Anocaodetexto ADAM 2022

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Tradução

Maria das Graças Soares Rodrigues


João Gomes da Silva Neto
Luis Passeggi

Revisão técnica da tradução


João Gomes da Silva Neto
Jean-Michel Adam

A noção de texto
Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues
João Gomes da Silva Neto
Luis Passeggi

Revisão técnica da tradução


João Gomes da Silva Neto
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Revisão
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Diagramação e Capa
Victor Hugo Rocha Silva

Imagem editada da Capa


Ryunosuke Kikuno em Unsplash
Jean-Michel Adam

A noção de texto
Tradução
Maria das Graças Soares Rodrigues
João Gomes da Silva Neto
Luis Passeggi

Revisão técnica da tradução


João Gomes da Silva Neto

Natal, 2022
Fundada em 1962, a EDUFRN permanece dedicada à
sua principal missão: produzir livros com qualidade
editorial, a fim de promover o conhecimento gerado na
Universidade, além de divulgar expressões culturais do
Rio Grande do Norte.

Publicação de tradução financiada com recursos do Fundo de Pós-graduação (PPg-


UFRN), conforme Edital nº 2/2019-PPG/EDUFRN/SEDIS, para a linha editorial
Técnico-científica. A autorização da publicação em língua portuguesa foi realizada pelo
autor, sem ônus para a UFRN.

Coordenadoria de Processos Técnicos


Catalogação da Publicação na Fonte.UFRN / Biblioteca Central Zila Mamede

Adam, Jean-Michel
A noção de texto [recurso eletrônico] / Jean-Michel Adam ; tradução: Maria
das Graças Soares Rodrigues, João Gomes da Silva Neto e Luis Passeggi ; revisão
técnica da tradução: João Gomes da Silva Neto. – Dados eletrônicos (1 arquivo :
4360 KB). – Natal, RN : EDUFRN, 2022.

Modo de acesso: World Wide Web


<http://repositorio.ufrn.br>.
Título fornecido pelo criador do recurso
ISBN 978-65-5569-190-0

1. Análise do discurso. 2. Linguística do texto. I. Rodrigues, Maria das Graças


Soares. II. Silva Neto, João Gomes da. III. Passeggi, Luis. IV. Título.

CDD 401.41
RN/UF/BCZM 2021/37 CDU 81'42

Elaborado por: Jackeline dos S.P.S. Maia Cavalcanti – CRB-15/317

Todos os direitos desta edição reservados à EDUFRN – Editora da UFRN


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APRESENTAÇÃO

A obra de Jean-Michel Adam, La notion de texte (2021),


cuja tradução ora apresentamos, configura-se, desde já, como
uma contribuição fundamental para os estudos linguísticos
do texto. Acrescentamos: uma referência incontornável.
Ela se organiza conforme dois movimentos – retrospectivo
e prospectivo – retomando fundamentos conceituais e, também,
avançando e aprofundando propostas mais recentes. Cada um
desses movimentos apresentou diferentes desafios tradutórios.
Com efeito, A noção de texto aborda, nas suas três primei-
ras partes, os conceitos de Texto, Língua e Gramática, assim
como os de Texto e Discurso, e o Texto como unidade delimitada,
problematizados com a erudição e brilhantismo habituais
do autor. Neste ponto, a tradução não apresentou maiores
dificuldades, pelo fato de se tratar, em geral, de noções bem
estabelecidas na linguística de texto, ainda que pontualmente
enriquecidas com novos exemplos e observações de J.-M. Adam.
A quarta e quinta partes da obra, que consideramos
como prospectivas, se bem que já tenham sido postuladas em
trabalhos recentes de J.-M. Adam, dizem respeito ao entre-
laçamento complexo da textura, a saber, os planos de análise
(Intra-P, Inter-P e Trans-P) e a estrutura transfrástica/trans-
periódica: os níveis de estruturação textual e sua articulação
(níveis microtextual, mesotextual e macrotextual). Aqui, os
desafios para os tradutores foram maiores, no sentido em que
a terminologia gramatical de língua francesa não tem exata
correspondência com a terminologia em língua portuguesa,
não obstante sua aparente “transparência”. Um exemplo: o
conceito de período apresentado pelo autor – que não se usa
na terminologia gramatical francesa – não corresponde à
definição da nomenclatura gramatical de língua portuguesa,
fundamentada na oração ou orações escritas, delimitadas por
sinais tipográficos fortes. A solução encontrada foi manter a
tradução literal dessa e outras noções “transparentes”, posto
que não caberia uma discussão desses conceitos.
Nesse sentido, utilizamos sempre – sem pretender, natu-
ralmente, adentrar nos Estudos da Tradução – os conceitos de
“equivalência formal” e “equivalência dinâmica/funcional”
propostos por E. Nida para outros contextos tradutórios.
De forma prática aplicamos o princípio: “equivalência formal
sempre que possível, equivalência dinâmica quando necessário”.
A sexta e última parte da Noção de Texto é, certamente,
claramente prospectiva, no sentido em que amplia a reflexão
para os regimes mediológicos e outras formas de textualidade:
orais, escriturais, icônicas, digitais, introduzindo novos con-
ceitos como oralituras e iconotextos, adentrando firmemente
no campo das textualidades digitais. Nessa parte da obra con-
firma-se, além da proposta inovadora, uma das principais
características da abordagem de Jean-Michel Adam, a saber,
a descrição empírica dessas textualidades, detalhadamente
analisadas na sua natureza e funcionamento, com perspectivas
que exigem a apropriação de ferramentas conceituais que vão
além das especificamente linguísticas, na direção da semiótica/
semiologia. Algumas escolhas tradutórias são, aqui, mais con-
troversas e os tradutores têm plena consciência dessa situação.
Finalmente, os tradutores esperam ter realizado um
trabalho congruente com a qualidade do texto original – para
além das nossas inevitáveis falhas –, colocando à disposição
dos leitores em língua portuguesa esta obra fundamental do
grande linguista que é Jean-Michel Adam.
Por isso, só temos a agradecer a oportunidade que nos
foi dada.

Profa. Maria das Graças Soares Rodrigues


Prof. João Gomes da Silva Neto
Prof. Luis Passeggi
SUMÁRIO

A NOÇÃO DE TEXTO

1 O TEXTO, A LÍNGUA E A GRAMÁTICA ....................14


1.1 IMPORTÂNCIA EPISTEMOLÓGICA E METODOLÓGICA
DO TEXTO 14
1.2 DE HJELMSLEV ÀS GRAMÁTICAS DE TEXTOS 17
1.3 GRAMATICALIZAR OU NÃO, O CONCEITO DE TEXTO 22

2 TEXTOS E DISCURSOS: OPOSIÇÃO


E COMPLEMENTARIDADE ........................................27
2.1 TEXTUALIDADES ESCRITURAIS E ORAIS 27
2.2 OS TEXTOS E OS DISCURSOS 32

3 O TEXTO COMO TODO UNIFICADO E DELIMITADO .41


3.1 FRONTEIRAS DO TEXTO: O PERITEXTO 42
3.2 A IMPRECISÃO DAS FRONTEIRAS E OS
AGRUPAMENTOS COTEXTUAIS 45
4 O ENTRELAÇAMENTO COMPLEXO DA TEXTURA ...53
4.1 RETORNO À ETIMOLOGIA 53
4.2 O NÍVEL MICROTEXTUAL DE ESTRUTURAÇÃO 66
4.2.1 Do intra-P ao inter-P 66
4.2.2 Conexidade e coesão semântica [S] 68
4.2.3 Conexidade sustentada por “conectores” [C] 76
4.2.4 Ligações operadas pela materialidade significante
gráfica e fônica [M] 80
4.2.5 Ligações baseadas na recuperação inferencial das
informações implícitas [i] 84
4.2.6 Coesão e transições enunciativas [É] 88
4.2.7 Sequenciação dos atos de discurso [A] 90
5 DA TEXTURA À ESTRUTURA
TRANSFRÁSTICA/TRANSPERIÓDICA 93
5.1 O NÍVEL MESOTEXTUAL 93
5.2 O NÍVEL MACROTEXTUAL 107
5. 2. 1 Estruturação reticular e configuracional 108
5.2.2 Os planos de texto 112
6 REGIMES MEDIOLÓGICOS E FORMAS
DE TEXTUALIDADE 120
6.1 OS REGIMES ORAIS DE TEXTUALIDADE 125
6.1.1 Textualidades orais poligeradas: o texto conversacional (T1) 126
6.1.2 Textualidades orais monogeradas (T2) 129
6.1.3 Na junção das textualidades orais e escriturais:
as oralituras (T6) 131
6.2 OS REGIMES ESCRITURAIS DE TEXTUALIDADE 134
6.2.1 Textualidades escritas no sentido estrito (T3) 134
6.2.2 Textualidades iconotextuais (T7) 136
6.2.3 Entre escritural e digital: hiperestruturas textuais (T5) 142
6.3 DO TEXTO AO TEXTO DIGITAL NATIVO: OS REGIMES
DIGITAIS DE TEXTUALIDADE 145
CONCLUSÃO 152
OBRAS DE REFERÊNCIA (ORDEM CRONOLÓGICA) 153

REFERÊNCIAS.........................................................154
A NOÇÃO DE TEXTO

“A noção de texto seria, segundo


alguns, impossível de definir.” 
(WEINRICH, 1973, p. 13)

O primeiro obstáculo encontrado por toda tentativa de


definição da noção de texto reside na extrema diversidade e
heterogeneidade dos textos possíveis:

Que definição seria, ao mesmo tempo, aplicável


e fecunda para abarcar textos tão diferentes
como uma tragédia de Racine, um artigo de
jornal esportivo, um tratado de anatomia
humana ou de bioquímica, um editorial polí-
tico, uma monografia publicada nas resenhas
da Academia de Ciências, um romance e uma
tese de história? (MOLINO, 1989, p. 41).

11
A noção de texto

E o que dizer das textualidades orais (monogeradas e


poligeradas) e das textualidades digitais? A essa diversidade,
junta-se outra dificuldade: o conceito de texto é o objeto legítimo
de disciplinas bastante diferentes como a retórica, a hermenêu-
tica, a estilística, a filologia, a textologia, a poética, a semiótica,
as ciências da informação e da comunicação, a genética, a
lógica e a filosofia. Além disso, já no final da década de 1920,
Vološinov (2010) não questionava a própria possibilidade do
estabelecimento de um conceito linguístico de texto?

A construção da frase complexa (o período),


eis tudo que a Linguística pode levar em
conta. Quanto à organização do enunciado
completo, ela a remete à competência de
outras disciplinas: a retórica e a poética.
A Linguística não tem método para abor-
dar as formas de composição de um todo.
(VOLOŠINOV, 2010 [1929], p. 281).

É no ambiente de uma frase que o linguista


sente-se mais à vontade. Quanto mais se
aproxima dos limites da fala, do enunciado
enquanto um todo, menos segura é sua
posição. Ele não tem nenhum meio para
abordar a totalidade; nenhuma das catego-
rias linguísticas convém para definir uma
totalidade. (Id., p. 353).

12
A noção de texto

Sessenta anos mais tarde, na revista La linguistique,


Françoise-Geiger (1988, p. 7), considerando a definição do
texto como “inadequada”, acrescenta ainda: “Em todo caso,
é evidente que o linguista não pode se restringir aos limites
estreitos da frase e deve, por sua conta e risco, aventurar-se
ao objeto-texto.”. Para enfrentar esse desafio e, apesar de
tudo, traçar os contornos de uma definição, questionaremos,
inicialmente, as relações entre texto, língua e gramática (1).
O questionamento da redução tradicional do conceito de
texto à esfera da escrita levar-nos-á a redefinir os conceitos
de texto e de discurso (2), depois, a examinar a questão das
fronteiras peritextuais e da completude de um todo textual
e de cada uma de suas partes (3). Partindo da etimologia
do “tecido do texto”, identificaremos a complexidade da
textura microtextual infra- e interfrástica/interperiódica (4),
antes de definirmos as unidades transfrásticas/transperió-
dicas mesotextuais e macrotextuais (5). A última parte será
dedicada às diferentes formas de textualização que resul-
tam da combinação dos regimes mediológicos escrito, oral,
icônico e digital (6)1.

1 Agradeço a Solange Ghernaouti, por suas observações fundamentadas


sobre os textos digitais.

13
A noção de texto

1 O TEXTO, A LÍNGUA E A GRAMÁTICA

1.1 IMPORTÂNCIA EPISTEMOLÓGICA


E METODOLÓGICA DO TEXTO

O próprio termo “linguística textual” foi introduzido


por Coseriu (1955-1956), em Determinación y entorno: dos
problemas de una lingüística del hablar. Nessa perspectiva, o
conceito de texto torna-se um primeiro conceito da linguística,
em conformidade com o princípio enunciado por Saussure
(1922), em 1894, e comentado por Benveniste (1965, p. 30),
em um artigo em que retraça o ensino do linguista genebrino
na Escola de Altos Estudos2:

Antes de tudo, não se deve renunciar ao princí-


pio segundo o qual o valor de uma forma está
inteiramente no texto em que ela ocorre, isto
é, no conjunto das circunstâncias morfológi-
cas, fonéticas, ortográficas, que o circundam
e esclarecem (SAUSSURE, 1922, p. 514).

Weinrich (1994, p. 308) disse isso de outra forma, na


última edição de Tempus: “Os textos de uma língua não estão,
portanto, no final ou mesmo muito além da gramática, mas
em seu ponto de partida.”3. O que seus trabalhos sobre os
tempos verbais ilustram:
2 École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), instituição francesa
de ensino superior e pesquisa em ciências sociais, situada em Paris. [N. T.].
3 “Die Texte einer Sprache stehen also nicht am Ende oder gar weit jenseits
der Grammatik, sondern an ihrem Anfang”.

14
A noção de texto

[…] as formas temporais nos vêm inicialmente


– e retornam a nós – por meio dos textos. É
aí que elas desenham com outros signos, e
também com outros tempos, um complexo de
determinações, uma rede de valores textuais.
(WEINRICH, 1973 [1964], p. 13).

Mais recentemente, Neveu (2006, p. 86) considera o texto


como “um observatório da língua” e imputa a esse conceito
uma tripla função definidora “de estabelecimento, atestação
e instituição de acontecimentos linguísticos”. Bronckart
(2008, p. 39) segue no mesmo sentido: “Um procedimento
de ciências da linguagem deve abordar, inicialmente, os
textos, na medida em que constituem as realizações empíricas
primeiras da ordem linguística”. Os dois unem-se, assim, a
Rastier (1989, p. 5), que faz do texto “não apenas o objeto
empírico, mas o objeto real da linguística”. É todo o paradoxo
da linguística textual:

[...] parte menos desenvolvida e menos reco-


nhecida da disciplina, a linguística textual
constitui, de fato, o fundamento empírico,
metodológico e teórico de todo o edifício
disciplinar, tanto é verdade que as línguas
só são acessíveis pelos textos, e a linguagem,
pelas línguas [...]. (RASTIER, 2008, p. 3).

No entanto, não devemos ceder à tentação da evidência


natural do texto, denunciada tanto por Charles (1995, p. 40)
como por Chartier (1998, p. 279): os textos são construções

15
A noção de texto

saídas de procedimentos mediadores que asseguram sua


circulação. É o que os conceitos de “texto grama” (contração
de texto e programa [software]) e arquitecto (de arkhè, origem
e comando), desenvolvidos por Davallon et al. (2003), dão
conta, sublinhando a importância da ferramenta técnica que
permite produzir um texto digital:

Do banal tratamento de texto ao programa de


escrita multimídia, não se pode produzir um
texto na tela sem instrumentos de escrita situ-
ados na origem. Assim, o texto é imbricado
com textos de mesma natureza, ao infinito,
em outra estrutura textual, um “arquiteto”,
que o rege e lhe permite existir. [...] Em outras
palavras, o texto nasce do arquiteto que baliza
sua escrita. (DAVALLON et al., 2003, p. 10).

A teoria do texto deve integrar uma atenção metodoló-


gica às operações a que os enunciados são submetidos, para
se tornarem textos de um corpus. Isso é muito importante,
quando do estabelecimento dos grandes corpora digitais e da
transcrição de interações conversacionais, mas é válido, do
mesmo modo, para a questão da passagem do manuscrito/
datilografado [digitado] para o livro, para certo artigo em
um jornal ou em uma revista, para o cartaz impresso etc.
O estabelecimento filológico dos textos reunidos em um
corpus e a observação dos estados de variação do “mesmo”
texto são tão importantes, no caso das versões pronunciadas
e escritas de um discurso político (ADAM, 2011a, p. 251-268;

16
A noção de texto

2016), quanto aqueles das edições e das traduções dos textos


literários (ADAM, 2018), da passagem da informação de uma
agência de notícias aos diferentes artigos jornalísticos sobre
um mesmo acontecimento e da retomada de um mesmo
artigo em vários jornais (SIMON, 2011). Com o digital, as
potencialidades eletrônicas dos arquivos são os elementos de
textualidade potenciais, estabilizados em um instante t, mas
modificáveis a todo instante, para formarem, assim, tantos
textos em gênese ou em variação.

1.2 DE HJELMSLEV ÀS GRAMÁTICAS DE TEXTOS

Hjelmslev (1971), em Prolégomènes à une théorie du


langage, é o primeiro linguista da época moderna a haver atri-
buído um lugar importante ao conceito de texto nas ciências
da linguagem (CONTE, 1985; RASTIER, 1997; BADIR, 1998):

A teoria da linguagem interessa-se por textos,


e seu objetivo é indicar um procedimento
que permita o reconhecimento de um dado
texto, por meio de uma descrição não contra-
ditória e exaustiva desse texto. Mas ela deve,
também, mostrar como se pode, da mesma
forma, reconhecer qualquer outro texto da
mesma suposta natureza, fornecendo-nos
instrumentos utilizáveis para tais textos.
(HJELMSLEV, 1971, p. 26-27).

17
A noção de texto

Como o mostra Kyheng (2005), os capítulos de 1 a 8 de


Prolégomènes (HJELMSLEV, 1971), consagrados aos aspectos
teóricos da teoria da linguagem, são dominados pelo conceito
descontinuísta de textos [tekster], objeto empírico contável. Os
capítulos de 9 a 20, que tratam dos princípios e elementos de
análise linguística, privilegiam o conceito continuísta de texto
[tekst], soma de tudo que foi escrito e dito em uma língua,
“[...] dado primário absoluto, a partir do qual começa toda
análise linguística.” (KYHENG, 2005). A ambição é extrema:

Não é suficiente que a teoria da linguagem


permita descrever e construir todos os textos
possíveis de uma dada língua; é preciso ainda
que, sobre a base dos conhecimentos que a teo-
ria da linguagem contém, em geral, ela possa
fazer o mesmo pelos textos de não importa
que língua. (HJELMSLEV, 1971, p. 27).

Naturalmente, percorrer todos os textos


existentes é humanamente impossível, e, de
resto, seria inútil, porque a teoria deve ser
igualmente válida para textos que ainda não
foram realizados. (Ibid., p. 28).

As primeiras entradas do conceito de texto na lexicografia


linguística de língua francesa apoiavam-se em Hjelmslev
(1971). É também o caso do Dictionnaire de linguistique, de
Dubois et al. (1972, p. 486), e do Dictionnaire encyclopédique
des sciences du langage, de Ducrot e Todorov (1972, p. 375). Os
trabalhos, em seguida, tomam duas direções. Greimas (1976b)

18
A noção de texto

ampliou as teses de Hjelmslev, no sentido de uma semiótica


do texto e de uma semiótica textual (GREIMAS, 1976a), ou
seja, a passagem de uma noção linguística de texto a uma
noção semiótica muito mais geral (DE ÂNGELIS, 2018a, p.
140). A gramática gerativa e transformacional influenciou as
gramáticas de texto anglo-saxônicas, que tinham, igualmente,
a ambição de descrever e de produzir todos os textos bem
formados das línguas (ISENBERG, 1970; 1971; LANG, 1972;
DIJK, 1972; 1973; PETÖFI; REISER, 1973; WERLICH, 1976;
REISER, 1978). Era ainda o caso, em bases linguísticas e
lógicas, da “Teoria parcial do texto”, de Petöfi (1975).
A gramática do texto de Slakta (1975; 1980; 1985), por
outro lado, apoiou-se na perspectiva funcional da frase do
Segundo Círculo de Praga (MATHESIUS, 1929; FIBRAS, 1964;
DANEŠ, 1974). Direção seguida, igualmente, por Combettes
(1983), em Pour une grammaire textuelle: la progression théma-
tique, e por Carter-Thomas (2000), em La cohérence textuelle.
Esses trabalhos têm por interesse definir o texto como o lugar
de uma tensão permanente e de um equilíbrio precário entre
retomada-repetição de uma informação colocada como conhe-
cida (o tema) e progressão, pelo aporte de novas informações
(rema, o que é dito a respeito do tema, e focalizado, foco de
informação). Combettes (1986, p. 69) resume muito bem esse
equilíbrio instável: “A ausência de pontos de ancoragem que
remetem a um ‘já dito’ levaria a uma sequência de frases que,
a mais ou menos longo prazo, não teria nenhuma relação entre

19
A noção de texto

si.”. Colocando o velho problema da ordem das palavras na


frase (WEIL, 1879), é, sobretudo, a questão dos diversos tipos
de encadeamentos interfrásticos que esses trabalhos abordam.
Interrogando-se sobre o que faz, de uma sequência de frases,
um texto, eles encontram uma ideia de Blinkenberg (1928):

Em sua maioria, as frases não são isoladas,


elas são encadeadas umas às outras; uma
frase leva a uma outra, ela a desencadeia; e
o ponto de chegada de uma frase é, muito
frequentemente, a noção inicial da frase
seguinte; o predicado da primeira torna-se
o sujeito da segunda, e assim sucessivamente;
ou, em outros casos, um mesmo sujeito
recebe uma série de atributos sucessivos.
(BLINKENBERG, 1928, p. 30).

Reconhecem-se aí os princípios da tematização do rema


(progressão por tematização linear) e da continuidade temática
(progressão com tema constante). A combinação dessas duas
modalidades de progressão textual está bem ilustrada por essa
notícia curta de jornal, conhecida como fait-divers, redigida
por Félix Fénéon4, em 1906, no jornal parisiense Le Matin:

4 Félix Fénéon (1861-1944). Francês, anarquista, jornalista, escritor, crítico


de arte, tradutor.

20
A noção de texto

(1) Dormir no vagão foi mortal para o Sr. Émile Moutin, de


Marselha. Ele estava apoiado na porta; ela se abriu, ele caiu.

O rema de P1 (“Sr. Émile Moutin tornou-se tema de


P2, por pronominalização (“Ele”). O rema de P2 (“a porta”)
torna-se tema do enunciado seguinte (“ela”). À essa progressão
linear, sucede, na queda, uma volta ao tema pronominal de
P2 (“ele caiu”):
[P1] Dormir no vagão foi mortal para o Sr. Émile
Moutin, de Marselha [c1].

[P2] ELE estava apoiado na porta [c2];

ELA se abriu [c3],

Ele caiu [c4].

A segmentação das quatro cláusulas de comprimento


decrescente faz-se por meio de uma pontuação cada vez menos
forte, que gera uma aceleração do ritmo: [c1-12 palavras. c2-5
palavras; c3-3 palavras, c4-2 palavras.]. A separação de P1 e P2
explica-se pelo fato de que a informação principal é contínua,
na primeira frase gráfica. A segunda avança, narrativamente,
a cadeia causal, que conduz à morte da infeliz vítima, trazendo
uma resposta à questão “como ele morreu?”, sendo “Porque
ele estava dormindo”, menos uma resposta ao “porquê...?”,
do que uma espécie de enigma inicial que P2 esclarece.

21
A noção de texto

1.3 GRAMATICALIZAR OU NÃO, O CONCEITO DE TEXTO

Dizer que “O texto é, inicialmente, um objeto”, como


era o caso, por exemplo, nas entradas “Texto” e “Gramática
de texto” do Dictionnaire historique, thématique et technique
des littératures (DEMOUGIN, 1985-1986), já havia sido posto
em questão por Halliday e Hasan (1976):

Um texto é melhor pensado não como uma


unidade gramatical, em absoluto, mas sim
como uma unidade de tipo diferente: uma
unidade semântica. (op. cit., p. 293);
Um texto é uma unidade de língua em uso.
Não é uma unidade gramatical, como uma
cláusula5 ou uma sentença, e não é definido
pelo seu tamanho. (op. cit., p. 1);
Em outras palavras, não é, simplesmente, uma
grande unidade gramatical, algo do mesmo
tipo de uma sentença, mas diferindo dela em
tamanho – uma espécie de super sentença.
(op. cit., p. 293).6

5 Nossa tradução mantém a terminologia original, considerando, no entanto,


suas equivalências com a tradição terminológica gramatical em português:
“clause” (dos originais em francês e inglês), para oração (período simples),
e “sentence” (do original em inglês) e “période” (do original em francês),
para período composto.
6 “A text is best thought of not as a grammatical unit at all, but rather as a
unit of different kind: a semantic unit.”. (op. cit., p. 293); “A text is a unit of
language in use. It is not a grammatical unit, like a clause or a sentence; and
it is not defined by its size.” (op. cit., p. 1); “In other words it is not simply
a large grammatical unit, something of the same kind as a sentence but
differing from it in size – a sort of supersentence.”. (op. cit., p. 293).

22
A noção de texto

Jakobson (1963, p. 47) diz isso, de outro modo: “Na


combinação das frases em enunciados, a ação das regras
restritivas da sintaxe para [...]”. Essa posição é reafirmada
por Soutet (2005, p. 325):

No caso particular do texto, a relação do todo


com a parte não deriva do mesmo tipo de
previsibilidade que aquele que existe entre
cada uma das unidades subfrásticas e seus
constituintes imediatos.

