MAINGUENEAU, Novas Tendências em Análise Do Discurso (1993) PDF

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NOVAS TENDÊNCIAS

EM ANÁLISE
DO DISCURSO

B IB L IO T E C A S E T O R IA L OC EDUCAÇÃO
FACU LD AD E DE EDUCAÇÃO - U F R G 8
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do I.ivro, SP, Brasil)

Maingueneau, Dominique.
Novas tendências em análise do discurso / D. Maingueneau ;
tradução Freda Indursky ; rev isão dos originais da tradução Solange
Maria l.edda Ciallo, Maria da Cilória de Deus Vieira de Moraes.
— Campinas, SP : Pontes: Editora da Universidade Estadual de
Campinas, 2 J edição, 1993. — (l inguagcm-crítica)

Uibliogra fia.
ISBN 85-7113-081-7
I. Análise do discurso I. lindo. II. Série.

890696 CDD-410

índice para catálogo sistemático:

1. Análise do discurso : I inguislica 410


D. MAINGUENEAU

NOVAS TENDÊNCIAS
EM ANÁLISE
DO DISCURSO
(2? EDIÇÃO)

Tradução:
F reda In du rsky

Revisão dos originais da tradução:


Solange M aria L e d d a Gaito
M aria da G lória d e D eus Vieira d e M oraes

1993
Copyright © 1987 Hachette

Título Original: Nouvelles Tendances en Analyse du Discours


Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela PONTES EDITORES

C oorden ação Editorial: Ernesto Guimarães


Capa:
C riação: Ernesto Guimarães
Layout/A rte fin a l: Paulo Felipe
Sara Zacharias
Revisão: Adagoberto Ferreira Baptista

PONTES EDITORES
R. Maria Monteiro, 1635
13025-152 — Campinas — SP
Fone/Fax: (0192) 52.6011
52.6661

1993
Impresso no Brasil
SUMARIO

Advertência ....................................................................................... 7

Introdução ................................................................................................. ^

I — A INSTITUIÇÃO DISCURSIVA
1. A Cena Enunciativa ................................................. 29
2 Uma “ Prática Discursiva” ..................................... 53

II — A HETEROGENEIDADE
1 . A Uetcrogeneidade Mostrada ................................ 75
2. Do Discurso ao Interdiscurso .............................. 111

UI _ AS PALAVRAS DO DISCURSO
1. Para Além dos Termos-Pivôs ................................. 133
2 Os Conectivos Argumcntativos ............................ 159

Conclusão ................................................................................................... 187


Bibliografia ................................................................................................. 189

índice Rcmissivo ............................................................................ 197


ADVERTÊNCIA

Esta obra constitui uma sequência natural do livro Initiation aux


m élhodes d e Vanalyse du discours. Inicialmente, pensamos em pro­
ceder à atualização deste primeiro volume, mas rapidamente ficou
claro que esta não era uma boa solução, à medida que esta “ atuali­
zação” teria, de fato, o aspecto de uma reescritura completa que,
além disso, não atingiría o objetivo pretendido. Nosso projeto era
efetivamente o de abrir espaço para questões mais recentes, sem,
contudo, contestar as bases definidas na obra precedente, as quais
ainda nos parecem pertinentes. Ora, não era possível justapor, sem
alguma incoerência, questões historicamente distanciadas, cujos pres­
supostos são distintos. Além disso, considerando que, globalmente, as
tendências apresentadas neste volume não pretendem substituir, mas
completar aquelas que foram expostas no livro precedente, uma re­
formulação total nos obrigaria a reproduzir a maior parte de Iniliaíion
aux m éthodes d e 1'analyse du discours e, consequentemente, publica­
ríamos um livro muito extenso que, em grande parte, representaria
uma duplicação do primeiro.

Preferimos dispor de dois livros dotados, cada um, de sua pró­


pria coerência e organizar um percurso que conduza de um a outro,
de forma a torná-los complementares, apoiando-se o segundo sobre
o primeiro para distinguir novos domínios. Esta situação apresenta a
vantagem de oferecer uma perspectiva histórica, que permite a iden­
tificação das constantes e dos reordenamentos na evolução de uma
disciplina.

i
INTRODUÇÃO

A cxistcncia c o sucesso da análise do discurso, ou. mais exata-


mente, daquela que, por vezes, c chamada de “escola francesa de
análise do discurso" não são coisas por si só evidentes. O lugar de
uma disciplina desta natureza não estava previamente inscrito no
campo do saber. Na realidade, é preferível interpretá-la. no interior
de uma certa tradição, como o encontro de uma conjuntura in telec­
tual e de uma prática escolar.

Na França e, de forma geral, na Europa, é tradição associar íun-


damenlalmente reflexão sobre os textos e história. Consideremos, por
exemplo, esta apresentação da “ filologia" tradicional:

"A filologia foi chamada “ a mais difícil arte dc ler". Ou


seja, o papel da filologia consiste em determinar o conteúdo de
um documento lavrado em língua humana. O filólogo quer co­
nhecer a significação (sic) ou a intenção daquele cuja fala é
conservada através da escrita. Deseja igualmente captar a cultura
e o meio no interior dos quais este documento nasceu e com­
preender as condições que permitiram sua existência. Trata-se,
geralmente, de escritos antigos, embora o método filológico
também possa prestar-se à interpretação de documentos contem­
porâneos. Para o filólogo, a ciência da linguagem propriamente
dita ( . . . ) é apenas um conjunto de meios para atingir o sentido
contido na palavra escrita ou falada. Em outros termos, a filo­
logia é apenas a serva dc outras ciências. Ela auxilia historiadores
do direito, da religião, da literatura etc., filólogos que querem
interpretar os textos. Se a filologia se apliea a problemas verda­
deiramente linguísticos, como a fonética, a morfologia, a sintaxe
ou a semântica, é apenas para assegurar uma interpretação
exata l ”.

l endo estas linhas, percebe-se facilmente que a análise do discur­


so ocupou uma boa parte do território liberado pela antiga filologia,
porém com pressupostos teóricos e métodos totalmente distintos.

A conjuntura intelectual é aquela que, nos anos 6ü, sob a égide


do estruturalismo. viu articularem-se, em torno de uma reflexão sobre
a '‘escritura", a lingüística, o marxismo e a psicanálise. "A análise
do discurso na França é. sobretudo, — e isto desde 1965, aproxima­
damente — assunto de linguistas l .), mas também de historiadores
(. . .) e de alguns psicólogos (. . . ) . A referência às questões filosóficas
e políticas, surgidas ao longo dos anos 60, constitui amplamente a
base concreta, transdisciplinar de uma convergência ( . . . ) sobre a
questão da construção de uma abordagem discursiva dos processos
ideológicos

Enfim, a prática escolar referida é a “explicação de textos”, pre­


sente sob múltiplas formas em todo o aparelho de ensino, da escola
à Universidade. Esta relação entre o sucesso da análise do discurso
na França e a prática escolar foi frequentemente sublinhada. A.
Culioli, por exemplo, observa que “a França é um país onde a lite­
ratura desempenha um grande papel, sendo possível questionar se
a análise do discurso não seria uma maneira de substituir a expli­
cação de textos como forma de exercício escolar3”. Isto também
não escapou a um observador externo: enquanto a análise de con­
teúdo “ percorre os textos para codificá-los, a análise do discurso
exige uma leitura verdadeira, consequentemente, próxima da explica­
ção de textos apreciada pelos professores de francês de nossas es­
colas Mas, note-se, esse paralelismo não pretende invalidar a aná­
lise do discurso, propõe-se apenas sublinhar que boa parte de suas
origens decorre de um certo modo de tratar os textos que é próprio
de nossa sociedade.

ü analista do discurso vem, dessa forma, trazer sua contribuição


às hermenêuticas contemporâneas. Como todo hermeneuta, ele supõe

IO
que um sentido oculto deve ser captado, o qual, sem uma técnica
apropriada, permanece inacessível. É o espaço escolar que lhe con­
fere autoridade c garante que os textos analisados possuem, de fato,
uma significação oculta, mesmo que um ou outro analista se mostre
incapaz de decifrá-la. Entretanto, como lembra M. Pêcheux, “ a aná­
lise de discurso não pretende se instituir como especialista da inter­
pretação, dominando “o” sentido dos textos; apenas pretende
construir procedimentos que exponham o olhar-leitor a níveis opacos
à açã o estratégica de um sujeito ( . . . ) . O desafio crucial é o de
construir interpretações, sem jamais neutralizá-las, seja através de uma
minúcia qualquer de um discurso sobre o discurso, seja no espaço
lógico estabilizado com pretensão universal 5” . Dito de outra forma,
a análise do discurso depende das ciências sociais e seu aparelho está
assujeitado à dialética da evolução científica que domina este campo.

II
Invocar o “ sucesso da análise do discurso" implica expressar-se de
forma ambígua; de fato, desse modo tanto é possível compreender o
sucesso da expressão “análise do discurso” quanto o da disciplina de
que trata esta obra. Infelizmente, os dois aspectos não coincidem e
assiste-se a uma verdadeira proliferação de empregos da expressão
“ análise do discurso”. Aliás, em Initiation aux m éthodes d e l'analyse
du discours, havíamos levantado, sem pretensão de exaustividade.
seis acepções do termo discurso na literatura linguística; desde então,
a situação tornou-se ainda mais confusa, pois agora é o sintagma com­
pleto, análise d o discurso, que está sendo arrastado a uma circulação
incontrolável. Em lugar de lutar contra o desvio ilícito e invocar um
policiamento terminológico, é preferível compreender do que esta
situação é o sintoma.

Se, nos dias de hoje, "análise do discurso" praticamente pode


designar qualquer coisa (toda produção de linguagem pode ser con­
siderada "discurso"), isto provém da própria organização do campo
da linguística. Este último, muito csquematicamente, opõe de forma
constante um núcleo que alguns consideram “ rígido” a uma periferia
cujos contornos instáveis estão em contato com as disciplinas vizinhas
(sociologia, psicologia, história, filosofia, etc.). A primeira região é
dedicada ao estudo da “ língua”, no sentido saussuriano, a uma rede
de propriedades formais, enquanto a segunda se refere à linguagem
apenas à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em cs-

II
(ratégias de intei locução, em posições sociais ou em conjunturas his­
tóricas. O termo “discurso" c seu correlato "análise do discurso"
remetem exatamente a este último modo de apreensão da linguagem.

Há duas formas de ler a oposição entre estas duas zonas do


campo linguístico: a primeira revela uma hierarquia entre o que de­
pende plenamente da linguística e o que seria apenas um conjunto de
margens, de reincidências pouco científicas do núcleo rígido; a outra,
aquela que defendemos, afirma, de início, a dualidade radical da
linguagem, a um só tempo, integralmente formal e integralmente atra­
vessada pelos embates subjetivos e sociais. Mas o reconhecimento desta
dualidade em nada diminui o caráter conflituoso desta situação: a
fronteira entre as duas zonas não é de forma alguma demarcada com
antecedência e constitui inevitavelmente o objeto de um debate in­
cessante. Além disso, aqueles que trabalham sobre a vertente “ discur­
siva” da linguagem, oscilam entre duas atitudes; alguns aceitam a
partilha do campo, outros sonham com uma “ linguística do discur­
so" que desestabilizasse totalmente o núcleo central. Este extremismo
parece-nos tão insensato quanto o extremismo daqueles que sonham
com uma língua libertada de todos os seu enunciadores e de todo peso
social.

Se considerarmos, agora, como a periferia está distribuída, com-


preender-se-á facilmente que o conteúdo das múltiplas “ análises do
discurso” que aí se desenvolvem varia cm função das disciplinas
vizinhas em que se apoiam. O “ discurso” modifica-se de acordo com
as referências que faz à psicologia, à história, à lógica, etc., e, no
interior destes campos, a esta ou aquela escola: uma “ análise do
discurso" pode, por exemplo, retirar boa parte de seus conceitos da
psicologia, mas tomará uma configuração diferente segundo se trate
de psicologia cognitiva ou psicanálise e, no interior da psicanálise,
por filiar-se a esta ou aquela escola. Encontrar-sc-á uma diversifi­
cação simétrica quando se examinam as relações que essas análises
do discurso estabelecem com a lingüística, a qual por sua vez, se
divide em uma multiplicidade de ramos e escolas.

