticamente subordinação. Há coor- enumeração das diferentes formas de desenho; c) (em relação a
denação (junções). Nos outros textos (não-míticos) também, o quê) sempre em relação ao desenho geométrico.
que pode indicar urna característica sintática da língua assurini, Assim, a repetição no mito não tem relação, como nos tex-
articulada ao discurso.' tos em português, por exemplo, só com a progressão do texto,
A observação desses traços - repetição, posposição, junção - na qual há a injunção à não-redundância, não-contradição e
nos levou à indicação da propriedade do discurso mítico assurini ao estabelecimento de um clímax de interesse na estrutura da
que formulamos mais acima: não há causalidade e hierarquização narração. Mais do que ter uma relação com a estrutura da pro-
mas concomitância dos sentidos: isto e aquilo. gressão da narração, a repetição, no texto mítico analisado, tem
O processo de repetição estrita: um laço constitutivo com a própria concepção de "representa-
ção" dos assurinis. É essa mesma noção de representação gue
A) simboliza o sentido que tem a noção de "representação" nessa está (tematicamente) implícita na imitação da voz do veado
sociedade e, ao mesmo tempo, por Anhyngavui.
B) permite (re)produzir a concomitância e a relação de "paridade" Assim compreendida, a noção de "representação" é percebida
(co-pertcnça) entre os elementos do discurso. no texto como segue: a) a voz do veado tem um corpo com o
qual Anhyngakwasiat mantém um contato físico e, assim, a voz
A "representação", do ponto de vista discursivo, não significa não está no lugrir do veado: ela é o próprio veado; b) o desenho
simples substituição, mas a instituição mesma do sentido. No caso reproduzido sobre a Aecha é um desenho diferente da pintura do
da cultura indígena, podemos apreender uma outra relação com a corpo de Anhyngakwasiat; c) o desenho sobre o arco é ainda outro,
representação totalmente diversa da nossa. que difere dos outros dois por seu suporte.
No mito gue analisamos, a cada encadeamento dos fatos vem- Pela análise da materialidade discursiva, podemos, pois, pre-
se juntar uma nova informação: na primeira vez, ele observa, na cisar que a relação que estabelece a concomitância ( isto e aquilo)
segunda, ele faz o trançado na flecha, na terceira, ele faz o trançado ~ignifica (produz) um sentido particular da noção de representação
no arco, na quarta, há vários objetos decorados, sendo o sujeito ao na sociedade assurini.
mesmo tempo o gue possui o desenho e o ancestral dos assurinis Ao contar (falar) o mito, o índio assurini fala sobre a sua re-
atuais. lação com a linguagem. Ele nos define, pelas repetições, o que é
Para nós, essa repetição parece muito monótona (pensada em "linguagem" para ele. O que nos permite concluir gue a repetição
relação à "nossa" estrutura da narrativa), mas, para compreender é o lugar em que a relação do índio com a linguagem se mostra
a sua função no texto mítico, é preciso observar o seu modo de como não sendo representação.
aparição: onde ela aparece, como aparece e em relação a guê? Vejamos, agora, como aparece o sujeito em um discurso em
No mito do desenho, ela aparece: a) (onde) na "representação" que a concomitância e a "pluralidade mostrada" são propriedades
dos desenhos dos diferentes objetos da cultura; b) (corno) como primordiais. Evidentemente, não há sujeito homogêneo.
Na primeira parte(§ 1 ao§+), os locutores são o Anhynga, o
filho, e o filho da irmã. Além disso, no§ 3 e no§ 5, Anhyngavui
~cj.t pelo fato de que fal.im com brancos, scj.. pelas torm.is de discurvo de que se trat.i, ,cj.1 começa a fazer os desenhos e conclui gue já os aprendeu, passando
pcl.1 rcl.iç.io com .1 lingu.igcm que ele-, cvtabcleccrn 11.1 <,u.1 Iorm.r d.1 língu.1. Faro. ,l serem
vcrific.rdo-, em um cvrudo cspccffico por lJUem ,e dedica .1 e""ª narurc/.i JI..' qucsróc-. assim do estatuto de "anhynga" para o de "homem vivo" (produtor

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TERRA À VISTA
O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

de imagens): o sujeito é, ao mesmo tempo, os humanos e o ancestral No corpo do anhynga, não há unidade: há junção de partes
da humanidade, o herói cultural, Anhyngavui. como em um patchtoork, estampadas, "representando" ao mesmo
No § 1 da primeira parte, o enunciador se identifica ao perso- tempo uma pintura e o corpo do tio de Anhyngavui.
nagem mítico (até hoje etc.) e, no§ 6, o sujeito são os assurinis Por outro lado, entretanto, há um corpo - tensão entre a
(que guardam a sua cultura pelo recurso à transmissão do desenho unidade e a divisão - assim corno, em um dado momento, o de-
geométrico). senho é reproduzido na flecha e no arco; em um outro momento,
Em realidade, não se trata de vários sujeitos, mas da dispersão, há várias flechas que são o suporte de sua reprodução. Eis o efeito
do "espalhamento" do sujeito em suas diferentes posições, sem a da unidade/variação; singular/plural.
injunção à unidade tal como ela se manifesta nos discursos das Isso pode ser compreendido como a expressão da tensão en-
culturas ocidentais (cf. o jogo entre os diferentes enunciadores tre a unidade e a divisão, ou melhor, entre a unidade do sujeito
e a unidade textual construída pelo autor) (Orlandi, Guimarães, (Anhyngavui nomeado) e a dispersão do sujeito em suas posições
1988). Aí também se observa uma característica fundamental do diferentes (filho, sobrinho, anhynga; humano, ancestral, assurini
discurso assurini. atual), o corpo e seus pedaços ( vários desenhos no mesmo corpo),
Essas observações nos permitem passar da consideração dos entre a categoria do humano e a dos seres que partilham a substância
termos de oposição e das relações polarizadas para a conside- ')nga" (princípio vital, substância transmitida dos espíritos aos
ração dos estados de alter idade conforme a classificação dos humanos) entre vivo-humano/ espíritos.
seres no cosmos assurini: são as relações de equivalência que Do ponto de vista formal discursivo, isso se constrói pela or-
estabelecem categorias sócias (homem/mulher; membro mais ganização do texto em sua totalidade e por sua progressão, cujos
velho/jovem). procedimentos de posposição e de junção enfatizamos, com as re-
Essa passagem é crucial para que se possa compreender a cos- petições e as diferentes posições do sujeito que aí se inscrevem.
mologia assurini. A noção de "par': associada à de "concomitância Poderíamos concluir essa parte dizendo que essa análise do mito
dos planos cósmico e ontológico", não implica a substituição nos oferece uma forma de compreender a sociedade assurin i em
(transformação disto naquilo), nem na complementaridade (isto seu universo simbólico. O princípio estruturante de base, o traço
depende daquilo), mas define, no par, cada elemento como um semântico principal, é a noção de "par", constitutiva da "plura-
inteiro, um elemento autônomo cuja relação produzirá um sentido, lidade mostrada" nos diferentes materiais simbólicos assurinis.
segundo a situação na qual ele aparece. A operação-núcleo é a con-junç.io, que exprime a co-presença, a
Se se leva em conta a relação entre os dois mitos, a passagem focal simultaneidade.
é identificada no mito do Kavara pela divisão ( os pedaços do corpo), Nos textos produzidos pelo sujeito da cultura ocidental, a he-
enquanto no mito do desenho ela é mostrada pela multiplicidade terogeneidade supõe o fato de que a evidência da unidade é cons-
dos desenhos e por sua inscrição múltipla nas diferentes partes do truída e a heterogeneidade é "recuperada" por desconstrução. No
corpo (cada parte é coberta por um desenho particular). caso do mito e do sujeito indígena, como a unidade não é uma in-
A morte do veado reafirma a noção da divisão do eu, que de- junção, o fato de que todo texto é atravessado por vários discursos
corre da morte. Além disso, o veado, já morto, é agredido de novo se mostra.
(morto duas vezes) pela "borduna" Anhyngakwasiat. Há, pois, a
superposição das imagens da morte.

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

3. O contato intercultural Ao final da tradução, a filha de Takiri (Tovariy) passou diante


do grupo que contava o mito e eles fizeram um comentário a seu
Explorando, agora, de modo específico e sistemático, a relação propósito: Tovariy tinha dado à luz havia alguns meses, com 13
do texto mítico com as condições da sua produção, podemos anos de idade, fato inédito entre os assurinis (tradicionalmente).
distinguir: a) o contexto de enunciação que compreende as cir- O comentário era justamente que Tova não tinha tido ocasião de
cunstâncias imediatas da interlocução e 6) o contexto histórico- aprender o desenho porque essa atividade é proibida para as mães
cultural tradicional. Essas duas formas de contexto não existem até que a criança tenha dois anos.
independentemente. O comentário ilustrava a conclusão que fora dada na tradução
No mito que analisamos, a relação entre os dois contextos nos por Takiri, a que foi juntada urna outra conclusão. Isso explica a
dá certas indicações: a função da narrativa mítica na segunda parte construção da parte final da tradução do mito, que deve, pois, ser
é a da afirmação da identidade étnica (argumentação cm favor compreendida no contexto da situação de contato intercultural:
da identidade assurini). Isto é, há afirmação da tradição cultural o assurini reafirma ao seu interlocutor (branco) a sua tradição
através do desenho ( tradição oral/ gráfica) enquanto característica cultural, pelo desenho que é a marca da sua identidade étnica
da sociedade assurini ( indígena) que se diferencia das outras por ("agora sabemos fazer tayngavti ... ").
essa marca visual no corpo dos seus membros e nos objetos de sua Com os comentários feitos a partir da presença da filha do
produção material. tradutor, elemento da cadeia de transmissão (rompido) do saber
Analisemos, inicialmente, o contexto imediato de enunciação: tradicional, um novo dado é acrescentado ao conteúdo do mito:
o da ruptura da cadeia com a mudança do modelo de comporta-
,) Q!wm conta o mito: Takiri traduz o mito contado por Voiava mento ligado à geração dos filhos.
(que gravou o mito); Do ponto de vista formal, essa construção é heterogênea em
2) Onde: A gravação foi feita na casa de Takiri e a tradução acon- relação à narrativa mítica, visto que é francamente didática e supõe
teceu no mesmo lugar, na presença só do antropólogo e do uma ligação com instituições formais cujo paradigma é o discurso
tradutor; (escrito) pedagógico.
,) Como: O tradutor contou o mito ouvindo fragmentos e tra- A partir da interseção entre as duas situações (sendo a tradi-
duzindo-os simultaneamente. cional: os elementos do texto de Voiava que se mantêm no texto
de Takiri, corno, por exemplo, as características da progressão
O contexto imediato é, pois, caracterizado por uma situação de textual específica) e das diferenças entre o texto de origem e o da
contato intercultural, mas também pelo contexto tradicional, já tradução (como, por exemplo, a omissão das repetições no final e
que a perjormance de Voiava supõe a condição de reconhecimento o acréscimo de urna segunda conclusão), podemos, de modo geral,
da sua autoridade e a execução formal da narrativa: a) posição determinar os efeitos de sentido que o tradutor produz quando o
corporal de concentração (sentado sobre a rede, sem se dirigir seu interlocutor é o branco, em função de urna situação de contato
aos interlocutores) e 6) as características formais da narrativa (re- intercultural, no seu contexto imediato.
petição, posposiçào etc.) que diferem das enunciações realizadas É assim que podemos dizer que o mesmo ( o contexto tradicional)
nas situações ordinárias de discurso. Voiava é xamã, tendo pois e o diferente ( o contato intercultural) jogam na própria estrutura do
autoridade, estatuto, para contar o mito. mito, produzindo "outros" sentidos (Orlandi, 1984-85). Estes não

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TERRA À VISTA O SUfEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

são, no entanto, estranhos aos processos de significação específicos II) Relação com o tio
à cultura assurini ao longo da sua história (P. Bidou, 1986).
Anhyngavui viu Anhyngakwasiat na floresta e não o reconhe-
ceu em sua totalidade. Sua primeira informação foi estética ("É
bonito"). Sua identidade, no entanto - estatuto ontológico do
4. Interpretação
sujeito ao mesmo tempo anhynga e aua -, não será revelada senão
no espaço da casa (domínio feminino), no seio de uma relação
A partir da compreensão dos processos de significação estabelecidos
social: a que existe entre a mãe e seu irmão.
pelo (no) discurso assurini, podemos propor uma interpretação, de
Na sociedade assurini, a relação entre os irmãos de sexos dife-
acordo com a teoria antropológica, dos sentidos contextualizados
rentes implica um termo terceiro, que é o cunhado.
na sociedade assurini, num certo período histórico (1976-1982..).
No mito, a relação entre o filho e o tio é tensa. Ela exprime a
hostilidade e a distância de Anhyngakwasiat (Anhyngavui fica es-
1) Relação com o conhecimento condido). Mais do que isso, Anhyngakwasiat é um "desconhecido',
cuja identidade é revelada pela mãe, mediação necessária entre os
A curiosidade de Anhyngavui em relação ao desconhecido dois termos. O local da revelação, já o dissemos, é a casa (espaço
é despertada pela contemplação de um objeto - logo, pela via doméstico), espaço feminino.
dos sentidos: visual (as formas do desenho) e auditiva (os ruídos Trata-se, por outro lado, da identidade de Anhyngavui ( o filho),
ouvidos na floresta). um ,mhyng,1 como o seu tio, enfatizando aqui a rnatrilateralidade.
"O que eu vi? É bonito." Esse mesmo princípio está presente na herança do desenho, através
Esta expressão é marcada por um traço enunciativo (presença do tio materno.
do enunciador assurini) que mostra o seu lugar de sujeito, isto é, a O fato de que atualmente a transmissão é de pai para filho revela a
sua identidade assurini. É, além disso, uma expressão que pode ser tensão entre o lado paterno e o materno. Essa atualidade é apresentada
tomada como uma frase-de-base que conjuga em si características na segunda parte do texto ("e estes ensinaram de pai a filho").
fundamentais dos assurinis. Inicialmente, pelo fato de que a relação Se o homem é o organizador do discurso mítico a propósito
com o conhecimento se faz pelos sentidos e a forma de apreensão da transmissão do desenho, na atividade artística atual, compreen-
do objeto de conhecimento se faz por uma atiuidade estetica: o dida também como discurso (prática discursiva), é a mulher o
trançado decorativo. Além disso, a reprodução e a transmissão autor principal dos desenhos geométricos na pintura do corpo e
desse conhecimento se fazem, elas também, pela mesma via: es- da cerâmica.
tética (pintura do corpo, artesanato, cerâmica etc.). As noções se Do mesmo modo que o filho da irmã recebe o desenho do
materializam, pois, e são transmitidas pelos sentidos. irmão da mãe, a sociedade (os humanos) o recebe do espírito
Não nos esqueçamos, por outro lado, de que a própria "repre- anhynga. Este não se apresenta somente como um desconhecido,
sentação" é parte constitutiva do ser, e ela é estética: o desenho e o mas como um estranho, diferente dos humanos por seu aspecto
mito. A marca do sujeito enunciador ("Ele é bonito") nos mostra do cu-dividido, associado à morte, à não-vida e à não-sociedade.
(por auto-referência) o sujeito assurini: aquele para quem o estético Essa característica é percebida intertextualmente pela relação com
funda a relação com o mundo (aí incluído o conhecimento). o mito do Kavara.