Segundo um ponto de vista distribucional, se procedi-


mentos de segmentação e de comutação permitem estabelecer
classes e definir o morfema, o signo, o sintagma e a frase
como sequências ordenadas de fonemas, signos, morfemas e
sintagmas, “[...] não se vê bem o que poderia ser uma classe
distribucional de frases.” (SOUTET, 1995, p. 325). No exem-
plo (1), estudado anteriormente, foi visto que uma classe de
morfemas, como os pronomes pessoais de terceira pessoa
(“ELE” e “ELA”) assume uma função textual de retomada e
de ligação entre cláusulas, para além da fronteira do ponto,
e difere, assim, dos outros membros da classe morfológica
dos pronomes pessoais, à qual ela não se reduz, portanto.
No início de sua tese sobre a anáfora, precisamente,
Apothéloz (1995) escolhe falar de linguística textual, em vez
de gramática de texto. Ele pontua, assim, o fato de que

23
A noção de texto

A questão que se encontra no centro da linguís-


tica textual – e que, de alguma maneira, funda
sua problemática – é a que consiste em deter-
minar quais são os dispositivos linguageiros
que, no nível inter- e transfrástico, assumem
a sintaxe. (APOTHÉLOZ, 1995, p. 9-10).

Embora em seu livro, Le transphrastique, Stati (1990,


p. 12) tenha interesse apenas nos “encadeamentos de dois
enunciados e de duas réplicas dialogais”, ele renuncia ao
termo “sintaxe transfrástica (op. cit., p. 11). Essa é uma posição
contradita pela macrossintaxe das pesquisas do GARS7 e do
Groupe de Fribourg (2012), e, mais ainda, por Coseriu (2007),
que não hesitou em desenvolver uma gramática transfrástica
(“gramática transacional”), com a ambição de prolongar a
sintaxe e a gramática das línguas.
Mesmo assim, como dizem Desclés e Guentchev (1987,
p. 112), “Toda gramática do texto [deve], necessariamente,
apoiar-se em uma análise detalhada das formas e dos valores
dos marcadores gramaticais [...]”, é preciso levar em conta o
fato de que, como demonstrado por Lundquist (1980), o jul-
gamento de textualidade (texto versus não texto) está próximo
do julgamento de gramaticalidade (frase versus não frase), mas
também que as regras linguísticas possíveis de serem tiradas do
fato de que “[...] o agenciamento das partes do texto (as frases)
parece regido por expressões linguísticas contidas em certas
partes [...]” (LUNDQUIST, 1999, p. 72) não são suficientes.
7 “Groupe aixois de recherche en syntaxe” [Grupo de pesquisa em sintaxe
de Aix-en-Provence, Université de Provence, França]. [N. T.].

24
A noção de texto

Outros princípios entram em jogo – “princípios cognitivos” –,


a saber: esquemas e scripts, “Modelos Cognitivos Idealizados”,
de Lakoff (1987), “padrões para estruturas simbólicas integra-
tivas”, de Langacker (1991; 1999; 2008). Entre os numerosos
trabalhos que fizeram avançar a pesquisa, é preciso citar, ainda,
a abordagem textual e funcional da gramática de Givón (1998),
como também a Rhetorical Structure Theory (RST) [teoria da
estrutura retórica], de Mann e Thompson (1988), com suas
vinte e três relações entre cláusulas ou entre sequências, que
formam um parágrafo ou um texto (PERY-WOODLEY, 1993),
e, mais recentemente, a Théorie des Représentations Discursives
Segmentées (SDRT) [teoria das representações discursivas
segmentadas], de Busquets et al. (2001).
Para se engajar em uma extensão da gramática para fatos
mais vastos que a frase e o período e romper com as concepções
clássicas, centradas na boa formação de frases-tipo, é preciso
partir do fato de que as solidariedades morfossintáticas entre
unidades da língua têm apenas um alcance limitado. Uma vez
que se ultrapasse o limite do sintagma e do núcleo da frase, para
entrar nos domínios do interfrástico/periódico e do transfrástico/
trans periódico, outros sistemas de conexões aparecem, que se
apoiam em marcas cujo alcance pode ser distante. Ao assina-
larem que “[...] essa ou aquela unidade deve ser compreendida
como estabelecendo essa relação com aquela ou aquela outra
[...]” (CHAROLLES, 1993, p. 311), essas marcas linguísticas têm
por função pragmática incitar o destinatário-interpretante a
estabelecer pontes entre cláusulas ou segmentos textuais.

25
A noção de texto

Por exemplo, ainda em (1), além das anáforas de que


falamos, os tempos verbais assumem a narração do fait-divers e
instauram relações entre cláusulas que fazem, dessa sequência
de duas frases gráficas, uma narrativa:
[c1] Dormir no vagão foi mortal para o Sr. Émile Moutin,
de Marselha. [c2] Ele estava apoiado na porta; [c3] ela
se abriu, [c4] ele caiu.

O pretérito perfeito de c1, com o verbo ser, resume o


acontecimento e permite o deslocamento, em posição remática,
do nome da vítima, enquanto que a ação de dormir passa para
a posição temática e torna-se causa do verbo conjugado. O
pretérito mais-que-perfeito composto de c2 serve de apoio
descritivo (estado) à irrupção do drama contado pelos dois
pretéritos perfeitos (acontecimentos) de c3 e c4 (sobre o fun-
cionamento textual dessa distinção estado/acontecimento,
ver DESCLÉS; GUENTCHEV, 1987).
Compreende-se que Prandi (2007, p. 75) possa propor
passar “[...] da dimensão frástica, regida pela gramática, a
uma dimensão textual, regida pela coerência dos conceitos
suportados por meios coesivos apropriados.”. A teoria do texto
interessa-se, prioritariamente, por esses “recursos coesivos
especializados” (PRANDI, 2007, p. 81), a começar pelas marcas
de conexão que indicam posições: tal enunciado sendo temporal,
causal e argumentativamente colocado antes ou após outro,
hierarquicamente secundário ou mais importante que um

26
A noção de texto

outro (de modo que se pensa, por exemplo, na relação prótase


> apódose da teoria clássica). Essas ferramentas de conexão,
próprias às diversas línguas – como acima, os empregos dos
pronomes anafóricos e do par pretérito imperfeito-pretérito
perfeito –, fazem parte, claramente, da competência linguageira
dos sujeitos falantes, habituados a vê-las/ouvi-las em ação e a
tratá-las em gêneros de discurso diferentes.

2 TEXTOS E DISCURSOS: OPOSIÇÃO


E COMPLEMENTARIDADE

2.1 TEXTUALIDADES ESCRITURAIS E ORAIS

No capítulo “Qu’est-ce qu’un texte?”, de Du texte à l’ac-


tion, de Ricoeur (1986), a fórmula o texto é um discurso fixado
pela escritura enfatiza uma diferença: “O que é fixado pela
escritura é um discurso que, certamente, poderíamos haver
dito, mas que justamente escrevemos, porque não o dizemos.”
(RICOEUR, 1986, p. 138). Ao insistir sobre essa distinção,
o filósofo acaba por seguir a opinião corrente e a reservar a
palavra texto ao domínio da escrita, e a palavra discurso, ao
domínio da oralidade: “Essa libertação da escritura, que a põe
no lugar da fala, é o ato de nascimento do texto.” (Id. Ibid.). A
tradição textológica não diz outra coisa: “Não existe texto sem
inscrição.” (LAUFER, 1989, p. 11). É, por fim, igualmente, a
posição de Berrendonner (GROUPE DE FRIBOURG, 2012),

27
A noção de texto

no início do “capítulo 2” de Grammaire de la période. Após


haver afirmado que “[…] o fato linguístico primeiro é que
ocorrem interações verbais […]” e, em seguida, haver nomeado
discurso, “[…] o conjunto dos materiais semióticos postos
em ação pelos parceiros em uma interação […]” (op. cit., p.
21), Berrendonner reserva o nome de texto para os “registros
gráficos ou acústicos de sequências verbais enunciadas”.
Nessa perspectiva, o texto é apenas um avatar degradado do
discurso, o “[…] simples traço instrumental, frequentemente
grosseiro, em todo caso, fragmentário e descontínuo, das
organizações discursivas.” (Id. Ibid.).
Se, a título de exemplo, considerarmos a abertura do
discurso de política geral, pronunciado pelo primeiro ministro
francês Manuel Valls, em 8 de abril de 2014, na Assembleia
Nacional, é evidente que a realização discursiva histórica8
desse início de discurso é, apenas muito parcialmente, recu-
perada por essas duas transcrições que devem ser, tanto uma
quanto outra, ponderadas:

(2) Senhor presidente,


Senhoras, senhores deputados,
Demasiado sofrimento, pouca esperança, essa é a
situação da França.
E é consciente dessa realidade que eu me apresento
diante de vós. [...].

8 Disponível no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=vY7xOUZoN_s

28
A noção de texto

(2bis) Senhor presidente^ // Senhoras e Senhores deputados v///


De / demasiado sofrimento^// pouca / esperança / essa
/ é a situação / da França.
[agitação da assistência e intervenção do presidente da
Assembleia: Continue / por favor, que se sobrepõe à
primeira cláusula do período seguinte]
E é consciente^// dessa realidade^// que eu me apresento
// diante de vós v ///
[durante a segunda parte da frase, o orador afasta para a
esquerda a primeira folha das anotações que está lendo]

A despeito das falhas manifestas, essas duas textualiza-


ções tornam possível a análise de certos fatos linguísticos. A
versão escrita oficial (2) foi publicada com um destaque em
negrito que será explicitada pela análise. A transcrição de
trabalho (2 bis) deixa de lado os gestos de Valls: seus movi-
mentos de cabeça, que vão de suas anotações a breves olhares,
vagamente dirigidos em direção a seu auditório, e, sobretudo,
o fato de que ele afasta a folha de suas anotações, enquanto
pronuncia o fim do segmento citado. Nossa transcrição desse
segmento de escrita oralizada permite identificar unidades
concluídas por um abaixamento da voz (v), seguido de uma
pausa bastante marcada (///). As outras pausas dão conta da
marcação de palavras rápidas, com muito poucas ligações, que
caracteriza a elocução de Manuel Valls e o distingue das liga-
ções múltiplas do presidente Macron (para uma comparação
com a frase de André Malraux, ver ADAM, 2019, p. 49-54).
Os cortes breves são indicados por uma barra (/) e, por duas
barras (//), as pausas mais longas, geralmente acompanhadas

29
A noção de texto

de uma subida tonal (^), mais ou menos marcada, que indica


que um período não está provavelmente encerrado.
Para pensar a unidade da língua, é impossível limitar a
língua escrita à transcodificação da língua oral e reduzir o
texto à transcodificação-inscrição do que seria o discurso.
Às definições que dão a entender que o oral não faria texto,
poderíamos objetar que, de um ponto de vista textual, não há
nenhuma diferença entre um provérbio oral e um provérbio
escrito, entre um slogan político ou publicitário escrito e um
slogan político ou publicitário oral. Bastante submetidos a
restrições formais, esses gêneros discursivos comuns na escrita
e na oralidade diferem pela materialidade de sua enunciação: os
recursos sonoros e de acentuação da oralidade e os da espacia-
lidade topográfica do canal visual. Elas derivam, certamente,
de dois regimes distintos de uso da língua, mas fazem texto,
tanto um quanto outro. Pode-se dizer, com um especialista das
tradições orais, como Zumthor (1983, p. 125), que,

Do ponto de vista linguístico, oral ou escrito,


um texto permanece um texto, resultante dos
métodos críticos (quaisquer que sejam eles)
dos quais ele é, como texto, por definição,
o objeto. Ele comporta, necessariamente,
marcas deste estatuto [...].

Enfatizando mais suas propriedades comuns, numerosos


linguistas não separam texto escrito e texto oral. É o caso de
Coseriu (2007, 86), que definiu o texto como “[...] a série de

30
A noção de texto

atos linguísticos conexos que um dado locutor realiza, em uma


situação concreta que, naturalmente, pode tomar a forma
falada ou escrita.”. Halliday e Hasan (1976) substituem a
“série de atos linguísticos conexos” por propriedades de tudo
unificado e de coesão, que caracterizam tanto os textos orais
quanto os textos escritos, qualquer que seja sua extensão:
“A palavra TEXTO é usada em linguística para referir qual-
quer passagem, falada ou escrita, de qualquer extensão, que
forma um todo unificado.”9 (HALLIDAY; HASAN, 1976, p. 1).
Embora minimalista e insistindo, sobretudo, na linearidade da
língua, a definição que Weinrich (1989) fornece do conceito
de texto expande a de tudo unificado, valendo tanto para o
escrito quanto para o oral:

Toda interlocução desenrola-se no eixo do


tempo, entre um início e um fim. No início,
os interlocutores em presença assumem uma
posição de comunicação que lhes convém. [...]
No final da interlocução, a posição de comu-
nicação é abandonada, mas a LINEARIDADE
da interlocução pode, além disso, ser deter-
minada e estruturada por interrupções mais
ou menos marcadas. Chamamos TEXTO o
enunciado linear que está compreendido entre
duas interrupções perceptíveis da comunica-
ção e que vai dos órgãos da fala ou da escritura
do emissor aos órgãos da audição e da vista
do receptor. (WEINRICH, 1989, p. 24).

9 “The word TEXT is used in linguistics to refer to any passage, spoken or


written, of whatever length, that does form a unified whole.”.

31
A noção de texto

Com essa ideia de “linearidade da interlocução determi-


nada e estruturada por interrupções mais ou menos marca-
das” de Weinrich (1989), desenha-se a identificação de um
todo delimitado e de suas partes. Embora as textualidades
digitais, amplamente multimodais, pareçam pôr em causa
as questões de fronteiras e de linearidade, veremos que elas
podem ser abordadas, a partir dos princípios que extraímos
das textualidades escritas e faladas.

2.2 OS TEXTOS E OS DISCURSOS

A distinção entre os conceitos de texto e discurso não


passa, portanto, pela oposição entre o escrito e o oral: trata-se
de uma diferença de escala que resume bem o duplo princípio
enunciado por Provost-Chauveau (1971, p. 19): (a) “A análise
do discurso supõe a junção de vários textos [...]” e (b)

O texto – exemplo de discurso – nunca está


realmente fechado, ele é continuação, por um
lado, e inacabamento, por outro. Ele só existe
como texto pelo que o precede e o constitui,
isto é, em função de outros discursos.

É precisamente por essa razão que a teoria do texto


é apenas uma parte da análise discursiva (COSSUTTA;
MAINGUENEAU, 2019). Charaudeau (2015) retoma essa ideia
comumente compartilhada no campo da análise do discurso:

32
A noção de texto

O texto é fabricado com regras que lhe são


próprias, que é preciso atualizar e que tes-
temunham, ao mesmo tempo, restrições e
estratégias do sujeito falante, todas elas, coi-
sas que constroem a “materialidade textual”
[...] Mas, ao mesmo tempo, há discurso, ou,
mais propriamente, discursos que circulam
sob os textos (quer sejam orais ou escritos)
e que é preciso detectar, por meio dos jogos
de intertextualidade e de interdiscursividade
que os constituem. (CHARAUDEAU, 2015,
p. 125-126).

Todo efeito ou julgamento de textualidade acompanha-se


do relacionamento diferencial do texto considerado – oral
ou escrito – com outros textos, no âmbito de um sistema de
gêneros de discurso próprio a uma época e a um determinado
grupo social. É assim que convém reformular o princípio de
intertextualidade posto adiante, tanto por Beaugrande (1984,
p. 358) quanto por Bronckart (1997, p. 138), que fala de

[...] interfaceamento entre as representações


construídas pelo agente, a respeito de sua situ-
ação de ação (motivos, intenções, conteúdo
temático a transmitir etc.), e as representações
desse mesmo agente, referentes aos gêneros
disponíveis no intertexto.

O pertencimento genérico de um texto condiciona sua


aceitabilidade e sua pertinência, pois, como afirma Foucault
(1969), em L’archéologie du savoir,

33
A noção de texto

Não é nem mesmo a sintaxe, nem mesmo o


vocabulário, que são acionados em um texto e
em uma conversação, em um jornal e em um
livro, em uma carta e em um cartaz. Mais que
isso, há sequências de palavras que formam
frases bem individualizadas e perfeitamente
aceitáveis, se elas figuram nas manchetes de
um jornal, mas que, no entanto, ao longo de
uma conversação, não poderiam jamais valer
como frase que tem um sentido. (FOUCAULT,
1969, p. 133).

A unidade textual que constitui esse slogan de uma


publicidade antiga para a marca Opel (ver anexo 1) aparece
como pontuada de forma intempestiva, inadmissível, de um
ponto de vista normativo:
(3) [P1] A Manta.
[P2] Rapidez. E temperamento!

A alínea após a frase gráfica P1 isola o tema e destaca a


elipse do verbo ter, introdutor das duas propriedades empres-
tadas a esse tema e que poderia ligar as três frases nominais
reduzidas ao estado de sintagmas. O ponto final, antes do
conector aditivo “E”, separa os dois remas, assinalando o
segundo, modalizado por um ponto de exclamação. Em con-
formidade com o gênero slogan de atração publicitária, uma
estrutura rítmica domina a sintaxe frástica. Mas, sobretudo, a
autonomização dos três sintagmas anuncia a primeira parte do
módulo redigido: para cada segmento nominal, corresponde
um dos três primeiros parágrafos (ponho em destaque), o

34
A noção de texto

que transforma o slogan em título temático, introdutor de


um conteúdo descritivo:
(3 continuação)

Manta. O conversível que tem classificação: o favorito


na Europa. Não é por acaso!
Há, primeiramente, sua linhagem raceada, incomparável.
Graças a ela, a Manta se destaca, ao correr com outros
carros. E isso, pela rapidez.
Quanto ao temperamento, veja, principalmente, o
desempenho da nova Manta i240, com seu impetuoso
motor à injeção 2.4l: de 0 a 100Km/h em 8,8seg., velo-
cidade de ponta de mais de 200Km/h!
Junte a isso, um chassi esporte rebaixado, rodas largas
em metal leve, freios a disco ventilados na dianteira,
amortecedores de pressão a gás Bilstein e um equipa-
mento esportivo completo. [...]

Em outras palavras, a agramaticalidade do slogan é


corrigida, por um lado, pelo vínculo com o gênero slogan
de atração publicitária e, por outro, pelo plano de texto, que
faz a sobressegmentação corresponder aos três parágrafos
do início do texto.
Por sua vez, este pequeno poema de Paul Éluard, retirado
de Les nécessités de la vie et les conséquences des rêves [As
necessidades da vida e as consequências dos sonhos], seria
ilegível sem seu peritexto:

35
A noção de texto

(4) CANTIGA DE NINAR a Cécile Éluard

Filha e mãe e mãe e filha e filha e mãe e mãe e filha e


filha e mãe e mãe e filha e filha e mãe e mãe e mãe e
filha e filha e filha e mãe.

A repetição obcecante de três palavras (dez vezes “filha”


e dez vezes “mãe”, lexemas fracamente ligados pela repetição,
por dezenove vezes, do coordenador “e”) impedem a introdução
de informações novas e o desenvolvimento de uma predica-
ção. A noção de satisfação da exigência de progressão textual
engendra um julgamento de inadmissibilidade. No entanto, a
presença desse texto em uma coletânea poética de um poeta
surrealista e seu título, genericamente explícito, “Cantiga de
ninar”, acompanhada de uma dedicatória pessoal que tem o
mesmo sobrenome do autor, tudo isso permite emprestar uma
coerência ao todo textual constituído pelo poema, por seu
peritexto e por sua inscrição na seção “Les conséquences des
rêves” [As consequências dos sonhos] da coletânea.
O canto da cantiga de ninar deve fazer adormecer a
filha do poeta que, além disso, presta homenagem ao sexo
feminino. O leitor recupera as disfunções de superfície desse
texto, tendo acesso a outra ordem do sentido, uma ordem
dominada, semanticamente, por uma temática da filiação e
da procriação, e, ritmicamente, por uma estrutura repetitiva:
uma vez o vocábulo filha isolado (no início) e uma vez mãe
isolado (no final), três vezes a repetição de mãe e três vezes,

36
A noção de texto

igualmente e em alternância, a de filha, uma vez a triplicação


de mãe e uma vez a de filha. Tudo isso torna-se aceitável
apenas porque o título sugere um outro uso da língua: uma
passagem poética para a língua-balbucio – língua para o
sono e os sonhos, língua materna tornada musical. Esse fato
rítmico é, assim, altamente portador de sentido.
A recuperação semântica da pontuação intempestiva de
(3) e da repetição excessiva de (4) faz-se de maneira descen-
dente (do global para o local). O princípio da determinação das
escolhas linguageiras pelo todo textual, ele mesmo inseparável
de uma genericidade discursiva, foi evidenciado por Bakhtin
(1984), em “Le problème du texte”:

Quando escolhemos um determinado tipo


de proposição, não escolhemos apenas uma
determinada proposição, em função do que
queremos exprimir com o auxílio dessa
proposição, nós selecionamos um tipo de
proposição em função do todo do enunciado
finito que se apresenta em nossa imaginação
verbal e determina nossa opinião. A ideia que
temos da forma de nosso enunciado, isto é,
de um gênero preciso do discurso, guia-nos
em nosso processo discursivo. (BAKHTIN,
1984, p. 288).

A mesma ligação descendente, apoiada na representação


de um todo e dos gêneros discursivos em uso na formação
sociodiscursiva, já estava presente, no início do Século XIX

37
A noção de texto

(1805/1833), nas observações e nos aforismos do filósofo


alemão Schleiermacher (1987):

A representação geral do todo limita, por


si só, a diversidade do detalhe, incorporan-
do-a a um gênero determinado. Pois, tanto
os elementos materiais quanto os elementos
formais têm esferas diferentes na poesia e na
prosa, na exposição científica e na exposição
familiar. (SCHLEIERMACHER, 1987, p. 81).

Consagrado ao “caráter do estilo, seguindo os diferentes


gêneros de obras”, o “Livre IV” do Traité de l’art d’écrire,
de Condillac (2002 [1803]), já havia esboçado, na segunda
metade do Século XVIII, ao mesmo tempo, uma teorização das
questões da coesão do todo e das partes e das particularidades
genéricas dos diferentes tipos de textos. O primeiro capítulo
expõe o método de composição “[...] comum a todos os gêneros
[e] que ensina a fazer um todo.” (CONDILLAC, 2002 [1803],
p. 210). Para ele (op. cit. p. 209), “Se, aprofundando-se de
detalhes em detalhes, não se vê a unidade em lugar algum,
a obra inteira seria apenas um caos. Todas as partes devem
formar um todo.”. E acrescenta:

Se a obra inteira tem um assunto e um final,


cada capítulo tem, igualmente, um e outro,
cada artigo, cada frase. É preciso, portanto,
manter a mesma conduta nos detalhes. Por
aí, a obra será uma em seu todo, uma em cada
parte, e tudo nela estará na maior ligação
possível. (CONDILLAC, 2002 [1803], p. 212).

38
A noção de texto

Embora distinga a unidade de ação, própria aos textos


feitos para interessar e, potencialmente, narrativos (exemplo
(1) estudado anteriormente), e a unidade de objeto, própria aos
textos feitos para instruir e potencialmente argumentativos
e descritivos (exemplo (3)), ele fixa, no entanto, as mesmas
condições de composição para esses textos:

Cada parte precisa ser considerada em parti-


cular e subdividida tantas vezes quanto conte-
nha objetos que possam constituir, cada um,
um todo. Nada pode entrar nessa subdivisão
que possa alterar a unidade, e as partes não
conhecem outra ordem, senão aquela que é
indicada pela gradação mais sensível. Nas
obras feitas para interessar, é a gradação de
sentimento; nas outras, é a gradação de luz.
(CONDILLAC, 2002 [1803], p. 211).

Condillac (2002 [1803], p. 214) distingue três grandes


“gêneros de obras”, uma vez que, diz ele, “[...] raciocina-se,
narra-se ou descreve-se.”. Essas três grandes ações sociodiscur-
sivas correspondem às distinções, em geral bastante admitidas
hoje em dia, entre o argumentativo e o explicativo (acolhidos
no didático), a narração (narrativa factual ou ficcional) e os
usos bastante variados da descrição. Os diferentes “gêneros de
obras” são pensados com base em um princípio de gradação
entre dois polos extremos: o ensaio filosófico, caracterizado
por um “estilo de análise”, e o poema lírico, com seu “estilo
de imagem” (op. cit., p. 233). Ele insiste nas restrições que os
gêneros como a ode, o poema lírico, a tragédia, a comédia,

39
A noção de texto

as epístolas, os contos, as fábulas etc., exercem na leitura;


insiste, sobretudo, nos efeitos dos gêneros na percepção da
completude e da coerência de um texto:

Já no título de uma obra, estamos dispostos a


desejar o estilo mais ou menos da arte, por-
que queremos que tudo seja de acordo com a
ideia que temos do gênero. [...] Todas as vezes
que os gêneros diferem, estamos dispostos
de forma diferente, e [...], em consequência,
julgamos de acordo com regras diferentes.”.
(CONDILLAC, 2002 [1803], p. 236).

É bem o que constatamos com os exemplos publicitário


(3) e poético (4), cujos fatos locais de agramaticalidade tor-
nam-se aceitáveis à luz do todo textual e do gênero de discurso
que põe cada um desses textos em relação com outros textos
semelhantes, disponíveis em uma certa comunidade sociodis-
cursiva. Sob a influência de Vološinov (2010), Bakhtin (1984)
atribui às observações de Schleiermacher (1987) e Condillac
(2002 [1803]), uma dimensão decididamente dialógica, que
inclui as textualidades escritas e faladas:

Aprendemos a moldar nossa fala nas formas


do gênero e, ao ouvir a fala de outro, adivinha-
mos, já na primeira palavra, seu gênero, pres-
sentimos o volume determinado (a extensão
aproximada de um todo da fala), a estrutura
composicional dada, prevemos o seu final,
em outras palavras, desde o início, sentimos
o todo da fala que, em seguida, diferencia-se
no processo da fala. Se os gêneros da fala não

40
A noção de texto

existissem, se não tivéssemos o domínio dela,


se fosse preciso criá-los, pela primeira vez, no
processo da fala, e construir, livremente e pela
primeira vez, cada enunciado, a comunicação
verbal, a troca dos pensamentos, seria pratica-
mente impossível. (BAKHTIN, 1984, p. 285;
tradução revista com I. Tylkowski-Ageeva
[informação do autor]).