Nestas condições, é compreensível que a noção da “análise do


discurso” se torne uma espécie de "coringa" para um conjunto inde­
terminado de quadros teóricos. Vê-se. por exemplo, um sociolin-
güista como P. Achard propor que ela se torne “o quadro conceituai

12
comum à teoria do uso (ou utilização) da linguagem", isto e. ao
conjunto da soeiolingiiístiea. à medida que. segundo ele. a análise
do discurso ocupar-se-ia "da linguagem sempre do ponto de vista de
uma utilização especificada por suas condiçõesrt". A razão de uma
tal opção nos é dada mais adiante: "Esta corrente (a análise do
discurso) parece a única na qual a soeiolingiiístiea é definida como
tal, sem colocar-se a reboque de uma outra disciplina T". Talvez resida
aí a explicação para a atração exercida pela etiqueta "análise do dis
curso": ela define um campo de problemas da linguagem sem reme­
ter a uma disciplina conexa à linguística

No momento em que "a escola francesa de análise do discurso"


constituiu-se, a conjuntura teórica era bastante diferente e o trabalho
de explicitação de suas fronteiras não se revestia da mesma urgência
que apresenta agora. Em seguida, ela viu, sem desagrado, expandir-se
o campo de sua denominação, sem perceber, de imediato, o perigo
que isto representava para o reconhecimento de sua especificidade.
Se, durante um longo período, foi-lhe suficiente definir-se como "o
estudo linguístico das condições de produção" de um enunciado',
hoje parece necessário precisar melhor os critérios para analisar a
experiência que realiza Caso contrário, na ausência de critérios um
pouco drásticos de exclusão, em breve ela será apenas uma etiqueta
desprovida de qualquer sentido

De imediato, é preciso explicitar as razões pelas quais uma con­


versa de bar. por exemplo, não se constitui, em princípio, em objeto
da AD, embora, por outro lado, esta seja passível de estudos que se
filiam a outras formas de “ análise do discurso". Poder-se-ia adiantar
que a AD (convencionar-se-á, para evitar equívocos, abreviar assim
o termo "escola francesa de análise do discurso") se apóia crucial
mente sobre os conceitos e os métodos da linguística, mas este não
é, com toda evidência, um traço bastante discriminador. Na verdade,
é preciso levar em consideração outras dimensões; a AL) relaciona
se com textos produzidos-

— no quadro de instituições que restringem fortemente a enun-


i • -
ciaçao;

— nos quais se cristalizam conflitos históricos, sociais, etc.:

13
— que delimitam um espaço próprio no exterior de um interdis-
L curso limitado.

Os objetos que interessam à AD, conseqüentemente, correspon­


dem, de forma bastante satisfatória, ao que se chama, com freqüência,
de form ações discursivas, referindo de modo mais ou menos direto
Michel Foucault que, através deste conceito, entende

"um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determina-


das no tempo e no espaço que definiram em uma época dada,
e para uma área social, econômica, geográfica ou lingüística
dada, as condições de exercício da função enunciativa

Nesta perspectiva, não se trata de examinar um eorpus como se


tivesse sido produzido por um determinado sujeito, mas de consi­
derar sua enunciação como _o correlato de uma certa posição sócio-
histórica na qual os enunciadores se revelam substituíveis. Assim,
nem os textos tomados em sua singularidade, nem os eorpus tipolo-
gicamente pouco marcados dizem respeito verdadeiramente à AD.

Todavia, esta restrição do campo da AD pode parecer ambígua,


à medida que é possível considerá-la como uma limitação de direito
ou como uma simples limitação de fato que pode ser superada com
o auxílio de uma crítica apropriada. Com efeito, alguns pensam que
a AD constitui uma prática excessivamente restritiva. P. Fiala, J.
Boutet, M. Fbel, por exemplo, após haverem constatado que “ a aná­
lise do discurso político jamais se interessou, por assim dizer, pelas
propriedades do discurso “comum”, tendo-se constituído e desen­
volvido em torno da observação de objetos fortemente instituciona­
lizados preferem propor “ a descrição das práticas efetivas de
linguagem'’, sem privilegiar exclusivamente os “ textos de arquivos”,
interessando-se pela diversidade das produções mais espontâneas que
participam, em sua circulação, do “ rumor” político. Experiência esta
que pressupõe a atribuição de um lugar de primeiro plano ao hete­
rogêneo: "irregularidades gramaticais, discurso interrompido, interven­
ção de fatores extralingiiísticos na mudança verbal, variações formais
do código de acordo com diferentes “ níveis de língua”, mudança do
sentido das palavras, e t c . " ”.

14
Desta forma, criticam a AD, “construída como uma nova solução
às aporias da crítica filológica tradicional por limitar-se aos cor-
pus impressos, eliminando de suas pesquisas “ a heterogeneidade dos
mecanismos que aluam nas produções de linguagem, postulando um
nível discursivo teórico onde os mecanismos formais {lingiiísticos) e
os dados institucionais (condições de produção) poderíam se articular
em um todo homogêneo, controlável, teorizável 13”.

Estas críticas são perfeitamente legítimas, mas a verdadeira ques­


tão consiste em saber se elas não conduzem à definição de uma prá­
tica distinta da AD. Quando os autores escrevem que em AD “o
ponto de vista sociológico sobre o discurso é nitidamente reduzido
em relação ao ponto de vista histórico H”, eles sublinham com ade­
quação um aspecto importante. Se for adotado, como eles o fazem,
um ponto de vista sociolingüístico, a AD assumirá o aspecto de uma
prática particularmente redutora; cm compensação, admitindo-se,
como o fizemos, a existência de uma muldpücidade de “análises do
discurso”, compreender-se-á que uma delas mantém uma relação pri­
vilegiada com a história, os textos de arquivos, as instituições restri­
tivas, enquanto uma outra, diretamente relacionada à sociologia, recor­
re com maior freqüência às pesquisas de campo e se interessa por
enunciados cujas estruturas são reguladas com flexibilidade por fatores
heterogêneos. Além dos problemas de cotpus, mobili/am-se, assim,
uma prática e um jogo de remissões teóricas diferentes. Com toda a
clareza, a AD lança um olhar específico sobre o domínio do “dis­
curso” e não há de ser por que ela ocupa o lugar que a filologia deixou
vago que este olhar será desqualificado: todas as atividades das ciên­
cias sociais estão inevitavelmente situadas, a AD não escapa à regra.
Isto, entretanto, não a coloca fora do alcance da crítica: todo ques­
tionamento t e ia fundamento caso mostrasse que o objeto instituído
pela AD não é pertinente ou que seus conceitos e seus métodos não
permitem apreender convenientemente este objeto.

Para avaliar a especificidade da "escola francesa da análise do


discurso”, basta confrontá-la ao que, genericamente, é entendido, nos
Estados Unidos, como “ análise do discurso” : uma disciplina dominada
pelas correntes interacionistas e ctnometodológicas que toma como
objeto essencial de estudo a conversação ordinária. F. Gadet resume
estas diferenças no quadro que segue ’5:

15
Al) francesa AI) anglo-saxã

Escrito Oral
Tipo de
Ouadro institucional Conversação cotidiana
discurso
doutrinário comum

Propósitos textuais Propósitos


Objetivos cumunicucionuis
determinados explicação — forma
descrição — uso
Construção do objeto
Imanència do objeto

" estruturalism o" interacionism o


Método
lingiiística e história psicologia c sociologia

Origem linguística antropologia

A comparação é eloquente e compreende-se que o livro Intro-


duclion to discourse analysis de M. Coulthard 1,1 c nossa lidlialioii
ctux m élh od es de Ptmalyse du discou rs. excluindo-se seus títulos,
nada tenham em comum, como observa a autora do quadro 17.

O domínio da AD, mesmo restringido desta forma, permanece


ilimitado. Costuma-se recorrer a tipologias funcionais (discurso ju ­
rídico, religioso, etc.) cu formais (discurso narrativo, didático, etc.),
mas o estudo destes últimos constitui apenas uma etapa preliminar
para a AD. não seu objetivo. F.la cruza-os uns com os outros, es­
pecificando-os espacial e temporalmente, associando-os necessaria­
mente a condições de produção particulares: o discurso jurídico
didático de tal cpoca c de tal lugar, o discurso polêmico filosófico
em tal contexto, com todas as especificações ulteriores que se de­
sejar, etc. A AD pode também, e é o caso mais frequente, realiza-
o movimento inverso a partir de uma ou várias formações discur­
sivas (a imprensa socialista, os manifestos feministas, o discurso de
determinada corrente da crítica literária, etc.)

Vale dizer que, fazendo variar este ou aquele parâmetro, po­


de-se construir uma infinidade de objetos de análise. Na realidade,
seria melhor questionar o que poderia não ser “discurso": não ape­
nas os enunciados, mas também as análises destes enunciados, e as­
sim ad libitum , oferecem a possibilidade de recortar urn conjunto
ilimitado de campos de investigação. Comparados à infinidade de

lb
objetos de análise possíveis, os objetos que a AD efetivamcnle
constrói parecem irrisoriamcnte restritos. Longe de remeter a algum
recorte natural, a alguma marcarão metódica de um espaço delimi­
tado. eles apenas manifestam, de forma mais ou menos oblíqua, as
preocupações que atravessam esta ou aquela coletividade cm uma
conjuntura dada. A predileção da Al), em seus inícios, pelo dis­
curso político da esquerda francesa, por exemplo, não c obra do
acaso; ). ). Courtine coloca isto em relação com a conjuntura de­
finida pelo programa comum de governo assinado pelos socialistas
e comunistas ,s

Para a AD, o "discurso" como tal não podería ser apreendido


diretamente, salvo se quisesse limitar-se a generalidades filosóficas.
Ela relaciona-se com um entrelaçamento irreprcsentável de textos
no qual apenas hipóteses heurísticas e pressupostos de ordens di­
versas permitem recortar unidades consistentes.

III

Até o presente momento, não justificamos de forma alguma a


reivindicação feita pela AD de pertencer ao campo da linguística.
Estabelecendo que “o que distingue a AD de outras práticas de
análise de textos é a utilização da linguística não se afirma algo
óbvio, mas isto resulta de uma opção epistemológiea. Não é sufi­
ciente, pois. constatar que um discurso é feito de palavras para daí
concluir que seu estudo depende mais da linguística do que de uma
outra disciplina. Optar pela linguística. de modo privilegiado mas não
exclusivo, consiste cm pensar que os processos discursivos poderão
ser apreendidos com maior eficácia, considerando os interesses pró­
prios à AI). Isto não implica que os textos cm questão não possam
ser objeto de abordagens com propósitos diversos.

Uma vez afirmada a inscrição da AD no espaço lingiiístico, é


conveniente questionar de que forma ela deve pensar sua relação
com a linguística. Sobre este aspecto, a posição da AD parece de­
licada, já que, para retomar uma fórmula de |. ). Courtine, cm
AD "c preciso ser lingüista e deixar de sê-lo ao mesmo tempo"0".
De fato, por um lado. a discursividade define “ uma ordem própria,
diversa da materialidade da língua" e. por outro, esta ordem “se
realiza na língua"1”. Situação de desequilíbrio perpetuo que tanto
impede a AD de deixai o campo lingiiíxtico. quanto de enclausurar-

17
w

possível pretender atingir a exaustividade. Além disso, a tarefa seria


infinita à medida que eada corpus estabelece problemas específicos.
Por isso, pretendemos apenas referir algumas das características mar­
cantes dos empreendimentos realizados em AD há alguns anos. Como
qualquer outra disciplina, a A!) se inscreve em conjunturas diversas
e articula, cm um momento determinado, sua teflexão em torno de
um certo número de questões privilegiadas. Esta polarização em torno
de um número reduzido de preocupações não é tanto consequência
das evoluções da linguística; mais do que isto. é o resultado da imer­
são da AD no conjunto das ciências sociais das quais a lingiiíslica
é parte constitutiva.