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

A relação com o tio remete a estes dois conteúdos: a relação Além disso, essa é uma relação entre gerações diferentes. Os dois
homem/mulher (filho, mãe; irmão, irmã; marido, mulher) e es- princípios - de idade e de sexo - aparecem explicitados pelas
píritos-humanos (vivos/mortos). relações que se desdobram: irmão, irmã, marido da irmã.
Esses princípios são fundamentais na estrutura social assurini,
III) A Relação com a mãe e essas distinções são princípios de operacionalização da categori-
zação social face às relações matrimoniais.
A posição da mulher está associada, de um lado, à estrutura do O lugar da mulher como organizadora é, pois, fortemente
grupo doméstico, unidade de produção e, de outro, à atividade marcado no texto mítico. Daí a compreensão do seu papel de ele-
artística, elemento organizador da transmissão da cultura. mento estruturante na esfera da cultura: apreensão e reprodução
No mito do desenho, a mediação da mãe entre o sobrinho e o do conhecimento pela estética. Tensão entre os sexos, entre as
tio, entre o homem e o conhecimento, entre o lado materno e gerações, assim como entre o estranho e o conhecido, o espírito
o paterno, entre a espiritualidade e a animalidade (que identifica e o humano.
Anhyngakwasiat) e entre a humanidade e a cultura e sociedade
(que identificam Anhyngavui) explicita a posição feminina na IV) Relação entre mortos e espíritos
estrutura social assurini.
Os homens têm o desenho e o reproduzem, mas é a mulher que A escolha feita da classe de espíritos que possui o desenho e o
tem a resposta ao enigma: "O que é que eu vi?" É ainda ela quem transmite aos humanos é um dado que completa a compreensão
organiza o conhecimento no suporte material da representação da relação humanos/espíritos, assim como a noção de "represen-
gráfica do desenho: "A mãe de Anhyngavui lhe diz para preparar tação" no "pensamento" assurini. Trata-se de uma classe de espí-
as flechas e fazer o trançado". ritos - os tlnl~yngm - identificada, de um lado, às noções de
A relação de Anhyngavui com a mãe é sua relação com o mundo divisão do eu e da multiplicidade, e, de outro lado, à animalidade
e com o conhecimento. Por outro lado, o filho é o elemento pelo (os anhyngm se metamorfoseiam em animais para atacar os hu-
qual a sociedade e a mãe (mulher) se apropriam da cultura, do saber, manos) e à morte.
garantindo a continuidade e a permanência do social. Essa classe de espíritos é associada à morte, na atualidade ( os
É preciso que a mãe apareça como interlocutor: o sujeito locutor nnhynoas ligados aos mortos podem vir pegar os homens e levá-los)
tem uma posição em relação à mãe (e mulher), unidade que na e no tempo mítico (Anhyngavui ensinou o desenho aos assurinis
segunda parte do texto se fragmenta em sujeito coletivo, os mortos que hoje estão mortos: os "bnuas"].
"Bnuas" são humanos (''tw,1") mortos. É, assim, um conceito
e os assurinis atuais. Nessa segunda parte, não reencontramos mais
a mãe (mulher) como interlocutor. que define o estatuto do humano que está morto, acentuando a
sua condição de "ex-vivo", enquanto existência passada de humano.
A mãe (mulher) é a origem, anterior ao conhecimento: ela diz
Não se trata de um morto atual, parte da pessoa que sobrevive a
a identidade do desconhecido ( o desenho, o saber); ela instrui a
morte e coexiste com outras partes do eu ou com os vivos. É uma
propósito da maneira de apreender os dois ( o saber e o desconhe-
identidade autônoma que corresponde a noção de ancestral. Os
cido). Colocando-se como mediadora, ela faz existir a relação
ancestrais pertencem ao domínio da morte (contexto de mzhyng,z),
social. Sob a forma do diálogo, ela dirige a açào.
mas não são os mortos atuais; remetem-se à morte passada.

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

Mesmo os nomes têm um tempo em assurini (-yma, por aí reencontramos a idéia de dispersão do sentido, de representação
exemplo). e de realidade: tensão entre o mesmo e o diferente.
No texto, "bava" está associado ao espírito e à morte, que são O núcleo das regularidades, corno dissemos, é detectado na
duas instâncias do ser que se opõem ao humano ("ava"), apresen- inter-relação dos diferentes "campos sernióticos" e que resultam em
tando em comum as características que se seguem: eles existem em uma prática discursiva que podemos caracterizar corno assurini.
esferas cósmicas diferentes das dos humanos e não têm existência Para concluir esta parte, podemos dizer que a produção dos
real. São duas categorias que se relacionam à ausência. sentidos na sociedade assurini se organiza, entre outros aspectos
O ancestral do qual os humanos receberam o desenho não é um da cultura, em torno do estético. Os sentidos assim estabelecidos
"ava" que se torna um espírito (corno os xarnàs) ou um "ava" que realizam a permanência e a reprodução do social, por um sistema
era um animal e que virou um espírito animal. Eles não são tam- semântico cujo traço fundamental é o do "par", da "co-presença"
pouco ancestrais, heróis culturais que continuam os humanos - A pluralidade (polissemia) dos sentidos e as múltiplas direções
os mnims - e que pertencem ao passado mítico e ao futuro dos (sentidos) das relações internas ao grupo são a marca e a garantia
xamãs, não tendo vida em comum com os "nuas" atuais. de suas identidades e de sua história. E isso só é visível se nos per-
Os mzhyngm são tudo isso: o ancestral, o herói cultural, os ani- mitirmos urna leitura que não tome apenas um ponto de entrada,
mais-espíritos (partes do corpo no mito do Kavara e dos desenhos mas que, ao contrário, entre por diferentes aspectos da rede das
que cobrem as partes do corpo no mito do desenho). práticas discursivas.
Na multiplicidade, os inteiros são variados e em sua divisão
eles são várias partes de um inteiro. Quanto à ausência, a noção
de ,mhyng,z está associada à morte e à espiritualidade; quanto à
presença, ela se associa à constituição da unidade no corpo do ser
5. Conclusão
mitológico, do ancestral.
Entre os dois termos, ausência e presença, divisão e multiplicida- I) Descrição e métodos
de, não há oposição. O conceito de mzl~yngtl recobre todas essas noções
e, como vimos, sua construção se realiza na interseção dos dois A discussão antropológica dos modelos teóricos adequados à
textos míticos. Não há oposição, mas tensão que constrói a unidade. compreensão das sociedades indígenas sul-americanas, quanto
A tensão une ("e") as partes: no corpo do ,ml~ynga não há unidade, ao que se refere às características comuns da estrutura social,
há junção de partes, mas por outro lado há um corpo. Tensão entre acentua a endogamia e a recusa da afinidade, ligadas à operacio-
unidade e divisão. Essa tensão constitutiva aparece na construção nalização das noções de identidade e de diferença, em suas cos-
de uma "unidade": com o desenho, o 1zn~yngt1 existe como unidade. mologias ou ideologias (Kaplan, 1975 e 1979; Viveiros de Castro,
Como vimos, a forma t,~yngmw do desenho geométrico assurini 1986; Riviere, 1984).
traduz a noção de constituição do ser pela imagem e em relação Nosso estudo incidiu sobre a sociedade assurini em um momen-
aos humanos. Daí a idéia de que a imagem é parte constitutiva do to determinado, que analisamos segundo princípios estruturantes
ser único/vivo, lugar do princípio vital. detectáveis a partir de um certo recorte histórico (1976-1982).
Por outro lado, o desenho assurini, forma geométrica, não re- Em uma sociedade como essa, a rede de relações sociais setor-
presenta, ele é. Forma que existe em si, de modo autônomo. E nós nou muito reduzida e a endogamia se efetua em um nível mínimo

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

de possibilidade de realização (a família nuclear/casamento de paração mortos/vivos), o xamanismo inverte as posições, inverte
mãe e filha, e pai e filho com o mesmo cônjuge). Uma sociedade ,1s relações homens/mulheres e a mulher ocupa o lugar do xamã,
como essa se reveste de um interesse especial, do ponto de vista estabelecendo assim a identidade entre os gêneros.
comparativo, face à questão da troca e da operacionalização da Levando em conta a inter-relação entre o "turé" e o "mnrakd",
estrutura elementar da reciprocidade, cal como é proposta por se de um lado separamos mortos/vivos, de outro, ao contrário,
Kaplan (1979) e comentada por Riviére (198+). vamos identificar humanos/espíritos, sendo que os xarnãs têm o
No caso assurini (Xingu), cuja população, em 1982, chegou a poder de se metamorfosearem.
apenas 52 indivíduos, a questão não é a de dar conta dos mecanismos Assim, as noções de identidade e de diferença não se polarizam,
que asseguram a troca, pois ela não existe. O casamento acabou por mas apresentam uma relação de tensão que podemos detectar na
se fazer em condições mínimas: entre homens e mulheres, entre constituição dos sentidos das diferentes dimensões da prática
indivíduos mais velhos e mais jovens, como categorias de casamen- discursiva assurini. Tudo isso está conforme às propriedades
to possível. O argumento segundo o qual o controle dos homens discursivas do mito no contexto assurini, tal como o expusemos
sobre as mulheres é uma variável fundamental para estabelecer a mais acima: não unidade em torno de um ou outro, mas dispersão
relação entre a estrutura social e a elementar de reciprocidade, cal que encontra a sua regularidade na relação de "par". No sistema
como a propõe Riviere, não se aplica, pois, aos assurinis. xamanístico, essa regularidade se manifesta (ação ritual) pela noção
Mais do que assegurar mulheres nas trocas matrimoniais, eles de "concomitância" e "simultaneidade de estados de alteridade"
devem assegurar categorias de pessoas casáveis no grupo doméstico, Na organização social, isso corresponde à ação de "equivalência"
o que significa fazê-lo, às vezes, na própria família nuclear (não entre os sexos, princípio organizador das relações sociais.
porque sejam coextensivas, mas porque as possibilidades demo- Em suma, trata-se de um princípio da cultura assurini que
gráficas são reduzidas). Pela manutenção da uxorilocalidade como pode ser vista pela perspectiva da análise de discurso - relação
regra de residência, o casamento preferencial se faz com mulheres entre o mesmo e o dtferente (Orlandi, 1983), detecrável por urna
do grupo ao qual já se pertence. Isso nos leva a concluir que, em vez análise como a que fizemos e que leva em conta noções como as
de se ter o controle dos homens sobre as mulheres, o que se cem de interrcxtualidade, interdiscurso e prática discursiva (Maingue-
é o controle das mulheres (mais velhas) sobre as outras mulheres ncau, 1987)-em conjunção com as afirmações de Kaplan (1982)
,1 propósito do "universal transformacional" e da "multiplicidade
(mais jovens), que se faz fundamentalmente na composição do
dos mundos na cosmologia".
grupo doméstico, unidade básica da produção econômica.
Quanto à relação entre as identidades e as diferenças, esta é
regulada essencialmente no ritual. Trata-se da separação vivos/ II) Os diferentes modelos e os jogos de interpretação
mortos e da relação humanos/ancestrais, expressas no "tur/",
ritual cosmogônico, e da relação humanos/espíritos, expressa no Se se toma, portanto, a análise de discurso enquanto método
"maralai", ritual xamanístico. que produz a compreensão do sistema simbólico assurini, aparecem
Tais relações, no entanto, não estabelecem essas noções de ,1lgumas diferenças em relação às propostas de modelos teóricos
modo categórico. No "ture", ao mesmo tempo em que termos que se propõem explicar uma sociedade tupi como a assurini.
diferentes se opõem (aldeãos e estranhos, anfitriões e hóspedes, Em alguns modelos antropológicos (Viveiros de Castro, 1986),
isto é, eles se opõem em unidades sociais de forma análoga à se- o lugar da exterioridade na filosofia tupi é a guerra, e o inirniyo, a

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TERRA À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

instituição que determina o estado histórico-temporal do sistema p,1,sagem a um outro nível. Temos assim, em vez da imortalidade
social. Ao invés de traçar as fronteiras contra o não-eu, os tupis (arriburo do guerreiro araweré), ideal da realização da pessoa hu-
incorporam o outro, historicidade do sistema. Isto é, eles incor- mana, a metamorfose ( isto e aquilo) na concomitância dos planos.
poram, por antropofagia ritual, a posição metafísica do inimigo. Essa relação, no contexto estudado, pode ser considerada como
É esse traço que explicaria, na estrutura social do tupi, a recusa da .m.1loga àquela entre homem/mulher, equivalência de estados, de
afinidade (o ato de devorar). estatuto, de categorias sociologicamente diferenciadas.
Nesse mesmo modelo (Viveiros de Castro, idem) - mesmo O ideal da realização da pessoa assurini, diríamos, não está na
que a identidade e a diferença não se polarizem (a relação é isto e transformação definitiva, como foi considerado para os arawetés
aquilo)-, o substrato é a noção do "devir" (futuridade). É o sis- (Viveiros de Castro, ibid.), em que temos uma hierarquia entre
tema da vingança ( entre os tupinarnbás) e o canibalismo ( entre os posições (aqui-agora/futuro-o céu das divindades). Para os assurinis,
arawetés), implicando temporalidade, que permitem essa relaçào .1 oposição guerreiro/xamã (com valor positivo para este último)

(isto e aquilo). refere a um momento histórico em que ele está presente e age na
Para os assurinis, como mostramos a partir da análise discur- reprodução da sociedade.
siva, a relação ( isto e aquilo) se manifesta no sistema xamanístico, ~~anto ao que se refere à morte, no caso do xamã, é preciso
baseado, de seu lado, na noção de concomitância, de co-presença, dizer que o que importa não é a passagem para o futuro, mas a
de simultaneidade de estados de alteridade, na qual o laço temporal possibilidade de ir e vir, tensão entre o que é e o que não é; dispersão
não existe. e unicidade, atributo do xamã, que pode viver estados ontológicos
Assim, a historicidade se encontra na relação de tensão entre diversos, freqüentando esferas cósmicas diferentes, em seu papel
estados simultâneos e não em relação a um devir, estado futuro que fundador da sociedade assurini.
seguiria a superação das diferenças ou de identidades. As diferenças, O xamã existe enquanto espírito e enquanto humano; ele existe,
aliás, não são superadas. Os assurinis jogam com elas (lembremos, além disso, depois da morte como "avaetê', pessoa verdadeira, na
aqui, o jogo entre o mesmo e o diferente). A metamorfose do xamã, aldeia-origem da humanidade. O xamanismo e a função estética
por exemplo, é o substrato ideológico da polissemia que permite operam, pois, ativamente (de forma tensa) na constituição e re-
categorias sociais e posições ideais como as de guerreiro/xamã, produção dos assurinis.
mulher /hornem, sogro/ mulheres, que têm relações de parentesco Pela aplicação da análise de discurso, pudemos contextualizar
entre elas. historicamente o modo de análise. É essa possibilidade que nos
~anto à articulação do canibalismo à afinidade, ela pode ser permitiu estabelecer a correspondência entre a noção de con-
observada (no domínio simbólico) no ritual da comida "ava"; o comitância dos estados de alreridade no discurso e a relação de
guerreiro dá de comer ao grupo, e a carne (cozida) é oferecida às equivalência entre as categorias sociais.
mulheres, elemento organizador (mediador) entre o guerreiro (ir- Tais noções, por sua vez, são compreendidas a partir do conceito
mão) e o xamã (esposo). O canibalismo articulado à afinidade tem, (discursivo) de polissemia, que permite estabelecer o atributo
aí, uma especificidade: os irmãos levam a carne do inimigo para as de xamã como organizador das relações entre os humanos/ os
irmãs; do outro lado, o cunhado (marido da irmã) leva os espíritos. espíritos, e a distinção homem/ mulher ( assim como entre seres de
Na mitologia, a guerra se relaciona ao xamanismo, estabele- diferentes gerações) como operador das relações matrimoniais e da
cendo a separação humanos/espíritos e o sentido da morte como composição das unidades sociais. E que não se apresentam como