Isso leva-nos a considerar o efeito de completude, produ-


zido por um todo unificado e delimitado, e o julgamento de
completude, que dele resulta, como constituindo um primeiro
critério de textualidade, inseparável da genericidade, que
liga todo texto a um corpus de textos e a (pelo menos) uma
classe de discurso.

3 O TEXTO COMO TODO UNIFICADO E DELIMITADO

Em Tempus, Weinrich (1973) retorna às pausas próprias


da oralidade e às delimitações, na escrita, da totalidade do
livro e das seções que o compõem. Ele confere a essa pon-
tuação textual uma função “metalinguística”, instrucional:

Um texto é uma sucessão significante de sig-


nos linguísticos entre duas rupturas manifes-
tas de comunicação. Serão consideradas como
“manifestas”, as pausas bastante longas da
comunicação oral, exceto as pausas de respira-
ção ou as que indicam a busca de palavras. Na
comunicação escrita, serão, por exemplo, as
duas abas da capa de um livro. Serão também

41
A noção de texto

esses cortes, deliberadamente introduzidos e


que, em um sentido quase metalinguístico,
organizam rupturas manifestas na comuni-
cação. (WEINRICH, 1973, p. 13).

Oralidade e escrita são caracterizadas, macrotextual-


mente, por modalidades de abertura e de fechamento da
unidade verbal delimitada à qual damos o nome de texto.
No dispositivo que faz do texto uma unidade, esses limites
iniciais e finais exercem um papel fundamental:

É [...] por suas fronteiras que um todo é


determinado, e suas fronteiras passam pelo
ponto de contato do enunciado com o meio
extraverbal e verbal (isto é, com os outros
enunciados). (VOLOŠINOV, 2010, p. 323).

Esse todo pode ser constituído de uma ou mais seções


pontuadas por interrupções secundárias, intermediárias, mar-
cadas, na oralidade, por um silêncio prolongado, acompanhado
de uma completude sintática do último enunciado e de uma
baixa entonativa, e, na escrita, por um branco mais ou menos
longo (a linha vazia de final de parágrafo, o afastamento de
uma ou várias linhas, ou uma página em branco).

3.1 FRONTEIRAS DO TEXTO: O PERITEXTO

As fronteiras externas e internas, que chamaremos peri-


textuais, assumem diversas formas:

42
A noção de texto

• Em uma interação oral, os limites inicial e final de um


intercâmbio – quer se trate de uma conversação telefônica ou
por FaceTime, Skype ou WhatsApp, de um encontro previsto ou
inesperado de amigos, de uma entrevista etc. – são ocupados
por intercâmbios fáticos de abertura e de fechamento, mais
ou menos longos, conforme as culturas e as situações. Entram
nessa categoria, os créditos das emissões radiofônicas e televi-
sivas, seguidos das aberturas e precedidos pelos fechamentos
ritualizados e rotineiros das emissões. No interior desses
limites, toda mudança de tópico, ao longo de conversação, é
negociada pelos interactantes e é objeto de uma introdução de
uma delimitação. Capt, Jacquin e Micheli (2009, p. 131-132)
apresentam o exemplo da discussão de um projeto de lei,
em um debate parlamentar. A intervenção de um deputado,
marcada, peritextualmente, pelo fato de que o presidente
da Assembleia passa-lhe a palavra e assinala o fim de sua
intervenção, agradecendo-lhe e passando a palavra a um outro
deputado, ou encerrando a sessão, poderá ser considerada
como formando um texto. Mas pode-se muito bem considerar
o conjunto da discussão de uma emenda ou de um projeto de
lei, como formando um texto, no caso, constituído por um
certo número de intervenções, cuja completude é marcada,
peritextualmente, pela abertura da sessão e fechada pelo voto
da emenda em questão e pelo encerramento da sessão.
• Em uma interação escrita, os limites de um livro ou de
uma revista, dos artigos de uma revista ou de um jornal, de

43
A noção de texto

um contrato, uma carta, um parecer, um cartaz publicitá-


rio ou político, um poema, são ocupados por um peritexto
materialmente ligado ao corpo do texto propriamente dito.
Seguindo Genette (1987, p. 9), pode-se, sem dúvida, adiantar
que não existe, e que nunca existiu, texto sem peritexto externo
(ao menos um título e, facultativamente, conforme os gêneros
de discurso e as épocas, um subtítulo, um nome de autor e
de editor, uma capa e uma contracapa, uma página de título,
uma dedicatória, um prefácio e/ou um posfácio, um sumário,
a indicação de uma data e de um lugar de publicação e de
impressão, a autorização legal para publicar) e, mais faculta-
tivamente, sem peritexto interno (intertítulos e/ou numeração
de partes, de seções ou de capítulos, janelas e lide de imprensa
escrita, ilustrações com ou sem legenda). No exemplo do
poema de Éluard (4), constatamos a importância do peritexto
composto pelo título da coletânea, pelo intertítulo da seção,
pelo título do poema (título genérico) e pela dedicatória. No
exemplo (3), o slogan exerce mais um papel de título-anúncio,
introduzindo o conteúdo do módulo redigido.
Por causa de seu prefixo, o conceito de peritexto apresenta
a ambiguidade de ser mais colocado na periferia do texto e,
portanto, separado do texto. Na verdade, o peritexto faz parte
do texto e, portanto, delimita mais precisamente o início e,
mais facultativamente, o final. A questão das fronteiras dos
subconjuntos textuais intermediários é bem ilustrada pelo
caso da divisão em capítulos (DIONE, 2008) e pelo exemplo

44
A noção de texto

do encaixamento de uma narrativa em um texto escrito ou na


continuidade de uma conversação oral. A inscrição de uma
narrativa em um cotexto dialogal (narrativa oral, monólogo
narrativo de teatro ou narração escrita, encaixada em uma
novela, uma argumentação ou uma explicação) caracteriza-se
pela presença, na abertura, de um preâmbulo em forma de
resumo e/ou de simples entrada-prefácio e, no término da
narração, de uma avaliação final, que assume a forma da
moral das fábulas e dos contos, ou reduz-se a um simples
fechamento, ou uma coda, que assinala o fim de um turno de
fala narrativo (LABOV; WALETZKY, 1967; ADAM, 2011a,
p. 117-148; 2011b). Esses segmentos textuais especializados
asseguram a entrada no e a saída do mundo ficcional ou real
(passado) da narrativa, a articulação entre o mundo narrado
e o mundo atual da interação em curso, entre o narrador e
seu ouvinte/leitor.

3.2 A IMPRECISÃO DAS FRONTEIRAS E


OS AGRUPAMENTOS COTEXTUAIS

As fronteiras textuais são mais ou menos marcadas,


ao ponto de serem, por vezes, imprecisas, como lembram
Halliday e Hasan (1976):

Seria enganoso sugerir que o conceito de um


texto está totalmente determinado, ou que
podemos sempre tomar decisões claras sobre

45
A noção de texto

o que constitui um único texto e o que não.


Muitas vezes, podemos dizer com certeza que
o todo de uma passagem constitui um texto e,
igualmente, com frequência, podemos dizer
com certeza que, em outra situação, temos
de lidar não com um texto, mas com dois ou
mais. Mas há muitos casos intermediários,
ocorrências de dúvida em que não estamos
totalmente seguros, se queremos considerar
todas as partes da passagem, como abran-
gendo o mesmo texto, ou não. (HALLIDAY;
HASAN, 1976, p. 294-295).10

É com essa imprecisão das fronteiras textuais que Félix


Fénéon joga com seus fait-divers, breves jornalísticas que
misturam várias notícias em um só texto. Escolhi, volun-
tariamente, quatro fait-divers que apresentam um trabalho
diferente com a sintaxe: duas frases separadas, em (5), e três
frases, das quais a última exerce um papel de ligação, em (6);
uma frase periódica terminada por dois pontos introdutórios
de uma tripla causalidade que reúne o que estava, paratati-
camente, enumerado, em (7); um texto em que a causalidade
comum precede a enumeração, em (8).

10 “It would be misleading to suggest that the concept of a text is fully


determinate, or that we can always make clear decisions about what
constitutes a single text and what does not. We can often say for certain
that the whole of a given passage constitutes one text; and equally we can
often say for certain that in another instance we have to deal with not
one text but two, or more.”.

46
A noção de texto

(5) [P1] Entre Deuil e Épinay, roubaram 1.840 metros de


fios telefônicos.
[P2] Em Carrières-sur-Seine, o Sr. Bresnu enforcou-se
com um fio de aço.

(6) [P1] Um desconhecido pintava de ocre os muros do


cemitério de Pantin.
[P2] Dujardin perambulava nu por Saint-Ouen-
l’Aumône. [P3] Loucos, parece.

(7) A Srª Fournier, o Sr. Vouin, o Sr. Septeuil, de Sucy, Tripleval,


Septeuil, enforcaram-se: neurastenia, câncer, desemprego.

(8) Trens mataram Cosson, em Etang-la-Ville; Gaudon,


perto de Coulommiers, e o empregado das hipotecas
Molle, em Compiègne.

Duas frases de (5) parecem não formar um texto único.


Duas notícias independentes, relativas a dois fatos diferen-
tes, foram postos juntos para produzir um efeito que vai
além da simples informação. Seu único vínculo é o lexema
comum “fio(s)”: por um lado, mil e oitocentos metros de fios
de cobre que trazem dinheiro para os ladrões e, por outro,
um miserável fio de aço e uma morte sórdida por enforca-
mento. Em (6), por outro lado, a última frase (P3) cria uma
ligação semântica explícita – uma isotopia declarada – entre
as ações relatadas nas duas frases correspondentes às duas
notícias: a loucura aparece como uma explicação possível
dos comportamentos dos sujeitos de P1 e P2, mesmo se essa

47
A noção de texto

explicação, modalizada impessoalmente (“parece”), não seja


assumida pelo enunciador-jornalista.
Em (7), uma ligação é estabelecida pelo núcleo verbal
comum no plural (“enforcaram-se”), que reúne três notícias.
Elas são agrupadas em uma só frase-texto que enumera, ini-
cialmente, os nomes de três pessoas e, em seguida, os nomes de
três lugares. Após os dois-pontos que seguem o núcleo verbal
comum, uma tripla explicação das causas desses suicídios,
friamente dada por meio de três substantivos desprovidos de
determinante: uma doença psíquica, uma doença incurável e
uma circunstância socioeconômica conotada como doença
social, devido à série enumerativa criada.
Esses três destinos cortados pelo suicídio contrastam com
as três vítimas de trens que, por todo o país, parecem, em (8),
atacar a população. Dessa vez, o agente e o verbo são coloca-
dos em início de frase periódica, o que induz uma forma de
agentividade criminal, e as vítimas humanas são enumeradas,
em seguida, com a indicação do lugar do drama. Essa enume-
ração em três tempos aparece, assim, como uma acumulação
trágica. A despeito da brevidade desses textos, é realmente
um trabalho do texto, que começa com a sintaxe e permite ao
escritor-jornalista transgredir os limites informativos habituais
do gênero de notícia curta: um fait-divers = um texto.
Certas experiências artísticas, literárias e cinematográfi-
cas têm explorado, em grande escala, dessa vez, o modelo de
textualidade complexa. Assim, The Wild Palms, de William

48
A noção de texto

Faulkner (1939, originalmente intitulado, If I Forget Thee,


Jerusalem), alterna, capítulo por capítulo, duas narrativas
paralelas: o primeiro, intitulado “Wild Palms” (cinco capítulos
ímpares), narra o naufrágio de um casal, e o segundo, “Old
Man” (cinco capítulos pares), narra a história, igualmente
cruel, de um prisioneiro e uma mulher, vítimas das intempé-
ries. A obra é, assim, constituída de dois textos entrelaçados
que, embora não se juntem jamais, esclarecem um ao outro,
por ecos, e terminam em uma conclusão comum: a ausência
trágica de livre arbítrio. Le Conte du Graal, de Chrétien de
Troyes (1181), que alterna as histórias de Perceval, o Gaulês,
e do cavaleiro Gauvain, corresponde ao mesmo modo de
composição, enquanto que as duas narrativas alternadas,
uma, autobiográfica, e outra, ficcional, de W ou le souvenir
d’enfance, de Perec (1975)11, juntam-se, parcialmente, no final,
como os dois “V” do “W”.
O cinema experimental mudo americano de David W.
Griffith já apresentava, em 1916, com Intolerance: Love’s
Struggle Throughout the Ages, o caso extremo da montagem
alternada de quatro histórias: o festim de Baltazar e a tomada
da Babilônia pelos exércitos de Ciro (539 a.C.), a vida e a
“Paixão de Cristo”, o massacre da “Noite de São Bartolomeu”
(1572) e “The Mother and the Law”, situado em 1914, que põe
em cena a intolerância de um grupo de mulheres condu-
zindo uma greve que leva à decadência de um personagem. A

11 Georges Perec (1936-1982), romancista, poeta e ensaísta francês. [N. T.].

49
A noção de texto

montagem alternada, cada vez mais rápida, dos quatro textos


de extensão desigual torna a legibilidade bastante difícil.
Diante do fracasso comercial de seu filme, Griffith retomará as
duas narrativas mais longas, separadamente, “Fall of Babylon”
e “The Mother and the Law”, dando, assim, a cada uma das
duas, sua unidade textual, perdida na montagem alternada.
O caso da nota, embora um pouco particular, é um
bom exemplo de continuidade e descontinuidade textual.
A chamada de nota inscreve-se na continuidade da cadeia
gráfica, enquanto que as notas são deslocadas para uma
zona distinta: pé de página, margem direita, às vezes, final
de artigo, de capítulo ou de livro, ou sob forma de janela,
nas edições eletrônicas. Lefebvre (2011, p. 74) considera
a chamada-remissão de nota “[...] como o eixo de uma
textualidade cuja inscrição descontínua no espaço gráfico é
uma das propriedades primeiras.”. Dois tipos de chamadas
de nota podem ser distinguidos. No caso em que a chamada-
remissão liga o corpo do texto a um enunciado acessório,
deslocado em nota, a descontinuidade gráfica é compensada
por ligações anafóricas, conectores e modificadores do
substantivo; o segmento anexo da nota está na continuidade
do texto principal e estreitamente ligado a ele. No segundo
caso, a nota, geralmente mais longa, tem mais autonomia,
ao ponto de aparecer como um subtexto, no texto principal.
Esse fragmento anexo, que possui uma certa completude, é o
lugar de um discurso paralelo ao texto principal: ele conserva

50
A noção de texto

o que foi excluído do corpo do texto. Essas observações


levam-nos, diretamente, à problemática das textualidades
digitais hipertextuais e arborescentes (ERTZSCHEID, 2003).
A questão da nota exemplifica o problema das textualidades
esfaceladas “e, no entanto, ‘una’” (LEFEBVRE, 2011, p.
80), dessas textualidades singulares, caracterizadas pela
descontinuidade espacial.
O caso das coletâneas de artigos científicos ou jornalísticas,
de poemas, contos, novelas, anedotas e piadas, os números de
revistas, os artigos de jornais e de revista de imprensa escrita
apresentam problemas de relações não apenas entre partes de
um só texto, mas entre textos reunidos em um mesmo material,
estabelecendo, por isso, relações cotextuais. A autonomia textual
de cada um desses artigos reunidos em uma revista ou em
um volume coletivo, ou dossiê jornalístico, poemas ou contos
reunidos em um volume, é maior ou menor, em função da
estrutura da coletânea, de sua divisão ou não, em seções que
agrupam um certo número de textos entre os quais uma ligação
é estabelecida, ou apenas sugerida. Essa ligação depende do
número de ecos entre (co)textos, e isso é válido tanto para um
contexto literário quanto para um jornalístico ou científico12.

12 Sobre a elaboração da coletânea de Fleurs du Mal, ver Adam e Heidmann


(2009, p. 101-117); sobre os agrupamentos de pequenos poemas em prosa
de Baudelaire, ver Adam (2019); sobre a coletânea de Illuminations, de
Rimbaud, ver Adam (2018, p. 371-425); sobre os primeiros contos de
Andersen, ver Adam e Heidmann (2009, p. 85-99); sobre os contos de
Perrault, ver Heidmann e Adam (2010, p. 191-234).

51
A noção de texto

Charles (2018, p. 86) vai mais longe, considerando que


“[...] o texto julgado ‘descontínuo’ ou fragmentado, ou mesmo
fragmentário, não caracteriza exceção. Basta [...] que eu tenha
o sentimento de que ele exista como um todo.”. É frequente
que um conjunto de fragmentos textuais seja, editorialmente,
proposto para a leitura como uma totalidade. Assim, para
tomar apenas um exemplo, tem-se o caso da composição em
variação, entre os estados textuais de 1688 (420 fragmentos)
a 1696 (1120 fragmentos), das diferentes seções das nove
edições sucessivas de uma coletânea, como Les Caractères,
de La Bruyère13 (sobre o “fragmento 128”, ver ADAM, 2019,
p. 49-51, 115, 120-122, 153-154, 168-171, 188-189).
O problema apresenta-se, por exemplo, com as folhas
manuscritas de Ferdinand de Saussure (2002), reunidas com
o título De l’essence double du langage. As notas de trabalho
publicadas por Bouquet e Engler (Saussure, 2002) tendem a fazer
texto e a induzir uma certa continuidade lá onde a escritura
de Saussure é, por essência, fragmentária, como foi muito bem
mostrado por Matsuzawa (2012), que se interroga sobre o que
poderia constituir um ponto de partida da teoria. Os editores
transformam uma textualidade provisória e inacabada, feita
de recuos e dúvidas, em uma textualidade definitiva, tendo um
início e um fim, e até mesmo umas espécies de capítulos. Eles
tornam, assim, legível, uma forma de pensamento. Seu ideal
do texto e de sua continuidade não dá acesso a uma escritura

13 Jean de La Bruyère (1645-1696), ensaísta e moralista francês. [N. T.].

52
A noção de texto

em estado de gênese e de pesquisa (ver, igualmente, a edição


crítica proposta por AMACKER, 2011).
Podemos tirar desses diferentes casos, uma PRIMEIRA
DEFINIÇÃO GERAL E BÁSICA:
Para ser interpretada como um texto, ou um sub-
texto em um texto, até mesmo como um fragmento
que possui uma certa autonomia, uma sequência
material de signos deve formar um todo ao qual
pode ser atribuído um início e um fim. O fim
podendo ser significado pelo início de um outro
texto, subtexto, cotexto ou fragmento.
Resta precisar como, entre os limites do todo textual, em
equilíbrio entre retomadas-repetição e progressão-apoio de
sentido, uma série de signos forma um tecido textual que possui
uma certa conectividade, ou textura, como sugere a etimologia.

4 O ENTRELAÇAMENTO COMPLEXO DA TEXTURA

4.1 RETORNO À ETIMOLOGIA

A etimologia latina textos (de texo: tecer, entrançar) –


presente, parece, tardia e figurativamente, no Livro IX (4, 13
e 17) de Institution oratoire, de Quintiliano14, a respeito do
tecido da frase/período e do tecido do estilo – é convocada

14 Marco Fábio Quintiliano, orador e professor de retórica (35-96 a. D). [N. T.].

53
A noção de texto

em quase todas as definições do texto como enlaçamento,


contextura, tecido, trama. Particípio passado de texo, o textus
é aquilo que é tecido. Por trás da ideia de estado acabado,
realizado, do verbo, perfila-se a fixação da palavra divina
(SEGRE, 2006, p. 360-361). É assim que a noção de texto foi
comumente construída, na escrita, de forma jurídica (o que
é atestado, inscrito, gravado) e dissociada da oralidade.
Em Traité de l’art d’écrire, Condillac (2002, p. 175) atribui
ao volume “Livre III”, o título “Du tissu du discours” [Do
tecido do discurso]. Sua tese é a seguinte: “O tecido forma-se,
quando todas as frases construídas, em relação ao que precede
e ao que segue, unem-se umas às outras pelas ideias em que
se percebe uma maior ligação.”. O primeiro capítulo tem por
título “Comment les phrases doivent être construites les unes
pour les autres” [Como as frases devem ser construídas umas
pelas outras] (op. cit., p. 177). Quando as frases “[...] seguem-se,
sem fazer um tecido [...]”, quando elas “[...] não sustentam mais
umas às outras [...]”, diz ele, “[...] parece que, a cada uma, eu
retomo meu discurso, sem me ocupar com o que eu disse,
nem com o que vou dizer.” (Id., p. 178). Seu “princípio da
maior ligação” (Id., p. 176) diz respeito à ligação das “ideias
principais” entre si e à relação entre “ideias secundárias” e
“principais”. Os exemplos (5) e (6) de Fénéon ilustraram bem
esse problema. No poema (4), a associação sistemática das
palavras, duas a duas, por meio do conector “E”, assegura,
certamente, uma tessitura formal rigorosa, mas a progressão
do sentido é arruinada pela repetição.

54
A noção de texto

A questão das unidades linguísticas encarregadas da


conexão entre enunciados é abordada apenas alusiva e nor-
mativamente, nos exemplos que Condillac (2002) manipula,
reescrevendo-os. Além de anáforas pronominais (op. cit., p.
177-178) e do caso da abundância de certos conectores, que
julga importuna, ele considera como uma falta, por exemplo,
um emprego do advérbio dêitico “agora”, em contexto enun-
ciativo de narração histórica no imperfeito. A respeito de uma
passagem de Bossuet15, seu julgamento normativo é definitivo:
“Há aqui um pequeno erro: agora ela não tinha; é preciso
dizer, ela não tem.” (op. cit., p. 180). Sem outra explicação,
compreende-se que se trata de uma tensão enunciativa entre
plano embreado do discurso (aqui/agora) e plano debreado
da enunciação histórica (imperfeito), um efeito de enálage
temporal, que é aqui estigmatizada. A audácia de Bossuet
não é maior que a de Racine16, nessa quadra da narrativa de
Terâmenes, cujo jogo com a língua engendra, juntos, “outrora”
e “agora”, no co(n)texto narrativo do imperfeito:

(9) Seus soberbos corcéis que víamos OUTRORA,


Plenos de um ardor tão nobre, obedecerem à sua voz,
O olhar sombrio AGORA e a cabeça baixa,
Pareciam conformar-se com seu triste pensamento.
(Fedra, Ato V, cena 6, versos 1503-1506)

15 Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704), bispo, teólogo e escritor francês,


um dos principais teóricos do absolutismo. [N. T.].
16 Jean Baptiste Racine (1639-1699), dramaturgo, poeta e historiador fran-
cês. [N. T.].

55
A noção de texto

Em 1919, Ferdinand Brunot17 (Histoire de la langue fran-


çaise, tomo 6) ainda condenará esse emprego, que, no entanto,
havia-se tornado banal na arte narrativa do século XIX, pelo
menos a partir de Flaubert e Maupassant18.
Mas o que diria Condillac (2002), a respeito deste texto
do século XXI?
(10)

[Eu detesto espinafre (c1), é bom para a saúde minha


criança (c2).
A vida é cheia de imprevistos.
Nossas soluções de previdência adaptam-se a eles.]

Aqui, é a pontuação que arruína o “tecido do discurso”.


Ou a vírgula separa dois enunciados assumidos por dois
enunciadores diferentes, um “eu” infantil que enuncia a parte
situada à esquerda (c1), enquanto que um parente ou um

17 Ferdinand Brunot (1860-1938), linguista e filólogo francês. [N. T.].


18 Gustave Flaubert (1821-1880), Guy de Maupassant (1850-1893), escritores
franceses do realismo literário. [N. T.].

56
A noção de texto

adulto (dizendo “minha criança”) assume a outra parte, à


direita (c2). A ligação seria, então, uma ligação de réplica
entre dois enunciados separados, enunciativamente, e que
deveriam ser, também, graficamente. O fato de que “espina-
fre” esteja em negrito poderia significar que o rema de c1 é
retomado como tema de c2. Ou estamos em presença de um
jogo solicitado pela companhia de seguros, cuja logomarca,
“SwissLife” dá sentido ao anúncio, na forma de um enunciado
a ser completado, “Eu detesto...”, à espera de um objeto da
detestação: “espinafre, é bom para a saúde”, que seria, então,
uma citação. Essa recuperação contextual do sentido tem
apoio na logomarca e nas duas frases em pequenos carac-
teres: “A vida é cheia de imprevistos. / Nossas soluções de
previdência adaptam-se a eles.” Essa sequência do enunciado
estranho colocado em posição de slogan não é, em absoluto,
esclarecedora: as coisas detestadas (como aqui, espinafre)
tornam-se esses “imprevistos” da vida com os quais a empresa
de seguros se engaja, para trazer soluções. A “ligação de
ideias” de Condillac é, pelo menos, encontrada aqui. O efeito
pragmático da campanha publicitária, da qual esse texto é
apenas um exemplo, seria, certamente, surpreender e, assim,
atrair a atenção.
Acabamos de ver: ao evocar a etimologia, arriscamo-nos
a esquecer que um texto é menos um tecido que uma renda,
se queremos seguir a metáfora. “Um tecido com espaços em
branco, com interstícios a serem preenchidos”, escreveu Eco

57
A noção de texto

(1985a, p. 66), que acrescenta: “[...] um texto é um mecanismo


preguiçoso (ou econômico) que vive da mais-valia de sentidos
que nele é introduzida pelo destinatário.” (op. cit., 66-67). Esse
trabalho de inferência é, com certeza, gradual: mais fraco no
texto informativo ou instrucional (de tipo de manutenção
de aviões ou de intercâmbios entre controladores de tráfego
aéreo e pilotos, que pretende uma explicitação máxima) e mais
intenso na publicidade moderna – bem mais diferente, nesse
ponto, do reclame, ou anúncio – ou nas definições de palavras
cruzadas, nos enigmas (gênero do qual (10) aproxima-se), nos
romances policiais e, sobretudo, nos textos poéticos (como (4)).
A etimologia das fibras entremeadas e da tessitura tex-
tual transparece sob a palavra textura, que encontramos em
numerosos linguistas, em oposição à linearidade e para dar
conta da complexidade: “O texto é, finalmente, uma textura,
é qualquer coisa de muito mais complicado que o linear.”
(CULIOLI, 2012, p. 147). Halliday e Hasan (1976) alargam
o conceito ao todo que o texto forma com seu ambiente dis-
cursivo (o que exploramos para ler (4) e (10)):

O conceito de TEXTURA é inteiramente


apropriado para expressar a propriedade de
“ser um texto”. Um texto tem textura, e isso
é o que o distingue de algo que não é texto.
[...] A textura é sustentada pela RELAÇÃO
coesiva. (HALLIDAY; HASAN, 1976, p. 2);
Um texto é melhor pensado não como uma
unidade gramatical, em absoluto, mas sim

58
A noção de texto

como uma unidade de tipo diferente: uma


unidade semântica. A unidade que ele tem é
uma unidade de sentido em contexto, uma
textura que expressa o fato de que, como um
todo, ele se relaciona com o ambiente no qual
está situado. (op. cit., p. 293).19

Mais recentemente, Legallois (2006) relacionou a textura


com a organização reticular dos vocábulos em um texto:

A organização reticular de um texto está em


perfeita congruência com a etimologia da pala-
vra texto. É um tecido de frases entrelaçadas,
uma trama, uma textura, toda uma construção
e uma concepção de um objeto complexo que
são evidenciadas pela análise da repetição lexi-
cal nos discursos. (LEGALLOIS, 2006, p. 70).