Em princípio, qualquer apresentação de questões referentes à


AD supõe duas etapas: inicialmente, a exposição dos conceitos lin-
güísticos; a seguir, a explicação da forma como a AD pode explorá-
los. A primeira etapa, para ser realizada com seriedade, deveria
incorporar obras de iingüíslica em sua totalidade; como nem sempre
é possível supor que o leitor conheça os trabalhos sobre os quais a
AD se apoia, c forçoso adotar um caminho intermediário: esboçar
esquematicamenle as referências lingüísticas sobre as quais se baseia
a pesquisa em AD e remeter o leitor que deseja aprofundar estas

e>
> questões aos textos citados.

> Para descrever estas tendências recentes da A l) , poderiamos ter


I sido levados a apresentar investigações relativamente desconexas
entre si. Como será possível verificar, isto não ocorreu, e não
t
apenas em virtude de uma triagem sistemática. Na realidade, existe
uma certa coerência nos movimentos essenciais que conduzem à AD.
Esta coerência resulta de uma dependência comum, embora freqüen-
temente mediata, cm relação às questões da enunciação c da prag­
m á t i c a Quaisquer que sejam as divergências entre estas duas cor­
rentes. elas convergem para recusar uma certa concepção da
linguagem — aquela que a entende como um simples suporte para
a transmissão de informações, em lugar de considerá-la como o que
permite construir e modificar as relações entre os interlocutores, seus
enunciados e seus referentes. E a própria noção de “comunicação
lingüística” que. desta forma, é deslocada: o fato de que um enun­
ciado supõe um enunciador. um destinatário, uma relação com outras
enunciações reais ou virtuais, que esteja atravessado pelo implícito,
etc.: tudo isto não é uma dimensão que se acrescentaria posterior-

20
mente a uma estrutura linguística já constituída, mas algo que condi­
ciona radicalmentc a organização da língua.

Na base de todo este trabalho de redefinição, uma vez mais está


sendo questionada uma certa concepção da oposição saussuriana entre
“ língua” e “ fala” e suas diversas transformações terminológicas. Em
ln iliolion aux m éthodes d e Vanalysc du d iscou rs já havíamos su­
blinhado que a constituição da AD supunha uma crítica a esta célebre
dicotomia, que acabou sendo interpretada como a oposição entre um
sistema de regras universais e a liberdade de que goza um suieito ao
produzir enunciados contingentes. O conceito de “ discurso", ao dc-
<^'s> \ finir espaços de regularidades associados a condições de produção,
visa. ao contrário, a delimitar “o que constitui o falante em sujeito
de seu discurso ( . . . ) . o qual, por sua vez. o assujeita ”7". A pers­
pectiva "pragmático-enunciativa" coloca sobre um outro terreno sua
crítica à dicotomia língua/fala: em vez de considerar a enunciação
como um acontecimento único que dependería do domínio da “ fala”
e que se apagaria diante do enunciado, único objeto da linguística,
ela distingue os atos singulares de enunciação do esquema geral da
enunciação. o qual depende da “ língua", ao mesmo título que as re­
gulai idades morfo-sintáticas

ü panorama da A!) remodelou-se pouco a pouco através da


reincidência destas questões. Sucintamente, poder-se-ia dizer que a AD
de "primeira geração”, aquela dos fins dos anos 60 e início ria década
de 70, procurava essencialmcnte colocar em evidência as particulari­
dades de formações discursivas (o discurso comunista, socialista, etc.)
consideradas como espaços relativamente auto-suficientes, apreendi­
dos a partir de seu vocabulário. A AD de segunda geração, ligada
às teorias enunciativas, pode ser lida como uma reação sistemática
contra aquela que a precedeu.

Nestas condições, torna-se um pouco artificial repartir em ca­


pítulos distintos questões cujos laços são extremamente densos. En­
tretanto. foi necessário proceder a uma apresentação analítica e este
livro foi organizado em três partes

A primeira esforça-se em rearticular o discurso sobre a suposta


“cena” cie sua enunciação e, além disso, aprofundar o caráter iiisti-
tucional da atividade discursiva. A segunda parte considera a dis

21
se nesta ou naquela dc suas eseulas ou de seus ramos. A Al) não
é, pois, uma parte da lingüístiea que estudaria os textos, da mesma
forma que a fonética estuda os sons, mas ela atravessa o conjunto
de ramos da lingüístiea: “ Os funcionamentos discursivos socialmente
pertinentes atravessam a matéria lingüístiea, sem preocupar-se com
suas fronteiras que, para outros fins, puderam ser traçadas entre
sintaxe, semântica e pragmática. ( . . . ) A dimensão ideológica do
funcionamento dos discursos dii respeito a operações que podem se
situar em níveis muito diferentes da organização da matéria
lingüístiea

Uma tal situação acarreta uma consequência algo paradoxal: ao


mesmo tempo que a AD possui apenas um estatuto “ periférico” no
campo lingüístico, é direito seu exigir daqueles que a praticam um
certo conhecimento do conjunto deste campo; conseqüència inevitá­
vel. desde então: nenhuma dimensão da linguagem é indiferente, a
priori, aos fenômenos salientados como pertinentes para a AD. Isto
traz problemas, visto que, frequentemente, "as partes interessadas"
na AD pertencem a campos diferentes ao da lingüístiea. Houve um
tempo, quando a lingüístiea era taxada de “ciência piloto", em que
se pensava ser suficiente importar conceitos e métodos linguísticos,
em geral muito simplificados, para satisfazer os usuários. Atualmente,
a situação mudou: inicialmente, porque não é mais possível conten­
tar-se com empréstimos aproximativos, sendo necessário aprofundar
o conhecimento dos funcionamentos da linguagem; em segundo lugar,
como já foi dito, porque o discurso possui sua própria ordem e é
deste ponto de vista que é preciso avaliar o interesse dos aparelhos
lingüístieos de que se utiliza.

Na realidade, não existe nenhuma harmonia preestabelecida en­


tre os diversos objetos que podem ser propostos pela AD e os re­
cursos que a lingüístiea lhes oferece (dovendo-se entender definitiva
mente que " a ” lingüístiea designa, de fato, " a s " linguísticas do
campo). Frente a um corpus, o pesquisador a priori não tem nenhuma
razão determinante para estudar um fenômeno em detrimento de
outro, da mesma forma que nada o obriga a recorrer a um determi­
nado procedimento ao invés de a qualquer outro. Se, para atingir seu
propósito, ele se interessa, por exemplo, pelos adjetivos avaliativos,
por metáforas ou por algumas estruturas sintáticas, isto ocorre uni­
camente em virtude de hipóteses, as quais repousam a um só tempo:

18
— sobre um certo conhecimento de seu corpus;
>1 — sobre um conhecimento das possibilidades oferecidas ao ana­
lista pelo estudo de semelhantes fatos de linguagem.

\
Querendo ou náo, toda análise implica estas duas ordens de con­
siderações. É o que S. Bonnafous mostra muito bem, por exemplo,
quando compara os resultados que se podem esperar deste ou da-
queie método, no caso, a "análise automática do discurso" de Miehel
Pêcheux e a lexicometria 23:

“ A análise automática do discurso é concebida para mani­


festar os pontos de ruptura ideológica entre os diferentes textos
estudados ( . . . ) . A lexicometria. ao contrário, não peneira na
profundidade da argumentação, permanecendo sempre no nível
mais superficial, o quantitativo. Consequentemente, se presta
mais ao estudo das "atitudes” e dos “ comportamentos” do que ao
da temática 21”.

1' preferível, portanto, explicitar da melhor maneira possível as


escolhas que, de qualquer forma, somos obrigados a fazer. Na ausên­
cia desta reflexão prévia, corre-se o risco de atingir um resultado in­
significante: aplica-se cegamente um método a um corpus e obtém-se
algo que representa apenas o resultado deste método aplicado a este
corpus. Neste caso, a linguística, convocada apenas a título de garan­
tia, permite a produção de um efeito de cientificidade. A agir assim,
seria melhor fazer uma explicação tradicional de textos, fundada sobre
uma grande familiaridade com o corpus. Não é a presença de hipóte­
ses muito específicas e de pressupostos que é prejudicial, mas a in­
tenção de não utilizá-los ou de fazê-lo minimamente. É o fato de
levar em conta a singularidade do objeto, a complexidade dos fatos
discursivos e a incidência dos métodos de análise que permite pro­
duzir os estudos mais interessantes.

IV

ü que acabamos de dizer incide, evidentemente, sobre o con­


teúdo desta obra. Se todos os fenômenos linguísticos são suscetíveis,
a priori, de interessar à A D, sendo impossível referir-se a uma lista
pfeesrabdeddd Je m étodoj d e análise, não se perceb e c o m o seria
ciir^i\idade atratés de sua relação com a heterogeneidade Lm lugai
de interpretá-la como uma fonte única pontilhada de fragmentos
citados, trata-se de pensar, de imediato, na interação do Mesmo e do
Outro; na realidade, dever-se-á distinguir uma heterogeneidade
“mostrada", marcada lingüisticamente e uma heterogeneidade "cons­
titutiva’’ que obriga a repensar a distinção espontânea entre o “ in
terior" e o "exterior" de um discurso,

Na última parte, reflete-se sobre as expectativas que a A D pode


tecer sobre o estudo de vocabulário. Predominantes em AI) durante
muito tempo, estes trabalhos lexicológieos foram obrigatoriamente
ressituados a partir do momento em que o conjunto da disciplina foi
remodelado. Nessa perspectiva, o último capítulo, consagrado às
"palavras do discurso”, ou seja, aos lermos que possuem uma função
ao mesmo tempo interativa (estruturação das relações entre interlo­
cutores) e argumentativa (estruturação de enunciados destinados a
influenciar terceiros), aparece como o ponto de convergência de al­
gumas das idéias diretrizes deste livro; estas “ palavras” são precisa-
mente o tipo de palavras sobre as quais a Al) da primeira lase nada
tinha a dizer, polarizada como estava sobre lexemas de conteúdo
ideológico imediato.

Para além dos termos abordados, e mais do que o exame de pes­


quisas realizadas, convém considerar a própria modificação da figura
do discurso. Conforme sugeriremos na conclusão, um certo número
de embasamentos metafóricos, de partilhas imemoráveis estão osci­
lando: fundo/forma, enunciado/contexto, linguagem/ação, texto/in-
tertexto, os quais delimitam um espaço de pensamento que progres­
sivamente perdeu sua evidência.

Antes de começar, resta-nos resolver um problema delicado de


terminologia. Km numerosos contextos a polissemia de discurso, ter­
mo utilizado com acepções distintas pelas teorias da enunciação e da
AD, pode mostrar-se muito perturbadora. Assim, para referir sem
equívoco o objeto da AL), preferiremos, sempre que parecer útil,
recorrer ao conceito de fo rm a çã o discursiva. Emprestado, como vimos,
da A rqueologia d o S aber de Foucaull, este termo define " o que pode
e deve ser dito (articulado sob a forma de uma alocução, um sermão,
um panfleto, uma exposição, um programa, etc.) a partir de uma
posição dada em uma conjuntura determinada

22
Oe fdfO, sc Jísejarmos re.ilrmrnt-e ser precise*, m esm o no quadro
J * AD,. a noção <fe ' discurso" n.ío / estável, Por este term o e possivel
entender o que Pêchcux chama de "superfície discursiva", que cor-
V responde ao conjunto dos enu^iados realizados. pioduzidca a partii
' dc uma cena posição; mas lambem pode se infCipreta Io çomo o
2 sistema de restrições que permite analisar a especificidade desta su
peifície discursiva, liste mesmo sistema de restrições poile ser eon
siderado não como se devesse explicar um determinado corpus, mas
T32

como uma espécie de “competência”, no sentido chomskiano, ou


^ seja, um conjunto de regras capazes de produzir uma infinidade de
enunciados, realizados ou não, a partir da posição enuncialiva estu­
dada. A esta fonte de deslizamentos semânticos, acrescenta se o que
diz respeito aos elementos que supostamente entram na delimitação
do "discurso": para alguns, apenas os enunciados são integrados,
enquanto outros levam em conlii o co/u/i/evo iii\liliuion,il q ue esta
associado ii sua enuneiação.