224 225
TER R A À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

posições estruturalmente dadas, mas com sentidos historicamente qualquer sistema de signos. Passagem feita por Saussure, na lin-
constituídos. güística. Haveria essa passagem para a análise de discurso? Pêcheux
É, talvez, a acentuação da dimensão histórica da cultura a responde que sim, com a condição de considerar a exterioridade
contribuição mais importante dessa forma de análise, fundada como constitutiva da própria significação. A referência seria, pois,
na compreensão dos processos de significação inscritos no texto .1 relação do discurso com a instituição (com a história). E o mito
mítico. Nós diríamos, para concluir, que não se pode interpretar o seria justamente o lugar exemplar dessa dificuldade.
mito sem compreendê-lo. A interpretação, para o cientista, supõe Em nossa análise, essa passagem é feita, reintroduzindo o mito
a compreensão. na história. Mas a história pensada não como cronologia, evolu-
Enquanto finalidade da análise de discurso, a compreensão en- çào, mas como discursividade, ou seja, a historicidade do próprio
gaja a história, isto é, ela "historiciza" o texto. Desse modo, como, "texto". Passagem feita através dos conceitos de intertextualidade
sem considerar a historicidade do discurso, não há compreensão, e de prática discursiva.
ainda uma vez reafirmamos a necessidade de considerar o texto em
seu contexto e os sujeitos culturais mergulhados nas suas histórias II) Históricas
para que haja real exercício de conhecimento.
Conseqüentemente, em sua relação com a análise de discurso, Essa análise nos expõe, entre outras coisas, a relação do índio
a antropologia pode estabelecer, pela compreensão, a passagem com a linguagem, mostrando que ela não se dá no interior dos con-
da inteligibilidade do texto para uma interpretação determinada, tornos do que nós mesmos, em nossa cultura, consideramos como
confrontando-se com materiais que derivam da materialidade dis- "representação" (seja como repetição, seja como constituição). O
cursiva, o que lhe propicia uma capacidade de avaliação efetiva dos que implica que há uma relação linguagem-pensamento-mundo,
seus modelos de interpretação. Desse modo, não é preciso tramar afetada em nosso imaginário pela ficção do ajuste termo a termo,
um espaço insondável entre a ilusão de um sentido referencial (e que não funciona do mesmo modo para a forma-sujeito-índio, tal
"certo") e a incerta margem das metáforas na qual ela mesma acaba, como a apreendemos em sua inscrição na produção do mito.
na maior parte das vezes, por se inscrever. O sujeito-índio é outro, sendo outra a relação instituída entre
linguagem-pensamento-realidade ( assurini, no caso), na qual, se há
uma ilusão referencial (esquecimento nº 2), ela passa certamente
6. Conseqüências por outras determinações, já que a noçào de "desenho" (imagem),
de "representação" (isto e aquilo), nào estaciona na injunção à
1) Teóricas unicidade e à progressão, tal como a concebemos. "O que eu vi?":
é o desenho e é o tio, ao mesmo tempo.
Segundo Lévi-Strauss, o mito é interminável e um livro sobre o Isso tem conseqüências várias. Uma delas, que podemos salientar,
mito seria, ele mesmo, um mito (interminável). Reflexo entre te- é a de que as descrições das línguas indígenas que projetam sobre
oria e objeto, não haveria saída para o impasse da análise do mito. essas línguas a mesma-sempre-nossa concepção não são capazes de
É o que diz Pêcheux (1969), retomando Lévi-Strauss, quando apreender outra coisa que modalidades, categorias, ergatividade
em sua Analyse Automatique fala na necessidade de se passar da erc., essas regularidades que são uma espécie de tradução moderna
"função" para o "funcionamento" como condição de análise de para o discurso da ciência da linguagem, como se fazia no século

226 227
TER R A À VISTA O SUJEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

XVI, tendo como modelo o latim. Hoje, é a lingüística ( estrutural- r.icionalismo para tentar determinar a posição real da GGT, seu solo ideo-
distribucional ou transformacional) que faz o mesmo. Não paramos lógico efetivo, sem se prender estritamente à interpretação chomskyana:
isso supõe um desvio pela história ideológica que, do século XVII aos
de disciplinar o que nos é estranho. Ao preço da caricatura. ~e
nossos dias, funda essa controvérsia.
exibimos grotescamente em congressos internacionais, nos quais
se confunde uma real resistência à reprodução do já-sabido, na
Tudo isso nos remete, ainda uma vez, à questão da história da
codificação já-sempre-feita, com a recusa em se falar a língua do
ciência e suas implicações. Aos povos do Novo Mundo, sob a de-
congresso: os ingênuos reivindicam falar em português na Eu-
terminação simbólica do discurso colonial, não tem restado muita
ropa (para serem entendidos finalmente só pelos que entendem
alternativa a não ser a de reproduzir modelos e seus resultados,
português, ou seja, nós mesmos e poucos), ao mesmo tempo em
na maior parte das vezes previsíveis, com alguma "singularidade"
que reproduzem os modelos de análise de língua, tendo Chomsky
aqui e acolá. Ou a posição crítica de quem intervém na história
como pai-paradigma e o inglês como modelo. Isto é, "traduzem"
da ciência para mostrar algo mais do que a mera reprodução de
(caricaturizam) as sistematicidades das línguas indígenas para as
modelos e de resultados. Mas aí a dificuldade é a de construir
sisrernaticidades das línguas européias, a fim de, evidentemente,
um discurso de conhecimento que suporte o confronto com a
apresentarem as suas particularidades, as suas especificidades, em
ciência do já estabelecido. Seja sob a égide do colonialismo (XVI)
relação à língua-paradigma.
no modelo do latim, seja sob a do imperialismo (atual) preso ao
Se antes a língua modelo era o latim e a gramática era a racional,
padrão do inglês standard.
hoje há várias gramáticas, mas é a lingüística a ciência dominante e o
Voltemos, pois, ao fato de que, se, para nós, faz parte do nosso
inglês, a língua-modelo. E aí se realiza o que diz Pêcheux (1981):
imaginário histórico-social que a linguagem "representa" o mundo e
que nossas palavras se devem "ajustar" termo a termo à realidade, isso
Alguns aí vêem uma revanche do anglocencrismo sobre as culturas
latinas, uma empresa visando substituir o velho imperialismo cultural greco- não se passa da mesma forma na relação do índio com a linguagem.
latino, pelo imperialismo lingüístico anglo-americano, absorvendo aquele: Outra conseqüência que daí deriva é da ordem da textualidade:
a GGT' seria, então, a expressão de uma corrente anexionista, visando como traduzir textos que se estruturam tão diferentemente?
reconstruir as diferentes línguas da terra no modelo do inglês, exatamente Não desenvolveremos, aqui, toda uma teoria da tradução.
como os missionários e exploradores europeus tinham reconstruído, do Basta-nos chamar a atenção para o fato de que não se pode separar
século XVI ao XIX, rodas as línguas que encontr.ivam, tomando o latim forma e conteúdo, como tampouco se deve estacionar na ilusão
e o grego como referências universais.
da tradução como "resgatando" (através de peripécias) o sentido
A "lingüística cartesiana" forneceria, assim, a garantia racionalista clás-
inicial. Não há esse sentido inicial, e a relação da tradução é a
sica da nova universalidade, enquanto a corrente humboldriana fundaria
o seu caráter aberto e criativo. relação na ( e da) diferença.
Mas não é certo que se Pº"ª tomar ao pé da letra essa interpretação
que a GGT dá de suas próprias origens[ ... ]. Isso conduz a reexaminar o
fundo histórico da controvérsia filosófica americana que opõe empirismo e

Gr.un.iric., Cer.uiva e Tr.mvtorrn.icion.il. (N. do E.)

228 229
TERRA À VISTA O SUfEITO-ÍNDIO E O SEU TEXTO

Anexos os nomes dos desenhos). Este vai embora e Anhyngavui


volta para casa e diz que já aprendeu ikwasiat (desenho). Ele
reproduziu cada desenho nas flechas que ele tinha levado
Mito do desenho (1) (repete o nome dos desenhos). Ele fez t1úng1wa também.

1. Anhyngavui foi caçar. Ele ficou na espera, de manhã. Quando 4. Depois ele ainda foi matar um veado e chamou Anhyn-
1
voltou, ele viu Anhyngakwasiat. ~ando ele chegou em casa, gakwasiat. Fez então um trançado no arco (repete o nome
ele perguntou para a sua mãe: "O que é que eu vi? É bonito". dos desenhos).
A mãe respondeu: "É seu tio".
5. Anhyngavui ensinou o trançado do desenho aos que já mor-
2. Anhyngavui foi caçar veado, ele está procurando. Ele matou reram (b1w11) e estes ensinaram de pai para filho. Até hoje,
ele e chamou Anhyngakwasiat. Ele perguntou pra sua mãe um homem faz uma criança e quando ele é grande ele ensina
como devia fazer pra chamar seu tio. Ela disse que ele devia também. Anhynga é o mestre do desenho. Ele ensinou tanib.i
falar do desenho que ele tinha nas costas. Imitando o veado, a fazer bialaoasint (repete o nome dos desenhos).
Anhyngavui fala do desenho chamando-o. Anhyngakwasiat é
ruim, ele quer brigar. Anhyngavui coloca o veado no caminho. 6. Agora nós sabemos fazer taingcwa no biava, no [nndiru, nós
Anhyngakwasiat chega e, enquanto ele briga com o veado, fica sabemos fazer o desenho com tinta de jenipapo (repete os
parado (assim Anhyngavui teve tempo de observar os desenhos nomes dos desenhos). Bauns (os mortos) faziam eles antes e
de seu corpo). Anhyngakwasiat bateu no veado morto com um eles ensinaram, é por isso que a gente não perdeu, até hoje.
grande pau. Anhyngavui ficou atrás de uma árvore, olhando
os desenhos distribuídos pelas diferentes partes do corpo de
Mito do Kavara (II)
Anhyngakwasiat: laonsiapnrn, taingajovaava, ypúuinga, tem-
beku/areropitn, ui laonsiaroho, gapusúzra,jaeakyng,j11eti ta rendi,
Kavaryma é nua (humano). Seu companheiro e ele vão à floresta
tayngaueté, t,zyngavp_yka, 1zj,wiaky, ktúsingimkwara, akaravoki-
e são atacados por um tany'yia (inimigo). Seu companheiro morre
rerajonua, ipinondi, ipinonô.
e Kavaryrna, que sobreviveu, volta para a aldeia. Na volta ele é
perseguido pela 11nhyng11 de seu companheiro: pedaços do corpo
3. A mãe de Anhyngavui pediu para ele preparar as flechas para
corno o fígado, o coração, o braço, a perna, o sangue. Kavaryma e
fazer o trançado com amambn! e akamuâ. Anhyngavui matou
os pedaços do morto chegam à aldeia onde há uma festa. Durante
o veado, colocou no caminho, levou a flecha. Anhyngakwasiat
a festa, eles cantam sobre o braço do morto. O sapo (kurum) é
vem de novo e bate no veado morto com um pau. Enquanto
o Kavaryva que canta, enquanto Kavaryma. Eles cantam a noite
isso, Anhyngavui faz o trançado na flecha, olhando os dese-
inteira e de manhã os m1hyngas vão embora. A mulher do morto
nhos sobre o corpo de Anhyngakwasiat (o narrador repete
diz seu nome. Por causa disso seu anhyngt1 volta e leva ela com ele.
Kavaryma fica. Hoje ele é Kavara.
Anhyng.1kw,1,i,1t é o nome do pcr~onJgem mitológico tonn.ido dc1 p,ii,tYr.1 ,mh_yngi1 (,dnu)
+ ld,m,11 (desenho).

230 231
III. Uma retórica do oprimido:
o discurso dos representantes indigenas:

~em norncia'" a terra do Brasil?


FALA DE UM ÍNDIO NA 2" REUNIÃO DA UNI

1. Introdução

Este estudo tem como objeto a retórica de contato dos discursos


dos representantes' indígenas do Brasil.
As diferentes situações de linguagem em que aparecem esses
discursos são aquelas do contato cultural nas quais se usa o por-
tuguês: discursos proferidos pelos índios nas solenidades festivas,
documentos oficiais enviados por índios a órgãos governamentais,
discursos feitos em assembléias (sobretudo da UNI - União das
Nações Indígenas), relatórios enviados a entidades representativas,
depoimentos em reuniões regionais, conversas de representantes
indígenas com representantes da Funai etc.
Procuraremos determinar como se dá o domínio, pelos índios,
dos mecanismos da retórica política (no sentido amplo) ocidental;

Na medida do possível, procurei deixar falar o índio através deste trabalho. Mas sempre
lico corno intermediária. Irredutivelmcnrc. De roda forma, quero agr.1decer a Aracy L. da
Silva, que me colocou à disposição rodo o material disponível, e,\ Aílton Krenak, que me
orientou n.i procura dos textos existentes, Este rr.ibalho foi apresentado na reunião d,1. ABA,
,, Brasília, em 1984- Publicado em Trab.ilbos ri, Lingiiístiw Aplitnd«. n' 7, Campinas, 1986.
Nomear= determinar J pm,se.
Embora os próprios índios falem cm lideranças, achei mais adequado falarem represent1mtrJ.
Assim mesmo. fica a questão: há algum critério para se faLtr cm representantes? De guem
é esse critério? Na realidade, toda vez que um índio fala para o branco é considerado um
"representante".

233
TERRA À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

a descrição dos seus componentes, a aquisição desses mecanismos Merece ainda referência alguma "inadequação" do domínio
e o estado de consciência do índio sobre o contato, atestado nessa vocabular:
retórica. Nela estão as marcas das relações já estabelecidas pelos
índios e as que eles se propõem a estabelecer. Assim, o objetivo Esta comissão ficaram amedrontadas de irem até as aldeias a fim
deste estudo é a reflexão sobre a especificidade da interlocução de verem o progresso nos locais devido as.fornimções feitas por essas
estabelecida entre os índios e os brancos, nos últimos anos. pessoas representativas de Barra do Garça. (Doe. dos índios, sobre
O objetivo menos específico deste trabalho é produzir, através
o, fazendeiros, para órgão oficial.)
da observação da linguagem, subsídios para a elaboração de urna
história do contato entre a cultura indígena e a sociedade envolvente,
B) DIMENSÃO PRAGMÁTICA
e, cm conseqüência, contribuir para os estudos acerca da identidade
etnicn e da constituição da nacionalidade brasileira.
O domínio dessa dimensão está claramente expresso em vários
Finalmente, como está expresso no Caderno da CPI, nº ,, é
fragmentos dos textos que analisamos.
preciso:
Os índios têm consciência das regras pragmáticas, não só no uso

[ ... ] congregar esforços e informações que dêem uma idéia mais clara da própria língua ( o que seria de se esperar), mas também no uso da

dos problemas [ ... ] das várias experiências concretas e a diversidade de língua do branco. Eles sabem quem deve falar, em que situação, em
situações, bem como a vivência e a visão que os próprios índios têm dos que lugar; sabem falar "em nome de"; sabem reconhecer quando a
problemas que os atingem diretamente. fala do branco tem autoridade, e quando o branco tem autoridade
para falar "em nome de". Daremos, a seguir, alguns exemplos que
Nesse sentido, este trabalho procura contribuir com mais alguns ilustram o domínio dessa dimensão:
dados a respeito da experiência e da diversidade de situações vividas
pelos que estão engajados na questão indígena. a) Representatioidnde:
"A Funai que é o órgão dos povos indígenas não atendem nóis
r) É ANTES PELO EXCESSO DO QUE POR FALTA DE com atenção [ ... ] não se vê o chefe da ajudância que é um chefe
LUCIDEZ que está respondendo mas nada está resolvendo."
(Depoimento.)
1. O domínio das diferentes dimensões da linguagem "Eu estou aqui para representar a nossa comunidade Tembé.
Eu sou o representante dos caciques do Alto do Cuamá" (De-
Embora haja variação, o que pudemos depreender da análise do
poimento.)
conjunto de textos é que os representantes indígenas, em geral, têm
um bom domínio da linguagem nas suas diferentes dimensões.
b) Q}1mt deve ouvir:
- Voz do primeiro homem: "Então eu gostaria que o delegado
A) DIMENSÃO LINGÜÍSTICA
estivesse aqui para escutar conforme tá ouvindo agora, mas ele

Os "erros" de gramática são os usuais entre os brancos ( concor- agora não está".
dância, regência etc.) e em grau bastante reduzido. - Voz de outro homem: "Mas ele vai ler o relatório".