O célebre artigo “Discourse Analysis”, de Harris (1952a),


permite ilustrar essa organização reticular. Ele apresenta, por
um lado, uma repetição significativa do vocábulo text [texto]
e de seus derivados textual [textual] (em “textual structure/
method” [estrutura/método textual]) e textually [textualmente]
e, por outro, do vocábulo-título do artigo, discourse [discurso].

19 “The concept of TEXTURE is entirely appropriate to express the property


of “being a text”. A text has texture, and this is what distinguishes it from
something that is not a text. […] The texture is provided by the cohesive
RELATION.”. (op. cit., p. 2); “A text is best thought of not as a grammatical
unit at all, but rather as a unit of different kind: a semantic unit. The unity
that it has is a unity of meaning in context, a texture that expresses the
fact that it relates as a whole to the environment in which it is placed.”.
(op. cit., p. 293).

59
A noção de texto

De modo surpreendente, às 227 ocorrências do vocábulo text


[texto] correspondem apenas 47 ocorrências do vocábulo
discourse [discurso]. As 23 ocorrências da colocação “discourse
analysis” [análise de discurso] fazem alusão, claramente, ao
método de análise de “connected speech (or writing)” [fala
conectada (ou escrita)] (HARRIS, 1952a, p. 1). As outras
24 ocorrências de discourse [discurso] são, em sua maioria,
muito próximas do conceito de text [texto]. É o caso das cinco
ocorrências da colocação “connected discourse” [discurso
conectado], quando Harris (op. cit.) opõe “The successive
sentences of a connected discourse” [as sentenças sucessivas
de um discurso conectado] às “Arbitrary conglomerations of
sentences” [aglomerações arbitrárias de sentenças]. O dis-
curso é assimilado ao texto nas duas ocorrências de “that
one discourse” [aquele discurso] e, mais ainda, quando os
dois vocábulos, não distinguidos, alternam-se:

O método apresentado aqui é visto, então,


desenvolvendo-se a partir de uma aplicação
dos métodos distribucionais da linguística
a um DISCURSO de cada vez. Ele pode ser
aplicado diretamente a um TEXTO, sem usar
qualquer conhecimento linguístico sobre
o TEXTO, exceto os limites do morfema.
(HARRIS, 1952a, p. 3).20

20 “The method presented here is thus seen to grow out of an application of


the distributional methods of linguistics to one DISCOURSE at a time. It
can be applied directly to a TEXT, without using any linguistic knowledge
about the TEXT except the morpheme boundaries.”.

60
A noção de texto

O resumo que Harris (1952b, p. 474) fornece de seu


segundo artigo, “Discourse Analysis: a Sample Text”, apresenta
a mesma indiferenciação entre “connected discourse” [discurso
conectado] e “a particular text” [um texto particular], “in
our text” [em nosso texto] e “any particular text” [qualquer
texto particular].
A adoção desse artigo pela análise de discurso francesa,
que vinha despontando em fins dos anos sessenta, é bastante
surpreendente. Nem sua metodologia nem sua definição de
discurso fazem desse estudo, inteiramente voltado para a
análise de um só texto publicitário, um exemplo de análise de
discurso. Ele ilustra bem, no entanto, a confusão terminológica
sobre a qual falamos anteriormente.
A posição de Legallois (2006) é avançada por De Angelis
(2018b), a respeito das textualidades digitais:

Ao passar da cultura dos textos impressos


para a dos textos digitais, o texto torna-se,
finalmente, uma verdadeira textura, graças
à visualização, na tela, da rede de elementos
intratextuais e intertextuais. Na cultura digi-
tal, “[…] a textualidade deve, necessariamente,
ser pensada como a combinação de percursos
lineares e reticulares.” (ADAM, 2006, p. 5).
É, justamente, a “[…] combinação” desses
elementos – a textura – que é visível na tela.”.
(DE ANGELIS, 2018b, p. 480).

61
A noção de texto

Essa complexidade da textura explica o fato de que


linguistas como Le Goffic (2011, p. 22), espantados com a
imensa “labilidade” do nível textual, curvam-se ao “conceito
organizador de frase”. Uma vez que, segundo ele, a “solidez da
referência da frase” oferece “um ponto estável, um ponto de
apoio”, Le Goffic (Id. Ibid.) faz dessa unidade da escrita, “o ponto
chave da construção do texto”. A partir desse ponto de apoio,
cada sequência de tratamento sintático seria integrada “[…]
ao processo global de construção do texto, no curso do qual a
autonomia de cada unidade constituinte é reavaliada.”. (Id., p.
11). Ao definir, por comparação, o texto como um “conjunto
organizado de frases”, Riegel (2006, p. 53) propõe completar
as “ferramentas de uma boa gramática frástica”, levando em
conta, simplesmente, “[...] condicionamentos propriamente
textuais das frases, quando são postas em sequência.”. Mas, para
descrever esses “condicionamentos textuais” e essa “colocação
em sequência”, apenas a delimitação de unidades frásticas
(LE GOFFIC, 2011; RIEGEL, 2006), de unidades periódicas
(GROUPE DE FRIBOURG, 2012; PRANDI, 2013), de unidades
textuais de base (GARDES-TAMINE, 2004), ou de unidades
discursivas de base, tanto sintáticas quanto prosódicas (SIMON;
DEGAND, 2014; DEGAND; SIMON, 2011), não diz muito sobre
os encadeamentos de mais de duas ou três dessas unidades.
Nada é dito a respeito dos condicionamentos propriamente
textuais e da sua colocação em sequência, da reavaliação de
sua autonomia e de seu lugar na organização textual global.

62
A noção de texto

O texto não é, conforme a expressão de Halliday e Hasan


(1976, p. 293), uma série de frases: “Um texto [...] não é apenas
uma série de sentenças.”21. A linguagem não aparece sob a forma
de palavras ou frases soltas, mas, como diz Harris (1952a, p.
3), em discursos conexos e porções conexas de enunciados: “A
linguagem não ocorre em palavras ou sentenças isoladas, mas
em discurso conectado[...]”, “[...] trecho conectado de fala.”22. É
o que teoriza Dijk (1973, p. 19), quando fala de agrupamentos
ordenados de frases: “A diferença com as gramáticas de sen-
tença, no entanto, é que as derivações não terminam como
sentenças simples ou complexas, mas como n-tuplas ordenadas
de sentenças (n 1), isto é, como SEQUÊNCIAS.”23.
Em outras palavras, e deixando de lado o conceito gráfico
de frase em benefício do de cláusulas (c) reunidas em períodos
(P), estes últimos não estão diretamente associados ao todo
textual. O esquema 1 descreve a passagem do nível microtex-
tual das cláusulas reunidas em períodos (P) ao nível macro-
textual (T), delimitado pelos marcos, ou fronteiras, inicial e
final do peritexto (< >), introduzindo o nível intermediário
transfrástico/transperiódico dos segmentos e sequências (S):

21 “A text […] is not just a string of sentences.”. (HALLIDAY; HASAN, 1976,


p. 293).
22 “Language does not occur in stray words or sentences, but in connected
discourse”, “connected stretch of speech”. (HARRIS, 1952a, p. 3).
23 “The difference with sentential grammars, however, is that derivations
do not terminate as simple or complex sentences, but as ordered n-tuples
of sentences (n 1), that is as SEQUENCES.”. (DIJK, 1973, p. 19).

63
A noção de texto

Esquema 1

Essa distinção de três níveis de textualização foi publi-


cada em trabalhos anglo-saxões sobre o parágrafo e, portanto,
a respeito dos textos escritos. Dijk (1981-1982, p. 177) situa a
noção de parágrafo “[...] no ‘mesonível’ entre a unidade de
uma cláusula ou uma sentença [...] e a unidade de um texto,
um discurso ou uma conversação como um todo [...]”24. Ele
avança, assim, as distinções estabelecidas por Longacre
(1968), entre “Discourse, Paragraph and Sentence Structure”
[discurso, parágrafo e estrutura da sentença]. Este último,
aliás, fala de um “paragraph level” [nível de parágrafo],
situado entre a “microsegmentation” [microssegmentação]
e a “macrosegmentation” [macrossegmentação] dos textos
(LONGACRE, 1992). Mais recentemente, Allison et al. (2013)
e Algee-Hewitt et al. (2015, p. 22) fazem do parágrafo uma
estrutura de nível mediano, que ocupa uma posição única e

24 “at a “meso-level” in between the unit of a clause or sentence on the one


hand, and the unit of a text, a discourse, or conversation as a whole”.
(DIJK, 1981, p. 177).

64
A noção de texto

central na economia dos textos. Ao falarmos de Segmentos


e Sequências, trata-se de ir além desse caso particular do
parágrafo, muito próprio à escrita, para ser generalizável.
Os três níveis de estruturação dos enunciados distingui-
dos no esquema 1 constituem uma textura complexa, pois
não se passa do micronível ao mesonível, em seguida, ao
macronível textual e ao macronível discursivo, conforme uma
ordem ascendente de encaixamento de unidades estruturais.
Para se aproximar da organização daquilo que Beaugrande
(1984) chama de “sistema-texto”, distinguiremos (esquema
2, adiante) três planos de análise linguística e três níveis
de estruturação textual que constituem subsistemas que
interagem uns com os outros, tanto na produção quanto na
interpretação: “Cada subsistema de um texto [...] funciona,
em parte, de acordo com seus próprios princípios internos
e, em parte, conforme demandas e retroações dos outros
subsistemas.” (op. cit., p. 356). Esses subsistemas interagem em
permanência, conforme um duplo movimento complementar:
descendente (do macro para o micro, top-down) e ascendente
(do micro para o macro, bottom up).

65
A noção de texto

Esquema 2

(*) Logo adiante, a maiúscula P corresponde


ao conceito de período, sem excluir a noção
(tipo)gráfica de frase [“Phrase”]. Sobre esses
dois conceitos, ver nesta mesma obra as entra-
das “período” e “frase”.

4.2 O NÍVEL MICROTEXTUAL DE ESTRUTURAÇÃO

4.2.1 Do intra-P ao inter-P

• No plano intra-P, colocam-se as questões de morfossin-


taxe, de articulação das cláusulas em períodos e de pontuação
(segmentação em unidades orais ou gráficas).
• No plano inter-P, a articulação dos enunciados depende
de seis fatores de conexidade e de coesão, listados a seguir em
uma ordem numérica não significativa, pois não se trata de
um macrossistema ordenado. Cada um dos seis subsistemas é
um fator de textualidade, mas nenhum deles é uma condição
suficiente por si só. Esses diferentes subsistemas estando
descritos em outras entradas da Encyclopédie grammaticale du

66
A noção de texto

français25 (entradas anáforas, conectores, memória discursiva,


tempos verbais, dêiticos, atos de discurso etc.), veremos a seguir
apenas algumas referências indicativas ou já clássicas e uma
exemplificação parcial.
O entrelaçamento desses diferentes procedimentos ativos,
tanto no nível intraperiódico (da frase complexa ao período)
como no nível interperiódico, explica a diversidade dos julga-
mentos emitidos sobre a completude, a conexidade e a coesão
de textos ou de porções de texto. Com efeito, quando vários
desses subsistemas, conjuntamente, asseguram a ligação de
uma sequência de enunciados, a impressão de conexidade
e de coesão é forte. No caso contrário, essa impressão – e,
portanto, o efeito de textura – é gradualmente mais fraco.
As ligações inter-P podem operar a distâncias curtas ou
longas e ter, assim, um papel decisivo no nível mesotextual
(conferindo uma certa unidade a um parágrafo ou a uma
parte de texto) e no nível macrotextual (pelo jogo das redes
de vocábulos e dos fatos de isotopia; a preparação de um
ato de discurso pode estender-se sobre uma porção muito
longa de texto). A textura fina das ligações microtextuais
lança pontes entre pontos da cadeia verbal. Essa tessitura
é dita microtextual, menos em razão da distância entre os
pontos a ligar, que por causa do tipo das unidades linguísticas
concernidas: sintagma, colocação, palavra, morfema, grafema
ou fonema, sinal de pontuação, ato de discurso.
25 http://encyclogram.fr/ http://encyclogram.fr/

67
A noção de texto

4.2.2 Conexidade e coesão semântica [S]

S1. Anáforas, catáforas e cadeias de referência.


É, certamente, o domínio mais explorado e já clássico na
linguística do interfrástico (APOTHÉLOZ, 1995; CORBLIN,
1987; 1995; KLEIBER, 1994; sobre a catáfora: KESIK, 1989;
COMBETTES, 2001).
O funcionamento da anáfora pronominal neste texto
encontrado no jornal Le Dauphiné libéré, de 1º de dezembro
de 2012, e maliciosamente ridicularizado no jornal Le canard
enchaîné, da quarta-feira, 19 de dezembro, esclarece bem os
problemas colocados pelo tratamento da anáfora (destaco):

(11) [P1] Os proprietários de cães de 1ª ou 2ª categoria


DEVEM ser titulares de uma autorização de porte,
expedida pela prefeitura de SEU município.
[P2] Além disso, ELES DEVEM ser mantidos com coleira.

A anáfora pronominal, por meio do pronome da terceira


pessoa “ELES”, é tomada, textualmente, em um paralelismo
entre “Os proprietários de cães de 1ª ou 2ª categoria devem
ser…” e “Ademais, eles devem ser…”. De um ponto de vista
textual, essa construção, fundada sobre a repetição dos dois
verbos e sobre o pronome de terceira pessoa, indica qual é
o tema vigente. Como mostra Kleiber (1994, p. 110-111), o
pronome “ELES” é o sinal de uma continuidade temática, da
manutenção do tema em vigor na frase precedente. Mas, no

68
A noção de texto

final de P1, uma continuidade referencial liga, claramente, o


possessivo “SEU” ao tema-tópico “os proprietários”, únicos
suscetíveis de obter uma “autorização de porte de cães”. O
constituinte nominal de abertura apresenta a particularidade
de encadear dois modificadores sucessivos de um nome,
introduzidos pela preposição “de”; cada vez, a extensão do
nome é restringida pelo grupo preposicionado posposto: “Os
proprietários < DE cães < “DE 1ª ou 2ª categoria”. Em outros
termos, a informação não concerne a todos os proprietários
nem aos proprietários de qualquer espécie canina. Fica a
questão: foi essa dupla recursividade que perturbou o redator
desse decreto municipal, que extraiu o conjunto preposicio-
nado, determinando “cachorros de 1ª ou 2ª categoria”, no
lugar do determinado “os proprietários” e da relação de posse
induzida pelo complemento de nome?
A interpretação mais intuitiva e natural de “ELES” é,
portanto, guiada no sentido de uma retomada do constituinte
nominal de abertura “humano”, e não do complemento deter-
minativo “cães de 1ª ou 2ª categoria”. É essa interpretação,
linguisticamente guiada, que permite zombar do jornal que
publicou (11). No universo estranho de (11), os proprietários
de cachorros seriam, por lei, obrigados a serem, eles próprios,
mantidos na coleira... pelo seu animal de companhia. Claro,
fatores cognitivos intervêm na interpretação, com o objetivo
de resolver os problemas de coerência e plausibilidade, em
função de nossos conhecimentos do mundo e de um princípio

69
A noção de texto

de economia cognitiva. O conteúdo da frase que engloba o


pronome deve estar de acordo com o referente escolhido e, se
não é assim, “[...] o referente convocado é eliminado, e outro
candidato é chamado.” (KLEIBER, 1994, p. 108).
É exatamente o que acontece aqui: o restabelecimento do
“bom referente” apoia-se na procura da pertinência (coerência
isotópica) da ligação entre “eles” e “na coleira”. Todo o olhar
satírico do jornal Le canard enchaîné consiste em jogar com
esse conflito entre restrições textuais e fatores cognitivos,
fundamentando a interpretação do pronome no conteúdo
do texto e no saber extralinguístico supostamente partilhado
(KLEIBER, 1994, p. 108). A interpretação do modelo da cena
de Raymond Devos, “Meu cão é alguém”, é muito custosa em
termos cognitivos, e o contexto discursivo não guia a interpre-
tação no sentido de gênero da narrativa fantástica. O gênero
legal da informação municipal é desviado pelo jornal satírico,
que transforma (11) em pérola do discurso administrativo,
pertencendo, então, ao gênero da história engraçada.
Outro exemplo: na primeira frase periódica-parágrafo do
discurso de Valls (2), destacada em negrito na versão escrita
da abertura do discurso, “ESSA”, resume o conteúdo das
duas cláusulas antitéticas precedentes (como será também
o caso com o “TAL” de c12 do cartaz (13) da “França livre”,
citado mais adiante). “ESSA” é o instrumento de uma anáfora
resumitiva (ou de encapsulamento):

70
A noção de texto

(2) Demasiado sofrimento, pouca esperança,

ESSA

é a situação da França.

Nessa construção, o atributo denota uma ou mais pro-


priedades deduzidas do cotexto anterior e atribuídas ao sujeito
invertido da frase (RIEGEL; PELLAT; RIOUL, 1994, p. 616).
As pontes anafóricas e as cadeias de referência podem
operar a distâncias maiores: ligar períodos entre si, assegurar
a unidade de um segmento textual (ligações intraparagráficas,
por exemplo), e ligar segmentos entre si: das ligações interpa-
ragráficas às ligações entre capítulos ou partes. Uma retomada
pronominal assinala uma ligação forte entre parágrafos, mas
é frequente que uma mudança de parágrafo tenha como
consequência um restabelecimento explícito do referente,
para melhor assegurar sua conservação na memória.
A questão das anáforas e da correferência é inseparável
da tensão textual entre a simples retomada-repetição e a
progressão da informação. As anáforas demonstrativas e as
reformulações-renominações são o lugar e o meio de uma
transformação do referente ao longo de um texto.
S2. Funcionamento textual da nominalização
(MOIRAND, 1975; BERRENDONNER, 1995).
A nominalização é frequentemente utilizada para se
passar de um parágrafo a outro e até de um capítulo a outro.

71
A noção de texto

A retomada pode ser fiel (nominalização estrita) ou fazer


progredir o sentido (nominalização com reformulação), como
é o caso entre o final do capítulo VIII e o início do capítulo
IX de O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry:

(12) [...] “Eu não soube então compreender nada! Deveria


tê-la julgado pelos atos e não pelas palavras. Ela me
perfumava e me iluminava. Não deveria jamais ter
fugido! Deveria ter adivinhado sua ternura por trás de
suas pobres astúcias. As flores são tão contraditórias!
Mas eu era jovem demais para saber amá-la.

IX

Creio que ele aproveitou, para sua fuga, de uma migração


de pássaros selvagens. Na manhã da partida, pôs seu
planeta em ordem. [...]”

A mudança de enunciador (discurso direto do “pequeno


príncipe”, depois, palavras do narrador) explica, parcialmente,
a infidelidade da retomada. Uma nominalização estrita teria
dado: “para sua fuga”. A escolha do lexema “evasão” acrescenta,
à ideia de fuga precipitada, a ideia de um personagem retido
no seu planeta pelo seu apego à rosa que ele ama, prisioneiro
dos seus sentimentos e “que se tornara muito infeliz”, como
o narrador diz um pouco antes.
S3. Progressões temáticas/remáticas (COMBETTES,
1983; CARTER-THOMAS, 2000).

72
A noção de texto

O exemplo (7) de Fénéon mostra uma utilização inte-


ressante da sintaxe. O plural do tema (Agente: Trens) e do
primeiro rema (transição verbal de dois lugares) permite
englobar, em posição remática R2 e R3, três elementos pro-
venientes de três faits-divers diferentes e, assim, formar um
único texto:
Tema Rema 1 Remas 2 Remas específicos
Trens mataram Cosson, em Étang-la-Ville
Gaudon, perto de Coulommiers,
e o empregado das
em Compiègne.
hipotecas Molle,
Quem?
O quê? Quem? (paciente)
(agente)

Esse dispositivo textual permite acumular, à direita do


verbo, os nomes das vítimas na posição dos pacientes (R2).
O fato de os locais das mortes serem acrescentados (remas
próprios), em seguida, dá um certo alcance geográfico à
ação nefasta dos trens, que parece estender-se por todo o
território. Isso acentua a agentividade da máquina e a força
dramática dos seus atos mortíferos. Em um mundo que se
tornou louco ou fantástico, temos a impressão de assistir a
uma multiplicação de ataques mortíferos.
S4. Colocações (HAUSSMANN; BLUMENTHAL, 2006) e
coocorrências de vocábulos (LEGALLOIS, 2006; VIPREY, 2006).

73
A noção de texto

Como Mayaffre (2007) mostra muito bem, é aí que se


encontram a linguística textual e a análise de texto assistida
por computador (análise de dados textuais ADT, também
chamada Análise Textual), leitura linguística linear e leitura
digital tabular. Os trabalhos mais inovadores nesse domínio,
ao apontar copresenças atestadas e microdistribuições de
vocábulos dentro de um texto ou de um corpus,

[...] visam completar a abordagem estatística


paradigmática, ou não-sequencial, original da
lexicometria com um tratamento mais global
da superfície dos textos e dos corpora, capaz
de dar conta de sua organização espacial,
linear ou contínua: é o que doravante será
designado como a sua organização topográfica
ou topológica. (MAYAFFRE, 2007, p. 3).

O estudo do poema (17) mostrará isso mais adiante (§5.2.2).


S5. Isotopias: cotopia, poliisotopia e heterotopia
(GREIMAS, 1970, p. 188 e, para a sua aplicação à questão
das figuras, BONHOMME, 2005; 2006).
Na sequência de Greimas, Eco (1985a, p. 120) fala da
isotopia em termos de “coerência de um percurso de leitura,
nos diferentes níveis textuais” (frástico e transfrástico) e
insiste na sua função de desambiguização transfrástica ou
textual. A determinação do tópico é, segundo Eco (op. cit., p.
131), um “movimento cooperativo (pragmático)” que leva o
interpretante (leitor ou ouvinte) a “[...] determinar as isotopias
como propriedades semânticas de um texto.”. É assim que

74
A noção de texto

o texto publicitário (3) desliza, progressivamente, do objeto


mecânico para o animado feminino (animal ou humano), já
pelos dois substantivos do título-slogan e, em seguida, por
meio de dois adjetivos (destaco em negrito):

(3) A Manta.

Rapidez. E temperamento!

Manta. O conversível que tem classificação: o favorito


na Europa. Não é por acaso!

Há, primeiramente, sua linhagem raceada, incompa-


rável. Graças a ela, a Manta se destaca, ao correr com
outros carros. E isso, pela rapidez.

Quanto ao temperamento, veja, principalmente, o


desempenho da nova Manta i240, com seu impetuoso
motor à injeção 2.4l: de 0 a 100Km/h em 8,8seg., velo-
cidade de ponta de mais de 200Km/h! [...].

Além dos efeitos figurativos – como, aqui, a metáfora


da égua de concurso26, induzida pelas colocações “linhagem
raceada” e “temperamento impetuoso” –, os problemas de
ambiguidade e desambiguização fazem sentido, particular-
mente, no nível da conexidade-coesão semântica. Fuchs (1985)
sublinha isso, lamentando a falta de “estudos sistemáticos
sobre ambiguidade e a paráfrase no nível do texto”:

26 Aqui é preciso levar em conta o gênero feminino da palavra implícita


que, em francês, designa o referente: “voiture” [carro]. [N. T.].

75
A noção de texto

Tais estudos seriam, contudo, valiosos, pois,


nesse domínio de constituição da significa-
ção, a limitação à frase aparece como uma
restrição prejudicial: [...] muitas ambiguidades
potenciais de frases isoladas não subsistem
em um contexto mais amplo e, inversamente,
outras ambiguidades são geradas pela tessi-
tura progressiva dos significados ao longo do
texto; do mesmo modo, algumas relações de
paráfrase são bloqueadas ou, ao contrário,
liberadas, dependendo do contexto. (FUCHS,
1985, p. 20-21).

Em (3), podemos dizer que uma ambiguidade é “[...] gerada


pela tessitura progressiva dos significados [...]” e pela feminização
do automóvel. Como mostra a evolução da lexicometria (SALEM,
1987), a unidade de tratamento é menos a palavra, unidade gráfica/
fônica, muitas vezes ambígua, do que o segmento:

Assim, o estudo de segmentos repetidos


oferece uma alternativa à lematização. Ele
permite desambiguizar os termos de maneira
formal e, sobretudo, de maneira endógena,
no corpus e não em relação a uma referên-
cia (arbitrária) ao dicionário ou à língua.
(MAYAFFRE, 2007, p. 9).

4.2.3 Conexidade sustentada por “conectores” [C]

Vários tipos de “conectores” podem ser distinguidos


(ADAM, 1990, p. 141-252; 2019, p. 140-160).

76
A noção de texto

C1. Os organizadores textuais: organizadores espa-


ciais, organizadores temporais, organizadores enumerativos
(aditivos e de integração linear), marcadores de mudança de
tópico (quanto a, no que se refere a, por outro lado…; ver
COMBETTES, 1999), marcadores de ilustração e de exem-
plificação (por exemplo, notadamente, em particular, como,
entre outras coisas, assim...; ver LANDOLSI, 2018). A redação
de (3) ilustra bem o papel desses organizadores textuais, que
são completados pelo aditivo “Acrescente a isso”:

(3) A Manta.