De qualquer forma, não se deve esquecer a ligação essencial que


a AD mantém com a finitude ou a ‘'raridade", para retomar a ex­
pressão de Foucauli. Mesmo que se consiga construir uma “compe­
tência” para associá-la a este ou aquele discurso, de forma alguma
é possível considerá-la como uma gratnálica da língua: a quantidade
de enunciações efetivamente proferidas a partir de uma certa posição
é necessariamente muito limitada, já que a AD relaciona-se com ar­
quivos e não com exemplos de gramática:

"Lsta raridade dos enunciados, a forma lacunar e recortada


do campo enunciativo, o fato de que poucas coisas, globalmente,
podem ser ditas, explicam que os enunciados não sejam uma
transparência infinita, como o ar que se respira, mas coisas que
se transmitem e se conservam, que têm um valor, e das quais
tentamos nos apropriar

1. Berlil Malmbeig. Les nouvelles len d a iu e s d e Ia linguiuiqiic. Paris. P.U.K.


1966, p. 9.

2. Michel Péeheiix, "Sur les contextes épistémologiques dc Panalyse dc dis-


cours”, in M ots, Presses de la Fondulion nationalc des Sciences poliliques,
n.° 9, out , 1984, p. 7.
3. “TaWc londc: discours-histoirc-langue ", in M niriinluét d itru n ix e*. Prcsscs
Universitaires dc I illc. 1981. p. 196

4. "Analyse dc conlenu ct Analyse du discours" de Picrrc l avre, in Eludes


« flertes ttu p ro fesseu r l i d e Lagrange. Universilé de Clcrmont I, 1978.
p. 301.

5. Mithcl Pêcheux, arl. ciI.. p. 15 e 17.

6. "Une pnrlie intégrante de Ia sociolinguistique: 1'analyse de discours”, in


[.twgtigr rl S o iié tí. n.° fi. 1978, p 4

7. Pieire Achard. in l.nngtige et S o ciélé. n." 6, 1978. p 88.

8. Definição de I.ouis Gucspin, in Langages, n.° 23, p. 10

9. L A rcliéoln g ie du Savoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 153, (Pd. Bras.: A r­


qu eologia d o Saher. Rio de Janeiro, Forense — Universitária, 1986).

10. "Relations paraphrasiiques el Conslruction du scns. Analyse d une formule


dans les discours xénophobcs”. in M tutelet linguisliques. lonio IV. 1, 1982,
p. 42.

II Ai l. eit„ p. 53

12. An eii., p. 46.

13. AiI. cit , p 45

14 Arl. cit.. p. 45

15. ”L’analyse de discours et P “ interprétation" (a propósito de Tlierapeutie


discou rsc)", in D R I.A V , n.° 27, 1982, p. 107-133.

16. Londres. I ongman. 1978.

17. As pesquisas em matéria de conversação, próximas ás problemáticas anglo-


saxãs. constituem um domínio cuja bibliografia já é considerável c que co­
meça a desenvolver-se na França. Se o leitor desejar entrar em contato com
tais questões, pode ler o excelente artigo de síntese de P. Bange. "Points
de vue sur 1'analyse convcrsalionnclle". H R l.A W n " 29, 19X3. p 1-28
Os pontos dc contato entre A D e análise conversacional no presente tno
mento são mínimos; citemos o artigo de B. Conein "Un cas de situation de
discours: le parler d'assembléc", consagrado ao estudo de sessões da As­
sembléia legislativa durante a Revolução Francesa ( A d e s du deuxièm e
co llo q u e de lex icotog ie p o litiqu e, vol. 2, Paris. Klincksieck. 1982, p
377-390).

|8. "Analyse du discours politique". in lim guges, li " 62. 1981. p 62-64

24
I1) 1 M. Marandin. 'Problèmes d'analysc ilu diseours — 1'ssaix tle desctiplion
<ln d iscou rs frança is sur Ia ( liine”. in l.iint-avr\ n " 5 5. 1979. p IS

20 Ia Toque de CTcmenlis'. in l.r tlisctmr\ psvt lunuih riqnt n 2. I ‘>S|.


P 17

21 Iludem

22 ITiseo Veron. "Matière lingttislique el analysc du diseours". in / tuigag, tt


Sthirtr. n." 2 X. fase I I . junho. | 98-1, p. 95.

25 A propósito destes dois métodos, veja liiilitilion tun m é lh o J r s <U- T<w«/V.v


tlit iliscours. I.a e 2.a partes

24 Processos discursifs el slruclorcs lexicales — l e congrcs de Mel/ « 1'»7ij )


du Parti Socialisie". in l.nngm us. n ” 71. setembro. IMS1. p. 107

25 De forma sucinta, pode-se di/cr que estas duas cot tentes não são idênticas
mas nesta obra não as distinguiremos. a menos que tal fato seja ne cessá rio

26 p 56

27. Jean-Jacqttcs C ourtinc, "I.a Toque de CTemcntis", in l.r ttisc o m \ r"vi h<)nt,
!\ tique. n.° 2. 151X1. p. 12.

2K. Claudine Haroche, Paul Hcnry. Michel Pêcheux. I.a scmantiquc et Ia COu.
purê saussuriennc: languc. langage. diseours". in 1 trnum e, n " 21 M m
p. 102.

2'» M l-oucault. I ■ 1’ cliénloKÍe tlu Suvoii , p |S7

B IB L IO T E C A S E T O R IA L DE EU U CAC-O
FACU LD AD E DE ÉDUCAÇÀO - ü f s a S
1.

A CENA ENUNCIATIVA

A PRAGMÁTICA

Durante muito tempo a AD tomou como objeto os corpus por


ela apreendidos independentemente dos atos de enunciação que os
haviam tornado possíveis. Ao proceder assim, não tinha o intuito de
negligenciar as “circunstâncias”, o “quadro” de enunciação, mas por
entender tais fatos mais como um conjunto de elementos modulado-
res do que como uma dimensão constitutiva do discurso. Atesta esta
situação a maneira como era utilizada a noção de instituição: se a
língua era reconhecida como uma instituição, o mesmo não ocorria
com o discurso. Ê sobretudo através das questões dos atos d e jalu
que uma concepção diferente emergiu. Apoiando-se em modelos em­
prestados do direito, do teatro ou do jogo, a pragmática tentou inscre­
ver a atividade da linguagem em espaços institucionais.

Na verdade, continua difícil falar das concepções “da” prag­


mática, pois ela designa múltiplas correntes e não há um
único ponto que não seja objeto de longas controvérsias, com
frequências extremamente sutis1. Por isto, contentar-nos-emos em
expor aqui suntai iamente alguns elementos necessários para compre­
ender as modificações sofridas pela AD.

Na perspectiva pragmática, a linguagem é considerada como uma


forma de ação; cada ato de fala (batizar, permitir, mas também pro­
meter, afirmar, interrogar, etc.) é inseparável de uma instituição,
aquela que este alo pressupõe pelo simples lato de ser realizado. Ao
dar uma ordem, por exemplo, coloco-me na posição daquele que está

2‘ )
habilitado a fazê-lo e coloco meu interlocutor 11a posição daquele
que deve obedecer; não preciso, pois, perguntar se estou habilitado
para isto; ao ordenar, ajo como se as condições exigidas para rea­
lizar este alo de fala estivessem cfetivamenle reunidas. Dito de
outra forma, não é porque tais condições estão reunidas que o ato
pode ser efetuado, mas é porque este ato foi efetuado que se con
sideram reunidas estas condições. Através de sua própria enunciação,
este ato de fala é considerado pertinente.

A referência à ordem jurídica opera-se então naturalmente, já


que os atos de fala acionam convenções que regulam institucional­
mente as relações entre sujeitos, atiibuindo a cada um um estatuto
na atividade da linguagem. O que permite a certos autores falarem
de “contrato”:

"A noção de contrato pressupõe que os indivíduos perten­


centes a um mesmo corpo de práticas sociais sejam capazes de
entrar em acordo a propósito das representações de linguagem
destas práticas. Consequentemente, o sujeito que se comunica
sempre poderá, com certa razão, atribuir ao outro (o não-EU)
uma competência dc linguagem análoga à sua que 0 habilite ao
^ reconhecim ento. O ato de fala transforma-se, então, cm uma
' proposição que o EU dirige ao TU e para a qual aguarda uma
contrapartida d e conivência z".

Logo, um sujeito ao enunciar presume uma espécie de “ ritual


social da linguagem” implícito, partilhado pelos interlocutores. Em
uma instituição escolar, por exemplo, qualquer enunciação produzida
por um professor é colocada em um contrato que lhe credita o lugar
de detentor do saber: “ O contrato de fala que o liga ao aluno não
lhe permite ser “ não-possuidor do saber": ele é antecipadam ente le
g itim a d o:l”. Através destas citações de P. Charaudeau, vê-se clara­
mente como é possível passar, sem dificuldade, dc atos de fala stricto
sensu a "práticas sociais” : o problema consiste exatamente em sabei
como sc deve pensar a articulação das instituições que se ocupam da
linguagem com as demais instituições.

O segundu registro do qual a pragmática extrai seus modelos


é o teatro. Nada mais fácil, efetivamente, do que passar do “estatuto"
jurídico ao “ papel”: “ a língua comporta, a título irredutível, escreve

30
Ü. Ducrot. um catálogo completo de relações inter-humanas. tcila
uma c o le ç ã o d e papéis que o locutor pode escolher para si e impor ao
destinatário Realualiza-se, assim, mas em um quadro totalmente
diferente, a velha metáfora estóien, segundo a qual a sociedade seria
um vasto teatro onde um papel seria atribuído a cada um. Ilá uma
tendência para ampliar este ponto de vista, integrando os papéis em
um complexo mais rico: uma "encenação" ou uma "cenografia” . Para
E. I.andowski, “cenografia" ou "contexto semiótico" encontra-se no
mesmo nível que a possibilidade de "formulações eficazes" (os atos
de fala) que conferem sua credibilidade às enunciações; delas laz.em
parte "o próprio enunciado, certamente, mas também o modo pelo
qual o enunciador se inscreve (gcstualmente, proxemicamcnte
etc.) no tempo c no espaço de seu interlocutor, bem como todas as
determinações semânticas c sintáticas que contribuem para lorjar "a
imagem distinguida” que os parceiros remetem um ao outro no ato
de comunicação u”.

A pragmática também faz empréstimos junto ao dom ínio d o jogo.


o que é bastante natural, dadas as fortes afinidades entre jogo. dra­
maturgia e convenções sociais, sobretudo na cultura anglo-saxã. Pode-
se, assim, enfatizar, juntamente com |ohn R. Searle, que as regras
de jogo, bem como as dos atos de fala, são “constitutivas": "Quando
falamos, adotamos uma forma de comportamento intencional regida
por regras. As regras dão conta das regularidades exalamentc da
mesma maneira que as regras de futebol dão conta das regularidades
apresentadas em uma partida de futebol Estas regras piessupõem
instituições que são as únicas capazes de atribuir-lhes sentido. No
interior desta concepção, somos levados a reorientar a famosa me­
táfora saussuriana do jogo de xadrez, insistindo sobre a dimensão
interativa, guerreira mesmo do jogo, lembrando "parceiros", "estra­
tégias" para descrever a inierlocução. Questões estas que acusam a
influência de certas correntes sociolingüísticas e. em parih.ular, da
ctnomctodologia.