234 235
TERRA À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

- Voz do primeiro: "Então eu falo [ ... ]"(Reunião com o deve ouvir. Essa espécie de manipulação me foi relatada por um
delegado). índio, o qual me disse também que, como os jovens estão alertados
para essas situações, eles já começam a lidar com ela. Certamente
c) O valor dos documentos: se desenvolverá uma pragmática do contato ( diante do branco/sem
"Eu só quero levar um papel escrito" (Depoimento). o branco) que absorverá e regulará essas circunstâncias.
Finalmente, eu me pergunto se ainda seria do domínio prag-
d) O valor do tom de voz - o grito: mático o fato que pode ser apreendido na fala que se segue:
Há passagens de vários textos em que o índio se refere, explici-
tamente e com desagrado, ao grito: "É, ele gosta de gritar com Quando estava falando no gabinete do presidente da Funai, ficamos
índio. Esse que tá aí gritando muito comigo, grita e a minha sabendo que havia polícia embaixo do prédio, esperando a gente [ ... ].
Nunca recebemos em nossas aldeias nenhum presidente da Funai nem o
cabeça é muito grande".
coronel Veiga com nossos guerreiros armados. Desse modo, ele quebrou
os nossos direitos, não respeitou nossa condição de chefe da aldeia, nem
e) Demonstrar conhecimento da relaçdo entre o onde e o quem nas nossos costumes, conforme está escrito no estatuto ( Cacique para M.
situações dejàla: Andreazza).
"Isso ele [ o chefe da divisão de saúde] falou na reunião da gente,
na hora, lá dentro do Parque. Quando ele chegou em Brasília, C) DOMÍNIO DA DIMENSÃO RETÓRICA
falou que os índios cavam mentindo" (Depoimento).
Podemos observar o domínio dessa dimensão em vários de
f) O direito a palavra: quem deve ou pode dizer: seus aspectos.
Conversa dos kayabis com C. Villas-Boas no Posto de
Diauarum: c.1) As diferentes formas ou tipos de discurso
Cláudio: "Eu tenho direito de falar também".
Índio: "Não, Cláudio, não tem direito não, pô. Você não tra- a) Discurso cientifico:
balha mais com a gente não, tá?"
Cláudio: "Ah, que não tem direito o quê". Há textos em que eles fazem distinções binárias, classificações,
Índio: "Você já saiu. Você já aposentou[ ... ]. Você não trabalha conceituações, compondo perfeitamente um discurso que se
mais com nós. E agora quando tem um problema muito pesado, configura cientificamente. Não faltam tampouco as premissas e
só você vem aqui? Cadê o pessoal que trabalha com nós? [ ... ] conclusões.
Por que é que você vem sozinho aqui? Só para ouvir?" Daniel Cabixi, falando sobre os epítetos que o branco atribui aos
índios, tais como "bicho brabo", "traiçoeiro", "preguiçoso" etc.:
No contato com o branco, há manipulações do domínio
pragmático. Por exemplo, há reuniões em que, para calar os jovens No primeiro plano, cria-se a imagem do índio como ser inferior, sem
representantes, em geral mais enérgicos, os brancos convidam os cultura, de estranhos costumes. No segundo plano, criam-se atitudes de
índios mais velhos. O branco, aí, joga com o fato de que, segundo as repulsa, desconfiança e desprezo pelo índio.
regras pragmáticas das línguas indígenas, o jovem, nessas situações,

236 237
TERRA À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

Observe-se, nesse exemplo, a explicitação da relação entre um caso, torna-o como ilustração e o transforma em argumento
imagem e atitude. com muita habilidade retórica. Foi nesse artigo que aprendi que
a educação é que introduz "a crise da liderança e da cultura", pois
b) Discurso histórico: opera deslocamentos fundamentais: 1º deslocamento: capitão e
catequista deslocam o cacique; 2 ºdeslocamento: quem tem ginásio
Este é um belo exemplo: e 1" grau desloca capitão e catequista (Álvaro Tukano).

As características dos primeiros contatos da sociedade nacional com d) Discurso jurídico:


as sociedades tribais são as mais diversas possíveis, pois vão desde ataques
guerreiros entre civilizados e índios, e vice-versa, até as chamadas frentes
Ao longo dos diferentes textos que analisamos, pudemos
de pacificação (D. Cabixi).
observar a utilização de recursos do discurso jurídico com muita
propriedade: citações de leis, artigos, normas etc.
Observe-se o uso da distinção sociedade nacional/sociedade
tribal, para caracterizar a diferença.
O que contraria a própria lei nº 5371 de 5 de dezembro de 1967, que
.iuroriza a instituição da Funaí, a qual diz em seu artigo 1º, item 1, que
c) Discurso critico:
compete à Funai estabelecer diretrizes e garantir o cumprimento de
política indigenista [ ... ]
Se formos analisar os fatos históricos, desde o descobrimento do
Brasil, constatamos que a imagem criada sobre o índio, como também o
desprezo pelo índio, obedeceram e obedecem a uma ideologia colonialista e) Discurso jornalístico:
e de dominação que joga com a narração dos fatos históricos segundo
seus interesses e para perpetuar circunstâncias tais como eles apresentam, Dirigem-se eficientemente ao grande público através dos vá-
deturpando a autenticidade histórica (D. Cabixi), rios meios (televisão, jornal etc.) com um discurso que, em geral,
se estrutura convenientemente em introdução, descrição de um
~er dizer, aí temos uma tese ( ideologia colonialista) que trará, estado de coisas, suas expectativas e opinião.
conseqüentemente, uma proposta. Um material interessante dessa forma de discurso pode ser
Há um artigo que demonstra bem o domínio que o índio observado em entrevista para o "Canal Livre" (Juruna e Aniceto)
tem da estrutura do discurso científico, paracientífico ou crítico. ou no livreto Os Índios l/áo a Luta, de M. de Souza, com Megaron,
Nesse texto, o autor utiliza recursos gerais, tais corno a citação Juruna e M. Terena.
de outros textos (F. Silverwood), faz etnografia etc., garantind~
assim a validade da documentação, a credibilidade do leitor. E f) Discurso político (no sentido estrito):
importante ressaltar, nesse exemplo, o fato de que o autor usa
recursos interessantes de argumentação. Argumenta em torno de
Há representantes com exímia capacidade de discurso político
princípio dos direitos humanos e explicita o objetivo do trabalho:
(Daniel Cabixi, Marcos Terena, Lino Miranda,Juruna, por exem-
"a posição desse artigo é para criar na mente que não falo menti-
plo). Em geral, o que se observa é que eles configuram bem seus
ra, sim analiso a questão da qual sou vítima-testemunha". Conta
discursos, desde que tenham condições de participação. A UNI

239
TERRA À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

tem uma função importante, nesse sentido, pois propicia situações quando eu era menina, assim como essa menina minha filha,
em que seus participantes têm a ocasião de desenvolver com habi- minha mãe saiu daqui. Eles escorralaram a gente. Enrào ] ... ]"
lidade a sua capacidade retórico-política. E o fazem, na variedade
das situações: entre si (em face do branco), nas reuniões da UNI; Nessa narrativa, ao contrário das narrativas de sua própria cul-
com o branco, em geral, em reuniões de entidades, promoções, tura, não há repetições. Isso nos leva a afirmar que eles distinguem
debates etc.; em situações diretamente políticas, como o Dia do entre: a narrativa de valor histórico para o branco, e a sua narrativa,
Índio, reunião da UNI,Juruna na Câmara etc. de valor cultural, mítico etc.
Os ternas desses discursos são os básicos: terra, educação, saúde.
Os objetivos são os determinados historicamente: discussão da e) Uso do discurso traduzido como estratégia de argumentação.
emancipação, sobre os seus direitos etc. Alguém está falando e um outro fala na língua indígena. Este,
Mais recentemente, rematiza-se muito a autodeterminação: que está falando, incorpora o discurso do outro, alternando
argumentos e citação do discurso do outro, traduzido. O
[ ... ] para ele ingressar no ginásio, para poder preparar os próprios filhos resultado é muito eficaz estrategicamente. Um belo exemplo
do lugar para ser professor, para ser atendente e mais tarde mesmo chefe
está no Boletim da CP! (Xingu) sobre o avião (Paiê Kayabi e
do posto. A minha vontade é esta que sinto, porque o próprio índio é que
o discurso de uma mulher, em sua língua).
sente, e que conhece a cultura, os costumes, a tradição (Depoimenro).

c.2) Recursos retóricos f) Há o uso freqüente do discurso citado. Em alguns casos, há a


completa e detalhada reprodução de diálogos, como uma espécie
São muitos. Citaremos alguns. de teatralizaçâo da fala. Em geral, essa forma tem finalidade
didática, como no exemplo que segue:
a) Cornpnraç.io: "[ ... ] é o mesmo que o homem ser mandado roçar "_ Aí eu disse pra ele: rapaz, o que você anda fazendo?
sem terçado, sem ter machado para derrubar as árvores e fazer "- Tou indo pra Brasília e tou sem dinheiro.
roça" (P. Palikur). " - E por que você não vai à ajudância? Ajudância é pra ajudar
o índio. Você chega lá e eles te dá um pouco de dinheiro pra
b) Mettijom: "A Conma é um cavalo frito" (Aniceto para An- você chegar até Brasília".
dreazza).
"Se o sr. ministro não atende nós, nós estamos com o coração g) Utilização da situação como argumento:
flechado" (Documento para Andreazza).
Nós estamos vendo o que é dividir cabeça. Tão sentindo como é que
é dividir cabeça? Então, é isso que a Funai procura fazer entre os índios,
c) Apelo ,w leitor; pmn eng,l)d-lo: "Esta questão chamará a atenção
como fez entre os xavantes, com Aniceto, com Cipriano. Dividir (M.
do leitor" (A. Tukano), Terena).

d) A narratiua é muito usada como base de argumentação, no h) Utilização do argumento do adversário contra o adversário:
aproveitamento da categoria vítima-testemunha: "Eu sei que "Por que o branco não fala assim: o terena, o xavante. Ele fala

241
TERRA À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

os índios porque ele fala em geral. Então tem de ser um povo b) A consciéncin indígena da visão que o branco tem de suas
só. O índio. Pra gente brigar junto" (M. Terena). línguas:

i) Dominam bem os recursos retóricos da palavra politicn utilizada "Eles diziam que era fazenda deles e se a gente falas,c o idioma da gente,
para a mobilização, a discussão, a ação das assembléias e das ave Maria! era pegar a gente logo e matar ] ... ]". "Pode falar meu filho, não
tem vergonha, não. Nós estamos é na aldeia mesmo. Aqui, ,1gora, pode
reivindicações. Desenvolvem, nessas ocasiões, o discurso da
falar. Isso aqui, agora, é nosso" (Mulher par.ixó-háháhá, boletim).
constatação e, depois, levam à crítica.
Fica clara a consciência que eles têm do processo de exclusão
Resta observar que, quanto à forma do discurso, em geral, há
ligado ao direito de falar o próprio idioma e aos lugares em que
um traço importante que julgo advir da interferência de estrutura
o podem falar.
dos discursos de sua própria cultura. Eles não terminam o discurso
aos poucos, não vão indicando paulatinamente o fim, mas o fazem
c) A visão da sua própria língtül:
abruptamente: "É isso", "Fim" etc.
Outro fato que merece toda a atenção é a referência que eles
"Sou d,1 raça guarani, falo o meu idioma e meu dialeto e guardo com
fazem ao próprio ato de dizer: "Eu estou dizendo pra você que carinho porque estou falando aquilo que meus antepassados deixaram.
estou aqui em São Paulo". Aí está uma descrição da locução. Há E eu sou feliz" (Marçal).
vários exemplos desse traço: "Eu falei no meu idioma, estou nessa
grande cidade, São Paulo" (ao traduzir a si próprio). Ou: "Ele disse Esse é um testemunho force de resistência cultural.
que está dizendo que[ ... ]". Ou ainda: "É isso que eu queria dizer
pra ele, eu disse". d) IÍ refardo entre a líng11t1 e ,1 identidade cultural está remati-
zada enfaticamente neste depoimento: "Sou indígena para a
D) O DOMÍNIO DO VALOR DA PALAVRA, DA LINGUAGEM, minha nação e puríssimo. Sou tucano e falo minha língua"
DAS DISTINÇÕES ENTRE A LÍNGUA INDÍGENA E A LÍNGUA (A. Tukano).
NACIONAL
e) Consciência do uso da ling11t1gcrn:
Não se trata, aqui, de falar sobre as concepções de linguagem
dos índios - asjolktheories -, mas de observar como eles operam - Alctrllinguagcm:
com a visão que eles têm da língua, nos seus diferentes discursos.
- Eu era um bugre. Bugre, na minha região, significa um pejorativo
a) Relação entre a língua e o português: cruel para o índio bobo e ignorante tal como um animal irracional e assim
foi identificado e assimilei essa identificação (M. Tcrcna),
Os padres e freiras só falam o português e adotam esses sistemas de
educação em todos os colégios. Eles não entendem que somos povos com - Definiç.io, "Roça comunitária, que eu chamo, é junto, todas as
línguas diferentes (A. Tukano). Os índios sofreram calados porque não famílias junto" (M. Xavier, pancararé).
sabiam falar a língua do branco (Depoimentos).

243
TERRA À VISTA
UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

- Interpretação das noções: A imprensa era controlada pelo governo e quando havia um massacre,
el.i nunca dizia: "branco entrou armado e tentou matar índio, índio se
A palavra cioiliznç.io leva muito índio a se envergonhar de seu povo defendeu"; ela dizia: "índio violento mata branco" e aí metia desse tamanho
e, por isso, muitos procuram a cidade e lá se empregam em qualquer ofício. no jornal" (Hibcs Menino, nos Cadernos, CP!).
Tal palavra cioiliznçào espanta os índios de suas terras, isto é, perdem suas
terras, seus costumes, a língua e a identidade (A. Tukano). Com essa análise, ele dá conta do discurso e da função da im-
prensa na formação da opinião e da versão "oficial" dos fatos.
Termos técnicos: "Ao invés de fazer 250 alqueires o delegado fez Isso não significa que a imprensa, monolíticamente, desempenha
250hectares. Nós não aceitamos essa história" (Krenak). e é vista, pelos índios, corno desempenhando esse papel. Mas, no
geral, a função é negativa. Não porque tenham a intenção, mas
- O valor das palavras e o que eles realizam: A palavra "projeto" porque, em geral, reproduzem um discurso etnocêntrico, mesmo
adquiriu um valor mágico depois da administração de lsmart. quando estão alertas para certas críticas (Ex.: jornal de Campinas
Os índios têm claro domínio desse fato: ou criticam, quando Di.irio do Povo, sobre a questão dos txucarramàes e Raoni, no
o projeto os prejudica, ou usam a estratégia de apresentar um Xingu).
"projeto" quando defendem uma reivindicação. Precisão dos conceitos, em relação ao uso que é feito dele: "O
Brasil não foi descoberto, foi invadido". Ao resgatar o sentido mais
- Distinçôes. "Não podemos criticar, então vamos denunciar" preciso, inaugura uma outra história.
(Depoimento).
g) Valor da l!ngu,z indígentZ:
Reflexão sobre os nomes dados pelos brancos e o processo de
denominaç.io: Falar a língua indígena é algo que aparece referido em sua arn-
bigüidade: é um estigma e é uma conquista. É a garantia da identi-
Os índios moravam nas grandes casas que os brancos chamam de dade: ("a língua, pra nós, é um documento", diz Ângelo Xerente).
"malocas" e que, para o índio, é uma definição sem sentido. Os tucanos
É estigma e reconhecimento: o branco recusa a legitimidade das
chamam de bnxsnri-ioi, que quer dizer "casa de danças ou cerimônias" [ ... ].
línguas indígenas, mas, por outro lado, o índio é índio porque fala a
Os ritos foram proibidos e foi um tempo que as malocas foram chamadas
língua indígena ("a língua é nossa defesa", diz Sandoval Xerente).
de casas do diabo. Certo padre disse: - José, essa casa é do diabo, eu não
vou batizar seu filho. E o velho respondeu: - Não é casa do diabo, padre,
é a casa do José. Eu andei muito tempo na mata, os meus avós andaram e II) UMA DIFICULDADE DO DOMÍNIO IDEOLÓGICO:
nunca viram uma casa do diabo (A. Tukano). A QUESTÃO DA IDENTIDADE CULTURAL

Esse texto é uma reflexão sobre a história da palavra, ou a de- As dificuldades do domínio lingüístico e retórico estrito
terminação dos processos semânticos. não chegam a ser um problema real para a interlocução entre
índios e brancos. No entanto, é inegável que há obstáculos a
[) Análise de discurso: essa interlocução, há dificuldades que presidem essa relação de
linguagem.