Rapidez. E temperamento!

Manta. O conversível que tem classificação: o favorito


na Europa. Não é por acaso!

Há, PRIMEIRAMENTE, sua linhagem raceada, incom-


parável. Graças a ela, a Manta se destaca, ao correr com
outros carros. E ISSO, PELA rapidez.

QUANTO AO temperamento, veja, principalmente, o


desempenho da nova Manta i240, com seu impetuoso
motor à injeção 2.4l: de 0 a 100Km/h em 8,8seg., velo-
cidade de ponta de mais de 200Km/h!

JUNTE A ISSO, um chassi esporte rebaixado, rodas


largas em metal leve, freios a disco ventilados na dian-
teira, amortecedores de pressão a gás Bilstein e um
equipamento esportivo completo. [...]

77
A noção de texto

O marcador de integração linear “primeiramente” assi-


nala o tratamento do primeiro rema (P2) e o marcador de
mudança de tópico “Quanto ao temperamento”, que abre o
segundo parágrafo, anuncia a passagem para o segundo rema
(P3). O encerramento do segundo parágrafo é sublinhado
por um conclusivo: “E isso, pela rapidez”.
Poderíamos acrescentar o aditivo da segunda frase de
(11), “Além disso”, que introduz uma informação suplementar.
C2. Os conectores propriamente ditos (DUCROT, 1980):
argumentativos e concessivos (mas, entretanto, no entanto,
certamente, contudo, mesmo assim...), explicativos e justificati-
vos (pois, porque, uma vez que, se é isso que, por isso, é por isso
que...), simples marcadores de um argumento (mesmo, aliás,
além disso...); funcionamento periódico dos hipotéticos reais e
ficcionais em SE c1 ENTÃO c2 e dos intensivos consecutivos
em tão... que: TÃO + adjetivo c1 QUE c2 etc.
O célebre cartaz da “França livre”, espécie de versão
escrita do “Apelo de 18 de junho de 1940” (ver anexo 2),
apresenta uma estrutura claramente articulada em torno dos
conectores argumentativos “MAS” [3] e “NO ENTANTO” [5]
e dos conectores explicativos “PORQUE” [7] e “EIS PORQUE”
[13], que enquadram os organizadores temporais “Um dia” [9],
“esse dia” [10] e “então” [11], todos isolados e destacados por
um sinal de pontuação (ponto e vírgula ou par de vírgulas):

78
A noção de texto

[1] A TODOS OS FRANCESES

[2] A França perdeu uma batalha!

[3] MAS a França não perdeu a guerra!

§1 [4] Governantes de ocasião podem ter capitulado,


cedendo ao pânico, esquecendo a honra, entregando o
país à servidão. [5] NO ENTANTO, nada está perdido!

§2 [6] Nada está perdido, [7] PORQUE esta guerra é uma


guerra mundial. [c8] No universo livre, forças imensas
ainda não foram empenhadas. [9] UM DIA, essas forças
esmagarão o inimigo. [10] É preciso que a França, NESSE
DIA, esteja presente na vitória. [11] ENTÃO, ela encontrará
de volta sua liberdade e sua grandiosidade.

§3 [12] Esse é meu objetivo, meu único objetivo!

§4 [13] EIS POR QUE eu convido todos os franceses,


onde quer que estejam, a se unirem a mim na ação, no
sacrifício e na esperança.

§5 [14] Nossa pátria está em perigo de morte. [15]


Lutemos para salvá-la!

[16] VIVA A FRANÇA!

[17] [assinatura manuscrita]

GENERAL DE GAULLE

[18] QUARTEL-GENERAL,

4, CARLTON GARDENS,

LONDRES, S. W. 1]

79
A noção de texto

C3. Marcadores de coesão textual (veremos mais adiante/


depois/abaixo, ver abaixo/acima, página x/capítulo y etc.) e
marcadores discursivos próprios da oralidade (bom, aí, assim,
ok etc.). Os marcadores de coesão textual são reveladores de
relações intratextuais a distâncias variáveis (LEFEBVRE,
2014), da escolha de não dizer aqui, mas em outro lugar do
texto (remissão intratextual local), no texto considerado no
seu conjunto (remissão intratextual global: “na presente obra”,
“neste artigo”) ou como dito no texto de outrem (remissão
intertextual do tipo: ver X; X, 2011; Cf. X). Os marcadores do
discurso oral são indicadores muito importantes.
4.2.4 Ligações operadas pela materialidade
significante gráfica e fônica [M]

As retomadas de grupos de grafemas e de grupos de fone-


mas (ligações isográficas e isofônicas M1) formam espécies de
isotopias do plano de expressão, denominadas “isoplasmias”
pelo Grupo µ (1977, p. 34-36). Com os paralelismos morfos-
sintáticos (RUWET, 1975; 1979) e as repetições sob forma
de anáforas retóricas (M2), com a estruturação rítmica dos
períodos (M3; ADAM, 2019, p. 127-134, 164-171), essas ligações
do significante são importantes fatores de organização textual,
especialmente nos slogans, nos provérbios, na canção e na
poesia, nos trocadilhos, nos lapsos e nos ditos espirituosos,
mas também nas manchetes da imprensa escrita e na arte
oratória em geral.

80
A noção de texto

Essa atenção às ligações do significante tem sua origem


nos trabalhos de Jakobson (1963), sobre a “função poética
da linguagem” (revistos por RUWET, 1975), e na pesquisa
de Saussure dedicada aos anagramas (TESTENOIRE, 2013
e, sobre os anagramas homéricos, SAUSSURE, 2013). Entre
1906 e 1909, o linguista genebrino interessou-se por um prin-
cípio de composição da poesia greco-latina que se baseia na
disseminação, nos versos, das sílabas de uma “palavra-tema”
(na maioria das vezes um nome próprio) e nos acoplamentos
sistemáticos de fonemas e grupos de fonemas que caracteri-
zam, em particular, os versos saturninos. Testenoire (2018)
examinou como esses trabalhos de Saussure foram interpreta-
dos e reutilizados nas teorias linguísticas do texto (incluindo
as ligações de significantes M1, tal como as considero aqui).
O título-slogan (3), já estudado acima, é estruturado por
ligações isofônicas (M1):

(3) [P1] A Manta.

[P2] Rapidez. [P3] E temperamento!

Ao mesmo tempo, a sintaxe é trabalhada pelo ritmo


silábico (P1 = 3 sílabas + P2 = 3 sílabas “E” P3 = 6 sílabas) e
pelas ligações fônicas entre P1, P2 e o final de P3: /a mãta/…
/rápidos/ … /amãta/ .../ tẽperamẽto/27. Podemos dizer que

27 Adaptação fonética ao original francês: LA MANta. De L’Allure. Et du


tempérAMENT!; /la mãta/ … /lalyr/ et /lamãta/ … /tãperamã/. [N.T.].

81
A noção de texto

a palavra-tema nominal presente em P1 difrata-se em P2 e


em P3, segundo o funcionamento identificado por Saussure.
A primeira frase periódica-parágrafo do discurso de
Valls (2), destacada em negrito na versão escrita oficial, é
muito elaborada, a partir do modelo do período ternário da
arte oratória, e é, inclusive, ritmicamente um belo exemplo de
um período ropálico (um período cujos membros tornam-se
cada vez mais longos):
(c1) TROP de souFFRANCE^// 4 sílabas
Ligações [demasiado sofrimento] Ligações do
Antítese
semânticas significante
(c2) PAS / ASSEZ d’espéRANCE / 6 sílabas
[pouca esperança]
Anáfora presuntiva
(c3) TELLE / est la situation / 10 sílabas
de la FRANCE v///
[essa é a situação da França]

Esse período é marcado por um importante trabalho do


significante (M1), com as repetições, no final de cada um dos
três membros do período, da sílaba “-RANce” e duas vezes “(F)
RANce”. A pressão do significante gera um deslizamento meto-
nímico da parte (os cidadãos, os franceses) para o todo (França),
sob a forma de alegorização. O terceiro membro do período é a
soma decassilábica dos dois membros anteriores. Não há melhor
maneira de combinar um fato formal com um fato semântico.

82
A noção de texto

O cartaz (13) começa com a colocação em paralelo (M2)


de dois enunciados (centrados, destacados por itálico e acen-
tuados por um ponto de exclamação), em que o segundo é a
refutação argumentativa do anterior:

(13) A França Perdeu uma batalha!


MAS a França não perdeu a guerra!

Assim constituído, o período assume a forma binária


característica dos provérbios e ditados. Isso confere-lhe a
força de um slogan memorizável, resumo do argumento do
texto que se segue.
A frase periódica [4] é um belo exemplo sintático e rít-
mico (M3) de um período de quatro membros, com expansão
ternária (construções deslocadas) à direita do verbo:

(13) GoverNANTES ceDENDO ao pânico,


de oCAsião podem
esqueCENDO a honra,
ter capitulado,
entreGANDO o país à servidão.

O texto (7) de Fénéon explora, plenamente, a estrutura


do paralelismo (M2) e do ritmo ternário. A estrutura informa-
cional situa-se em torno do verbo pronominal, com uma forte
expansão à esquerda do verbo, que coloca em posição forte, à
direita do verbo e após os dois pontos introdutórios, a explicação
causal dessa acumulação de suicídios por enforcamento.

83
A noção de texto

4.2.5 Ligações baseadas na recuperação


inferencial das informações implícitas [i]

Como resumem Berrendonner e Béguelin (1989, p. 124),

Certamente, um texto é uma sequência de


elementos. Mas estes são tanto implícitos
como explícitos. Um período consiste não só
de cláusulas, mas também de estados cogni-
tivos intersticiais, produzidos por inferência,
a partir da cláusula anterior, e pressupostos
por aquela que se segue.

Essa ideia também está presente na teoria do texto e da lei-


tura de Beaugrande (1984, p. 359), para quem “Uma atividade
de INFERÊNCIA intervém, quando uma descontinuidade
específica obriga a construir uma ponte para restabelecer
a continuidade do discurso.” [ênfase no original francês].
Dependendo do grau de transparência ou opacidade que
pretende dar ao seu texto, o enunciador deveria antecipar a
informação que os ouvintes/leitores serão capazes de resta-
belecer. Várias formas de não dito participam da tessitura de
sentidos, permitindo preencher os brancos da escrita e os silên-
cios da oralidade: as elipses (i1; CHERCHI, 1978; HALLIDAY;
HASAN, 1976, capítulo 4, p. 142-224), os pressupostos (i2;
DUCROT, 1969; KLEIBER, 2012), os subentendidos (i3;
DUCROT, 1969; PERNOT, 2018) e a intertextualidade (i4;
ADAM, 2018, p. 205-316). Como vimos acima, o texto está,
a esse respeito, mais próximo da renda do que do tecido. E o
não dito é tão importante quanto o dito.

84
A noção de texto

Em (13), o encadeamento das duas frases tipográficas é


baseado num paralelismo, tão fortemente articulado em torno
do conector “MAS”, que essas duas cláusulas formam, além
da fronteira do ponto de exclamação, um único período. Essa
estrutura binária sob forma de entimema baseia-se na elipse
(i1) de uma terceira cláusula, premissa menor de um silogismo:
(ora) uma guerra não se reduz a uma única batalha [c2]. Essa
cláusula c2 assegura a passagem da premissa principal concedida
e colocada como admitida (essa é a natureza das premissas):
(certamente) a França perdeu uma batalha [c1] até à conclu-
são-refutação: (portanto) a França não perdeu a guerra [c3].
O pequeno poema em prosa seguinte, de Baudelaire (14),
permite ilustrar quase todos os casos de implicitação listados:

(14) O ESPELHO

Um homem muito feio entra [c1] e olha-se no espelho [c2].


“Por que o senhor olha-se no espelho [c3], uma vez que
só pode se ver nele com desprazer?” [c4]
O homem muito feio responde-me [c5]: “– Senhor
[c5-1], de acordo com os imortais princípios de 89 [c5-2],
todos os homens são iguais em direitos [c5-3]; portanto,
eu possuo o direito de me mirar [c5-4]; com prazer ou
desprazer, isso só diz respeito à minha consciência.” [c5-6]
Em nome do bom senso, eu tinha, sem dúvida, razão [c6];
mas, do ponto de vista da lei, ele não estava errado [c7].

A elipse (ele) do sujeito do segundo verbo do primeiro


parágrafo: “Um homem feio entra e [Ø] olha-se ao espelho” é

85
A noção de texto

uma elipse recuperável simples. Essa elipse acentua a unidade


periódica formada pela coordenação das cláusulas c1 E c2.
Uma outra elipse ocorre no parágrafo 2, marcada pela ausência
de verbo atributivo do discurso direto. É preciso aguardar o
início do terceiro parágrafo para que, com “O homem feio
responde-me” e por pressuposição (i2, para responder, é pre-
ciso, com efeito, que uma pergunta haja sido feita), possamos
restabelecer a elipse, entendendo que o sujeito designado pelo
pronome de primeira pessoa “ME” foi o autor da pergunta.
Uma outra pressuposição passa pelo conector “UMA VEZ
QUE”. A asserção “só pode se ver nele com desprazer” [c4] é
colocada como um fato admitido, interlocutivamente. Esse
acordo, sob a forma de uma pressuposição (i2), torna possível
a pergunta intrigada do narrador.
No discurso direto do terceiro parágrafo, o raciocínio
do personagem assume a forma de entimema, em razão da
supressão da premissa menor de um silogismo: só se pode
passar da premissa maior, que cita a Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão [c5-2], para a conclusão introduzida
por “PORTANTO”, apoiando-se em uma premissa menor
do tipo: Ora, sou um homem (subentendido complementar:
apesar da minha feiura extrema; embora “feio”, ele não deixa
de ser um homem). Quanto à cláusula [c5-6] “isso só diz
respeito à minha consciência”, ela contém um subentendido
(i3) conclusivo: Se me olho no espelho ou não, não é da sua
conta, e um implícito: Não temos mais nada a nos dizer; este
intercâmbio acabou!.

86
A noção de texto

Um último aspecto da implicitação é também exem-


plificado nesse texto: a retomada de um enunciado presente
em um outro texto (i4). É o caso da expressão formulaica “os
imortais princípios de 89”. Esse segmento já aparece no corpus
baudelairiano28 (intratextualmente), numa passagem de Mon
coeur mis à nu (seção 15, subseção “Portraits et anecdotes”),
em que Baudelaire pinta um retrato de Charpentier, editor
da Revue nationale, que se permitia corrigir os poemas em
prosa enviados pelo poeta: “[Charpentier] que corrige os seus
autores, em virtude da igualdade dada a todos os homens pelos
imortais princípios de 89.”. Esse mesmo segmento encon-
tra-se, intertextualmente, na profissão de fé republicana do
farmacêutico Homais, no capítulo 1 da segunda parte do
romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert: “Meu Deus,
para mim, é o Deus de Sócrates, de Franklin, de Voltaire e
de Béranger! Sou pela Profissão de Fé do vigário saboiano
e pelos imortais princípios de 89!”. Esse segmento textual
remete a um interdiscurso político do qual ambos os escri-
tores distanciam-se, um e outro, ironicamente. Certamente
legível por um número limitado de leitores, esse piscar de
olhos intertextual e intratextual torna o personagem de “O
Espelho” tão pedante e ridículo quanto o farmacêutico de
Madame Bovary e o editor da Revue nationale.

28 Referência ao poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867). [N. T.].

87
A noção de texto

4.2.6 Coesão e transições enunciativas [É]

Três grandes categorias de fatos enunciativos asseguram


a unidade de porções de texto e as transições entre seções
enunciativamente heterogêneas: as rupturas de continuidade
na assunção enunciativa e a atribuição dos enunciados (E1.
DENDALE; COLTIER, 2011; ADAM, 2019, p. 90-95), de
onde decorrem variações ou mesmo confrontações de pontos
de vista (RABATEL, 1998; NØLKE; FLØTTUM; NORÉN,
2004, p. 31-37); as variações dos planos de enunciação (E2.
SIMONIN-GRUMBACH, 1975; ADAM, 2019, p. 231-249) e
os retornos ou loops meta-enunciativos do dizer sobre o dito
(E3. AUTHIER-REVUZ, 1995).
O apagamento enunciativo que caracteriza as breves
jornalísticas de Fénéon é acentuado em (6) pelo aparecimento
da frase P3: “Loucos, aparentemente”. A qualificação dos atos
na categoria de doença mental é atribuída a um enunciador
anônimo que imaginamos ser institucional (polícia, médicos).
O enunciador distancia-se, assim, tanto dos rumores como
do julgamento oficial.
Certas proposições, mais ou menos indicadas como tais,
podem aparecer como enunciativamente heterogêneas. Os
casos mais simples são os da citação e do discurso relatado.
Do mesmo modo, o discurso direto de “o homem feio”, em
(14), marcado por aspas e um travessão, e onde os pronomes
pessoais de primeira pessoa EU e ME podem referir a dois

88
A noção de texto

enunciadores diferentes: EU do narrador nos enunciados


narrativos e EU do personagem no discurso direto. O presente
de narração (“entra”, “olha-se”) e os imperfeitos do último
parágrafo (“tinha”, “estava”) fazem de (14) uma narrativa
embreada, enunciativamente. É, igualmente, para marcar
a assunção enunciativa que servem os três enquadrativos
presentes nesse poema: introduzem uma “enunciação media-
tizada” (GUENTCHEVA, 1994; 1996) e, portanto, pontos de
vista (PdV) diferentes:
[...] “– Senhor [c5_1], DE ACORDO COM os imortais
princípios de 89 [c5_2], todos os homens são iguais em
direitos [c5_3]; portanto, eu possuo o direito de me
mirar [c5_4]; com prazer ou desprazer [c5_5], isso só diz
respeito à minha consciência.” [c5_6] EM NOME DO
bom senso, eu tinha, sem dúvida, razão [c6]; mas, DO
PONTO DE VISTA da lei, ele não estava errado [c7].

“DE ACORDO COM os imortais princípios de 89” remete


ao texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Os enquadrativos “EM NOME DO bom senso e DO PONTO
DE VISTA da lei” opõem dois PdV, enquanto que a estrutura
concessiva coloca, de maneira muito polêmica, a lei republicana
e democrática fora da esfera do bom senso. Acrescentemos
que a negação “ele não estava errado” é muito diferente da
“razão” atribuída, sem negação, ao locutor-enunciador “EU”.

89
A noção de texto

O dispositivo enunciativo, que se situa em torno do conector


argumentativo MAS, é resumido no esquema 3:

Esquema 3

4.2.7 Sequenciação dos atos de discurso [A]

Na continuidade de Apostel (1980), Viehweger (1990, p.


48) critica, muito acertadamente, as gramáticas de texto, por
não captarem a estrutura acional dos textos e pelo fato de
os atos de discurso estarem “[...] ligados uns aos outros para
realizarem objetivos complexos.”. Eles constituem, assim,
estruturas ilocucionárias as quais, ele observa, “[...] encontram-
-se numa relação sistemática com estruturas globais de textos
(por exemplo, estruturas de textos argumentativos, descritivos,
narrativos etc.).” (Id. Ibid.). Vanderveken (1992) também
insistiu nessa estruturação textual dos atos de discurso:

90
A noção de texto

Um verdadeiro discurso é muito mais do


que uma simples sequência finita de atos ilo-
cucionários. Tem uma estrutura e condições
de felicidade que lhe são próprias e que são
irredutíveis às dos atos ilocucionários isolados
que dela fazem parte. (VANDERVEKEN,
1992, p. 64).

As intervenções complexas de Vanderveken (1992) são


muito próximas das estruturas ilocucionárias de Viehweger
(1990) e dos meus tipos de sequências de base (ADAM, 2011a):
“descrições, argumentações, explicações, justificações e ques-
tionamentos” (VANDERVEKEN, 1992, p. 58). Ele os considera
como atos de discurso “[...] cuja natureza é mais complexa
do que a dos atos ilocucionários elementares auxiliares que
os compõem.”. (Id. Ibid.). Em sua perspectiva interacionista,
Kerbrat-Orecchioni (2001, p. 58-68) retoma essa ideia de
“organização sequencial dos atos de linguagem”. A famosa
dedicatória de O pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry, é um
belo exemplo de uma unidade (peri)textual estruturada
por atos de discurso (destacados em negrito), entre os quais
desenvolve-se um conjunto argumentativo balizado pelos
conectores SE-ENTÃO e PORTANTO, aos quais MESMO
pode ser acrescentado, assim como o MAS do parêntese final:

91
A noção de texto

(15)

A Léon Werth

Eu peço perdão às crianças por haver dedicado este


livro a uma grande pessoa. Tenho uma séria desculpa:
essa pessoa grande é o melhor amigo que tenho no
mundo. Tenho outra desculpa: essa pessoa grande pode
compreender tudo, MESMO os livros para crianças.
Tenho uma terceira desculpa: essa pessoa grande mora
na França, onde ela tem fome e sente frio. Ela tem
bastante necessidade de ser consolada. SE todas essas
desculpas não são suficientes, quero dedicar este livro à
criança que foi, antigamente, essa pessoa grande. Todas
as pessoas grandes foram, primeiramente, crianças.
(MAS poucas entre elas lembram-se disso.) Eu corrijo,
PORTANTO, minha dedicatória:

A Léon Werth
quando ele era menino.

O enunciado “A Léon Werth”, amigo judeu do autor,


que foge da polícia de Vichy e procura escapar da Gestapo, é
um ato ritual no limiar de um livro (performativo implícito:
“Dedico este livro a Léon Werth”). Contudo, de maneira
surpreendente e rara, o escritor detém-se nesse primeiro ato
de dedicatória, antes de reiterá-lo após outro ato (performativo
metadiscursivo): “Corrijo”, no final do texto. Outro ato de
discurso forte intervém entre os dois: “Peço perdão”, antes
que uma tripla desculpa seja alegada, obviamente julgada

92
A noção de texto

insuficiente, dialogicamente, mas que permite ao autor de


Piloto de guerra e de Carta a um refém inscrever O Pequeno
Príncipe no contexto histórico da “Ocupação” e da escrita
no exílio de um livro publicado pela primeira vez em Nova
Iorque, em 1943.
No cartaz político (13), os atos sucessivos de concessão
[5], de explicação [7], de predição [9 a 11] preparam o apelo
propriamente dito: “Convido todos os franceses ...” [13]. Esse
apelo à deserção e ao engajamento na guerra, contra a decisão
de capitulação do governo então vigente, só ocorre no término
de uma longa preparação argumentada que o torna possível,
ao legitimá-lo. O texto encerra com uma injunção à ação
(imperativo de primeira pessoa do plural, “Lutemos todos
...” [15]), que vai além do convite de [13].

5 DA TEXTURA À ESTRUTURA
TRANSFRÁSTICA/TRANSPERIÓDICA

5.1 O NÍVEL MESOTEXTUAL

Levar em consideração a escrita como fato autônomo


permitiu o surgimento de um estudo linguístico da pon-
tuação do texto. De acordo com a concepção da “imagem
textual”, desenvolvida por Neveu (2000), podemos distinguir
dois tipos de fatos de pontuação que, ainda que próprios da
escrita, lembram a distinção comum entre função expressiva

93
A noção de texto

(icônica) e função demarcatória (convencional) da entonação


na oralidade (distinção contestada por MOREL; DANON-
BOILEAU, 1998, p. 9-12).
• Os fatos de modulação agrupam os “acréscimos tipográ-
ficos” tais como itálico, negrito (ex. 2), sublinhado, aspas, e os
diferentes procedimentos de ênfase gráfica, como os “sinais
de pontuação da afetividade” (os pontos de exclamação de (3)
e (13), em particular). Ligados às necessidades enunciativas
da escrita, esses fatos são bem descritos por Dahlet (2003),
em Ponctuation et énonciation.
• Com os fatos de segmentação (fronteiras gráficas), pas-
samos dos fatos microtextuais a fatos meso e macrotextuais,
que não foram suficientemente distinguidos de forma clara
por Neveu (2014 [2000], p. 2):

[...] envolvidos nos mecanismos de hierarqui-


zação das zonas de localidade e que formam
fronteiras gráficas intrafrásticas ou transfrás-
ticas: pontuação de separação e de fechamento
dos segmentos sintáticos, modos de inserção
das sequências textuais nas estruturas englo-
bantes, títulos, tipos de planos – numéricos,
alfanuméricos etc. –, numeração e estrutura
volumétrica dos parágrafos, gestão das alíneas
e dos espaços etc.

Ao falar de “pontuação de sequência”, Dahlet (2003, p. 52)


descreve esses fatos de segmentação como “[...] meios de balizar,

94
A noção de texto

agrupar/desagrupar e hierarquizar os conteúdos [...]” em um


nível textual. Essa ideia já está presente na textologia de Laufer
(1986, p. 76): “A valorização tipográfica articula, visualmente, a
profundidade dos níveis textuais.”. O que é válido, como mostra
a enumeração de Neveu (2000), tanto no nível microtextual do
período como no nível mesotextual da estruturação interna
dos parágrafos e das sequências textuais, assim também no
nível macrotextual das seções, partes e capítulos, dos planos
de texto e das fronteiras peritextuais (títulos etc.).
Na escrita, é necessário distinguir os fatos de segmen-
tação microtextual, os fatos de segmentação mesotextuais
(como a alínea e o parágrafo) e os fatos de segmentação
macrotextuais (títulos, subtítulos e intertítulos, planos digitais,
alfanuméricos, brancos intercalares). No nível mesotextual,
a alínea simples delimita a fronteira gráfica do parágrafo
pelo recuo e o espaço em branco no final da linha (linha
oca). A alínea marcada com branco de uma ou várias linhas
entre os parágrafos permite, no nível macrotextual, balizar
as fronteiras de grupos de parágrafos e, portanto, as partes
de um plano de texto.
Mudar de linha para iniciar um novo parágrafo serve
para agrupar um conjunto de frases/períodos estreitamente
relacionados ou, destacando-a, para realçar uma cláusula ou
um período que formam uma frase gráfica. Isso permite, por
exemplo, desligar (ou não) o discurso direto do seu cotexto

95
A noção de texto

narrativo ou argumentativo, separar uma narrativa de um


cotexto dialogal ou argumentativo, ou explicativo, no qual
está inserido, isolar um bloco descritivo ou fragmentar uma
descrição em partes, ou uma narrativa em episódios etc.
Assim, os parágrafos §2 e §3 do cartaz (13) passam por uma
transformação significativa na tradução em inglês (13bis),
colocada na parte inferior do cartaz (destaco em negrito as
frases tipográficas 12, 14 e 15 em questão; ver anexos 2 e 3):

(13) [1] A TOUS LES FRANÇAIS [...]