De forma mais geral, a pragmática tende a enfatizai que "a


tomada da palavra” constitui um aio virtualmcntc \iolentu que
coloca outrem diante de um fato realizado e exige que ostr o reco*

* A proxêmica propõc-sc analisar as relações espaciais e o mudo inmo os


sujeitos utiüzamse do espaço para produzir significação ( N. do T )
nlieça cumo lai. Ao enunciar, eu me concedo um eeiio lugar c "atri­
buo uni lugar complementar ao outro", peço-lhe que se mantenha
nele e que ‘‘reconheça que sou exatamente aquele que fala de meu
lugar7” . Solicitação que é feita, pois, a partir de um ‘quem sou eu
para li. quem és tu para mim

LUGAR I Cl-NA

A concepção pragmática se opõe radicalmente á idéia de que a


língua seja apenas um instrumento para transmitir informações; ela
coloca em primeiro plano o caráter interativo da atividade de lin­
guagem, recompondo o conjunto da situação de enunciação, etc ; as­
pectos estes que vão inteiramente ao encontro das opções da AD.
Esta última é, com frequência, reticente em relação à pragmática, por
apresentar certas incompatibilidades no que tange aos seus próprios
pressupostos teóricos. A dificuldade gira essencialmente em torno da
questão da subjetividade enunciativa: muitos trabalhos de inspiração
pragmática repousam sobre as "intenções” de falantes cuja consciên­
cia seria transparente e a identidade estável, ultrapassando os diversos
"papéis” que desempenham. Esta reserva manifesta-se elaramenie
nestas linhas de |. Guilhaumou e II. |. I.üsebrink, que percebem
“ uma divergência de ordem teórica” entre a cot rente da "pragmá­
tica textual” alemã e a AD, cujos objetos a priuri são vizinhos.

"A redução das condições de produção do discurso às va­


riáveis sócio psicológicas da situação de comunicação, a impor­
tância das interpretações psicologizantes ( . . . ) inspiradas 11a
sociologia interueional (E. Goffman) são específicas da abordagem
pragmática. Trata-se, do ponto de vista da análise do discurso,
de uma perspectiva que se inclina a apagar a relação com o
real da língua e com o real da história, com a base linguística
constitutiva de todo fato discursivo e com os efeitos de con­
juntura em uma formação social determinada v”.

Em geral, e isto desde seu início, a Al) prefere formular as


instâncias de enunciação em termos de "lugares”, visando a en­
fatizar a preeminência e a preexistência da topografia social sobre os
falantes que aí vêm se inscrever Um conceito de lugar "cuja es
pecificidaclc repousa sobre esse traço essencial segundo o qual cada um
alcança sua identidade a partir e no interior de um sistema de lugares
que o ultrapassa Este primado do sistema de lugares é crucial a
partir do momento em que raciocinamos em termos de formações
discursivas; trata-se, então, segundo o preceito de M. Foucault, de
“determinar qual é a posição que pode e deve ocupar cada indivíduo
para dela ser o sujeito’ 1”. Isto equivale a dizer que "a teoria do
discurso não é uma teoria do sujeito antes qu e este enuncie, mas uma
teoria da instância de enunciação que é, ao mesmo tempo e intrin-
secamente, um efeito de enunciado ’2” .

Esta instância de subjetividade enunciativa possui duas faces:


por um lado, ela constitui o sujeito em sujeito de seu discurso, por
outro, ela o assujeita. Se ela submete o enunciador a suas regras, ela
igualmente o legitima, atribuindo-lhe a autoridade vinculada insti-
tucionalmente a este lugar. Uma tal concepção opõe-se a qualquer
concepção “ retórica”: aquela que coloca dois indivíduos face a face
e lhes propõe um repertório de “atitudes”, de “estratégias” destinadas
a atingir esta ou aquela finalidade consciente. Na realidade, para a
AD, não é possível definir nenhuma exterioridade entre os sujeitos
e seus discursos.

Pensamento similar em termos de formação discursiva, a noção


de “encenação”, entretanto, também apresenta perigo. Com efeito,
seria preciso não conceber esta cena como a duplicação ilusória, a
re-presentação de realidades, de conflitos (sociais, econômicos) dados
antecipadamente. A pragmática, ao colocar de início a linguagem
como ação institucionalizada, vai ao encontro desta visão passiva da
discursividade (mas nem por isso ela deve induzir a idéia de que a
linguagem constrói "cenas” autônomas, de que, na sociedade, existem
apenas efeitos de linguagem).

Admitiu-se, com frequência e de forma tácita, que os quadtos


da enunciação apenas duplicavam uma realidade anterior e exterior,
que eram a “ máscara”, o lugar da dissimulação de planos, de inte­
resses inconfessáveis. Em outras palavras, concebia-se o discurso
como um “ porta-voz”. Atualmente, a tendência, cada vez maior, é
de questionar esta topografia que coloca o discurso c a “ realidade”
como exteriores um ao outro, considerando a primeira como uma
espécie de teatro de sombras. Jean-Pierre Faye lembra muito justa­
mente que “ não há interesse epistemológico que parta do fato do
discurso sem que. previamente, este (o discurso) tenha sido consti­
tuído como experiência social. Estamos cm um terreno onde a relação
social é, desde o início, linguagem |:|". Mas como pensar, a seu modo,
a ordem do discurso, ao mesmo tempo que remete a posições não dis
cursivas, não os “ reflete" exatamente? I)e fato, esta c uma difi­
culdade, já que os lugares sociais só podem existir através de uma
rede de lugares discursivos, os quais se apóiant em uma economia
distinta. Ê preciso admitir que a “encenação" não é uma máscara
do “ real", mas uma de sitas formas, estando este real investido pelo
discurso. Aliás, se fosse diferente, a AD não teria razão de existir,
ela seria apenas um anexo da sociologia ou da história, totalmente
dedicada a mostrar como as conjunturas se traduzem em enunciados.

OS GÊNEROS DO DISCURSO

Até agora, falamos vagamente de “sujeito" ou de “ lugar


de enunciação". Na realidade, não devem ser confundidos o sujeito lin
giií.slico, o sujeito gen érico e o sujeito ila form ação discursiva. Além
disso, todo sujeito aqui é o correlato de um destinatário, de um "co-
cnunciador" para retomar o termo de A. Culioli, e, mais ainda, de
um conjunto de coordenadas no tempo e no espaço.

O sujeito "lingüístico” é aquele que interessa à linguística; para


a AD ele constitui um pressuposto, não o objeio de seu estudo. Ve­
remos no capítulo sobre a "heterogeneidade mostrada" (II, 1) que
ele não representa uma instância final, mas deixa-se analisar em uma
fase anterior. Se também é necessário introduzir um sujeito “gené­
rico", é porque, no discurso, “o indivíduo não é interpelado como
sujeito, sob a forma universal do sujeito de enunciação. mas em um
certo número de lugares cnunciativos que fazem com que uma se-
qüência discursiva seja uma alocução, um sermão " , . . .", Os enun­
ciados dependentes da AD se apresentam, com efeito, não apenas
como fragmentos de língua natural desta ou daquela formação dis
cursiva, mas também com o am ostras d e um certo gênero de discurso.
Reencontra-se aqui a noção de “ contrato": cada "gênero" presume
um contrato específico pelo ritual que define. Vale dizer que “ um
discurso não é delimitado à maneira de um terreno, nein é desmon
tado como uma máquina. Constitui-se em signo de alguma coisa, para
alguém, em um contexto de signos e de experiências

34
Note-se que a noção de "gcnero" não é de fácil manejo. Os
gêneros encaixam-se, frequentemente, uns nos outros. Estudando, por
exemplo, a correspondência dos leitores, publicada no diário genovês
La Suisse, durante o debate eleitoral de 1974 a propósito da emigra­
ção, Marianne Ebel e 1’icrre F:iala 1,1 insistem sobre a existência de
dois gêneros em níveis diversos: por um lado, as cartas dos leitores,
que resultam do gênero epistolar e se apresentam tanto como “ cartas
abertas", quanto como cartas comuns; por outro lado. a própria ru­
brica “correspondência dos leitores” , um dos gêneros jornalísticos,
elaborado a partir das cartas. Ora. estes dois níveis não são indepen­
dentes. A redação do jornal pode publicar ou não a carta, bem como
submetê-la às modificações que lhe convêm: por sua vez, o autor de
uma carta deve considerar estas condições quando escreve: não só
ele apenas reage a um discurso previamente organizado pelo jornal,
mas também não possui poder algum sobre a redação, nem tem
certeza de que sua carta será publicada. O leitor vê-se, assim, con­
denado a escrever sua carta em função dc sua eventual publicação,
embora finja dirigir-se unicamente aos jornalistas.

Além disso, um mesmo texto encontra-se geralmcnte na inter-


sccção de múltiplos gêneros. As tipologias tradicionalmcntc herdadas
da retórica revelam-se, com frequência, inoperantes. Falar de “dis­
curso polêmico", de “editorial", de "diálogo", de "discursei cientí­
fico", de “ panfleto", etc., consiste em presumir, com base em
dimensões muito diferentes, que é possível, a cada vez. delinir uma
unidade. Mas, se há gênero a partir do momento que vários textos
se submetem a um conjunto dc cocrçõcs comuns e que os gêneros
variam segundo os lugares c as épocas, comprccndcr-se-á facilmente
que a lista dos gêneros seja, por definição, indeterminada. Finalmentc,
cabe ao analista definir, em função de seus objetivos, os recortes gené­
ricos que lhe parecem pertinentes

Em lugar de elaborar uma lista impossível de gêneros do dis­


curso. é melhor nos questionarmos sobre a maneira de conhecer as
próprias coerções genéricas. Na via aberta pela pragmática, a ten­
dência consiste em passar dc uma concepção do gênero como con­
junto de características formais, de procedimentos, a uma concepção
‘institucional", como já foi mencionado. Isto não significa, eviden-
temente. que o aspecto formal seja secundário, mas apenas que c
preciso articular o "como dizer" ao conjunto de fatores do ritual
enunciativo. Não existe, de um lado, uma forma e, do outro, as con­
dições de enunciação. São conhecidos, por exemplo, os piogressos rea
lizados na compreensão dos Evangelhos quando suas particularidades
genéricas foram relacionadas ao uso que delas era feito nas comuni­
dades cristãs onde se constituíram

Como qualquer ato de fala elementar (prometer, convi dar. . . ) ,


um gênero de discurso implica condições de diferentes ordens:

- - comunicacional: trata-se de transmissão oral ou escrita? em


que meio (jornal cotidiano, livro, f o l h e t o ...) ? através de quais cir­
cuitos de difusão? etc. O fato de que um texto seja destinado a ser
cantado, lido em voz alta, acompanhado por instrumentos musicais
de determinado lipo, que circule de determinada maneira e em certos
e s pa ç os . . . , tudo isto incide radicalmente sobre seu modo de exis­
tência semiótica. A cada gênero associam-se momentos e lugares de
enunciação específicos e um ritual apropriado, ü gênero, como toda
instituição, constrói o tempo-espaço de sua legitimação. Estas não são
"circunstâncias” exteriores, mas os pressupostos que o tornam
possível.

estatutário: que estatuto o enunciador genérico deve assumir


e qual estatuto deve conferir a seu co-enunciador para tornar-se su­
jeito de seu discurso? O gênero funciona como o terceiro elemento
que garante a cada um a legitimidade do lugar que ocupa no processo
enunciativo, o reconhecimento do conjunto das condições de exer­
cício implicitamente relacionados a um gênero. Reencontra-se, nisto,
uma das "modalidades enunciativas" de M. Foucault, que o autor
ilustra através do discurso médico:

° "Quem fala? Quem. no conjunto de todos os indivíduos


falantes, tem a autoridade de exercer esta espécie de linguagem?
(. .) A fala médica não pode vir de qualquer um, seu valor,
sua eficácia, seus próprios poderes terapêuticos e, de forma
geral, sua existência como fala médica não são dissociáveis do
personagem estatutariamente definido que tem o direito de
articulá-la l ; ".