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245
TER R A À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

Os brancos, desconhecendo inclusive os graus variáveis da diferença, nas falas da segunda reunião da UNI. Por exemplo: "Não
Auência e habilidade dos diferentes representantes indígenas, res- sào vocês, brancos, que sentem a nossa responsabilidade, porque
pondem monoliticamente à fala do índio. A estratégia do branco, vocês são outros para nós" (Álvaro Tukano). Ou nessa fala de um
que é uma estratégia de exclusão, cria as seguintes atitudes frente depoimento da reunião de Kumarurnã:
aos índios:
É o índio que sente, qLte conhece, não gente de fora[ ... ]. O civilizado
pode entrar no nível do índio, pode passar até so anos, ele pode pintar
a) É vergonhoso, para o índio, não falar o português;
os beiços, pode furar as orelhas, tudo, cabelo grande, pode usar tang:i
b) Os erros tornam o discurso indígena incompreensível; também mas ele nunca pode se tornar índio como nós mesmo que é
c) As línguas indígenas são estigmatizadas (é feio falar); nativo. Assim como nós também, nós não podemo, tornar civilizados.
d) Os brancos estabelecem situações de linguagem que desrespei- Não podemos. (P. Palikur.)
tam as regras da fala indígena.
Essa divisão e essa necessidade resultam em que a voz do índio
Em suma: utilizam todos os preconceitos lingüísticos para é dividida, já na sua origem. O branco atribui um sentido a essa
reafirmar a dominação e a prepotência. divisão: o da estigmatização do índio. Para anular o estigma, o
A língua utilizada para o contato é o português. Isso significa que índio tem de sofrer nova violência: anular-se como índio. O que
a unidade lingüística oficial do Brasil determina a língua do índio significa reconhecer o estigma. Assim, o índio tem de perder a
quando este fala em situações que reúnem várias nações indígenas. identidade, seu pecado original, que o branco inventou.
Mesmo quando o branco não é ouvinte imediato do índio, nessas Como o índio se coloca diante desse jogo em que o branco
situações de linguagem, ele é sempre seu destinatário final. Por isso, dá as cartas?
quando fala o português, fala para/contra o branco. Há alguns fatos de linguagem, que observamos em nossa
Por necessidade histórica, que reflete fatores políticos e ad- análise, os quais indicam uma resposta para essa questão. Eles
ministrativos da organização política dos brancos, os índios se dizem respeito, basicamente, à questão da identidade. São eles: 1)
defrontam, já de partida, com a questão da identidade étnica, a incorporação e 2) a obscuridade.
já que a língua, como diz Álvaro Tukano, é "o princípio de cada
nação indígena" ( relatório sobre educação). 1) A incorporação
Para conseguir afirmar-se como tal, o índio tem de se negar
como índio, na medida em que tem de se afirmar com as categorias Um fenômeno que é imediatamente apreensível na observação
do outro, que o exclui. Isto é, há uma divisão de raiz no contato da fala dos representantes indígenas é a incorporação integral - se-
com o branco.' gundo as características dominantes do contato - do discurso do
missionário, do discurso do antropólogo, do discurso dos órgãos
O índio tem de usar a língua do branco para expressar a sua governamentais (da Funai sobretudo), do discurso do delegado
diferença. E o faz. Basta observarmos a rematização, insistente, da de polícia, do fazendeiro etc.
O branco nâo impõe só a língua e a história dos conceitos, mas
também as formas pelas quais se organiza o poder da palavra, as
Nào nos e-.queç,ltno<i de que no -óculo X\/1 o br.mco é que t i nha de faLu ,1 língu.t
indígena. situações de linguagem e as formas do discurso.

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TERRA À VISTA
UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

Se, para o índio, as formas do discurso são basicamente três - Na incorporação do discurso religioso, há algumas variações
discurso mítico, político e do cotidiano -, no contato com o que mostram os discursos das várias alas da Igreja, mais ou menos
branco ele tem de reconhecer (produzir) muitas outras formas. progressistas (desde capuchinhos, salesianos, até Cimi erc.).
Essas formas, em geral, derivam da relação existente entre a escri- Discurso do delegado: a utilização de palavras como: "elemen-
ta e as diversas instituições. to" em vez de "pessoa", por exemplo, é um traço da incorporação
Dada a relação de dominação, mais do que a apropri.tç.io dessas desse tipo de discurso.
formas de discurso, postas à disposição pela cultura ocidental, Um fato interessante a se observar diz respeito, não aos tipos
produz-se um deslize pelo qual o índio acaba por incorporar o de discursos, mas ao processo de denominação. A convivência de
discurso do branco r:11 qual. diferentes denominações para referentes semelhantes demonstra
Vejamos alguns exemplos: a interferência não só da língua, mas até da organização social do
Discurso do etnólogo: "o filho primogênito da família primo- branco: comunidade/aldeia/tribo; família/grupo/"classe"; pajé,
gênita da hierarquia tribal"; "não temos países geopolíticos como cacique, vice-cacique, tuxaua/capitão, catequista etc.
os brancos. Loco movemo-nos facilmente de um lugar para outro Em geral, pode-se dizer que há uma especialização na maneira
onde há parentes consangüíneos" (T. Tukano). como utilizar as formas dos discursos incorporados:
Discurso religioso: expressões como "Bom-dia, meus irmãos"
e mesmo "Caríssimos irmãos" usadas no início de assembléias, de a) Para a descrição ou referência aos seus costumes, o discurso do
reunião política etc. etnólogo, do antropólogo;
Os agradecimentos, em final de reuniões políticas ou assem- b) Para falar de suas necessidades, suas formas de vida "carente",
bléias, também corno urna evidência da incorporação do discurso a moral, a religião, usam o discurso missionário;
religioso: c) Para falar de suas reivindicações, sobre leis e sobre terra, o
discurso da Funai e dos fazendeiros.
"Desejamos viver unidos com o filho de Deus, que nó, cst.unos fazendo
trabalho que Deus deixou para nós, índios" ou "espero que Deus vai der-
Esse modo de incorporação do discurso do outro, assumindo
ramar as bênção de seu amor cm cada comunidade" [ ... ].
.1 forma da reprodução exata ( o simulacro, a colagem), atinge tal
grau de semelhança que acaba por revelar-se corno um índice da
Pelo que observamos, 80% dos inícios e finais de assembléias e
diferença.
reuniões políticas têm essas características. Raramente temos, no
início, "Meus amigos", "Senhoras e colegas", "Meus amigos, boa
tarde" e, no final, "Bom, gente, vamos continuar amanhã", "Até 2) Obscuridade
amanhã e muito obrigado" etc.
Menos como incorporação integral, mais corno sinal de im- Outro fator que revela o conflito de identidade, no discurso
pregnação dos discursos pela convivência com os missionários, dos representantes indígenas, é a existência de certas passagens
há o uso abusivo de palavras como "comunidade", "fraternidade", obscuras que aparecem como seqüências discursivas muito difusas,
"opção pelos jovens" etc. LOl11 grau de coerência baixo, diluído.

Palavras como "merenda", regularmente utilizadas, soam à velha Exemplo: "Durante que eu conheci essa comunidade indígena,
relação escola-igreja. (Jllé eu falei, como o civilizado é urna vivência diferente, não é assim

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TERRA À VISTA
UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

que sejam pessoas diferentes mas a vivência é tão diferente quanto Quando ele faz concessão à concepção do branco, há diluição, há
vocês" (N. Xangrê, falando a um auditório misto, em reunião ruptura: "O índio sempre considerou o corpo mnis importante
sobre a emancipação). também o espírito que poderíamos dizer alma" (A. Tukano ). Este
enunciado apresenta dois desenvolvimentos discursivos que são
Nunca fizemos uma lei como as pessoas brancas e nunca vamos fazer.
incompatíveis ("mais irnportante'l/''rambérn") e incorporação do
Qual é a questão? Quesrào que eu digo é assim: não adianta fazer um golpe
assim de nó, mesmos, pra tudo começar de novo par.1 nunca mais fazer
discurso missionário ("também o espírito que poderíamos dizer
como um fogo assim (A. Tukano, Cadernos CP!, nº III). alma").
Nesses casos, o discurso é necessariamente obscuro, pois ser
Na perspectiva que estamos adotando, não consideramos a claro, nessas condições, seria reproduzir, seria "reconhecer", através
obscuridade como conseqüência de um mau aprendizado de gra- de mera transposição, as categorias do domínio do branco. Esta
márica. Não são erros, são rupturas do discurso. Procuramos, então, é uma das causas da ruptura. Mas há outras, como a que revela a
compreender as causas dessas rupturas, ou seja, as condições em difirnldade em definir a categoria do interlocutor, a da variedade
que elas se produzem. O quadro de referência, evidentemente, é dos contatos: quem fala para quem?
o do contato transculrural. Quando Juruna disse: "Quando eu for eleito só vou falar xavante',
Considerando, assim, a situação de interlocução, o contexto a quem estava se dirigindo? Aos xavantes? À sua história xavante?
sócio-histórico da relação entre o índio e o branco, procuramos À sua consciência indígena? Ao branco que é seu aliado, cúmplice
chegar a uma explicitação dos elementos responsáveis por essa da sua história? Finalmente: era uma promessa ou ameaça?
obscuridade, assim como para a sua interpretação. De acordo com os interlocutores nomeados nos discursos dos
Esses fragmentos obscuros, para nós, são fissuras por onde representantes indígenas, podemos obter o seguinte quadro em
podemos observar, através da linguagem, o confronto ideológico, termos de imagens dominantes:
o conflito da identidade étnica.
Assim como J'. incorporação integral do discurso do branco é I) interlocutores aliados: antropólogos,' estudantes, irmãos índios
ruptura que procede de uma aproximação para mais (por exces- e caboclos;
so), a obscuridade é ruptura que procede para menos (por falta). 2) interlocutores não-aliados: jagunços, mariscadores, políticos
São dois aspectos da mesma coisa: onde situar a igualdade, onde locais, lavradores, fazendeiros, grileiros, posseiros (grandes),
estabelecer a diferença. político, exército, missionário e Funai.
Nessa situação de contato rransculrural, que é fundamen-
talmente assimétrica, o estatuto do branco e o do índio não são Corno a distinção entre aliados e não-aliados tem o sentido
intercambiáveis, não são reversíveis. Na tomada da palavra, eles da sobrevivência da cultura indígena, nesse momento histórico o
não podem ocupar os mesmos lugares. índio tem de lidar com muita precisão com a relação que ele tem
Quando, na negociação dos lugares (reversibilidade), o índio com sua própria cultura em face do branco, tendo este como seu
cede lugar na questão de identidade cultural, há ruptura do dis- destinatário.
curso. A contradição é mais forte do que a capacidade que o texto
tem de absorver a tensão com o contexto no qual se constitui. O .mrropólogo náo-cng.ijado é vivro como nâo-aliado: "O evrudo J;i noss.i . . iru.içáo por
p.1rte de c-tudrovov n.io ,c·j,t p.1r.1 o proveito e status do pesquisador. 111.1.., p,tr.t um com-
promivso profundo com e . . te povo" (D. Cabixi, "Educação do Grupo Pareci").

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TER R A À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

Em geral, a imagem que fazem do branco é negativa; a imagem subsiste no sujeito (e na linguagem). Mais do que isso, creio que essa
que fazem da fala do branco é negativa ("palavra bonita sem prá- forma de obscuridade, paradoxalmente, pode não ser voluntária,
tica"); a imagem que fazem da Funai é, na maior parte das vezes, mas é necessária para a constituição do sujeito (índio).
negativa ("verdadeira árvore-de-natal, joga os fazendeiros contra Com seu discurso obscuro ( ou categorizado como cal) - con-
o posseiro, o posseiro contra os índios e estes contra os fazendei- tanto que não caiamos na oposição maniqueísta claro/escuro-,
ros"); a imagem que o índio sabe que o branco faz dele é negativa o índio não se constrói um lugar de isenção face ao poder. Ele não
(bugre, macu). se dissimula; ao contrário, é aí que ele se mostra. Essa forma de
Esse é o jogo de imagens que presidem o discurso. Porém não obscuridade, em tais circunstâncias, pode ser vista como a forma
devemos nos deixar levar por distinções estritas, pois eles não vêem mesma de fazerface ao poder.
o branco de forma monolítica e homogênea, embora o contrário
seja verdadeiro: "Caraíba não é ruim, eu sei que tem caraíba bom
e ruim", ou "Não tou falando da Funai, tô falando contra os que 3) Conclusão
estão administrando a Funai" ou então "Tem uns padres que são
bons, mas são poucos". A questão da identidade é, no entanto, mais complicada do
Além do mais, o índio sabe que os diferentes brancos estão que expusemos até agora. Não acreditamos que se possa reduzir
distribuídos por regiões, entidades, hierarquias, grupos econô- essa questão ao jogo de imagens que petrificariam as posições em
micos diferentes. si mesmas: as que os índios têm deles mesmos - I, (i) - e do
Há rupturas quando, nesse emaranhado de contatos, o índio branco - I (b).
'
distingue mal quem é o destinatário do discurso. A obscuridade, É possível, inclusive, observar - no conjunto de discursos -
entretanto, é relativa, pois o que é obscuro para alguns não o é para uma variação que podemos considerar corno sendo uma mudan-
outros. Também faz parte dessa relatividade o fato de que se deve ça na relação das imagens.
referir o discurso ao contexto imediato em que ele se dá. Há elemen- Em um primeiro momento - textos que vão até 1981-1982 -,
tos desse contexto que indicam corno desfazer a obscuridade. eles reconhecem as diferenças, mas:
Dessa maneira, é relevante, para se caracterizar a obscuridade,
o fato de o índio estar falando: a) na tribo, em língua indígena, 1) não as formulam, visando a relação com a sua própria
com intérprete; b) na tribo, em língua portuguesa; c) fora da tribo, cultura;
em língua indígena, com intérprete; d) fora da tribo, em língua 2) procuram falar a língua portuguesa com o branco e incorporam
portuguesa. o seu discurso como forma de reprodução;
Pelo que podemos observar, os casos (a), (b) e (e) têm proprieda- :,) reivindicam, da Funai, educação, saúde e terra;
des discursivas semelhantes e se distanciam de forma mais incisiva +) vêem-se, predominantemente, através do branco e, logo, como
do caso (d): discursos em língua portuguesa, fora da tribo. Essa vítimas dessa relação.
espécie de obscuridade, de que estamos falando, é mais freqüente
nesse último caso (d). Posteriormente, em um segundo momento, eu diria que, sempre
Nesse caso, eu diria, pois, que a coerção exercida pelo poder ( dos ao nível de discurso:
brancos) não assegura a transparência (dos índios). A opacidade

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TER R A À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