§2 [6] Rien n’est perdu, [7] parce que cette guerre est
une guerre mondiale. [8] Dans l’univers libre, des
forces immenses n’ont pas encore donné. [9] Un
jour, ces forces écraseront l’ennemi. [10] Il faut que
la France, ce jour-là, soit présente à la victoire. [11]
Alors, elle retrouvera sa liberté et sa grandeur. [12]
Tel est mon but, mon seul but!
§3 [13] Voilà pourquoi je convie tous les Français, où
qu’ils se trouvent, à s’unir à moi dans l’action, dans
le sacrifice et dans l’espérance.
[14] Notre patrie est en péril de mort.
[15] Luttons tous pour la sauver! [...]

96
A noção de texto

(13bis) [c1] TO ALL FRENCHMEN.. […]


§2 [6’] Nothing is lost, [7’] because this war is a world
war. [8’] In the free universe immense forces have
not yet been brought into play. [9’] Some day these
forces will crush the enemy. [10’] On that day France
must be present at the Victory. [11’] She will then
regain her liberty and her greatness.
§3 [12’] That is my goal, my only goal!
§4 [13’] That is why I ask all Frenchmen, wherever
they may be, to unite with me in action, in sacrifice
and in hope.
§5 [14’] Our Country is in danger of death. [c15] Let
us fight to save it! […]

[[c1] A TODOS OS FRANCESES [...]


§2 [6] Nada está perdido, [7] porque esta guerra é uma
guerra mundial. [8] No universo livre, forças imensas
ainda não foram empenhadas. [9] Um dia, essas forças
esmagarão o inimigo. [10] É preciso que a França,
nesse dia, esteja presente na vitória. [11] Então, ela
encontrará de volta sua liberdade e sua grandiosidade.
§3 [12] Esse é meu objetivo, meu único objetivo!
§4 [13] Eis por que eu convido todos os franceses, onde
quer que estejam, a se unirem a mim na ação, no
sacrifício e na esperança.
§5 [14] Nossa pátria está em perigo de morte. [c15]
Lutemos para salvá-la! [...]]

97
A noção de texto

[12] é destacado do §2 para formar um novo parágrafo.


O §3 é retomado para formar um §4 construído em paralelo
com o novo §3, paralelismo baseado no mesmo início de
parágrafo por “That is...”. Por fim, [14] e [15], na posição
de alíneas centrados em (13), são combinados para formar
o último parágrafo (§5) do corpo argumentativo do cartaz
em inglês. Isto reforça a unidade dessas duas frases, que
formam uma unidade periódica na qual a dramatização de
[14] justifica [15].
Na oralidade, são as pausas marcadas, os marcadores
discursivos e as entonações descendentes, juntamente com
a completude sintática e certos movimentos corporais, que
servem como marcas textuais. Isso completa, evidentemente, o
papel microtextual das pausas e da prosódia na marcação das
construções deslocadas e de outros incisos microssintáticos.
Em Forms of talk, Goffman (1978) destaca unidades que, na
oralidade conversacional, para além dos períodos, podem
ser consideradas como equivalentes do parágrafo: os turnos
conversacionais (“turns of talk”) emparelhados sob a forma
de intercâmbios bipartidos (“two-party interchanges”) estão
ligados entre si por uma ou mais sequências (iso)tópicas ou
percursos temáticos (“topical runs”):

Elocuções não são situadas em parágrafos,


mas em turnos em situações de fala, impli-
cando uma tomada temporária da palavra,
assim como uma alternância de falantes. Os

98
A noção de texto

próprios turnos são, naturalmente, empare-


lhados em intercâmbios bilaterais. Os inter-
câmbios são ligados por fios marcados por
uma espécie de topicalidade. Um ou mais
desses fios tópicos constroem o corpo da
conversação. (GOFFMAN, 1978, p. 787).29

Os trabalhos sobre os textos conversacionais enfatizam que


um diálogo-conversação é uma coconstrução, uma realização
interativa (SCHEGLOFF, 1982) que se apresenta não somente
como uma sucessão de intercâmbios, mas como uma estrutura
hierarquizada de intercâmbios. Importa pouco que essa forma de
textualização seja poligerada (intervenções de vários locutores),
pois os participantes sucessivos estão, quer queiram quer não,
engajados na coconstrução de um único texto.
O nível mesotextual da estruturação compreende, de
fato, dois componentes cuja combinação é muito flexí-
vel: os segmentos no plano da divisão gráfica ou sonora
dos enunciados e os agrupamentos de frases/perío-
dos (P) em macroproposições (MP) no plano semântico
(esquema 4, a seguir).

29 Utterances are housed not in paragraphs, but in turns at talk-occasions


implying a temporary taking of the floor, as well as an alternation of takers.
Turns themselves are naturally coupled into two-party interchanges.
Interchanges are linked in runs marked off by some sort of topicality.
One or more of these topical runs make up the body of a conversation.
(GOFFMAN, 1978, p. 787).

99
A noção de texto

Esquema 4

Enquanto unidades de sentido, os segmentos, enfatizados


por alíneas na escrita e pausas marcadas na oralidade, são
constituídos por um número indeterminado de cláusulas
ligadas dentro de frases gráficas e períodos. A alínea e a
pausa marcada conferem ao parágrafo (ou à estrofe, nos
poemas, nas canções e nas cantigas) uma conexidade e uma
coesão semântica subsumível por, ao menos, uma MP que
resume o tema-tópico (papel dos títulos e intertítulos) ou o
ato de discurso englobante (por exemplo, qualificando (13)
como “Apelo de 18 de junho de 1940”).
As MP correspondem a sequências de processamento
no curso das quais os agrupamentos de cláusulas, de frases
e de períodos resultam na construção de unidades de sentido
de maior nível de complexidade. Assim, no exemplo (15) da
dedicatória de Saint-Exupéry, a cláusula hipotética “SE todas
essas desculpas não são suficientes...” resume a sequência das
três desculpas apresentadas e pode ser vista como uma forma
de empacotar as quatro frases tipográficas anteriores. Vimos

100
A noção de texto

a mesma operação de resumo de um conjunto de cláusulas


por meio dos anafóricos “esse” do cartaz (13-c12) e “essa” do
discurso de Valls (2- c3).
É esse mecanismo, chamado “chunking”, por Johnson-
Laird (1988), que o conceito de MP abrange. Um “chunk”
(literalmente, “pedaço grosso”) é um pacote, o resultado de
um empacotamento que combina informações (cláusulas e
períodos, frases gráficas) para lhes dar um sentido global.
Uma MP combina elementos que estão bastante fortemente
associados entre si, para fazer sentido, o que alivia cogni-
tivamente a memória de trabalho e permite prosseguir o
processamento do resto do texto. Na produção, o realce desses
empacotamentos visa facilitar o trabalho interpretativo do
destinatário. A operação de empacotamento baseia-se num
trabalho de seleção de informações julgadas importantes
e na eliminação de informações consideradas secundárias
(FAYOL, 1992, p. 112-117).
A operação de condensação das informações envolve, em
função dos conhecimentos dos interpretantes, pela utilização
de conceitos superordenados que substituem listas ou séries,
sequências de ações assimiladas a scripts de ação (ir a um
restaurante ou ao teatro, pegar um avião ou um trem etc.) ou
cenas prototípicas (cena doméstica, declaração de amor, fune-
ral, duelo em um faroeste ou em um filme de capa e espada
etc.). Esses scripts e essas cenas contêm actantes esperados,
sequências acionais previsíveis e palavras estereotipadas.
Essa operação de empacotamento não é puramente linear,

101
A noção de texto

uma vez que certos blocos ou pacotes estão hierarquizados


de acordo com padrões de agrupamentos, enquanto outros
são mais flexíveis e circunstanciais. Esses agrupamentos-
-empacotamentos formam assim – na oralidade como na
escrita – seja MP que chamaremos livres, seja MP ligadas a
várias outras MP. É a esses agrupamentos que dou o nome
de sequências pré-formatadas (ADAM, 2011a).
A mesoestruturação sequencial é, como os gêneros de
discurso, objeto de um aprendizado paralelo ao da língua.
Ao aprendermos a língua de um grupo social, aprendemos,
ao mesmo tempo, os sistemas de gêneros discursivos nos
quais essa língua realiza-se e que a restringem, mas também
aprendemos a distinguir e a utilizar o que Swales (1990)
considera como formas pré-genéricas de textualização. A
teoria das sequências, desenvolvida em Adam (2011a), estuda
cinco modos pré-formatados de articulação de sequências de
frases/períodos em pacotes de MP hierarquizadas e ligadas:
descritivos, narrativos, argumentativos, explicativos e dia-
logais. Nesses empacotamentos sequenciais pré-formatados
e pré-genéricos, se cada MP é constituída por um número
indeterminado de cláusulas, cada tipo de sequência com-
preende, em contrapartida, um número determinado de MP
de base, muito fortemente ligadas entre si e mesmo ordenadas
(exceto no caso da sequência descritiva, cuja ordem não é tão
restritiva como a dos outros quatro tipos de sequências). Na
escrita, cada uma destas MP pode formar um parágrafo, ou

102
A noção de texto

essas MP ligadas podem ser agrupadas num único parágrafo,


reforçando, assim, a legibilidade da sequência.
• Em uma sequência narrativa: ligação de uma MP1-
Situação inicial com uma MP5-Situação final, ou desfecho
da história, e de uma MP2-Nó com um MP4-Desenlace, entre
as quais se insere uma MP3-Re-Ação ou Avaliação, como
no exemplo (1), onde a primeira frase resume o conjunto do
fait-divers: o infinitivo narrativo da abertura estabelece o
quadro, enquanto que o uso do pretérito perfeito do verbo
“ser” apresenta, desde então, o desenlace:

(1) Dormir no vagão [= MP1] foi mortal [= MP5] para o Sr.


Émile Moutin, de Marselha.
Ele estava apoiado na porta; [= MP2] (não é o fato de
dormir que desencadeia – nó – a história, mas, certa-
mente, o fato de apoiar-se na porta) esta abriu-se, [=
MP3] (causalidade acidental, sem intencionalidade) ele
caiu. [= MP4] (causa final de morte = desenlace)

• Em uma sequência dialogal (ou intercâmbio): uma MP1-


Pergunta está ligada a uma MP2-Resposta, seguida de uma
MP3-Avaliação dessa resposta, que encerra o intercâmbio.
• Em uma sequência explicativa: uma MP1-Por quê?
está ligada a uma MP2-Porque, seguida (como no caso ante-
rior) de uma MP3-Avaliação dessa explicação. O Por quê é,
normalmente, precedido pela descrição de um Objeto ou de
uma Situação problemática-MP0.

103
A noção de texto

• Em uma sequência argumentativa mínima: uma MP1-


Dados(s)-argumento leva, por inferência, a uma conclusão
MP3-Conclusão. Essa transição é possibilitada por uma MP2-
Sustentação. Essa estrutura de base é, frequentemente, prece-
dida por uma MP0-Tese anterior (ou ponto de vista adverso que
pode ser desenvolvido, abrangendo um Argumento adverso
que leva a uma Conclusão adversa) que MP1 visa refutar. A
possibilidade de um bloqueio da sustentação pode causar a
bifurcação do movimento argumentativo: MP1 leva a MP3,
exceto se houver Restrição-MP4. No caso dos entimemas do
cartaz de 1940 (13) e do discurso do homem feio em (14), a
passagem do argumento (MP1-premissa maior admitida) para
a conclusão (MP3) é apresentada sem a sustentação implícita
do silogismo (MP2-premissa menor).
Eco (1985a, p. 145) insiste no fato de que, no caso da narrativa,
“[...] as macroproposições pelas quais o leitor atualiza a fábula
não dependem de uma decisão arbitrária: elas devem, de alguma
forma, atualizar a fábula veiculada pelo texto.”. Isto é, para além
do caso da narrativa, devem atualizar as etapas da construção
de um sentido que a mesoestruturação dá a ler, mais ou menos
explicitamente, sob a forma de “macroproposições consistentes”
(ECO, 1985a, p. 146). Na sua Apostille au “Nom de la rose”, ele
alude a esse conceito de macroproposição nos seguintes termos:
“Na narratividade, o fôlego não é confiado a frases, mas a macro-
proposições mais amplas, a escanções de acontecimentos.” (ECO,
1985b, p. 50). À luz da noção de processo e dos cinco momentos

104
A noção de texto

(m) constitutivos do aspecto, dispomos de um modelo que explica


a dupla estrutura ternária da sequência narrativa: antes do início
do processo, processo propriamente dito, depois do processo, por
um lado, e por decomposição dos momentos do próprio processo,
por outro: início, desenvolvimento e fim. Daí as três ou cinco MP
que permitem resumir uma narrativa completa:

- m1 = ANTES do processo (ação iminente) =MP1


- m2 = INÍCIO do processo (começar a, pôr-se a) = MP2
- m3 = DURANTE o processo (continuar a) = MP3
- m4 = FIM do processo (terminar de) = MP4
- m5 = APÓS o processo (realização recente) = MP5

Esta outra “notícia em três linhas” de Fénéon segue per-


feitamente esse modelo:

(14) No lago de Annecy, três jovens nadavam [= MP1]. Um,


Janinetti, desapareceu [= MP2]. Mergulho dos outros [=
MP3]. Eles o trouxeram [= MP4], mas morto [= MP5].

Enquanto esta outra não segue exatamente a cronologia


dos momentos:

(15) Seu boné de guarda florestal havendo voado [= MP1],


Cristian, que descia em carroça o penhasco Vologne
(Vosges) [= MP2], saltou [= MP3] e, ao cair, [= MP4]
morreu [= MP5].

No âmbito da oralidade, os especialistas dos intercâmbios


conversacionais identificam fatos comparáveis. É o caso, por

105
A noção de texto

exemplo, de Selting (2000), que se aproxima do que dissemos


acima sobre as sequências de atos de discurso e os diferentes
tipos de sequências:

Outros tipos de atividades que, rotineiramente,


parecem ser construídas com mais de uma
cláusula ou sentença são os “grandes pacotes”,
ou “grandes projetos”, como, por exemplo, a
contação de histórias ou piadas, as descrições,
as orientações de direção ou rumo e a formu-
lação de argumentos complexos em sequências
argumentativas (SELTING, 2000, p. 482).30

Não devemos confundir a dupla organização transfrástica


do discurso, por um lado, com os gêneros discursivos, e,
por outro, com “[...] as regras, transversais aos gêneros, que
regem uma narrativa, um diálogo, uma argumentação, uma
explicação...”. (MAINGUENEAU, 2014a, p. 19). Em um
nível mesotextual pré-genérico e que, por isso, atravessa
os gêneros, as sequências são organizações transfrásticas/
periódicas que articulam e hierarquizam agrupamentos de
enunciados em várias MP ligadas.

30 Other kinds of activities that routinely seem to be constructed with more


than one clause or sentence are « big packages » or « larger projects »
e. g. the telling of stories or jokes, descriptions, direction-giving, and
the formulation of complex arguments in argumentation sequences.
(SELTING, 2000, p. 482).

106
A noção de texto

5.2 O NÍVEL MACROTEXTUAL

Uma dupla estruturação linear inter-P e trans-P (micro


e mesotextual) e não linear (configuracional e reticular) faz
de todo texto um sistema complexo de relações de interde-
pendência, resumidas no esquema 5.
O efeito de texto resulta da combinação de uma organi-
zação linear (conexidade orientada, restringida pela sintag-
mática da língua em discurso) e de dois modos não lineares
de construção de sentido: a percepção de um todo de sentido
que faz a unidade do texto (estruturação configuracional) e
a presença de redes de vocábulos recorrentes e coocorrentes
(estruturação “reticular”, segundo o termo acima colocado)
(LEGALLOIS, 2006; VIPREY, 2006).

Esquema 5

107
A noção de texto

5. 2. 1 Estruturação reticular e configuracional

A unidade de um todo verbal pode ser gerada pela coe-


são temática que um título ou um resumo dão a ler e pela
coerência interacional de uma macroação discursiva. Uma
máxima moral de uma fábula ou de um conto, a reprodução
de um prato pronto numa receita de cozinha ou de um móvel
montado numa instrução de montagem são todas formas de
atualização dessa estrutura configuracional.
Antes dos recentes desenvolvimentos da análise auto-
mática de dados textuais, Weinrich (1973) já falava do texto
como uma “rede de determinações” e da compreensão como
um duplo movimento progressivo e retrospectivo:

É manifestamente uma totalidade, em que


cada elemento mantém, com os outros, rela-
ções de interdependência. Esses elementos
e grupos de elementos seguem-se em uma
ordem coerente e consistente, em que cada
segmento textual compreendido contribui
para a inteligibilidade do que se segue. Este
último, por sua vez, uma vez decodificado,
lança luz retrospectivamente sobre o pre-
cedente [...]. É assim que procedemos para
compreender um texto. Toda frase (e pouco
importa o que entendemos exatamente por
esse termo) está subordinada a cada uma
das outras na medida em que ela não é sim-
plesmente decodificada em si mesma, mas
participa na compreensão do conjunto das

108
A noção de texto

outras. Isso prova a solidariedade de todos os


elementos nessa rede de determinações que é
um texto. (WEINRICH, 1973, p. 174; destaco).

A distribuição reticular das formas verbo-temporais por


toda a superfície textual é descrita por ele como “um complexo
de determinações, uma rede de valores textuais” (WEINRICH,
1973, p. 13). Vimos acima que as formas verbo-temporais
associam-se a pronomes e advérbios para formar planos de
enunciação cujos encadeamentos (continuidade e rupturas)
ultrapassam, amplamente, as fronteiras frásticas para formar
agrupamentos de subconjuntos locais.
As repetições de palavras, colocações e coocorrências
são um fator determinante da textualidade. Passar do léxico
(em língua) para a estruturação em vocábulos, próprio de um
texto, requer um olhar e métodos livres da linearidade, tal
como permite o processamento quantitativo de dados textuais:

A leitura digital dos computadores é uma


leitura paradigmática suscetível, numa escala
suprafrástica (o parágrafo, por exemplo, a
parte, o corpus) e numa lógica não sequen-
cial, de tratar das copresenças linguísticas
atestadas, estudar a microdistribuição dos
termos (as afinidades e repulsões lexicais
locais), medir os entornos de uma unidade
linguística pivô, evidenciar isotopias ou iso-
tropias. (MAYAFFRE, 2007, p. 2; destaco).

109
A noção de texto

Programas computacionais como Lexico 3, Hyperbase


ou Arborling, que integram uma função de topografia ou
topologia textual, permitem visualizar na tela, frase por frase,
parágrafo por parágrafo ou parte por parte, por meio de
quadrados sucessivos, a presença (ou não) e a coocorrência
de vocábulos ao longo do fio contínuo de um texto ou de um
corpus de textos (até três mil quadrados-parágrafos, ou seja,
várias centenas de páginas de um ou mais textos, são visíveis
numa tela tradicional). A combinação da leitura linear e da
leitura tabular (FRESNAULT-DERUELLE, 1976; ADAM, 1991,
p. 191-214; FLOREA, 2009) assume aqui todo o seu sentido:
passar da linha, frase ou parágrafo, para a legibilidade de um
texto tomado como um todo. Mayaffre (2007, p. 4-7) estuda,
desse modo, o que acontece com vocábulos como “Europa”
ou “fratura social” nos sucessivos discursos presidenciais de
Jacques Chirac.
A legibilidade dos textos poéticos, inseparável de sua
disposição no espaço gráfico da página, baseia-se na sua
tabularidade: a função dos dispositivos métricos é ir além
da legibilidade linear da linha do verso, a fim de relacionar
unidades verbais distantes umas das outras e repartidas
em estrofes (ou parágrafos, em poemas em prosa). A rima
e o dispositivo espacial do poema encorajam o retorno e
os ecos semânticos ou fonográficos (ANIS, 1983; ADAM;
HEIDMANN, 2009, p. 102-112).

110
A noção de texto

(17) ESTAÇÃO DAS SEMEADURAS. O ENTARDECER

Sujeito Núcleo Aposição Objeto


lírico verbal caracterizante humano
sentado sob
(E1) É o momento crepuscular. Eu admiro,
um portal,
Eu admiro, sentado sob um portal,
Esse resto de dia do qual se ilumina Ø
(E2) A última hora do trabalho.
Eu contemplo, emocionado,
Nas terras, de noite banhadas, um VELHO
Eu contemplo,
(E3) emocionado, os trapos SUA silhueta
De um velho que joga aos punhados NÓS sentimos Ø ELE
A colheita futura nos sulcos.
(E4) ELE
Sua alta silhueta escura
obscura
Domina as profundas lavouras. E eu medito, (5 elipses)
testemunha,
Nós sentimos a que ponto
(E5) ele deve crer
Na fuga útil dos dias.
gesto solene do
Ø Ø Ø
SEMEADOR
Ele anda na planície imensa,
Vai, vem, lança o grão ao longe,
Reabre a mão, e recomeça,
E eu medito, obscura testemunha,

Enquanto que, desdobrando seus véus,


A sombra, em que se mistura um rumor,
Parece alargar até às estrelas
O gesto solene do semeador.

23 de setembro (1865)
Chansons des rues et des bois, Livre second, Sagesse, I (Ama, crede)

111
A noção de texto

Victor Hugo constrói um dispositivo enunciativo no


qual o sujeito lírico apaga-se, progressivamente (passagem
de EU para um sujeito indeterminado e para o estatuto de
OBSCURA TESTEMUNHA), em benefício do objeto do seu
olhar (que aparece na estrofe 2 e desaparece, em benefício do
seu gesto sagrado e simbólico, na estrofe 5).
A progressão lexical dos verbos (admirar, contemplar,
sentir e meditar) torna legível uma interiorização progressiva
sublinhada pelas aposições. A distribuição e a modificação
desses dados verbais dão a ler, de estrofe em estrofe, um sentido
muito complexo: aqui nada menos que o estatuto do poeta
romântico que se apaga, progressivamente, passando do eu
do observador para o sujeito indeterminado e torna-se obscura
testemunha, ao ponto de desaparecer da última estrofe (para
um estudo da gênese desse texto, ver ADAM, 2018, p. 79-100).

5.2.2 Os planos de texto

Ao assegurar a visolegibilidade de um plano de texto, um


título e intertítulos, um sumário ou uma tabela de conteúdos
são marcadores da estruturação configuracional. Pela simples
varredura do peritexto, eles tornam possível a leitura de um
todo, a partir de uma percepção da organização hierárquica dos
diferentes níveis textuais de profundidade. Esses enunciados,
geralmente em forma de frases não verbais, resumem a coesão
temática de um texto completo ou de suas partes e subpartes,
que formam, elas próprias, várias unidades de sentido.

112
A noção de texto

Foi visto, anteriormente, que o peritexto mínimo de


um texto é a presença de um título, mas que podem vir se
juntar, um subtítulo, um lide, um resumo, uma dedicatória
e um exórdio, um prefácio e um posfácio. São os enunciados
peritextuais internos (intertítulos, numeração de seções ou de
lugar de um texto em uma coletânea, ilustrações e suas legen-
das, notas) que delimitam as fronteiras das subpartes, para
fazer delas tantas subunidades de sentido, e sinalizam, assim,
a presença de um plano de texto. Os sumários e as tabelas de
conteúdos dão a ler, explicitamente, o plano de texto, de forma
mais ou menos detalhada, conforme os gêneros de discurso.
Na escrita, um plano de texto torna mais ou menos viso-
legível as unidades trans-P que, entre o título e o ponto final,
organizam os sentidos em parágrafos, grupos de parágrafos,
partes ou seções, subpartes, capítulos. Essa visolegibilidade é
o resultado de uma cooperação da macropontuação branca
(alíneas, espaços em branco entre linhas, saltos de página)
e a macropontuação preta (intertítulos, numeração decimal
ou marcação alfabética, pontos marcadores ou travessões
de início de linha). O grau de visolegibilidade dos planos de
texto depende do número de enunciados peritextuais e da
segmentação (tipo/logo)gráfica.
As textualidades orais dispõem de menos meios específicos
de gestão de memória e de destaque do plano de texto. É por isso
que os suportes visuais anexos exercem um papel importante:
PowerPoint, exemplário, telas e tabelas em geral (DOQUET, 2017).