5b
A formulação de Foucault, entretanto, pode conduzir a uma
falsa pista: não é por terem dado prova de competência que deter­
minados indivíduos da população detêm o discurso médico, mas
porque o exercício deste discurso pressupõe um lugar de enunciação
afetado por determinadas capacidades, de tal forma que qualquer
indivíduo, a partir do momento que o ocupa, supostamente as
detém.

No quadro do genero de discurso encontra-se, pois, uma ques­


tão geral, a da autoridade relacionada a uma enunciação, a qual
desempenha um papel crucial na sociologia de Pierre Bourdieu, por
exemplo. O discurso só é “ autorizado” e, consequentemente, eficaz,
se for reconhecido como tal:

"Este reconhecim ento ( . . . ) só é atribuído gratuitamente


sob certas condições, aquelas que definem o uso legítimo: deve
ser pronunciado pela pessoa legitimada para fazê-lo ( . . . ) ; deve
ser produzido em uma situação legítima, ou seja, diante de des­
tinatários legítimos (não é possível ler um poema dadaísta em
uma reunião do Conselho de Ministros); enfim, deve ser enun­
ciado sob formas legítimas (sintáticas, fonéticas, e t c .) I8”.

A explicitação das condições genéricas, de suas cenografias não


representa uma finalidade para a AD. Estas apenas constituem coer-
ções por ela integradas a priori com o objetivo de analisar outras
coerções referentes à fotmação discursiva a ser estudada. Ao con­
siderar, por exemplo, manifestos surrealistas, sua intenção não será
a de examiná-los conto amostras do gênero “ manifesto” , mas, antes,
para compreender como o discurso surrealista investe as regias pró­
prias deste gênero. Na realidade, este investimento pode realizar-se
de múltiplas maneiras, de acordo com as formações discursivas con­
sideradas, indo desde a perfeita concordância até o conflito. Mesmo
o caso extremo, representado pela subversão de um gênero, pressu­
põe, evidentemente, que as coerções genéricas sejam como tal per
cebidas.

Geralmente, a AD não se ocupa de formações discursivas que


estariam investidas em um único gênero. Se, por exemplo, um
“discurso da Frente Nacional" ou diversos "discursos da crítica uni-
versiiária" forem delimitados, haverá interesse em enunciados oriun­
dos de gêneros variados: livros, folhetos, artigos, entrevistas, etc., pot
um lado, leses, artigos, relatórios, exercícios, etc., por outro. O im­
portante é não se limitar ã constatação de que existe este ou aquele
gênero, mas estabelecer a hipótese segundo a qual recorrer, prejeren-
temente. a estes gêneros e não o antros é tão constitutivo da form a
discursiva quanto o “co n teú d o ’ . Sobre este aspecto, pode-se exami­
nai dois casos:

- discursos concorrentes, não investidos nos mesmos gêneros;

discursos concorrentes, investidos nos mesmos gêneros, mas


explorando diferentemente suas coerções.

De qualquer forma, a AD não pode deixar de refletir sobre o


gênero quando aborda um corpus. Um enunciado “ livre" de qualquer
coeição é utópico. Uma boa ilustração deste fato decorre de um
texto que B. Gardin examinou trata-se de um folheto sindical que
pretende ser um depoimento "autêntico" sobre a realidade do traba
Ibo em uma linha de montagem. As coerções du gênero “ depoimento"
exigem a utilização de um "falar popular" que supostamente é capaz
de liberar um discurso imediato, reflexo da situação social do ope­
rário não qualificado. No entanto, testemunhar consiste em ostentar
as marcas de uma enunciação sem maneirismos. sem afetações; o que
pressupõe, exatamente, que haja conformidade ao gênero de palavras
sem artifícios, à linguagem dita "popular”. De tal forma que. por uma
virada lógica, o depoimento “autêntico" transforma-se em um texto
que parece proceder direlamente de um romance de Céline

“ ( . . . ) Sabe-se que é preciso colocar uma cavilha à esquer-


dar, uma cavilha à direita. A gente xinga a chave inglesa quando
não funciona. Praguejamos contra nós mesmos, quando nos
ferimos, mesmo que não sejamos culpados Os montes são mal
feitos, mas é assim mesmo

( . . . ) Temos dificuldade cm escrever. A gente tem cada


vez mais dificuldade em expressar-se; isto também é a monta
gem. < .)

58
Quando a gente passa oito horas calado, tem tanta coisa a
dizer que não consegue mais falar, que as palavras, elas chegam
todas juntas à boca.”

Não será surpreendente que, frente a este texto, B. Gardin seja


obrigado a fazer um comentário absolutamente literário.

ALGUNS EXEMPLOS

Consideremos a formação discursiva representada pelos textos


do “ humanismo devoto”, corrente da Contra-Reforma católica, que
dominou a literatura devota na França, do fim do século XVI à
primeira metade do século XVII Uma das mais importantes ca­
racterísticas deste discurso é que seus autores se representam como
integrantes das instituições religiosas (membros de uma ordem regu­
lar, bispo, professor, etc.) e estão associados a destinatários igual­
mente inscritos em organizações sociais (chefes de. família, magis­
trados, soldados, etc.). Ora, este estatuto d e sujeitos enunciadores
e de seus presum íveis destinatários é in separável dos gêneros de
discursos utilizados: os textos humanistas devotos apresentam-se co­
mo conversas amenas, cultas entre pessoas de bem. Desta forma, cm
sua maior parte, estão ligados de forma privilegiada aos gêneros
dialógicos m undanos: especialmente cartas e conversações. Mas é
preciso ir além, pois essa tendência em investir em gêneros, a priori
“ pagãos”, humanistas, relaciona-se com o conteúdo do discurso:
segundo o humanismo devoto, as práticas de sociabilidade mundana
podem ser sublimadas através da literatura piedosa porque Deus
governa a sociedade em todos os seus aspectos. Neste caso. conse­
quentemente, há uma clara correspondência entre gêneros e doutrina:
a separação entre a forma e o conteúdo revela-se sem sentido.I

I in um registro totalmente diferente, imaginemos, agora, que


um chefe de estado se dirija, durante uma viagem oficial, à multidão
concentrada diante da tribuna. Antes mesmo que ele comece a
enunciar, um certo número de coerções genéricas distribuem os
lugares, circunscrevem os temas abordáveis, etc. Mas. em função da
formação discursiva na qual se inscreve, o enunciador poderá jogar
com estas coerções ou. pelo menos, realizar escolhas significativas
entre as múltiplas possibilidades que se lhe oferecem. Frustrando

39
expectativas, poderá fingir, por exemplo, que desconhece a cenogra­
fia em que se encontra efetivamente implicado e realizar uma alo-
cução familiar, evocar lembranças pessoais, talar de detalhes da vida
cotidiana, etc. Mas pode igualmente apresentar-se como o militante
de um partido ou coincidir com sua função de chefe de estado; de
qualquer forma, cada mudança acarretará, como consequência, a
variação do lugar construído para o co-enunciador.* A eficácia da
enunciação resulta necessariamente do jogo entre as condições gené­
ricas, o ritual que elas implicam a priuri e o que é tecido pela enun-
ciaçâo efetivainente realizada

A última passagem do discurso de V. Giseard dT.staing, de 27


de janeiro de 1978, discurso intitulado ‘‘a boa escolha para a França’’,
oferece um exemplo deste fenômeno. O autor deparou-se com um
problema de legitimação de sua fala: não podia falar do lugar de
presidente, pois considera-se que este lugar esteja acima dos partidos;
em face disso, utilizou uma estratégia de substituição, adotando uma
atitude intimista. Ao iniciar com “ Minhas caras francesas, meus caros
franceses”, que corliasla com o “ Francesas, franceses” de De Gaulle.
o locutor instaura um novo contrato de fala com o alocutório. Aban­
donando o discurso político clássico, Giscard relata uma lembrança
de infância. |. M. Adam, ao comentar esta passagem-1, mostra que
este desvio permite legitimar o caráter pouco constitucional desta in­
tervenção presidencial. O orador lembra que, durante sua infância,
ao assistir â derrota do exército francês, em 1940, prometeu-se que,
sc um dia tivesse poder, jamais permitiría que os franceses pudessem
dizer: “ Fomos enganados". Falando sobre “a boa escolha", o herói
vem cumprir sua palavra: “ Ao recorrer à sua biografia, o presidente
volta a dar legitimidade à sua fala. Prometeu algo que, finalmente,
em 1978, pôde cumprir; seu discurso transforma-se em alo garantido
insiiiucionalmente (cumprir sua promessa, escutar a voz tio pas­
sado) -- .

Mas a consideração das cenas enunciativas também deve per­


mitir u com p aração de textos. Ê o que fazem, por exemplo, ). Gui-
lhaumou e D. Maldidier quando confrontam os relatos feitos por
diferentes jornais a propósito dos acontecimentos de 4 de setembro de
179 > -3, durante a Revolução Francesa. Os artigos comparados tentam
precisamente descrever a tomada da palavra pela multidão e, de
forma mais ampla, o conjunto da cena emmcialiva. Fm uma das ver­
sões, por exemplo, o porta-vo? tios manifestantes produz uma dupla

40
aulo-designaçáo: o puvo, os " sans-culotles" * qu e fizeram a revolução.
Unia outra versão, do Jou rn al d e la M ontagne, é geralmente conside­
rada pelos historiadores como um relato incoerente do acontecimento;
Guilhaumou e Maldidier procuram mostrar, então, que, “questionan­
do esta incoerência, a análise do discurso permite que a interpretação
se instaure. Trata-se de uma encenação que se defronta com o ponto
de vista jacobino do funcionamento de uma instituição revolucio­
nária

CKNOGRAFIA F. DE1XIS

Na língua, a "deixis” define as coordenadas espaço-temporais


implicadas em um alo de enunciação, ou seja, o conjunto de referên­
cias articuladas pelo triângulo.

EU<— >TU — AQUI— AGORA

O que chamamos de deixis discursiva possui a mesma função, mas


manifesta-se em um nível diferente: o do universo de sentido que
uma formação discursiva constrói através de sua enunciação. Em
geral, as três instâncias da deixis discursiva não correspondem a um
número idêntico de designação nos textos, mas cada uma recobre
uma família de expressões em relação de substituição. Distinguir-se-á
nesta deixis o locutor e o destinatário discursivos, a cronografia e a
topografia.

No discurso escolai da 111 República"'’, por exemplo. Irala-se de


um universo onde o mesmo termo satura os três lugares; “a Repú­
blica” é, a um só tempo, o locutor discursivo (é ela que se dirige às
crianças), a topografia (a República delimita o território da pátria)
e a cronografia (a República é a última fase da história da França,
de onde este discurso é enunciado). Apenas o destinatário, o aluno,
parece escapar deste termo; mas é unicamente o afastamento que

* No séc. XVIII, os homens ila nobreza trajavam " c u l o u e s ", espécie de calções
que iam até os joelhos, enquanto os homens do povo, que usavam calças
comuns, passaram a identificar-se como os "sans-culottes", os que não usavam
“calções” (N. do T . ).
faz com que tudo funcione: o discurso escolar tem exatamente por
função integrar estes alunos à República, sob a forma do "cidadão”.

Se existe deixis discursiva c porque uma formação discursiva


não enuncia a partir de um sujeito, de uma conjuntura histórica e de
um espaço objetivamente determináveis do exterior, mas por atribuir-
se a cena que sua cnunciação ao mesmo tempo produz e pressupõe
para se legitimar, P desta forma que o discurso da Frente Nacional se
atribui como locutor e destinatário "as forças sadias da nação”, "a
direita nacional”, etc.; como topografia institui "a França", "o Oci­
dente”, “ a Furopa Cristã”, etc.; como cronografia estabelece "u
processo de decadência intelectual, mural e física em que estamos en
gajados 2'” ’ . . . Como é possível perceber, há um deslizamento cons­
tante de uma instância para outra, quando são abordadas designa
ções muito gerais: “o Ocidente”, por exemplo, da mesma forma que
“a República” no discurso precedente, pode ocupar as três posições.