1) eles procuram organizar sua relação com a cultura do branco riedade que impulsionam a possibilidade de eles garantirem sua
e, em retorno, lidar melhor com a própria cultura; identidade étnica.
2) formulam a diferença com a cultura do branco, visando a sua Na medida em que implementam sua organização política -
própria cultura; o que faz com que a imagem que o branco faz conselho tribal, conselho da comunidade -, desenvolvem um
de sua (do índio) cultura seja menos determinante. discurso político cada vez mais articulado e preciso na relação com
o branco (depoimento de Kumarumã) e com a própria população
Isso tudo nos leva a concluir que, nessa etapa, a imagem que eles indígena.
têm de si está menos mediada, menos interrompida pela visão do Nas assembléias, por exemplo, distinguem: o representante
branco. Estrategicamente, eles estão menos concentrados em aparar (ou cacique), o coordenador interno, o assessor, o coordenador
os golpes do branco, de forma defensiva. Passam a desenvolver um da região, o representante da UNI etc. Isso não deixa de ter
discurso em corno da autodeterminação, de negociações efetivas. E risco, isto é, o da transferência das formas de organização da
isso pode ser observado em dois pontos, especialmente: sociedade branca, mas tem produzido um discurso em direção
à autodeterminação. Mesmo porque essa relação com o outro
a) ~anta à língua: reivindicam falar na própria língua. Quando não esgota o processo pelo qual se estabelecem as identidades
falam português, fazem-no com muita propriedade em relação no contato.
à situação e objetivos, havendo uma igualdade de estatutos e Essa relação é sempre incompleta. A incompletude está em que
maior reversibilidade. o índio, em sua identidade, não se constitui só pela relação com o
b) Quanto à Funai: ela deixa de ser solicitada em sua função branco, de forma absoluta. Ele se relaciona com outros índios. As
paternalista, de caráter filantrópico, e passa a ser exigida cm relações são múltiplas. Há sempre um lugar em que essa identidade
sua função representativa: a demarcação das terras. Mais recen- se refaz. No caso que estamos observando - do contato entre o
temente, mesmo essa função representativa, de mediadora, já índio e o branco-, há um jogo de diferenças étnicas que se man-
não é mais reconhecida por alguns índios, que reivindicam têm, ainda que nas suas origens essas diferenças estejam afetadas
seus próprios representantes, ou seja, assim como eles têm os pela desigualdade entre dominante e dominado.
representantes na sociedade tribal, propõem tê-los na socie- Em relação à questão da reversibilidade, diríamos que esta
dade nacional. ~erem fazer a ligação direta com o poder é a forma com que, a urna não-reversibilidade imposta pelo
constituído ("O índio deve assumir seu lugar no Senado" - diz branco, os índios respondem com a construção de um modo
Juruna). de reversibilidade. Aí está a diferença entre a obscuridade
imposta ( que tende ao silêncio) e a obscuridade proposta ( que
Se, em outro momento, no contato com o branco, eles se viam é ruptura).
predominantemente através do branco, agora eles recuperam a Se o branco fosse absolutamente determinante, o índio teria de
visão de dentro para fora, do ponto de vista étnico. abrir mão de sua identidade. Ele reproduziria, em si, a identidade
As entidades - como a UNI - que promovem sua orga- do branco. E isso não acontece, porque o jogo que estabelece a
nização política têm função fundamental. Assim como o têm identidade do índio não se completa com a ação do branco. Alguma
outras iniciativas de organização política na própria sociedade coisa vaza e, quando se força em direção à completude, rompe-se
tribal, pois desenvolvem mecanismos de representação e solida- o discurso, corno tivemos ocasião de observar.

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TERRA À VISTA UMA RETÓRICA DO OPRIMIDO

A diferença se mantém, portanto, e a igualdade desejada é apenas é para tomar nossa terra. É para viver melhor. As mulheres, elas também
em relação ao estatuto das falas e dos valores atribuídos a índios e têm que se emancipar. Vive igual índio, tutelada do marido; tem que se
brancos. Por outro lado, essa diferença não é tal que o contato seja emancipar mas tem que cuidar dos meninos, não pode deixar isso. A gente
não pode deixar de ser índio (Juruna, Os Índios i/âo d Luta).
inviável. Nem a igualdade, nem a desigualdade completa, perfeita:
aí está o espaço social para a dinâmica da identidade que, sem
Se eu fosse índio emancipado eu não poderia me colocar aqui na
cessar, se refaz, se redescobre, se redefine. Incompleta, indefinida
condição de índio. Então, quando é que o índio poderia atingir urna au-
e historicamente. todeterminação se ele é tolhido pela emancipação? (M. Terena, CIP).
Esse espaço social em que a identidade se refaz é diferente
nos diferentes momentos e situações históricas. Se não houvesse Se procurarmos, no dicionário do branco, a palavra emancipa-
rupturas também no processo de dominação, o dominado estaria ção, significa "tornar-se independente, ter liberdade". Isso para o
condenado ao silêncio. branco, não para o índio.
Pela noção de incompletude, podemos escapar à oposição estrita Como o signo é a "arena da luta de classes", segundo Voloshinov
entre: ou o índio devorado, ou o índio reproduzido in vitro. Nem (1976), ou de tantas outras lutas, como diz a nossa experiência
o índio degradado, nem o índio típico, inexistente. O que se tem de linguagem, as palavras têm "tantos sentidos quantos forem os
é o espaço da diferença, da resistência, da polêmica. A tensão é contextos de sua utilização" (Voloshinov, idem). Para o índio, eman-
mantida, e a redefinição é constante. cipar-se é perder a identidade. No atual contexto histórico-social,
Ao falar a língua do branco, o índio continua distinguindo-se o índio emancipado deixa de ser índio. Perde o direito à terra.
( dividindo-se). O contato muda a sua relação com a linguagem, pois A relação com a propriedade privada, para o branco, e a relação
ele não está na língua do branco como está na própria língua. com a terra, para o índio: esta é a cisão que divide, de maneira
Essa divisão pode ser expressa em termos técnicos da análise de fundamental, esse universo de discursos. Eis a diferença radical e
discurso, através da noção de formação discursiva ( C. Haroche et inconciliável: a posse (o direito) da terra. Essa é a ambigüidade da
nlii, 1971). A formação discursiva é que determina o que se pode e se palavra emancipnçáo, que se reparte pelas duas formações discursivas.
deve dizer a partir de uma dada posição em uma dada conjuntura. Há dois dicionários: posse/ direito; propriedade privada/ coletiva;
Quando se analisam os discursos dos representantes indígenas, (Brasil) descoberto/invadido etc.
podemos reconhecer duas formações discursivas: a formação dis- Finalmente, se há algo a "concluir" a respeito da retórica
cursiva do índio (formação discursiva-') e a formação discursiva que eu chamei do oprimido, é que a questão do índio é só um
do branco (formação discursiva-'}. lugar de realização dessa retórica, há muitos outros. E o que nos
Cada formação discursiva tem uma relação determinada com a ensina essa questão é que não é pelas certezas, mas pelas dúvidas,
ideologia e é isso que a define, de tal forma que uma palavra qualquer, que o opressor (branco, no caso) empenha-se com tanta energia
quando referida a uma ou outra formação discursiva, muda de sen- em definir, em reduzir o outro à própria imagem, para poder
tido porque muda a sua relação com a ideologia. Para observarmos desqualificá-lo.
isso, vamos tomar a palavra emancipação. Exemplo: Isso foi dito com muita clareza por um índio:

Índio não é criança, mas esse negócio aí dessa emancipação é ruim. [ ... ] Neste jogo de forças, neste mundo louco de corre-corre, de
Eu acho que tudo mundo é emancipado, tem de se emancipar, mas não competições individualistas e injustas, não há lugar para os povos indí-

257
TER R A À VISTA

genas. Dizem: o índio está condenado a desaparecer. Sim, o índio estará


sujeito a desaparecer como grupos étnicos, não por causa dos rumos
históricos que parecem predeterminados, pois assim acreditam muitos
fanáticos ávidos do desaparecimento de povo indígena; mas por causa
de uma sociedade que não tolera a existência de outras sociedades que
têm condições de lhes apresentar meios alternativos para a harmonia,
justiça e vivência humana (D. Cabixi).

Essa é a forma cristianizada de expressar o conflito. Há outras,


menos piedosas. 4

CONCLUSAO

Falando a torto e a direito

Refiro-me, por exemplo, ao conflito com o~ txucarr.unàes: "N6s aprendemos a língua


do br.mco, Agora eles não eng.rnarn mais .t gente" (índio rxucarramáe, Folha de S. Paulo,
17,04-198+).
I. Ainda um discurso
da descoberta

Apres vous, la fin. Et nous, alors!

Não, não se trata de um capítulo escrito em francês. Esse enunciado


(Apri:s vous, lafin. Et naus, alars! = Depois de vocês, o fim. E nósl)
estava escrito em uma faixa empunhada por saudáveis patriotas
franceses, frente à embaixada do Brasil em Paris, no exercício da,
também saudável, defesa de seus direitos. Seus deles, como diria
Millôr Fernandes. De todo modo, trata-se, certamente, de um
discurso (francês) sobre o Brasil, mais especificamente sobre a
Amazônia.
É por aí que se pode ligar o primeiro capítulo deste livro e o
capítulo final. Pouca coisa os separa. Eles analisam enunciados da
mesma formação discursiva: a da colonização. Alguns séculos na
história, tal como a entendemos na linguagem, podem distanciar
pouco os sentidos. Não são nada, a não ser cronologicamente. A
história, nesse caso, não é uma questão de evolução no tempo, é
uma questão de sentidos e da sua duração. E estes podem circular
indefinidamente.
O discurso esclarecido (iluminado) das descobertas continua
no saudável liberalismo dos países ricos que se preocupam com o
bem-estar da humanidade. A palavra "humanidade" deve, aqui, ser
lida como "os que já adquiriram estatuto para fazer parte dela, da
Minha voz ficou na espreita, na espera [ ... ] sua universalidade". Populações peculiares com suas ( des)graciosas
CHICO B. DE HOLANDA, Lua Cheia particularidades de Terceiro Mundo só podem fazer parte se ates-
TERRA À VISTA AINDA UM DISCURSO DA DESCOBERTA

tarem seu nível de desenvolvimento. Há categorizações para isso: de l'Aurre ne sonr "cornpris" qu'à l'inrérieur de la clôrure sémantique de
l'interprcrc: pour constiruer et préserver son idcntité dans Iespace discursif
índio "civilizado" e índio "selvagem", Terceiro Mundo "viável" e
le discours ne peur avoir affaire à l'Autre cn ranr que rei, mais seulernent
Terceiro Mundo "inviável".
au simulacre qu'il en construit.
Se, nos séculos XVI e XVII, o discurso (sincero) era o dos
uinjantes, aliando ciência, religião e política, tudo devidamente
A interincompreensão é, pois, necessária para a constituição
misturado com a sedução do literário (gue limite colocar entre
dos discursos em suas distâncias relativas às diferentes formações
ficção e realidade, se tudo era "novoP), hoje essa função resumi-
discursivas.
dora (ainda as "reduções") é catalisada pelo discurso da ecologia. A
Estamos de acordo com o autor quanto à função sistemática
salvação dos homens não está mais em Deus, está na "preservação
da diferença entre formações discursivas, assim como entendemos
da natureza".
essas diferenças como movimento de desconstrução (simulação)
No século XVI, era preciso salvar a alma ( e, para isso, se aman-
do significar de uma pela outra formação. No entanto, por um
sava o espírito para tomá-lo apropriado), hoje é o homem como
movimento que descompreende a posição do político na análise
ser-no-mundo que se salva, num discurso que universalmente se
de discurso, Maingueneau (idem) acaba por domesticar a noção de
apóia no slogan da "paz" (quando jamais, como hoje, se praticou
interincompreensão, tingindo-a, até certo ponto, de tonalidades
a guerra).
psicologizantes.
As palavras e o silêncio que as acompanha (porque são polí-
Desse modo, prosseguindo em sua reAexão sobre o conceito
ticas) significam quase sempre o que pretendem n.io significar.
da interincompreensão, ele dirá:
É só procurar que a gente acha o que uma palavra "diz" quando
é usada para não dizer outra coisa ou não deixar significar essa Mais cerre inrerincompréhension qui fait que l'on doir parler er qu'on
outra coisa. ne doit pas s'enrendrc possêde un versam positif si ellc inrerdir qu'un
É aí que introduzimos o conceito de interincompreensão mêrne sens circule de l'un à l'autre elle rend possible aussi le fait quedes
(Maingueneau, 1984) com alguns deslocamentos. Segundo esse sujets partagent le mêmc discours, "parlcnr de la rnême chosc'.
autor, na produção da interincompreensão, o mal-entendido é
sistemático: a incompreensão aí obedece a regras, e essas regras Nesse ponto, o autor desliza para o interior da ilusão subjeti-
são as mesmas que definem a identidade das formações discursivas va, ou melhor, de um seu desdobramento que consiste na ilusão
concernidas. referencial: a que superpõe a palavra e a coisa. Velha discussão de
Esse conceito nos interessa porque trata da questão dos limites do que os franceses, elegantemente, já assentaram as conseqüências
dizer referidos às diferenças entre formações discursivas, definindo mais interessantes.
a relação entre elas, sem definir uma origem de que partam: Para nós, há o silenciamento dos outros sentidos possíveis, e o
~entimento de unicidade resulta da absolutização de um sentido que
[ ... ] i1 n'y a pas dissociarion entre !e fair d'énoncer contormémcnr aux vem como "pressuposto", o dominante. No caso, o do colonizador.
regle\ desa proprc formation discursivo ct de "nc pas cornprcndrc" 1c sens Este é o modo de funcionamento do pré-construído: o dizer que,
des énoncés de !'A urre; ce sonr deux facettes du mêrne phénornêne. [ ... ]
.lO ser dito, estabelece o efeito do já-dito absoluto, sobre o qual o
chaque discours est délimité par une grille sérnanriquc qui d'un même
~entido sustenta sua positividade (sua universalidade).
mouvcmcnr fonde la mésenrente réciproque. [ ... ] Aurrement dir, ces énoncés
TERRA À VISTA AINDA UM DISCURSO DA DESCOBERTA

Sem nos iludirmos que "falamos das mesmas coisas", preferimos to interno que pode ser visto como invasão. Como o estrangeiro
assumir que, pelo fato da interincompreensão, há uma delimitação não é o invasor, as fronteiras são aqui dentro, no interior do país,
dos discursos que obedece à separação (e aqui isso significa nega- de dentro para fora. E isso se dá de forma que não se qualifica de
ção) de cada formação discursiva em relação à(s) sua(s) outra(s). resistência o movimento de confronto com o colonizador, mas
Colonizador e colonizado nunca estão falando da mesma coisa. sim de rebeldia.' Com efeito, nesse discurso, não há lugar para a
Com efeito, retomando o enunciado que é nosso objeto de resistência, já que o colonizador não é o agressor, é o descobridor,
atenção, não é da mesma "natureza" que estamos falando. O que o que está em posição legítima.
é "natureza" para o brasileiro, não é o mesmo que é para os fran- Mas esse é outro discurso. Não nos interessa entrar nessa dis-
ceses, principalmente quando se trata da Amazônia. E é aí que os puta de sentidos que mantém os "pressupostos" do discurso da
sentidos se dividem inexoravelmente. colonização: isso que autoriza nos pedirem contas sobre os nossos
~em é o "nós" embutido no enunciado que abre este capí- bens ... ~eremos apenas apontar para a permanência do discurso
tulo ("Et nous, alors!")? E, do lugar desse "nós", que sentido tem da des-coberta e da colonização. Apontar para os seus efeitos de
esse "fim": "Depois de vocês, o fim" ("Apres vous, la fin") é um sentidos que ainda estão sempre aí se (re)produzindo.
enunciado que conta uma história e que, para contá-la, faz um Sem esquecer que, se no século XVII esse discurso era delimitado
recorte estabelecendo o seu início. De acordo com esse recorte, pelas relações entre povos colonizadores e povos a serem colonizados
nós, brasileiros,' com a invasão (ocupação? descoberta?) da Ama- (e descobertos), hoje, o mundo continua a se dividir, mas de outras
zônia, teríamos desencadeado uma história que nos responsabiliza maneiras,' e o que se joga são fronteiras, são limites nacionais e
por um "fim". Este, indefinido, assustador. Mas, de nossa parte, multinacionais. A universalidade do discurso mercantil cede lugar
podemos fazer outro recorte e perguntar: se isso é um processo, à multinacionalidade do discurso empresarial moderno.
quem o começou? ~em invadiu? E, mesmo não referindo as As formações discursivas remetem a diferenças sócio-históricas
invasões, o fim das florestas começou onde? Na Amazônia? Se irredutíveis. Assim, as noções de terra, território, país, trabalham
hoje esse fim é visível na Amazônia, é porque a Amazônia é o que outros sentidos, que continuam, no entanto, a se ancorarem nas
restou. Onde estão as florestas do Velho Mundo? Como vemos, falas da descoberta e da salvação.
os sentidos podem ser muito diferentes se recortamos as histórias
em diferentes perspectivas do contar. Em conversa pcvso.il. Fdu.irdo Guin1Jr:te.., observou como cvscs sentidos ..,e estendem pela
hisrória afor.i de ui modo que, por exemplo, o movimento de liberr.iç.io n.icional liderado
Os europeus "descobriram', nós "invadimos" cm nosso próprio por Tiradentes é ch.im.ido Conjur.iç.io Mineira (e, mais tarde, lnconfidênci.1 Mineira) e
país. n io de Rcvoluçao.
Em um texto que duma "Mémoires rouchant l'ét.iblivscmcnt d'unc m ivsion chrestienne
O discurso das descobertas, sempre desenvolvendo sentidos na !>C