113
A noção de texto

No conceito de plano de texto, é preciso integrar não


apenas os componentes ou módulos peritextuais verbais, mas
também os componentes peritextuais icônicos (vinhetas, fotos,
gráficos, ilustrações e legendas de ilustrações, ornamentos
tipográficos de final de capítulo ou livro, frisos florais). Como
veremos mais adiante, os módulos gráficos são particular-
mente importantes nos textos icônicos plurissemióticos do
tipo receitas de cozinha, artigos de mídia escrita, publicidades,
cartazes etc., mas também em livros ilustrados, nas enciclopé-
dias e nos manuais, assim como nos anúncios publicitários.
Sob a dependência das línguas, dos gêneros e dos modelos
intertextuais que circulam em uma formação social, os planos de
texto dependem, muito amplamente, do grau de pré-formatação
dos textos pelos gêneros discursivos e pelas sequências pré-genéricas.
Isso quer dizer que fatores “descendentes”, que fazem parte do
estoque de conhecimentos dos sujeitos, permitem apoiarem-se,
tanto na produção, quanto na interpretação, em planos de texto
que têm padrões pré-formatados. Isso cria expectativas e uma
previsibilidade que facilitam o trabalho interpretativo, mas esses
padrões textuais podem, certamente, por razões variadas, ser
desviados, embaralhados ou ocultados. O produtor de um texto
pode, em princípio, até mesmo renunciar a esses padrões, em
nome de uma concepção da criatividade.
Os gêneros orientam a distribuição das sequências
narrativas, do diálogo, da descrição, da argumentação e da
explicação: um conto maravilhoso comporta, geralmente,

114
A noção de texto

tanto narração quanto diálogos, mas muito pouca descrição e


uma moral facultativa em forma de argumentação; um texto
teatral é amplamente dominado pelo diálogo e pouco des-
critivo, mas pode comportar monólogos narrativos (ADAM,
2011b, p. 245-296); um exemplum narrativo é inserido em
uma argumentação, e um conto etiológico, em um movimento
explicativo em por quê?; na anedota e na piada, geralmente,
o brusco encerramento da narrativa assume a forma de um
jogo de palavras etc. (ADAM, 2011b).
Para tomar apenas um exemplo, a despeito da inegável
diversidade genérica, a forma epistolar apresenta um plano de
texto relativamente restrito. Para a tradição medieval, uma carta
comporta cinco partes: a salutatio, a captatio benevolentiae, a
narratio, a petitio (pedido ou objeto da carta) e a conclusio. A
tradição clássica hesita entre cinco ou três grandes unidades: a
entrada em contato com o destinatário da carta, que corresponde
ao exórdio da retórica, a apresentação e o desenvolvimento do
objeto do discurso e, por fim, a interrupção final do contato, ou
conclusão. Embora monogerido, esse plano de texto está, como é
natural, muito próximo da estrutura dos textos dialogais-conver-
sacionais: duas sequências fáticas, de abertura e de fechamento,
enquadram três sequências transacionais que constituem o
corpo da interação. Os diferentes gêneros epistolares regulam
as variações, tanto formais quanto estilísticas, desse dispositivo.
Distinguiremos, portanto, muito simplesmente, em toda forma
de epistolar, o seguinte plano de texto de base:

115
A noção de texto

ABERTURA EXÓRDIO CORPO PERORAÇÃO FECHAMENTO


DA CARTA
Termos de
Cláusula
endereçamento
(fórmula
e indicações
de polidez e
de lugar e
assinatura)
tempo
<1> <2> <3> <4> <5>

Facultativas e mais ou menos desenvolvidas, as partes


<2> e <4> do plano de texto são zonas discursivas de transi-
ção (abertura-preparação e fechamento-conclusão), entre os
momentos inicial <1> e final <5>, com dominante fática, e o
corpo da carta <3> propriamente dito. Elas comportam todas
as características que a retórica atribui, tradicionalmente, ao
exórdio <2> e à peroração <4>: por um lado, preparar <2> a
recepção do intercâmbio, tratando com deferência a face do
outro (do familiar ao mais solene) e introduzindo seu assunto,
e, por outro, recapitular <4> e conseguir convencer, introdu-
zindo, eventualmente, mais sentimento e preparando as futuras
interações com o destinatário (em particular, sua resposta).
O gênero epístola dedicatória é um gênero argumentativo
do epistolar. Aliás, em Heidmann e Adam (2010), estudo o
exemplo do texto de Perrault, dedicado à filha do irmão do
rei Luís XIV, Mademoiselle, conforme seu título, Elisabeth
Charlotte d’Orléans. Ao mesmo tempo, esse texto serve de
prefácio para Histoires ou contes du temps passé: avec des
Moralitez (1697), de Charles Perrault, e apresenta a particu-
laridade de, por delegação, ser assinado por seu filho, Pierre
Perrault Darmancour (destaco em negrito, mas a repetição

116
A noção de texto

do endereçamento “Mademoiselle”, que baliza as etapas do


plano de texto, está em letras maiúsculas no texto original):

(18) <1> A MADEMOISELLE

MADEMOISELLE,
<2> Alguém não achará estranho que uma Criança haja
tido prazer em compor os Contos dessa Coletânea, mas
admirar-se-á que haja tido a audácia de vo-los apresentar.

<3> No entanto, MADEMOISELLE, qualquer desproporção


que nela haja, entre a simplicidade dessas Narrativas e as
luzes de vosso espírito, se bem examinados esses Contos,
ver-se-á que não sou tão censurável quanto pareço, ini-
cialmente. Eles todos contêm uma Moral muito sensata,
e que se descobre, mais ou menos, conforme o grau de
penetração daqueles que os leem [...]. O desejo desse
conhecimento incitou Heróis, e mesmo Heróis de vossa
ascendência, a irem até choças e cabanas, para verem
nelas, de perto e por si mesmos, o que ali se passava
de mais particular: esse conhecimento lhes havendo
parecido necessário para sua perfeita instrução.

<4> O que quer que seja, MADEMOISELLE,


Poderia eu melhor escolher, para tornar verdadeiro,
O que a Fábula tem de incrível?
E jamais, Fada, no tempo passado,
Deu à jovem Criatura,
Mais dons, e dons refinados,
Que vos deu a Natureza?

117
A noção de texto

<5> Tenho um muito profundo respeito,

MADEMOISELLE,
De Vossa Alteza Real,
O mais humilde e muito obe-
diente servidor,
P.
Darmancour.
Tomando a forma da carta-dedicatória, esse texto adota,
evidentemente, seu plano de texto canônico. Isso é mais
surpreendente no caso do cartaz da Resistência Francesa (13)
que, seguindo exatamente o mesmo plano de texto, reforça seu
caráter de endereçamento “A todos os franceses” e a cada um,
individualmente. Assim como o plano de (18) é marcado pela
repetição do termo de endereçamento próprio à família real, o
plano de texto do cartaz de 1940 é assumido pela tipografia: as
maiúsculas em negrito e centradas de [1], os itálicos centrados
em duas linhas de [2] e [3], a peroração centrada em três linhas
de [14] a [16], e o fechamento deslocado, embaixo e à direita,
em caracteres menores, com a assinatura manuscrita. Apenas
o corpo argumentativo da carta é apresentado em forma de
parágrafos justificados à esquerda e à direita, com recuo de
início de parágrafo (esquema 6):

118
A noção de texto

Esquema 6

PLANO DE TEXTO DO CARTAZ (13)


ABERTURA FECHAMENTO

Termo de [17] Assinatura


Endereçamento
[1] [18] e Endereço

EXÓRDIO PERORAÇÃO

[2] C [3] [14]-[15]-[16]

CORPO ARGUMENTATIVO DA CARTA

[4] C [5] [6] C [7] a [12] [13]

Refutação <<<<< Explicação >>>>> Apelo

§1 §2 §3

Em todos esses casos, tanto a produção quanto a inter-


pretação partem de informações macrotextuais fornecidas
pelo plano de texto, para organizar a informação em seg-
mentos textuais hierarquizados. O trabalho de interpretação
é facilitado para o reconhecimento, nos detalhes locais, dos
traços dessas organizações estocadas na memória (inter)
discursiva. Esses padrões textuais são, ao mesmo tempo,

119
A noção de texto

aplicados, no caso de um texto particular, e ajustados – por


vezes até modificados –, em favor de cada nova aplicação.
Certamente, a parte mais variável é o corpo da carta
<3>. O plano de texto interno dessa parte do plano global só
é pré-formatado no caso da correspondência administrativa,
com as cartas oficiais. No epistolar ordinário e literário, ele
é inventado na produção e descoberto na leitura, com base
em índices do tipo daqueles cuja função mostramos ante-
riormente. É uma boa imagem da diversidade, sob relativa
restrição, de todas as formas de organização macrotextual.

6 REGIMES MEDIOLÓGICOS E
FORMAS DE TEXTUALIDADE

Em vista do que precede, a pergunta “O que é um


texto?” deve ser estendida ao conjunto das FORMAS DE
TEXTUALIDADE que decorrem dos regimes mediológicos de
base que são o oral, o escritural (manuscrito ou impresso) e o
digital. A esses três registros reconhecidos por Maingueneau
(2014b, p. 85), é preciso acrescentar um regime icônico, que
participa, amplamente, das diversas formas de textualização
dos três outros regimes. Esses quatro regimes mediológi-
cos determinam formas de textualidade ao mesmo tempo
diferentes e entrecruzadas. A codificação digital possui, no
entanto, uma propriedade especial:

120
A noção de texto

[...] todas as inscrições, quaisquer que sejam,


são susceptíveis de serem objeto de uma codi-
ficação baseada na binaridade (0/1) e regida
por algoritmos, enquanto que os suportes de
recepção apresentam um modelo de base –
uma tela com uma saída de som – que permite
receber, no mesmo aparelho, textos, imagens
e sons. (VOUILLOUX, 2017, §8).

O telefone portátil reúne esses três regimes mediológicos:


a escrita e a fala, a imagem fixa e móvel, a navegação na
Internet, a escrita e a leitura de textos digitais.
Uma definição do texto deve, portanto, dar conta não
apenas das formas textuais próprias à escrita e próprias à
oralidade, mas também da inserção de módulos icônicos,
tanto na escrita (textos icônicos) quanto em componentes de
certas interações orais (suportes icônicos que acompanham
uma conferência, um curso ou uma emissão televisiva). Como
falar de um texto, sem levar em conta o fato de que as páginas
dos jornais, das revistas, dos manuais e das enciclopédias
apresentam cada vez mais semelhanças com os dispositivos
fragmentados das telas digitais?
Um pouco paradoxalmente, a escrita está, mais que
nunca, presente: “Na Internet há, sobretudo, texto, e a WEB é
majoritariamente escritural [...]. A principal atividade em linha
é a escrita. O internauta é aquele que escreve [...].”. (PAVEAU,
2015, p. 337). O que Ruffel (2018, p. 23) diz de outra maneira:
“Jamais o reino da escrita esteve tão expandido, jamais a ideia

121
A noção de texto

de publicação, tão plural. Não há um dia sem que uma grande


parte da humanidade publique um ou vários textos: em um
blog, uma rede social ou outra qualquer”. E Goody (2006),
especialista na interface entre o oral e o escrito, assinalava, já
em 1987, que as propriedades da escrita não foram abolidas
pelo “[...] mundo digital [...], ele sequer as substituiu. Não
saímos do mundo da escrita. Hoje o mundo da escrita é muito
mais complicado, só isso.”. (GOODY, 2006, p. 82).
No entanto, é preciso não esquecer que, ao introduzir
a palavra hipertexto, Nelson (1965, p. 96) tinha por objetivo
descrever “[...] um corpo de material escrito ou pictórico,
interconectado de um modo tão complexo, que não pode-
ria ser convenientemente apresentado ou representado em
papel.”31. O hipertexto define-se por seu caráter não sequencial
(NIELSEN, 1990 p. 1), pela natureza aberta das interconexões
e, portanto, pelos percursos de leitura possíveis (ver, mais
adiante, o esquema 8). A leitura de uma página impressa
(romance, poema, página de jornal, de enciclopédia ou de
manual escolar) difere, efetivamente, da leitura de uma
página-tela e de uma página eletrônica da WEB (“em F”32,
conforme NIELSEN, 2006, e discutido por PERNICE, 2017).
Com a navegação hipertextual, a textualidade transforma-se,
as modalidades de leitura mudam. A atenção e a memorização
não são solicitadas da mesma maneira (GRAFTON, 2015, p.
31 “a body of written or pictorial material interconnected in such a complex
way that it could not conveniently be presented or represented on paper”.
32 Refere-se ao padrão “F” de leitura na WEB. [N. T.].

122
A noção de texto

17-32), ao ponto que se pode ser tentado a falar de uma espécie


de subversão da lógica textual. Vendo-se a fragmentação
das páginas de tela na Internet, tem-se, muitas vezes, menos
a ver com um texto do que com “um mosaico de módulos
heterogêneos” (MAINGUENEAU, 2014b, p. 81). Trata-se de
ver se esses módulos – que exploram as fontes dos outros
regimes mediológicos, integrando à escrita, imagens fixas
ou móveis e som – constituem texto e examinar as eventuais
relações cotextuais que os unem.
O sentimento de completude – grau de textura – é mais
forte no caso do escrito impresso e do oral monologal pla-
nejado do que nas formas poligeradas orais e digitais (logo
adiante, T1 e T4; ver PAVEAU, 2015, p. 349-350), bem mais
abertas, heterogêneas e fragmentadas, tanto enunciativamente
(múltiplos autores) quanto semioticamente (imagens, textos
gráficos e textos sonoros misturados).
Podem-se distinguir quatro grandes formas de textu-
alidade de base (T1 a T4.3) e três formas intermediárias ou
mistas (T5, T6 e T7). As diferentes formas de textualidade
colocadas no centro do dispositivo (T3, T4.1, T2.2 e T2.3) são
mais homogêneas, e as formas de textualidade colocadas na
periferia são mais heterogêneas. É aí, aliás, que se sobrepõem
o oral poligerado e a conversação (T1) e a forma extrema
das textualidades digitais (T4.3), de tipo fórum ou blog com
discussões. O que é resumido no esquema 7, cujas rubricas
estão detalhadas logo adiante:

123
Esquema 7

REGIMES
& FORMAS DE TEXTUALIDADE
MEDIOLÓGICOS

T1.1 Polílogos
T1
POLIGERADOS T1.2 Diálogos

ORAL T2.1 Improvisados T6


2
T ORALITURAS
Monólogos T2.2 Memorizados
MONOGERADOS

124
T2.3 Oralizados
A noção de texto

T3.1 Manuscritos
ESCRITURAL T3
T3.2 Impressos
ICÔNICO ESCRITOS
T3.3 Editados T5
T7
HIPERESTRUTURAS
ICONOTEXTOS
T4.1 Digitalizados TEXTUAIS
T4
DIGITAL T4.2 Digitais
DIGITAIS
T4.3 Digitais nativos
A noção de texto

6.1 OS REGIMES ORAIS DE TEXTUALIDADE

Na oralidade, é preciso distinguir os textos poligerados,


coconstruídos por vários locutores e cuja unidade é, frequen-
temente, problemática, e os textos monogerados, enunciados
por um orador único, em uma situação presencial ou à dis-
tância (transmissão e registro audiofônico ou audiovisual).
Na oralidade presencial,

A mensagem linguística transita pelo canal


sonoro e tem por suporte a voz, enquanto
que as expressões corporais (fisionômicas,
gestuais, posturais) transitam pelo canal
visual e têm por suporte as zonas corporais
semiofóricas (olhos, rosto, dedos, mãos, bra-
ços, ombros) [...]. (VOUILLOUX, 2017, §8).

O desaparecimento do canal visual entre interlocutores


tem, portanto, consequências na intercompreensão. Quanto
à completude dos movimentos textuais, ela é gradualmente
mais forte em T2 (sem excluir o monólogo delirante) que em
T1-2 (apesar do controle exercido pelo moderador de um debate
ou por quem conduz uma entrevista) e, sobretudo, que em
T1-1. Como resume e lembra muito bem, Vouilloux (2017, §8),

Na comunicação linguística oral, devem-se


[...] levar em conta fenômenos não intencio-
nais, de ordem sintomática, e, portanto, indi-
ciais, que afetam o código linguístico (lapsos),
ou desvanecem o suporte vocal ou corporal
(a voz, o gesto “dizem” o que a mensagem
linguística não diz).
125
A noção de texto

6.1.1 Textualidades orais poligeradas:


o texto conversacional (T1)

As textualidades orais poligeradas correspondem tanto


aos diálogos (interação com um comerciante, conversação
telefônica, conversa de rua, entrevista ao vivo etc.) quanto
aos multílogos, ou polílogos, que envolvem mais de dois
participantes (debate, conversação em grupo etc.). Nos dois
casos, os falantes sucessivos são engajados na coconstrução de
um texto único, e Kerbrat-Orecchioni (1990, p. 197) encontra,
assim, a etimologia do texto-tecido:

Uma conversação é um “texto” produzido


coletivamente, cujos diversos fios devem se
amarrar, de uma certa forma – sem o que, com
a ajuda de uma metáfora que deriva também
dessa isotopia da tessitura, pode-se falar de
conversação “descosturada”.

Aliás, como ela especifica, nesse tipo de texto-em-interação,

[...] dois (ou mais) interlocutores/interlocutoras


[...] coconstroem uma espécie de “texto” mode-
lado on-line, interrompendo-se continuamente,
ajustando a cada instante seus comportamentos
mútuos e negociando, ao longo do desenrolar da
interação, os diversos aspectos de seu funciona-
mento (sua abertura e seu fechamento, a alter-
nância dos turnos de fala, os temas tratados, os
sinais manipulados, as interpretações efetuadas,
as opiniões lançadas, as identidades determina-
das, os “lugares” e os papéis reivindicados...).
(KERBRAT-ORECCHIONI, 2015, p. 29).

126
A noção de texto

A ideia de uma marcação delimitada pelo encontro e pela


separação de ao menos dois participantes, em um dado tempo
e um dado lugar, parece uma boa definição de partida. Basta,
porém, considerar a imprecisão do recorte de uma peça de
teatro em cenas – delimitadas, em princípio, pelas entradas
e saídas dos personagens –, para se perceber os limites dessa
definição. A unidade de uma interação tem, sobretudo, alguma
coisa a ver com o ou os temas abordados. É por isso que as
mudanças de objeto de conversação são negociadas pelos
participantes, e essas modificações estruturam as diferentes
partes de um texto conversacional. No entanto, é preciso não
esquecer a advertência de Maingueneau (2014b, p. 85): “Na
oralidade conversacional ordinária, os parceiros não podem
apreender como texto, globalmente e do exterior, a atividade
de fala na qual estão engajados.”. A gestão em fluxo (tanto
na escrita como na oralidade) não favorece a elaboração de
uma textualidade unificada, tal como definida anteriormente,
mas as formas fragmentadas de textualidade não são menos
textos, no sentido de unidades comunicativas significantes.
Os especialistas concordam em propor a existência de
uma macrounidade que chamam de “conversação”, “intera-
ção”, “evento de comunicação” ou, ainda, de “encontro”. O
texto conversacional é, então, definido como uma estrutura
hierarquizada de sequências e de turnos de fala:

Para os analistas da conversação, no entanto,


são sequências e turnos dentro de sequências,
em vez de frases ou declarações isoladas, que

127
A noção de texto

se tornaram as unidades primárias de análise.


(ATKINSON; HERITAGE, 1984, p. 5).

Distinguiremos, portanto, a intervenção, ou turno de fala


de um locutor, unidade monologal, e a troca, que articula, entre
si, vários turnos de fala: intervenção inicial de um locutor,
seguida de uma intervenção reativa de um outro locutor e de
um fechamento da troca, se nenhuma reação negativa vier a
provocar uma subnegociação. A troca constitui uma sequência
dialogal elementar, sob a dependência de uma restrição, de
acordo entre os interactantes, a respeito de sua completude. O
texto conversacional é constituído de uma série de sequências
articuladas em subconjuntos tópicos-temáticos, formadores
das partes identificáveis de um plano de texto conversacional
que se constrói no curso da interação.
As diferentes unidades do texto conversacional são objeto
de “julgamentos de completude” (BURGER; JACQUIN, 2015,
p. 278) e de um trabalho colaborativo dos interactantes. Em
caso de divergência, intervêm negociações metaconversa-
cionais, em todos os níveis de completude: “A completude
textual de uma longa tomada de turno de fala distingue-se
da completude da sequência na qual essa tomada de turno
inscreve-se, até mesmo do conjunto da reunião da qual ela
participa.”. (Id. Ibid.). Como mostram Burger e Jacquin (2015),
a percepção de um ponto de completude potencial, sintática
e prosodicamente marcada, favorece a mudança de locutor,
colocando um termo em um turno de fala.

128
A noção de texto

As sequências transacionais, que constituem o corpo


da interação, devem ser diferenciadas das sequências fáticas
de abertura e de fechamento, que constituem as fronteiras
do texto conversacional, ou texto-em-interação. A partir
das observações de Jakobson (1963) e Benveniste (1974, p.
86-88) – que se referem à teoria pragmática da linguagem
de Malinowski –, sabe-se que a abertura de um texto-em-
-interação comporta uma fase ritual mais ou menos longa,
conforme os grupos e as tradições socioculturais. Jakobson
(1963, p. 217) fala da possibilidade de “uma troca profusa de
fórmulas ritualizadas”, ou mesmo “[...] de diálogos inteiros,
cujo único objetivo é prolongar a conversação.”. Como afirma
Benveniste (1974, p. 88), “Está-se aqui no limite do ‘diálogo’.”.
6.1.2 Textualidades orais monogeradas (T2)

Do ponto de vista textual, podem-se distinguir três tipos


de textualidades orais monogeradas: uma forma improvisada
e duas formas planificadas:
• T2.1 Os monólogos improvisados. Muito frequentemente,
trata-se de intervenções mais ou menos longas, que podem
assumir a forma da inserção de uma narrativa ou da exposição
de um ponto de vista na conversação. O solilóquio absoluto
é um caso muito particular de representação da fala interior
(BERGOUNIOUX, 2001), profundamente dialógico, que foi
literalizado sob a forma do monólogo interior.

129
A noção de texto

• T2.2 Os monólogos narrados, performances resultantes


de uma aprendizagem e de uma transmissão oral. Contos de
tradições orais, narrativas mitológicas arcaicas e das socie-
dades tribais, canções, provérbios, adivinhações, adágios,
epopeias e genealogias das tradições africanas (BORNAND,
2005) etc., são textos transmitidos oralmente. Especialista nas
“literaturas orais” e nos gêneros da poesia oral, Zumthor (1983,
p. 131) enfatiza que esses textos possuem duas características:
“Frequentemente, um sinal integrado marca o início e o fim
do poema, para o isolar, por um duplo obstáculo, do fluxo
dos discursos ordinários.”. Esse é todo o sentido do “Era
uma vez...”, do “Naquele tempo...” e do “Tiririm, tiririm… e
a historinha chegou ao fim!”. No interior dessas “fronteiras
textuais”, mais ou menos marcadas, a língua é, muitas vezes,
formulaica e arcaizante. Essa performance não tolera bem
as hesitações, correções, “remendos” e “arrependimentos”
(ZUMTHOR, 1983, p. 126), que caracterizam, em geral, o
monólogo improvisado e a conversa oral (T2.1).
T2.3 Textos oralizados apoiam-se em uma preparação
escrita anterior. Esse terceiro caso corresponde às produções
mais formais e fortemente ritualizadas, como a cerimônia, a
declaração política memorizada ou lida (ilustrado pelo exem-
plo (2bis), anteriormente), a aula e a conferência, igualmente
lidas ou apoiando-se, mais ou menos livremente, em uma
folha impressa ou um slide projetado em tela. Essas formas
de oralização de um escrito aproximam T2.3 de T3, ao ponto
que é necessário considerar o caso das textualidades mistas,
que misturam, explicitamente, a oralidade e a escrita.
130
A noção de texto

6.1.3 Na junção das textualidades orais


e escriturais: as oralituras (T6)

Os neologismos oratura (DOR, 1982; HAGÈGE, 1986, p.


110; BOWAO; RAHMAN, 2014) e oralitura (CHAMOISEAU,
1997, p. 255) assinalam o intrincamento da oralidade com a
escritura, nas formas textuais que põem em causa a oposição
radical dos dois polos. Dois casos devem ser considerados.
T6.1: a presença de escrita na oralidade, como nos textos que
acabamos de citar (declaração lida em uma tela de prompter
ou memorizada, conferência ou aula com suporte escrito
(citações, resumos, plano), e T6.2: a presença da oralidade
na escrita, como no estilo oralizado da literatura, o diálogo
romanesco, teatral e cinematográfico, a escrita de SMS etc.
Os conceitos de oratura e de oralitura foram forjados
para o que é chamado, por vezes de forma oximórica, as
“literaturas orais” (BIEBUYCK; BORNAND; LEGUY, 2008),
isto é, a prática dos aedos, griôs, cantores e outros contadores
de histórias das sociedades dominadas pela transmissão de
tradições não escritas (T2.2). Em nossa proposta, estenderemos
e deslocaremos o conceito de oralitura, por um lado, para o
conjunto das práticas discursivas orais produtivas de textos
oralizados que, frequentemente, apoiam-se não apenas em
um escrito anterior (T2.3), mas que mistura, explicitamente, a
oralidade e a escrita, alternando leitura de certas passagens e
improvisação (T6.1), e, por outro, em direção dos textos escritos
literários que integram, estilisticamente, certos traços da

131
A noção de texto

oralidade e forjam, como são exemplos as obras de Marguerite


Duras e Charles-Ferdinand Ramuz, uma oralitura que é um
ritmo, um “movimento da voz na escrita” (MESCHONNIC,
2006, p. 317), solidarizando a literatura e o falar (T6.2).
Bruneau (1972, p. 109) recua o desenvolvimento de uma
“língua literária falada” aos irmãos Goncourt33, e Philippe
(PHILIPPE; PIAT, 2009, p. 64-65), ao Alphonse Daudet das
Lettres de mon moulin, a Jules Vallès e a Jules Renard. De
Victor Hugo a Émile Zola, os diálogos romanescos já estavam
invadidos por uma fala popular (DUFOUR, 2004), que tocava
até mesmo, em L’assommoir, a voz do narrador. Após a Segunda
Guerra Mundial, a literatura apegou-se menos à representa-
ção dos falares sociais (paradigma oral) que à “lembrança
da língua falada”, conforme uma bela expressão de Céline
(PHILIPPE; PIAT, 2009, p. 84). Na escrita literária, a passagem
do modelo oral para o modelo vocal tende a se reconciliar com
a fala como meio sonoro (MEIZOZ, 2001; MAHRER, 2017).
É o que Philippe (PHILIPPE; PIAT, 2009) propõe chamar
o paradigma, ou modelo, vocal, inventado pelo Jean Giono
de Colline (1929) e de Un de Baumugnes (1929), pelo Louis-
Ferdinand Céline de Mort à crédit (1936), e ao qual Ramuz
(1992) faz referência, desde 1926, em uma carta a seu editor,
Bernard Grasset:

33 Os irmãos Goncourt, Edmont (1822-1896) e Jules (1830-1870), são dois


escritores franceses do Naturalismo. Escreveram conjuntamente romances
e a obra L'Art du dix-huitième siècle. (N. T.).