A deixis discursiva consiste apenas em um primeiro acesso à


cenografia de uma formação discursiva; esta última possui ainda um
segundo ponto através do qual é possível alcançá-la; trata-se da
deixis fundadora. Esta deve ser entendida como a(s) situação(ões) de
enunciação anterior(es) que a deixis atual utiliza para a repetição e
da qual retira boa parte de sua legitimidade. Distinguir-sc-á, assim, a
locução fundadora, a cronografia c a topografia fundadoras Uma
formação discursiva, na realidade, só pode enunciar de forma válida
se puder inscrever sua alocução nos vestígios de uma outra deixis,
cuja história ela institui ou “capta” a seu favor27

O discurso jansenista, por exemplo, supõe uma deixis discur­


siva referente à corrupção que o humanismo pagão da Renascença
impôs à Igreja, enquanto sua deixis fundadora é a Igreja dos pri­
meiros tempos. Seu locutor discursivo, a comunidade de Port-Royal,
coincide, nos textos, com a locução fundadora, a da primeira comu­
nidade cristã de Jerusalém. St. Cvran sublinha tal fato muito bem

"Parece que a Igreja, ao reunir-se primeiramcnic cm |e


rusalém, como em um monastério e dele lendo saído posteiior-
mente para espalhar-se por toda a Terra, cm várias Igrejas,
acabou, enfim, por reduzir-se como se estivesse encerrada em
vários monastérios para melhor guardar a grande pureza de seus

42
costumes nestas poucas casas e entre este pequeno número de
almas escolhidas 28” .

Por trás do enunciador contingente do enunciado jansenista, ul­


trapassando a deixis imediata que ele institui, é preciso ler uma cena
fundadora que, aqui, toma o aspecto da Origem, da proximidade com
Cristo, no tempo e no espaço.

Pode-se assim generalizar o que Régis Debray diz a propósito do


discurso político:

"A fissura original condena o grupo a buscar a sutura atra­


vés da volta aos arquétipos de seu nascimento (cujo paradigma
permanece “ o retorno à natureza”). ( . . . ) O tempo político não
é linear ou, se for uma linha, tem a forma de um anel [bouclc]
na luta inacabada e sempre retomada. A incompletude nativa
determina um trabalho infinito aos mecanismos de grupo: a (re)
constituição da completude, ficando a inovação exclusivamente
restrita à finalidade de restauração de um anitgo estado inexis­
tente 20”.

UM TEXTO

Agora, consideremos rapidamente o fragmento de um discurso


de Saint-1ust diante da Convenção, o qual nos permitirá reencontrai
algumas das noções que acabamos de introduzir:

“Cidadãos representantes do povo francês,


( . . . ) Venho lhes dizer, sem nenhuma delicadeza, verdades
ásperas, veladas até hoje. A voz de um camponês do Danúbio
não foi de nenhum modo desprezada cm um Senado corrompido:
pode-se, pois, ousar dizer-lhes tudo, a vós, os amigos do povo
e os inimigos da tirania. Onde estaríamos nós, cidadãos, se
coubesse à verdade o dever de se calar e de se esconder e se
ao vício fosse dado o direito de tudo ousar com impunidade?
Que a audácia dos inimigos da liberdade seja permitida a seus
defensores! Quando um governo livre é estabelecido, ele deve
conservar-se por todos os meios equitativos; ele pode empregar
com legitimidade muita energia; deve quebrar tudo o que se
opõe à prosperidade pública; deve desvelar as conspirações com
todo o vigor. Temos a coragem de vos anunciar e de anunciar ao
povo que é chegada a hora para que todo o mundo retorne à
moral, e a aristocracia ao terror30".

Dctxarse-á de lado aqui tudo o que depende das coerções


genéricas e das coerções da formação discursiva considerada, para
observai unicamente como o sujeito constrói a cenografia de sua
autoridade enunciativa. A partir daí. ele determina para si e para
seus destinatários os lugares que este tipo de enunciação requer para
ser legítima; o público é interpelado como “ cidadãos representantes
do povo francês”, como “ amigos do povo" e “ inimigos da tirania” ;
mais exatamente, há dois conjuntos de destinatários, sendo o primeiro
constantemente remetido para o segundo, o povo: "cidadãos repre­
sentantes do povo fran cês" , “ amigos do p o v o ”, “ anunciar-lhes
e anunciar ao p o v o ”,. . . He tal forma que a legitimidade deste lugar
de destinatário se funda, por sua vez, em um outro lugar, designado
pelo texto. O vocativo cid a d ã o s se refere simultaneamente a estes dois
conjuntos, ambiguidade esta que está ligada à própria organização da
cena: a sala contém dois públicos (os deputados e os parisienses), e
o discuiso joga com esta dualidade.

Quanto ao eu do enunciador, sua função é definir substitutos


(a verdade, um governo li\’re, nós), cujo paradigma contribui para
delimitar a instancia do “ locutor discursivo”, os quais constituem
outros tantos apagamentos do indivíduo por trás do estatuto de porta-
voz; não falta nem mesmo o referente de toda asserção legítima:
u verdade.

l)eter-nos-emos um instante sobre a deixis fundadora que o texto


deixa entrever. Quando Saint-Just lembra “a voz de um camponês
do Danúbio [que] não foi desprezada em um Senado corrompido”,
faz mais que remeter a um chavão da retórica. Além da cena do dis­
curso de 25 ventòse ano I I *. desenha-se a cena do camponês frente
ao Senado romano: de certa forma, Saint-Just é, a partir de então, este

* Do calendário da Revolução Hrancesa, correspondendo a 13 de março de 1794


(N do T . l .

44
camponês, a Convenção é o Senado. A enunciação se duplica desia
forma em uma outra, retirada da República romana, repertório su­
premo das cenas fundadoras dos discursos da Revolução. I.onge de
ser puro aparato retórico, estes processos J c identificação desempe­
nham um papel crucial no exercício da discursividade

O ETHOS

Não basta falai de “ lugares” ou de “deixis” ; a descrição dos


aparelhos não deve levar a esquecer que o discurso é inseparável
daquilo que poderiamos designar muito grosseiramente de uma
“voz”. Esta era, aliás, uma dimensão bem conhecida da retórica un
tiga que entendia por etlié as propriedades que os oradores se con­
feriam implicitamente, através de sua maneira de dizer: não o que
diziam a propósito deles mesmos, mas o qu e revelavam pelo próprio
m odo de se expressarem . Aristóteles distinguia desta forma phrôiwsis
(ter o aspecto de pessoa ponderada) areté (assumir a atitude de um
homem de fala franca, que diz a verdade crua), eunóia (oferecer uma
imagem agradável de si mesmo), etc. A eficácia destes "ethé" se
origina no fato de que eles atravessam, carregam o conjunto da enun-
ciação sem jamais explicitarem sua função. Sabe-se, por exemplo,
que o presidente da Frente Nacional, J. M. Lc Pen, não apenas qua­
lifica-se a si mesmo de “ homem do povo”, porta-voz legítimo das
camadas populares das quais teria saído, mas ainda inscreve essa
origem em sua maneira de enunciar: exprime-se como homem sim­
ples, corajoso, sadio, que sabe “ berrar” de modo saudável com os
“políticos 3l”.

A AD, entretanto, só pode integrar a questão do elhos retórico,


realizando um duplo deslocamento.

Em primeiro lugar, precisa afastar qualquer preocupação "psi-


cologizante” e “ voluntarista”, de acordo com a qual o enunciador, à
semelhança do autor, desempenharia o papel de sua escolha em função
dos efeitos que pretende produzir sobre seu auditório. Na realidade,
do ponto de vista da AD, esses efeitos são impostos, não pelo sujeito,
mas pela formação discursiva. Dito de outra forma, eles se impõem
àquele que, no seu interior, ocupa um lugar de enunciação, fazenJo
parte integrante da formação discursiva, ao mesmo título que as outras
dimensões chi discursividade. O que c dito e o tom com que c dito
são igualmentc importanies e inseparáveis

Km segundo lugar, a Al) deve recorrer a uma concepção do cthos


que. de alguma forma, seja transversal à oposição entre o oral e o
escrito. A retórica organizava-sc em torno da palavra viva e integrava,
consequentemente, à sua reflexão o aspecto físico do orador, seus ges
tos bem como sua entonação. Na realidade, mesmo os corpus escritos
não constituem uma oralidade enfraquecida, mas algo dotado de uma
"voz". F.mbora o texto seja escrito, ele é sustentado por uma voz es
peeífica: “a oralidade não é o falado"1’”, como lembra II. Mesclionnic.
que preconiza "a integração do discurso ao corpo e à voz bem como
a do corpo e da voz ao discurso ’3”.

U interesse manifestado nestes últimos anos pela oralidade, pelo


ritmo, pela entonação, etc., apresenta-se como um retorno daquilo que
o estruturalismo havia marginalizado através de suas exelusões episte
mológicas. A posição de Foucault a este respeito é significativa; em sua
opinião, a relação que transforma o texto na “ linguagem de uma voz
agora reduzida ao silencio34" deve desaparecer para promovei a
descrição intrínseca do monumento3i”. lista recusa, perfeitamente
fundada, de não mais relacionar o enunciado à plenitude de uma fala
primeira perdida não deve, de modo algum, implicar a exclusão da voz
que habita a enuneiação do texto, uma voz concebida, de ora em dian
te, como uma da.s dim ensões da form ação tliscursica

Parece-nos que a fé em um discurso, a possibilidade de que os


sujeitos nele se reconheçam presume que ele esteja associado a unia
certa voz (que preferiremos chamar de tom. à medida que seja pos­
sível falar do “ tom" de um texto do mesmo modo que se fala de uma
pessoa). Retomando o exemplo do discurso humanista devoto, pode-se
localizar as características mais marcantes que a formação discursiva
impõe ao “tom" de seus autores e definir o ideal de entonação que
acompanha seus lugares de enuneiação: trata-se, de acordo com o es
tatuto dos autores e dos destinatários, de um tom moderado, alegre,
sem rupturas, variado.. . . Propriedades estas que. além disso, suposta­
mente devem ser aplicadas ao conjunto das manifestações positivas
do como

Mas o tom. por si só. não recobre, em seu conjunto, o campo do


cthos enuncialivo. () tom está necessariamente associado a um carátei
e a uma corporalidcule. 0 "caráter" corresponde a este conjunto de
traços “ psicológieos" que o leitor-ouvinte atribui espontaneamente à
figura do enuneiador. em função de seu modo de dizer. Para o hu­
manismo devoto, este “caráter" será o de um homem essencialmente
comedido e sociável. Bem entendido, não sc trata aqui de earactero-
logia, mas de estereótipos que circulam em uma cultura determinada.
Deve-se dizer o mesmo a propósito da “ corporalidadc”, que remete a
uma representação do corpo do enuneiador da formação discursiva.
Corpo que não é oferecido ao olhar, que não é uma presença plena,
mas uma espécie de fantasma induzido pelo destinatário como corre­
lato de sua leitura. Os discursos se opõem sobre essa dimensão como
sobre as outras; há "caracteres” c “corporalidadcs” específicas dos
enunciadores do Figuro, de / H um anitâ ou Fibérution *. para tomar
exemplos simples, e estas divergências remetem aos próprios funda
mentos destes discursos.