dans le troisierne monde, .iutrcmcnr .ippellé L.1 Terre Australc, Mcridion.ilc, Anr.irtiquc. ct
direção do colonizador para o colonizado, produz um processo inconnue" Gonneville (1666) j:1 fal.1,lO p.1p.i Alexandre VII sobre ,l divisáo do mundo em
discursivo no qual não é o que vem de fora que é o inimigo. Ele não três: "Le prernier ou l'Ancirn cvr celuy quí conrienr l'Europe, L'Asic er l'Afrique; lcquel p,lí
ce rnoyen cornprcnd 1c viel Dorn.iinc de l'Eglise [ ... ] Le Second, ou autrerncnr le Nouvcau,
é um invasor, é um descobridor. Isso resulta em que é o deslocamen- commença à esrrc connu sous Alexandre Vl, auquel esr deu l'honneur d'avoir envoyé ceux
lesquels y onr posé Li premiere pierrc de !'Edilice de l.1 Foy. li re"e le croi,ieme, ou l'inconnu,
qui 1/ofFrc nuinten.mr d norre Alexandre VII". ~er dizer que o critério para .1 divisão nâo
Devemos lembrar, aqui, a heterogeneidade e ,l historicidade desse "nós", os brasileiros, que cr.1 o rlesen1Jolvime11to, como hoje, mas a rrisú,u1h11çtlo. E f.1L1ndo desse terceiro, o mundo
no século XVI sao os índios, no século XVIII são os luso-brasileiros, no século XIX são ,l subjugar, é ,l palavra "reJuzir" que aí conta: "Elle ne deJaignera pa, de redul/"e ,ous ,e,

os abolicionistas, os republicanos etc, E que no século XX querem "identificar" como os douces Loix !e Troisieme Monde ... ". Como podemos ver, "!empre se tem rrês mundos. O
que .1me.1çam a narureza com a inv.is.io das teJTJ..':,. critério para a divis,io é que muda.
TERRA À VISTA AINDA UM DISCURSO DA DESCOBERTA

Não é, pois, de se admirar que, concomitante a esse discurso Isso pode ficar ainda mais claro se chegarmos mais perto do
ecológico, e mesmo como um outro lado seu, se passe a discutir a discurso ecológico. Em entrevista dada a um jornal interno da
vontade ( ou não) de ser "brasileiro", o que significa ser "brasileiro", UNICAMP (ano III, nº 30, 1989), um ecologista diz:
a relação do brasileiro com o resto do mundo etc. Processos iden-
titários são fartamente postos em circulação com ::irgumentos que [ ... ] hoje, os governos dos países em cujas fronteiras se encontram as
rematizam desde o patriotismo, as origens, :1 cidadania, e até mes- últimas selvas (e não só a floresta tropical úrn ida aqui no Brasil, o cerrado
mo a questão econômica traduzida em dólares. Isso pode ser bem e também as outras), esses governos estão todos altamente endividados.
Acham que para pagar as dívidas têm de exportar os recursos, devastar
ilustrado se tomarmos a última página de uma revista, a Veja (12
a natureza.
de abril de 1989), cujo título é francamente: "Quero ser estrangei-
ro". Na matéria dessa revista, uma fala é posta em relevo: "Se fôs-
Duas coisas há a observar nessa fala. Primeiramente, não é
semos entregues aos Estados Unidos, pelo menos seríamos p::igos
por acaso que temos as últimas florestas ao mesmo tempo em que
em dólares". Esta fala de G. Monteiro (estudante de Comunicação
temos as grandes dívidas. ~em explora realmente este país? Não
Social, de Manaus) se diz do lugar do discurso dos habitantes do
estamos perguntando pelos intermediários, estamos pergunt::indo
Amazonas e mostra como são excluídos da fala sobre a Amazônia,
pela exploração real, a que divide o mundo em primeiro, segundo
mais urna vez, os que têm a dizer sobre ela no lug::ir mais próprio:
e terceiro por critérios econômicos.
os que são de la e que vêem ganhar status fatos que têm outro
A segunda observação incide sobre a rematização da dívida
sentido na própria região:
em relação à ecologia representada n:1 fala acima pela forma in-
Nós mesmos não sabíamos quem eram esses afogados, como tampouco determinada "acham". Nessa fala já vem atribuída a relação entre
sabíamos quem era Chico Mendes, cuja morte provocou toda essa polêmica dívida e devastação. ~em articulou, ou melhor, vinculou essas
em torno da Amazônia. Dele pouco se ouvia falar no Acre. E o pouco que duas coisas? Em direção a que interesses? Esse discurso é o discurso
se ouvia era mais como incentivador de invasões, agitador e baderneiro típico da interincompreensão. Ficamos com um simulacro, eu diria
do que como defensor da nossa floresta. mesmo uma "caricatura", de um já-dito em que vem pré-construída
a idéia irremediável dessa relação entre devastação da natureza e
Essa é uma das características do discurso de "fora" o que colo- pobreza do Terceiro Mundo. Assim, é preciso salvar o mundo ( o
niza os homens e os sentidos: eles apagam as condições concretas do primeiro, sobretudo: "Et naus, alors") do Terceiro Mundo ("Apres
fato e dão sentidos absolutos desenraizados do seu contexto. Nossas vous, la fin").
coisas passam a ter sentido a partir de "lá": "coma Chico Mendes - que
Nem faltam referências a heróis que viram "mártires ecológi-
o país só descobriu que existia depois que a imprensa internacional
cos" antes de serem brasileiros, com vidas reais em que não entra
deu o alarme". Mas aí é que esta o problema. Não é sem conseqüên-
a "floresta" como mito, mas a briga pelo trabalho e pela posse,
cias a descoberta pelo olhar de fora. Como quando não se reconhece
briga em que os índios continuam a ser "argumentos" mais do
o direito à terra mesmo que, para isso, seja preciso doá-la a quem
que seres reais e históricos. Mais uma vez nos apagam a história,
de direito, o sermos descobertos em nossas razões pelo olhar de fora
dessa vez com o discurso da ecologia." Discurso esse farto em
nos mantém prisioneiros do sentido outro. Nossos problemas cru-
ciais de terra e de vida viram, assim, problema ecológico, diluídos na E. pelo mevmo "gc,to de leitura", ,1p,1g,un ,t especificidade que pode ter ,1 fala d,t ccologi,L
preservação internacional da "natureza" e na mira das multinações. A!i,h, ,l noç.io de- "ecologia" (qual é .1 relação - luvroric.uncnte dcrcnnin.ida - <lo br.rsilciro

266
TER R A À VISTA

efeitos, como o da catequese, aliás, em que vemos aguçar-se a


II. Conteudismo:
competição pelos instrumentos científicos, argumentos baseados
em estatísticas, satélites e meios técnicos de detectar a presença do a perfídia da interpretação
homem-vilão (o desmatador) em nosso território. A Amazônia
se torna visível. Primeiro passo para a sua ocupação. Ocupação
"racional", ou seja, administrada por quem tem mais força (e não
"desordenadamente").
A fantasia sobre o Brasil encontra solo fértil quando consegue
ocupar ternas humanistas, universais (proteção do meio ambiente),
corno é o caso da Amazônia. E a "ocupação" da terra vem, via de
regra, pelo discurso da colonização.
Não é nossa intenção, aqui, fazer uma análise mais longa do
discurso ecológico. O importante é que se compreenda como
funciona o discurso da colonização, seja sob o modo do ecológico
ou qualquer outro que certamente surgirá quando se apresentar a
ocasião. Fica o faro de que há um repetível que retorna indefini-
1. Teoricamente
damente nessa produção de sentidos.
A nosso ver, na análise de discurso, vai-se às conseqüências radicais
do princípio segundo o qual, para conhecer o funcionamento da
linguagem, é preciso considerar os "processos de produção" e não
meramente os seus "produtos".
A gente está acostumada a definir os sentidos pelos conteúdos
(produtos): o que "x" quer dizer? Este "hábito", aparentemente
inocente, resulta de toda urna relação construída (historicamente
determinada) com a linguagem, em que estão em causa o sujeito
como intérprete ( e sua relação com o texto e com o "saber") e o
sentido (em sua relação com as "coisas"). Essa relação também
é determinada pelo modo como se codificam as disciplinas em
sua relação com a linguagem. Em nosso caso, visamos a natureza
dessa relação principalmente nas ciências humanas e sociais, pois
estas, em sua constituição, trabalham a linguagem sobretudo pela
análise de conteúdo, isto é, elas têm na análise de conteúdo um
instrumento próprio de constituição. Para nós, aí incide a crítica
com a n.uurez.ir) presta-~c c1 um verdadeiro b.ulc de sentidos. Até o inuginclrio das csr.içóes
da análise de discurso, ao que estamos chamando, em geral, de
do ano - primavera (flores), verão ( sol), ourono (fruros) e inverno (neve) - é vivido via "conteudismo''
Europa pelo; brasileiros,

268
TERRA À VISTA CONTEUDISMO

Desse modo, a perfídia a que estamos nos referindo consiste e) Quanto à situação
em se considerar o conteúdo e não o funcionamento do discurso.
E isso em várias dimensões. Podemos pensar o conteudisrno em Tornando a relação da linguagem com a exterioridade, seria
suas distintas determinações: conteudístico o modo de se pensar a situação como sociologica-
mente descritível e não corno relação de lugares (posições) em que
a) Quanto à teoria se inscrevem os sujeitos.

Seria inscrever-se no viés conteudístico fazer, por exemplo, d) Quanto ao sujeito


análises que dizem que há "certos" elementos da enunciação' que
marcam a posição do sujeito. Se se pensa o processo de enuncia- É pensar o seu conteúdo e não o funcionamento relativo das
ção, todo o discurso é marcado enunciativamente. Não há apenas suas várias posições. Seria fixar-lhe um sentido ( um conteúdo
"algumas" marcas que são importantes. É antes a inter-relação imóvel) quando na realidade a identidade é um "movimento",
entre elas que interessa. E é só do ponto de vista da ilusão subjetiva inapreensível em seus pólos fixados.
do sujeito' que "algumas" marcas aparecem como o seu sintoma. A relação da lingüística com as ciências sociais criou um viés,
Pensar conteudisticamente a teoria da enunciação é aceitar que pelo qual se considera que há uma oposição entre a forma e o
só "algumas" formas de linguagem têm função enunciativa, isto conteúdo, sob o modo da oposição formalismo/ conteudismo.
é, mostram a posição do sujeito que as produz. Para recuperar o que o formalismo havia excluído - o sujeito
e a situação -, pensa-se o conteúdo do sujeito, o conteúdo da
b) Quanto à concepção de ideologia situação, em suma, o conteúdo do sentido.
A análise de discurso, por seu lado, desfazendo esse falso di-
lema entre forma e conteúdo, critica tanto o formalismo como o
Seria estacionar, corno o fazem freqüentemente as ciências
conteudismo, procurando trabalhar com a forma-sujeito e a forma
sociais, nos "conteúdos ideológicos", pensar a ideologia, por
do sentido, que são determinadas historicamente em seu processo
exemplo, como mascaramento, deixando margem para, ao se
de constituição. Não se privilegia, assim, nem o "formal" nem o
buscar os conteúdos ( o que ele quis dizer?), se esperar encontrar o
"conteúdo", mas a forma material (que é lingüística e histórica) do
"verdadeiro" sentido oculto do discurso. Ora, sem o conteudismo,
sujeito e do sentido.
podemos considerar a ideologia como o processo de produção de
Todas essas considerações resultam, pois, desse viés da relação
um certo imaginário, ou seja, uma interpretação que aparece como
das ciências sociais com a lingüística: ou se tem a língua como
necessária e que destina sentidos fixos para as palavras, num mesmo
contexto sócio-histórico. objeto formal do qual se excluem o sujeito e a situação, ou, quan-
do se introduzem esses componentes, se expulsa pelo mesmo
movimento a noção de "forma" e se cai no conteúdo e na inter-
A enuncidçtio é definida como sendo o ato de produzir o enunciado, no qual se inscreve o
\CU processo de produç.io. Entre outros, por exemplo, o modo como o sujeito se mostra,
pretação. Vendo o sentido, assim, corno algo que já está lá (ilusão
ou se esconde, em suma, como se inscreve naquilo que diz. referencial).
Segundo M. Pêcheux (1975), a ilus.io subjetiva é a que coloca o sujeito na origem como Essa é uma configuração da dicotomia forma/ conteúdo. Se
se os sentidos nascessem nele, esquecendo que ele retoma sentidos preexistentes. A ilusão
subjetiva corresponde ao sonho adârnico do sentido inaugural. não reproduzimos essa dicotomia, podemos pensar a relação da

270 271
TERRA À VISTA CONTEUDISMO

forma não com o conteúdo, mas com a "matéria", ou melhor, com é um programa que incide sobre a historicidade da separação orali-
a materialidade do discurso que é lingüística e histórica. dade/ escrita, sobre a codificação de conhecimentos a respeito das
A ideologia aparecerá, desse modo, não como resultado das línguas indígenas e sua tradução, sobre os relatos, sobre situações
relações entre as classes ( essas com conteúdos já dados), mas de contato etc. Tudo isso atravessado pelas condições históricas
como "transposição" de certas formas materiais em outras, isto e dominado pela relação com o discurso da colonização sob suas
é, como "simulação" (e não ocultação, pois não há nenhum várias modalidades.
"conteúdo escondido"), em que os sentidos são projetados em Em relação ao nosso objeto de estudo, se ficamos no conteúdo
outros, transparências são construídas para serem interpretadas do que dizem esses discursos, não atinamos com:
por determinações históricas que aparecem, no entanto, como
evidências empíricas. 1) o fato de que o discurso da descoberta é um discurso do
A distinção é, portanto, entre, de um lado, a "materialidade (des)conhecimento que prenuncia o que mais tarde será o
empírica" (a que reúne, dicotornizando, formalismo e conteu- discurso científico;
disrno) e, de outro, a "materialidade histórica" com os processos de 2) também não podemos compreender que as interpretações
produção dos fatos de linguagem. A crítica à partição forma/ con- propostas para a América Latina, dividindo-a em duas - a dos
teúdo trabalha a idéia de processos de significação e seus modos de espanhóis ( edênica) e a dos portugueses (pedestre e prática)-,
produzir sentidos que têm a aparência do "pleno", do "definido", não espelham uma diferença do seu real histórico, mas antes
do "permanente". das divisões que servem a uma Europa que precisa dessa divisão.
Por outro lado, também a questão da enunciação encontra ~er dizer: serve mais ao jogo das relações entre colonizadores
aqui sua forma adequada. Quando trabalhada em suas marcas europeus do que nos serve corno referência a distinções de
"discretas", atribuímos a ela, de partida, um conteúdo. Mas, se países (colonizados) daqui da América Latina. Essas divisões,
pensamos as marcas do discurso (como as do colonizador que que parecem ter um conteúdo histórico que desembocaria em
se tornam "visíveis" pelo fato de deslocar a história pelo discurso distinções palpáveis, são imagens necessárias ao discurso da
sobre a cultura), estamos compreendendo processos mais amplos colonização;
em que o modo de constituição dessas falas é a própria condição 3) a imagem do brasileiro típico (a nacionalidade erc.), se pensada
da enunciação e não ela mesma. A ideologia não é "x", mas o me- sem o imaginário que a constitui, é mais urna forma de atua-
canismo de produzir "x". ção desse conteudismo. Produz a ilusão do evidente (natural,
O engano, insistimos, está em colocar o conteúdo como se fosse autóctone) naquilo que é só mais um efeito do discurso sobre
a saída para o formalismo, quando na verdade ele é a contrapartida o brasileiro (indolente, sensual etc.). E traz junto as injunções
da mesma coisa. à resposta e modos de circulação e "leitura", ou seja, já traz
a interpretação respectiva para essa imagem. No entanto, é
preciso ver tudo isso (todos esses conteúdos) como parte do
2. Analiticamente estabelecimento de uma história, procurando compreender
que essa história existe sob uma modalidade, constituindo-se
A análise de discurso, tal como a pratiquei neste estudo, não é só como uma narrativa, e não outra forma de linguagem ( uma
uma forma de leitura. É um programa de reflexão. No caso presente, dissertação, por exemplo). E isso só pode ser percebido se não