132
A noção de texto

Escrevi (tentei escrever) uma língua falada: a


língua falada por aqueles com os quais nasci.
Tentei me servir de uma língua-gesto que
continuasse a ser aquela da qual as pessoas
se serviam em torno de mim, não da língua-
-signo que estava nos livros. E me criticaram
fortemente. (RAMUZ, 1992, p. 53).

A essa manifestação da oralidade na escrita corresponde,


como em espelho, a presença da escrita na oralidade. No caso
da aula ou da conferência acompanhada de uma projeção
de slides, o texto mistura um escrito projetado a um oral
pronunciado, que não apenas coexistem, mas constroem,
conjuntamente, um texto heterogêneo. Essa combinação é
ativa tanto na produção (o oral apoia-se, mais ou menos, em
um escrito previamente elaborado) quanto na recepção (a
escuta e a leitura são conduzidas conjuntamente, em que se
tem um apoio, certamente, mas também uma concorrência
semiológica e cognitiva):

Os slides apresentam um escrito que, onto-


logicamente, precede o oral, mas que, no
momento da enunciação, acompanha-o e o
completa. O discurso oral não pode deixar de
se articular com o escrito do slide, e pode-se
analisá-lo como ajustes a esse escrito, um
certo número de reformulações parafrásticas
orais, quer elas resultem em enunciar mais
uma vez, em parte, o que já está no slide,
quer, ao contrário, em evitar essa repetição.
(DOQUET, 2017, §36).

133
A noção de texto

6.2 OS REGIMES ESCRITURAIS DE TEXTUALIDADE

Nós ordenamos na categoria dos “textos escritos” não


apenas os textos manuscritos (T3.1), digitados (datilografados)
ou impressos (T3.2) e editados (T3.3), mas também os textos
digitalizados (T4.1), assim como dois regimes mistos de textua-
lidade, que misturam o verbal e o icônico: as hiperestruturas
(T5), cujas textualidades digitais favoreceram sua ascensão,
e os iconotextos (T7).
Os diálogos escritos literários (diálogos em discursos
direto, indireto, indireto livre e narrativizado), filosóficos
(diálogo filosófico) e jornalísticos (discurso reportado de
pessoas, gênero da entrevista reescrita para ser publicada)
são, é claro, formas escriturais de textualização, a despeito
de sua maior ou menor proximidade com T1.2.

6.2.1 Textualidades escritas no sentido estrito (T3)

A categoria dos textos escritos compreende um vasto


conjunto de textos manuscritos (T3.1): da lista de compras,
das anotações de aula e da correspondência manuscrita, ao
grafite em uma parede e ao rascunho de um escritor. A questão
da textualidade dos rascunhos preparatórios dos escritores
– qualificados como pré-textos – está no centro das pesqui-
sas genéticas (MAHRER, 2009; MAHRER; NICOLLIER-
SARAILLON, 2015). O caso dos manuscritos estabelecidos
pelos copistas, da Idade Média ao Classicismo, está um pouco
à parte, uma vez que não se trata de textos escritos pela própria

134
A noção de texto

mão do autor, podendo vir acompanhados de iluminuras e


até mesmo de comentários. A passagem do manuscrito (T3.1)
ao digitado, escrito com máquina de escrever ou impresso
(T3.2), ou mesmo digitalizado (T4.1), é interessante, pois implica
uma ferramenta técnica de substituição da mão, ou até a
intervenção de outros atores, particularmente no caso da
impressão e da edição (T3.3).
Ao passar do manuscrito ao livro ou ao artigo impresso em
uma revista ou em um jornal, ou mesmo ao texto projetado em
uma tela (prompter ou slide), todo um trabalho de formatação
tipográfica, tornado possível por tratamentos de texto cada vez
mais sofisticados e acessíveis, transforma o conteúdo linguístico
primeiro dos enunciados. Compreende-se, em consequência,
que uma definição do texto seja obrigada a incluir os fatos de
pontuação textual, sobre os quais falamos anteriormente. O
texto escrito é também uma imagem gráfica que se estende
em um “espaço gráfico” (ANIS, 1995), ou “área escritural”
(PEYTARD, 1982, p. 120- 123). A página, a página dupla e a tela
de slide são unidades submetidas a uma leitura linear e tabular
e, nesse ponto, diferem do rolo antigo e do rolamento em tela
de um texto digitalizado (T4.1): a numeração dos parágrafos é
a consequência do desaparecimento da unidade página.
O próprio da escrita é ser submetida a duas atividades de
leitura: uma leitura linear dos enunciados sucessivos (para o
francês: da esquerda para a direita e retorno para a esquerda
no final da linha) e uma leitura tabular, isenta da linearidade.

135
A noção de texto

6.2.2 Textualidades iconotextuais (T7)

O regime mediológico da imagem é dificilmente separável


dos três outros regimes com os quais ele se combina, para fazer
texto. Um grande número de produções escritas é, com efeito,
acompanhado de ilustrações, iluminuras, vinhetas, imagens,
fotografias, esquemas e infográficos (que misturam o verbal, o
desenho e a cor). Na origem do conceito de iconotexto, Montandon
(1990) dá uma definição literária restrita que é preciso expandir:

Os iconotextos são obras tanto plásticas


quanto escritas, dadas como uma totalidade
indissociável. Fruto da colaboração de um
artista plástico (pintor, fotógrafo etc.) e de
um escritor, que podem ser uma só e a mesma
pessoa (como Blake, Michaux etc.) ou várias
[...]. (MONTANDON, 1990, p. 9).

No campo literário, não faltam textos que misturam


o verbal e desenhos ou imagens fotográficas, como, por
exemplo, O pequeno príncipe, de Saint-Exupéry, e Nadja, de
André Breton, ou susceptíveis de uma dupla via, como apenas
texto e como iconotexto: é o caso de Lettera amorosa, de
René Char e ilustrada por Georges Braque, mas também dos
Contos, de Charles Perrault, ou do Dom Quixote, de Miguel
de Cervantes, ilustrados por Gustave Doré para as edições
Hetzel. Qualquer que seja, a fábula de La Fontaine é um bom
exemplo de um plano de texto genericamente determinado e
que integra uma ilustração em forma de vinheta.

136
A noção de texto

FABLE SECONDE

1. Indicação numérica do lugar


da fábula na coletânea,
2. Vinheta,
3. Título,
4. Na r rat iva enc a i x a ndo
diálogo (discursos direto,
indireto e indireto livre,
5. Moral.

Le Corbeau & le Renard.


M aiſtre Corbeau ſur un arbre perché, Tenoit en ſon bec un fromage.
Maiſtre Renard par l’odeur alleché Luy tint à peu prés ce langage :
Et bon jour, Monſieur du Corbeau :
Que vous eſtes joly ! que vous me ſemblez beau !
Sans mentir ſi voſtre ramage Se rapporte à voſtre plumage,
Vous eſtes le Phœnix des hoſtes de ces Bois.
A ces mots le Corbeau ne ſe ſent pas de joye : Et pour monſtrer ſa belle voix,
Il ouvre un large bec, laiſſe tomber ſa proye.
Le Renard s’en ſaiſit, & dit, Mon bon Monſieur, Apprenez que tout flateur
Vit aux dépens de celuy qui l’écoute.
Cette leçon vaut bien un fromage ſans doute.
Le Corbeau honteux & confus
Jura, mais un peu tard, qu’on ne l’y prendroit plus

Um dispositivo semelhante encontra-se na edição original


(1697) dos oito contos em prosa de Charles Perrault: 1. Vinheta,
2. Título, 3. Subtítulo genérico (exceto para o terceiro conto),
4. Narrativa em prosa (que compreende 50% de diálogo), 5.
Friso ou ornamento tipográfico, 6. Moralidade(s) em verso, 7.
Ornamento tipográfico ou em branco. Primeira página (p.1)
e duas últimas (p. 45 e p. 46) do primeiro conto da coletânea:

137
A noção de texto

Primeira página (p. 183) e as duas últimas (p. 228 e p.


229) do último conto, com indicação do “FIM” da coletânea:

Embora o conceito de iconotexto tenha sido forjado


por um tipo de escrita literária e de livro ilustrado por um
artista plástico (NERLICH, 1990, p. 268), ele ganha por ser
estendido a todos os casos de combinação do verbal com o
icônico. Heidmann (2014, p. 50) propõe falar-se de “dinâmica

138
A noção de texto

iconotextual”, para descrever o entrelaçamento significante do


verbal e do icônico. Isso é particularmente evidente nos cartazes
publicitários (LUGRIN, 2006; PAHUD, 2009), na conferência
e na propaganda política, nos jornais e nas revistas (fotografias
e desenhos legendados), nos sítios eletrônicos (ou páginas
eletrônicas), na menor receita ou ficha de cozinha, nos guias
de viagem, de alpinismo ou de trilha, sem deixar de falar nos
casos do cartão postal, do desenho animado e da fotonovela.
O plano pré-formatado dos cartazes publicados na mídia
escrita ou em suportes urbanos é perfeitamente identificável na
publicidade “Kanterbräu” (19), que associa, exemplarmente,
vários tipos de módulos:
(19)

139
A noção de texto

• Três módulos verbais: um slogan de atração (Kanterbräu


est si bonne/Qu’on ne peut s’en passer [Kanterbräu é tão boa/
Que não se pode passar sem ela), um slogan de base e/ou de
marca (Kanterbräu34. La bière de Maître Kanter [Kanterbräu.
A cerveja do Mestre Kanter) e um módulo redigido (em
forma de capítulo, no caso, de uma narrativa distribuída
em três capítulos, em uma campanha), aos quais é preciso
acrescentar, para certos produtos (como o fumo e o álcool),
uma menção legal de advertência.
• Dois módulos icônicos: uma imagem de atração (foto-
gráfica ou desenhada, como na publicidade da Kanterbräu,
excepcionalmente constituída de uma série narrativa de três
imagens), que cria um contexto, ou mundo referencial, e
uma imagem de produto (muitas vezes, fotográfica), forte-
mente referencial e denotativa (imagem do produto, situada
embaixo, à direita).
• Dois módulos mistos: uma logomarca e o nome da
marca, nos quais, frequentemente, o verbal é fortemente
iconizado, no que se refere aos meios tipográficos.
Esses módulos formam um repertório de partes complemen-
tares (o verbal guia a leitura da imagem, e a imagem apresenta um

34 No original: “un slogan d’accroche, un slogan d’assise et/ou de marque”.


Na falta de termos correlatos em português, fazemos uma tradução por
adaptação: slogan de atração (situado no início, ou parte superior, do
anúncio publicitário; slogan de base (no final do anúncio, ou parte inferior);
slogan de marca, o slogan-assinatura de uma determinada marca. [N. T.].

140
A noção de texto

contexto descritivo que orienta a leitura do verbal) e facultativas:


cada iconotexto publicitário distribui esses módulos de forma
mais ou menos original, como pode ser confirmado por este
outro exemplo, desprovido de módulo redigido:
(20)
Slogan de atração >>>
(constituindo módulo redigido)

Imagem de atração >>>

Imagem do produto >>>

Slogan de marca >>>

Entre as grandes tendências da evolução da mídia, é


evidente o desenvolvimento da parte visual dos jornais e das
revistas, a tal ponto que a fotografia e a infografia tornaram-se
componentes principais da cenarização da informação pela
escrita jornalística (MOURIQUAND, 1997, p. 12-13). O texto
jornalístico é, portanto, a soma da escrita (artigos), da com-
posição (peritexto), da fotografia, do desenho e da infografia.
• O desenho de mídia pode se encontrar só ou com um
título, uma legenda e uma assinatura (MOIRAND, 2015).

141
A noção de texto

Essa autonomização topográfica e a presença de um peritexto


fazem dele então, sem dúvida, um iconotexto completo à parte.
O desenho de mídia pode, simplesmente, ilustrar um artigo
(iconotexto), mas pode, igualmente, completar um artigo,
para fornecer um ponto de vista particular (humorístico e
crítico, no caso da caricatura) e constituir, com o artigo, uma
hiperestrutura textual (T5).
• Da mesma maneira, a fotografia pode aparecer só, com
legenda, formando assim um iconotexto, mas pode também
acompanhar um artigo (a legenda sendo, então, frequente-
mente, uma citação ou paráfrase de uma passagem do artigo)
e formar com ele, nesse caso, um iconotexto.
• Enfim, as inovações tecnológicas permitiram o desenvol-
vimento das infografias (MOURIQUAND, 1997, p. 24-25). A
infografia reagrupa todas as imagens fabricadas por meio da
ferramenta informática: cartas geográficas, imagem virtual,
esquemas, gráficos, quadros, diagramas; imagens mescladas de
escrita e que servem, igualmente, de suporte para o oral (T6.1).

6.2.3 Entre escritural e digital:


hiperestruturas textuais (T5)

A hiperestrutura textual é uma unidade de escrita e de


leitura teorizada, de início, no campo do jornalismo (GROSSE;
SEIBOLD, 1996; LUGRIN, 2000a, 2000b; ADAM; LUGRIN,
2006). Entre o jornal e a revista, unidades macrotextuais

142
A noção de texto

superiores de estruturação da informação (com seus cader-


nos e suas rubricas) e o artigo, unidade textual inferior de
estruturação (simples curta notícia ou informação, artigo
com seu peritexto ou artigo acompanhado de uma foto com
legenda referencial lacônica), é necessário considerar um
nível intermediário e facultativo: o dossier (com número não
definido de páginas e de textos correlacionados, podendo até
mesmo tornar-se um caderno autônomo) e a hiperestrutura
textual (hiperestrutura elementar, em uma meia-página, ou
complexa, em uma ou duas páginas, associando vários artigos
(artigo principal, ou hiperartigo, e artigos complementares) e
uma ou várias infografias e/ou fotografias com legenda mais
ou menos desenvolvida).
Esses textos, que tratam de um mesmo evento midiático,
são, geralmente, reunidos por um grande título (acompa-
nhado, frequentemente, de um subtítulo bastante estendido,
para ser considerado como um lide) e por uma moldura que
delimita o perímetro da hiperestrutura. Os textos-artigos
reunidos podem ser assinados por um só jornalista (frag-
mentação de um texto julgado longo demais e distinção dos
gêneros) ou por vários jornalistas (agrupamento de textos de
gêneros diferentes). Os artigos secundários são, geralmente,
distribuídos em torno de um artigo principal e separados desse
último por seu próprio peritexto (um título e uma assinatura,
pelo menos), por riscos e, às vezes, por um fundo colorido.

143
A noção de texto

TÍTULO PRINCIPAL

LIDE RUBRICA regional


ARTIGO PRINCIPAL (fora da hiperestrutura)
(em cinco colunas)

SEGUNDO ARTIGO
(com fundo entramado)
LEGENDA

INFOGRAFIA
Publicidade política
TERCEIRO ARTIGO (fora da hiperestrutura)
(com fundo tramado)

Infografia 1 Infografia 2

Subtítulo Fotografia

Subtítulo/lide

Hiperartigo
hA1

A2 A3 A4

144
A noção de texto

Esses agrupamentos de textos, muito frequentemente


acompanhados por iconotextos fotográficos e/ou infográficos,
estão igualmente presentes em outras práticas discursivas,
como os manuais de ensino, as enciclopédias, os guias topográ-
ficos de alpinismo, escalada e trilha, as fichas de instrução em
geral (receitas de cozinha, por exemplo). Assistimos também
ao desenvolvimento de gêneros de hiperestruturas específi-
cas, como a hiperestrutura esportiva (nas páginas-rubricas
“esportes” dos jornais e da mídia especializada) e, sobretudo,
a hiperestrutura específica (ADAM; LUGRIN, 2000), pre-
sente nas páginas com perfil didático e, mais amplamente,
nas páginas de “Ciências”, que são propagadas na mídia. A
hiperestrutura específica apresenta, sob a forma de módulos
didáticos em interação, uma informação científica vulgarizada
e frequentemente acompanhada de uma importante infografia.
O mesmo ocorre com a hiperestrutura esportiva: fotos de uma
ação de um jogo, composição de equipes, tabela numerada
dos resultados, narrativa do jogo, entrevista, comentário,
retrato de um jogador ou de um treinador.

6.3 DO TEXTO AO TEXTO DIGITAL NATIVO:


OS REGIMES DIGITAIS DE TEXTUALIDADE

O tipo precedente de textualização pôs em evidencia


“[...] uma tendência geral da mídia a favorecer uma leitura
fragmentada e visual da informação, tal como na Internet.”.
(LUGRIN, 2000b, p. 87). A multimídia favorece uma escritura

145
A noção de texto

e uma leitura não lineares (LUGRIN, 2000b, p. 91, fala de


escritura e de leitura “fractais”). A leitura torna-se navega-
ção no interior de um hipertexto estruturado em redes, que
permite, por definição, múltiplos percursos: “O hipertexto,
contrariamente ao livro, é pensado como uma soma não
sequencial de informações, soma que torna possível múltiplos
percursos de consulta.”. (CORMERAIS; MILON, 1998,
p. 78). Como afirma Nielsen (1990, p. 1), “O hipertexto é
não sequencial. Não há apenas uma ordem que determine a
sequência na qual o texto deve ser lido.”35.
No que diz respeito às hiperestruturas textuais, encon-
tramos os dois funcionamentos mencionados (LUGRIN,
2000b, p. 91): a fragmentação da escritura da multimídia por
segmentação manifesta-se na tela e por ligações no próprio
interior de um sítio eletrônico. Quanto ao agrupamento, é a
consequência da fonte enciclopédica de conhecimentos que
a Internet apresenta, do desenvolvimento exponencial das
páginas da WEB e das ligações com outros sítios eletrônicos
que podem ser abertos, potencialmente sem limites. Essa
navegação é, no entanto, determinada pela codificação do
texto, pelas ligações preestabelecidas, pelos programas e
pelos algoritmos que orientam as escolhas do utilizador-leitor,
muito menos livre que ele imagina.
Um documento hipertextual não se apresenta como uma
totalidade textual, com início e fim estáveis, mas como um
35 “O hipertexto é não sequencial. Não há apenas uma ordem que determine
a sequência na qual o texto é para ser lido”.

146
A noção de texto

ajuntamento de textos escritos, imagens e registros sonoros


conectados por ligações eletrônicas (SLATIN, 1991, p. 56).
É o percurso do internauta, sua própria navegação, que faz
texto: o leitor fabrica o texto que ele lê (NIELSEN, 1990, p.
2; MAINGUENEAU, 2014b, p. 86). A navegação hipertextual
torna-se possível pelas ligações escritas ou icônicas que
remetem a textos ou a registros sonoros, ou audiovisuais,
ou a documentos icônicos (imagens, desenhos, infográfi-
cos, filmes). Essas ligações (L1, L2 etc.) podem haver sido
previstas pelo autor do hipertexto, mas a interrogação desse
ou daquele ponto de um dos textos encontrados pode muito
bem ser decidida pelo próprio leitor, que passa, então, por
uma ligação do tipo URL ou por um motor de busca, que lhe
permite ter acesso a essa ou àquela informação. A linearidade
sequencial é, então, conduzida pela atração da rede.
Como mostra o esquema 8 (inspirado em Nielsen, 1990),

Esquema 8

147
A noção de texto

a leitura de um texto T1 apresenta três opções: passar


de T1 a T2, a partir da ligação L1, ou de T1 a T5, a partir
de L2, ou de T1 a T6, a partir de L3. O percurso que leva de
T1 a T5, por exemplo, é tanto direto (a partir de L2) quanto
indireto, passando por T2 (a partir de L1 de T1 e de L2 de T2),
ou passando pelas ligações L1 de T2, L1 de T3 e L1 de T4.
O digital leva as possibilidades textuais imaginadas a
seus limites, desde 1967, com Raymond Queneau, em Un
Conte à votre façon [Um conto à sua maneira] (narrativa
hipertextual da “História das três ervilhas espertas”), prolon-
gadas pelos livros interativos nos quais o desenvolvimento da
história depende das escolhas operadas pelo leitor (livros-jogos
ou Livres dont vous êtes le héros [Livros dos quais você é o
herói]): cada percurso de leitura leva a um dos textos tornados
possíveis pela flexibilidade combinatória dos fragmentos.
Podem-se distinguir três tipos de textualidades digitais,
que correspondem às diferentes concepções do texto deriva-
das das fases sucessivas de desenvolvimento da WEB (DE
ANGELIS, 2018b, p. 462-463): Os textos digitalizados, os
textos digitais propriamente ditos e os textos digitais nativos
(PAVEAU, 2015, p. 348). Essas distinções permitem abordar
a variedade dos conteúdos hospedados pelo meio Internet:
textos, sítios multimídia, bancos de dados, redes sociais
(VOUILLOUX, 2017, §8).

148
A noção de texto

• Na “WEB estática” (WEB 1.0), os textos escritos passam de


um suporte manuscrito, digitado (datilografado) ou impresso
em papel, a um suporte eletrônico, por meio de um programa
ou sendo escaneado, e colocado ou não, em linha. Ao reproduzir
o modelo do texto-livre e da cultura impressa (T3), a escrita
desses textos digitalizados (T4.1) está próxima da escrita do
suporte papel. Uma vez digitalizado, o texto oferece, no entanto,
uma certa liberdade de navegação, a partir da função “buscar”.
A integração de elementos paratextuais e intertextuais no
intratexto é facilitada, sem falar na grande rapidez de acesso
a documentos (textos, imagens, sons) que resulta da desmate-
rialização de uma verdadeira biblioteca virtual.
• A fase da WEB 2.0, a “WEB dinâmica”, é a do texto digital
(T ). Como nos mostra De Angelis (2018b, p. 462), o conteúdo
4.2

das páginas muda conforme a busca dos usuários e conforme a


interação estabelecida entre o visitante, que formula a busca, e o
servidor, que trata essa busca. A escrita é, dessa vez, concebida
pelo suporte digital, os textos, que se tornam cada vez mais
breves e são, também, cada vez mais interconectados.
As características das hiperestruturas textuais (T5) encon-
tram-se, é claro, nos textos digitais que, diferentemente das
hiperestruturas, comportam ligações externas para outros
textos, eles próprios integrando ligações, e isso, potencial-
mente, ao infinito. Essa abertura do texto desdobra-se em uma
fragmentação da superfície da página-tela em informações

149
A noção de texto

paralelas e publicitárias, mais ou menos em relação com


a página-texto (como (23), que comporta um módulo de
publicidade política abaixo e à direita, não relacionado com
a informação abordada pela hiperestrutura textual). Daí uma
muito grande heterogeneidade, uma leitura fragmentada de
textos, frequentemente curtos, e de imagens, e uma difração
da atenção. A leitura de pictogramas – os smileys [emoticons,
emojis], que levam vantagem sobre a verbalização das emo-
ções –, imagens e vídeos substitui a leitura de documentos
escritos que ultrapassam o limite dos 280 caracteres.
• Com a “WEB semântica” (WEB 3.0), a exploração dos
dados é feita na escala dos big data. Aliás, Paveau (2015, p.
349) fala de textos digitais nativos (T4.3)

para designar os textos produzidos em linha,


nativamente. Além de sua deslinearização, o texto
digital nativo apresenta traços de aumento enun-
ciativo, tecnogenericidade e plurisemioticidade.

A autora toma o exemplo de um bilhete, assinado por um


autor, em um blog, mas aumentado com as discussões pelas
quais coautores coconstroem o texto, até o fechamento da
discussão. No caso do tratamento do texto em linha, vários
autores, identificados por marcas gráficas (cores diferentes),
redigem juntos e compartilham, simultaneamente, um texto
que se aproxima, também, do caso dos polílogos poligerados
da oralidade (T1).

150
A noção de texto

Os textos digitais nativos parecem, em um espantoso


círculo temporal repetitivo, com os textos medievais retocados
pelos copistas e outros recitantes. Como nos mostra Zumthor
(1972, p. 41), o texto medieval, com forte vínculo com a
oralidade, identifica-se com o objeto livro apenas como um
objeto auditivo, fluido e móvel. A inserção da glosa e do
comentário em um texto aberto é encontrada nas discussões
que se inserem em um texto em linha e, mais ainda, quando se
trata de um escrito colaborativo em linha. Essa instabilidade
dos textos digitais, facilmente copiados-cortados-colados,
está na origem do retorno massivo do plágio, consequência
do enfraquecimento da autoralidade como autoridade. A oni-
potência libertária da Internet permite a cada um submeter os
textos às variações e aos recortes que eram próprios aos textos
antigos: “O autor desapareceu: resta o sujeito da enunciação,
uma instância locutora integrada ao texto e indissociável de
seu funcionamento: ‘[isto] fala’”. (ZUMTHOR, 1972, p. 69).
A codificação das imagens por pixels descontínuos per-
mite a mesma manipulação desses pontos independentes uns
dos outros e a produção de falsas informações visuais (assim
como verbais) indetectáveis. Os vídeos falsificados (deep
fake) deliciam, certamente, os humoristas, mas, sobretudo, os
escritórios de fabricação de falsas informações ( fake news)
que invadem a WEB.

151
A noção de texto

CONCLUSÃO

Levar em conta os regimes metodológicos e as diferentes


formas de textualidade que deles decorrem mostra que a defi-
nição do conceito de texto não pode ser limitada à escrita e
que ela precisa ser modulada. A definição que esboçamos aqui
desenha um quadro e convoca outros trabalhos linguísticos de
corpus (que completem os que conduzimos sobre a publicidade,
a mídia escrita, os textos instrucionais e o discurso literário). A
descrição linguística fina e sistemática dos diferentes níveis de
estruturação e de todas as formas textuais, tanto do regime oral
quanto do regime escritural, do regime digital e dos regimes
mistos, só terá a contribuir com os diferentes domínios das
ciências e das disciplinas do texto e do discurso (COSSUTTA;
MAINGUENEAU, 2019, §20-22; ver, igualmente, SIOUFFI,
2018) e, mais amplamente, das ciências da informação e da
comunicação, assim como da didática.

152
A noção de texto

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ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Seuil, 1972.

ZUMTHOR, Paul. Introduction à la poésie orale. Paris: Seuil, 1983.

175
A noção de texto

ANEXO 1

176
A noção de texto

ANEXO 2

177
A noção de texto

ANEXO 3

178
Este livro foi produzido sob
supervisão da equipe da EDUFRN
em novembro de 2021

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