273
TERRA À VISTA

vemos a história em seus conteúdos (como cronologia), mas


como produção de sentidos;
III. No vão da voz
4) assim, artefatos corno as gramáticas são "monumentos" de
urna história e não apenas "objetos" da produção científica.
Nessa perspectiva, é justo perguntar: em que condições se
fizeram as primeiras gramáticas das línguas indígenas? Elas
mostram como aprendem, como ensinam (as "informações"
que passam) os colonizadores. É da visão conteudística desse
material que resulta uma interpretação do senso comum de que
o que há no contato entre a língua indígena e o português é o
"empréstimo vocabular". Isso reflete a construção da gramática
indígena apenas a partir de processos de "denominação" (dos
catequizadores). Em conseqüência, a "outra" língua não é difí-
cil, é pobre. Preconceitos, etnocentrismo. O etnocentrismo da
Há o olhar-de-lá (que nos conta em sua história) e o do excluído
relação passa para a língua (seu conteúdo): a língua é pobre. No
(que ocupa o lugar projetado pelo olhar-de-lá). O que estamos
imaginário social, a gramática mais do que codificar um saber
procurando trazer para a reflexão é o fato de que, entre o olhar
sobre a língua é um artefato que trabalha o desejo de se tornar
de lá e o do excluído, há um lugar particular em que esse modo
a língua visível e única, excluindo-se as outras ou porque são
de significar adquire especificidade: o do brasileiro que interfere
"pobres" ou porque não são "puras".
nesse contar do outro e o transforma. Esse lugar raramente tem
sido ocupado. Tem-se ficado na simetria das oposições existentes
estritamente: o lugar do que nos conta de fora e o do que é contado.
Mesmo quando se fala nas vantagens de ser brasileiro, fala-se do
interior dessas projeções, trazendo assim o avesso do mesmo e os
\cus "pressupostos".
Em nossa proposta de compreensão dos sentidos pela análise
de discurso, podemos afirmar que pela voz do colonizador pode-
\e já espreitar a do brasileiro. Porque a sua voz (do brasileiro) ali
C\tá na "espera". O que não lhe garante, no entanto, um lugar. Ao
contrário. Sem esquecer que o Velho Mundo tem a seu favor o faro
de ser o distribuidor do sentido ("universal") nessa relação.
Falando do poder crítico da viagem, Baudrillard ( 1990) discorre
lo11garnente sobre as viagens (das descobertas) e sobre a relação
.ntre "diferentes". Dizendo que o que procuramos nas viagens hoje
n.io é nem a descoberta nem a troca, mas uma des-rerritorializaçào
doce, a da ausência, ele termina por dizer: "C'est cerre íorrne-Íà,

274 275
TERRA À VISTA
NO VÃO DA VOZ

celle de l'expulsion et de la delivrance qui l'emporte aujourd'hui Compreensão, incompreensão e atribuição de sentidos. Isso é
sur le voyage classique, celui de la découverte" Quer dizer, ele uma guerra. Aí se jogam sempre os limites do dizer. Há séculos. E
concorda com a clássica "interpretação" (ideologia) do discurso esse discurso moderno que acabamos de reproduzir em parcelas
da colonização como descoberta. E, dando ao "exotismo" um não foge ao discurso da colonização. É uma reação que vem do seu
sentido crítico-moderno (ou seria pós-moderno?), Baudrillard interior. Era preciso tapar a voz que espreita. E o conhecimento
aí encontra uma saída européia para a "fatalidade" do turismo continua a ser o melhor lugar para se fazer isso.
circular "qui s'épuise dans l'absorption de toutes les différences Se não dá mais para sustentar a distância, e se o exotismo já
dans l'exotisme le plus trivial". E o outro, o diferente, está na linha não é suficiente (é trivial) para segurar o outro no lugar do outro,
do exotismo essencial: "L'altérité radicale est à la fois introuvable eles dão a volta por cima e atacam de "exotismo radical". E, é claro,
et irréductible". explicam (e suprimem?), assim, o seu tédio em se repetir sempre
Aí, o pior, segundo esse pensador francês, é a compreensão "qui os mesmos por onde quer que andem.
n'est qu'une fonction sentimentale et inutile" E à incompreensão O que nesse dizer me aponta para a sua inscrição no discurso
eterna, o estranhamento irredutível das culturas, dos costumes, dos da colonização?
rostos, das linguagens, que é o melhor, Baudrillard junta que "la O próprio conceito (imagem) de turismo, o conceito de di-
véritable connaissance c'est celle de ce que nous ne comprennons ferente e de selvagem. Mas, sobretudo, o fato de que, ao falar do
jamais dans l'autre" Chegando, é claro, à definição do "selvagem", modo de sair do turismo circular (e enfadonho) que se banha no
o termo-reduto, prato de resistência do olhar distanciado do eu- exotismo trivial da absorção de todas as diferenças, Baudrillard
ropeu: "!e terrne 'sauvage' traduit cerre étrangeté mieux que tous dirá que essa circularidade é o resultado de uma história em que
les euphernismes (sic) ultérieurs" lsso tudo coroa o dizer de que, se "la terre (est) circonscrite comme sphere, comme space fini, par
não compreendemos o selvagem, é pela mesma razão que ele não la roure puissance des moyens de cornmunication"
se compreende a si mesmo: "cette lueur d'ingénuité et de destin Ora, reduzir o "finito" aos meios de comunicação que defi-
qui trahit le fait qu'ils ne savent pas qui ils sonr" niram a terra é esquecer o que são os meios de posse. Além disso,
Claro que, para o racionalismo francês, o selvagem não sabe e essa circularidade não é só de agora. Já era assim desde o início.
o europeu sabe. Para esse mesmo racionalismo, só se pode pensar a Começou assim para ser isso. O discurso da descoberta, desde a
compreensão na essência: se eu não compreendo o índio, é porque vua inauguração, apaga a diferença. Ele não precisou acumular para
ele não se compreende; é da sua "essência" a incompreensão. Ela está isso. Essa fala de Baudrillard se pretende crítica sobre o "discurso
já-lá. O que, aliás, coloca a questão da compreensão no "objeto", sobre o outro", mas se esgota no interior do mesmo.
constituindo-se, assim, em mais um exemplo do que chamamos E a incompreensão, também aí, tinge-se das cores imaginárias
conteudismo.' européias:

Au désir propre à la découverte se substitue la tentation de l'exil dans le


Além d.1 quesrào da an.ilise em geral, vale ,l pena mencionar ,l quevr.io ruais específica do
dé,ir de l'autre et desa traversée [ ... ] Atterrir dans une ville nouvelle, dans
objeto nessa perspectiva da crítica ao conteúdo. Ser "objeto" de pesquisa não ~ignific,t,
por si, um rcb.iixarnenro. E enga1um-se os que, com seus pruridos tora de lugar, propõem
1111e langue étrangcre c'est me retrouver soudain ici et nulle part ailleurs.
chamá-los de "sujeitos" de pesquisa. É o ser observado e o observar que trazem .1 cspessur,1
de uma história que já tem em si uma direção: a do superior para o inferior. O observado
lembrar que Lévi-Strauss, embora não tivesse vindo para o Brasil como antropólogo, fez
aparece como ser exótico (o diferente). Como estrangeiro. Como colonizado. Interessante
.mrropologia por causa dos índios. Aí o objeto qualifica o método.

277
TERRA À VISTA

Eu gostaria de ouvir isso no meio da Amazônia, para ver o IV. Corpus e corpo do discurso
gosto (sentido) que tem. Onde é que esse enunciado pode ter uma
realidade tal, senão no discurso da colonização?
Voltamos, assim, à questão da compreensão.
A noção de incompreensão, tal como está formulada nos autores
que citamos, pode levar a considerações de natureza psicológica, e
mesmo psicanalítica. Para nós, elas estão, no contexto teórico em
que aparecem, vinculadas à "interpretação".
Pensando a relação entre compreensão, incompreensão e inter-
pretação, o que temos a dizer é que é preciso distinguir o fato de
que a compreensão é teórica e a interpretação é ideológica. Isto é,
a interpretação trata da atribuição de sentidos determinados por
posições "x'' ou "y". Ela já se dá no interior do jogo de sentidos de
uma formação discursiva determinada: na relação de formações O conjunto destas reflexões aponta para a questão da historici-
discursivas, interpreta-se uma pela outra, definindo-se os seus limi- dade da/na linguagem e da sua leitura. Podemos considerar esse
tes. Na compreensão dos sentidos, ao contrário, apreende-se esse conjunto de trabalhos na perspectiva da leitura enquanto leitura
jogo das formações discursivas e da delimitação dos seus bordos: de arquivos, ou, como diz Pêcheux (1982), são trabalhos que se
compreender é saber que o sentido pode ser outro. propõem a reconstrução da história desse
Do outro lado, encontrar a voz do brasileiro é encontrar a voz
capaz de trans-figurar em "outro" o que encontra em seu contato
2
vysteme diflércnriel des gestes de lecture sous-jacenrs, d.ins la consrruction
com a cultura colonizadora, com a língua que domestica, com os mêmc de l'archive, dans l'abord des documents er la rnanierc deles saisir,
"objetos" da colonização que viajam de lá para d: na música, por d.1rn les pratiques silencicuscs de lecrure "sponranée" rcconstituables ,\ partir
exemplo, a banda de pífanos transfigura instrumentos e o "jeito" de lcurs cffets dans l'écrirure: il s'agirait de rcpérer les évidences pratiques
de tocar, inaugurando uma outra musicalidade;' na construção da qui organi,ent ces lectures, plongeant la "lecture" interprétarive qui est

"unidade nacional", se o português brasileiro transfigura o "tupi", déj.\ une écriture. Ainsi commencerait à se constituer un esp,1ce polémique
dl'5 nr.tniércs de [ire, une description du "travai!" de l'archive en tant que
a língua brasileira transfigura o português europeu; as notas de
r.tpport de l'archivc à clle-même dans une série de conjoncrures, travai! de
rodapé, nas traduções brasileiras dos relatos europeus, são um
l.1 rnémoire historiquc en perpétuel aflronrernenr avec elle-rnêmc.
dos indícios do que transfigura o discurso das descobertas em
discurso das origens; o imigrante transfigura a sua cidadania; a
Isso tudo está articulado a uma outra face da leitura de arquivos:
fala do discurso fundador transfigura o sem-sentido em sentido
"il s'agit de cet énorme travai! anonyme, fastidieux mais nécessaire,
e assim por diante.
,\ travcrs leguei les appareils de pouvoir de nos sociétés gerent la
Aqui. a "rr.insfiguraçáo" corresponde. do lado de c.i, cm um.i voz que resiste, ,10 que
mérnoire collective" (Pêcheux, idem).
ch.un.unov - no c.ipírulo "A Dança d,1:> Gr.un.iticas" - J "c.u icaruriz.içáo" nu im,tginJrio Conseqüentemente, tem-se uma divisão entre alguns poucos que
curopcu do Lido de li
têm autoridade para ler, falar, escrever por conta própria e rodos
Agr.uleço .10 \X/.1.,hingron .1 oportunidade devse exemplo que colhi em uma conversa viva no
.1eroporto de Maceió, Lle é um dos que trabalham no v:10 dessa voz, dcss.1 musicalidade. m outros que repetem os gestos da cópia que apagam o sujeito-

279
TERRA À VISTA CORPUS E CORPO DO DISCURSO

leitor em sua renúncia de "toute pretention à l'originalité, sur cet agregadas. Não são apenas acréscimos casuais, ocasionais. A "con-
effacement de soi dans la pratique silencieuse d'une lecture vouée tinuidade histórica" tem o mesmo estatuto da "ilusão referencial",
au service d'une Église, d'un Roi, d'un État, ou d'une Enterprise" enquanto construções imaginárias.
(Pêcheux, ibid.). Com efeito, não há sentidos eternos. Há sentidos eternalizados.
É na articulação entre o sistema diferencial dos gestos de leitura, E é preciso "supporter d'ébranler la région du sens qui disjoint le sé-
que estão na base da construção do arquivo, e o trabalho que gere rieux (l'utile, l'efficace, l'opératoire) du "non-sens" réputé dangereux
a memória coletiva que estamos procurando intervir, na medida et irresponsable" (Pêcheux, ibid. ), para intervir no repetível.
em que visamos explicitar, com as análises que fizemos, o modo É a essa aventura, a essa viagem ao que parece ainda não ter
de funcionamento desses "gestos de leitura". sentido, que estamos referindo essa voz possível que se produz
Pêcheux (1982.b) dirá que "uma palavra por outra" é a definição toda vez que sentidos mal administrados irrompem em um outro
da metáfora, mas é também o ato falho. E, definindo as práticas lugar, esboçando o "gesto" de ser brasileiro.
ideológicas como reguladas por rituais, afirmará que não há rituais Se essa é a forma de se estar presente na relação de vozes que
sem falha. se travam em nosso continente, há também uma forma de estar
Entendemos essa afirmação como a possibilidade de atingir na relação entre regiões, dessa vez não geográficas, mas epistemo-
pontos de resistência no dizer: "cornmencer à prendre congé du lógicas.
sens que reproduit le discours de la domination, en sorte que de Foi procurando romper com a concepção instrumental tra-
l'irréalisé advienne en formam sens de l'intérieur du non-sens" dicional da linguagem que Pêcheux propôs a análise de discurso.
(Pêcheux, idem). Para tal, como diz P. Henry ( 1990 ), ele concebeu esse seu sistema
A transgressão das fronteiras pode fazer irromper a voz que como uma "espécie de cavalo de Tróia destinado a ser introduzido
está na espreita. nas ciências sociais para aí produzir uma reviravolta ( algo análogo
O lapso, diz Pêcheux: ao que Foucault tentou com sua 'arqueologia' para a história das
idéias)".
[ ... ] peut tourner au discours de révolre ( ... ): !e moment imprévisible De certo modo, seu intento foi alcançado, pois a maior parte
ou une série hétérogêne d'eflets individueis entre en résonance et produit dos pesquisadores que utilizam a análise de discurso passa a seco-
un événement bistorique rompam le cercle de la répétirion" [ibid. ].
locar questões que não teriam colocado se não tivessem recorrido
.1 ela. Mesmo se, como diz P. Henry, essas questões permanecem
O discurso (olhar) que nos categoriza pelo apagamento, como sem respostas.
sujeitos a-históricos, é um discurso (olhar) histórico. Produtor, pois, É isso, afinal, o principal para quem trabalha com linguagem:
de efeitos de memória e que simula vir do passado para o presente não atravessá-la sem se dar conta da sua presença material, da sua
o que é projeção do presente sobre o passado. Estamos, no campo espessura, da sua opacidade, da sua resistência.
do discurso, naquilo que chamamos de efeito de pré-construído: o
estabelecimento do já-lá, do efeito do repetível como já-dito. Essa
repetição tem a forma de processos de significação que aparecem
como sendo os mesmos, mas em "circunstâncias" diferentes. Não
existe isso em discurso. As circunstâncias são constitutivas e não

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