Pode ocorrer que determinado aspecto do cthos seja explicitado


No exemplo anterior, quando Saim-|usi lembrava o autuo camponè-
do Danúbio, remetia não apenas a uma deixis, mas ainda e sobretudo
ao ethos do enuneiador que, por estar extremamente próximo à na­
tureza. expressa a verdade em toda sua brutalidade. Este ethos, na
realidade, c inseparável de um “ anti-ethos", aquele da aristocracia
corrompida cuja linguagem não passa de artifício. Da mesma forma,
o ethos da Frente Nacional manifesta sua recusa frente á linguagem
enganadora dos “ políticos", do “ bando dos quatro" que sufoca a voz
do povo.. . No que tange ao anti-ethos do humanismo devoto, este
será representado por um enuneiador de tom rude, sectário, de corpo
magro. . . (Cf. o célebre texto de São Francisco de Sales, autor prin­
cipal do humanismo devoto, que inicia desta forma a Introductiun à
Ia vie d evote: "O mundo, minha cara Filotéia, difama ao máximo a
santa devoção, descrevendo as pessoas devotas com um rosto irritado,
triste e desgostoso (. .) w ").

Fntrc os múltiplos discursos em circulação durante a Revolução


Francesa, o mais notável fenômeno de ethos é, sem dúvida, o jornal
“ sans-culotte" de Hébcrt, L e Père Duclwsne. cuja fala “ popular" intri

* Do mesmo modo que há ‘‘caracteres" e 'corporalidadcs" que especificam os


enunciadores do E stado de S ã o P au lo, E olha d e São P au lo ou P asqu im (a n o '
6 0 -y0) (N do 1 )
ga ainda. Pode-se, inicialmenie, ver nisio um bom exemplo de dissocia
ção entre falante e lugar de enunciação: nem a pessoa de lléberl, nem
suas alocuções comuns correspondiam ao caráter um tanto obsceno de
seu jornal. Além disso, certos comentaristas, especialmente o lingüista
F. Brunot, observaram que seu “ francês popular” se constituía, de fato.
em uma linguagem artifical cuja feitura clássica estava atravessada poi
efeitos codificados. ). Guilhaumou, que examinou este problema :t\
demonstra que não é suficiente constatar seu caráter artifical: "A fi­
gura popular não é uma forma que ocorre no discurso panfletário para
lhe dar, em certos pontos particulares (vocabulário familiar, descrições
pitorescas, encenações), uma eficácia referente a processos de mascara-
mento; é graças a ela que a fala popular, de certo modo, pode ocorrer,
enquanto efeito, no discurso político3’ ”. Há uma ‘‘figuralidade do
corpo”, inseparável deste efeito popular, a qual se inscreve em uma
organização institucional, o espaço onde se desenvolve o conflito, para
investir a imagem do corpo político imposta pelo jacobinisnio e seus
aparelhos. Longe de ser um ornamento ou um procedimento, esta fala
pretende ter um valor pragmático, ela "contribui, através de seu valor
ilocutório, para significar a prática do militante “s a n s - c u lo t t e " .

Se os elementos do ethos forem integrados á discursividade, esta


última aparece sob uma luz diferente: o discurso é, a partir daí, in­
dissociável da forma pela qual “ toma corpo” . Introduziremos aqui a
noção de incorporação para designar esta mescla essencial entre uma
formação discursiva e seu ethos que ocorre através do procedimento
enunciativo. Apelando ã etimologia, faremos esta “ incorporação” atuai
sobre três registros eslreilamente articulados:
— a formação discursiva confere "corporalidade” ã figura do
enunciador e, correlativamente, àquela do destinatário, ela lhes "dá
corpo” textualmente;
-— esta corporalidade possibilita aos sujeitos a " incorporação" de
esquemas que definem uma maneira específica de iiabitar o mundo, a
sociedade;
estes dois primeiros aspectos constituem uma condição da
“ incorporação” imaginária dos destinatários ao corpo, o grupo dos
adeptos do discurso.

Lsta perspectiva desemboca diretamente sobre a questão da efi


a teia du iliscnrso, do poder que tem em suscitar a crença. O co-enun
ciador interpelado não é apenas um indivíduo para quem se propõem

48
“ idéias” que corresponderíam aproximadamente a seus interesses; é
também alguém que tem acesso ao “dito” através de uma “ maneira
de dizer” que está enraizada em uma “ maneira de ser”, o imaginário
de um vivido. Note-se, aliás, que esta concepção da eficácia discursiva
é constantemente integrada pelos textos publicitários, que mostram de
forma paroxística aquilo que provavelmente constitui a tentativa de
toda formação discursiva; convencer consiste em atestar o que é dito
na própria enunciação, permitindo a identificação com uma certa de­
terminação do corpo.

O relacionamento entre o ethos e as práticas de linguagem pode


igualmente encontrar eco nos trabalhos de P. Bourdieu sobre o uso da
linguagem comum. Para Bourdieu, o exercício da linguagem também
deve ser pensado como “ uma técnica do corpo, sendo a competência
propriamente lingüística, e a fonológica em especial, uma dimensão da
héxis corporal, onde se expressa toda a relação com o mundo social40”.
Assim, o “estilo articulatório das classes populares” seria “ inseparável
de toda uma relação com o corpo determinada pela repulsa aos ma-
neirismos ou afetações e pela valorização da virilidade 41 ”. O ponto
de vista da sociolingüística c da AD evidentemente não são os mes­
mos, mas, nos dois casos, procura-se compreender como uma partici­
pação nos sentidos sociais pode ser tecida através da linguagem, como
“montagens duráveis e fora do alcance da consciência podem ser cons­
tituídas 4“”. A AD freqüentemente recorreu à noção althusscriana de
“assujeitamento” para designar a identificação de um sujeito a uma
formação discursiva, mas ela pouco explicita o funcionamento deste
processo. Se o discurso pode “ assujeitar” é porque, com toda veros­
similhança, sua enunciação está ligada de forma crucial a esta possi­
bilidade; a noção de “ incorporação” parece ir ao encontro de uma
melhor compreensão deste fenômeno. Em compensação, caso nos con­
tentemos em explicar a adesão dos sujeitos através da projeção de
estruturas sócio-econômicas (pertencer a tal grupo social obrip i
acreditar em determinado discurso), manteremos uma relação ik . s-
terioridade entre discurso e sociedade.

Assim, em Al) a reatualização aparente da retórica, através das


diversas tendências da pragmática, vem acompanhada de um recuo em
relação a seus pressupostos. Nada mais estranho, em sua perspectiva,
do que a imagem de um discurso veiculando “ idéias” graças a diver-os
"procedimentos”. Devolver todo seu peso ao sujeito, ao destinai.,rio.

49
:iu lugar, ao momento, aos gêneros da enunciarão, não deve, em caso
algum, corresponder à justaposição de “ fundo” e “ forma".

Assim como a pragmática questionou a concepção de uma lingua­


gem cuja função seria a de representar um mundo preexistente, da
mesma forma a AO recusa a concepção que faria da discursividade um
suporte de “doutrinas" ou mesmo de “visões do mundo". O discurso,
bem menos do que um ponto de vista, é uma organização de restri­
ções que regulam uma atividade específica. A enunciação não é uma
cena ilusória onde seriam ditos conteúdos elaborados em outro lugar,
mas um dispositivo constitutivo da construção do sentido e dos su­
jeitos que aí se reconhecem. À AH cabe não só justificar a produção
de determinados enunciados em detrimento de outros, mas deve.
igualmente, explicar como eles puderam mobilizar forças e investir em
organizações sociais

1. Sobre a pragmática, ver, cm particular, o n.” 42 (19 7 9 ) da revista Langm


fra n ça ise (" L a Pragmatique"), o n.° 32 (19 8 0 ) de Contm unicatirm s C i es
Ades de discours"). /.cs cn on cés p erfo rm a tijs dc 1 Récanati (Paris, f d i -
lions de Minuit. 1981): L a pragm atiqu e liiiguisiiqitr dc R Flucrd (Paris.
Natlian. 1985).

2. Patrick ( haraudeau. l.attgage et D iscours, Paris. Ilachette. 1983. p. 50.

3. P. Charaudeau. op. cit . p. 55.

4 La P rem e et le P ire. Tours. Mame. 1973. p. 12)1 (o grifo é nosso) ( I il


Uras.: P rovar D izer. São Palllo. (ilohal. 1981 i

5. "Simulacrcs cn construction", in Laagages, n." 70. 1983. p. 80,

6. L c.t A d e s d e l.attgage, Paris. Ilerman. 1972. p 94

7. F. Flahault. l.a par a le interntediaire. Paris, l c Senil. 1978, p. 70

8. F. Flahault, op. cit., p. 50.

9 "La pragmatique textuelle et les langagcs de Ia Révolution Française" in


M ots. n.° 2, 1981, p. 197.

10. F. Flahault. op. cit., p Sg

11. I.'A rcb êo lo g ie du Savoir. p. 120 ( A rqu eologia do S aber, Foiense-Uni-


versitária I.

12. II. Parret. "l.a nrise en discours cn lant que déiclisation et modalisation". in
Laagages. n." 70. 1983. p 83

50
13. M atérialités discursives, Presses Universitaircs dc I i 11c. 1981. p. 177.

14. J. M. Marandin. "Problèmes d'analysc du discours", in Langages, n.° 62.


1981, p. 41.

15. M. J. Borcl, ’ I,’cxplication dans Pargumentalion". in Langu e frum -aisc,


n." 50, 1981, p. 23.

16 "La silualion d’cnonciation dans les pratiques argumentai ives", in L augu e


jran çaise, n." 50, 1981, p. 53-74.

17. L A r c h é o lo g ie du Savoir, p. 68.

18. Pierrc Bourdieu, “I.c l.angage autorisc. Note sur les conditions sociales de
1'cfficacitc du discottrs ritucl". in A ries d e Ia rech crch e eu Sciences sociales,
n." 5-6, nov., 1975, p. 187.

19. "Discours syndical ct pcrsonnalitc sociale", in l.c Discours p o liliq u e. Pies


ses Universitaires de Lyon, 1984, p. 185.

20. Pata uma análise semântica deste discurso, ver nosso livro S ém a n tiq u e de
Ia p o lem iq u e — discours rcligieux et ruplures idéologiqu es ait A l II.' sièele.
Lausannc, l'Âge d'Hommc, 1983.

21 “Pour une pragmatique textuelle: 1'exemple d'un discours politiqnc piscai


dien", in L e D iscours poliliqu e, Lyon, 1984, p. 187-212.

22. Ari. cit., p. 206.

23. "Lanalysc du discours à Ia rechcrche dc 1’liisloiicité. Une tentativo", in


Linx, Universitc dc Paris X. n.° 4, 1981, p. 69-104. Hsta é a jornada
em que os parisienses famintos interpelam o corpo municipal na praça e
na grande sala da Prefeitura Municipal.

24 Art. cit,, p. 93.

25 Sobre a totinação discursiva que estes manuais definem, vei nosso estudo
Les livres d e c o l e de Ia R ep u bliqu e, 1870-1914 — D iscours et id éo lo g ie.
Paris, Le Sycomore, 1979.

26. A propósito deste assunto, ver "Rhctorique du national-populismc' de P


A. Taguicff, in M ols, n.° 09, 1984

27. Sobre a noção de “captação", cf. infra. 2 a parte, cap. 1

2 8 . L elir es ch rélieu n es ct spirituelles d c M essire Jea n D uvergier dc lla u r a n n e .


tomo 11. Paris. 1647. p. 95

29. C ritique d e Ia raison poliliq u e. Paris, Gallimard. 1981. p. 269

30. Texto citado por 13. Minei. "Pour une théoric des pratiques discursives". in
Pratiques n.° 11-12. 1976. p. 168. Trata-se do relatório de 23 ventôse an
II ( P de março de 1794) sobre as facções do estrangeiro.

B IB L IO T E C A S E T O R IA L Uf EDUCAÇAO
FACU LD ADE DE EDUCAÇÃO - u c d q 5
31. .Sohre a retórica deste tipo de textos, ver /.« F u m le painpliUtuir, de Mate
Angelot. Paris. Payot. 1982. Para o estudo dos modos de raciocínio deste
nacionalismo populista confira o livro de U. Windisch. X énophuhie, log iqu e
</<• Ia p e m é e popu laire. I.ausanne. d'Àge dHomme, 1978.

12 Im ig u e I \ e . n l> 56, 1982, p 15

33 . A n cil.. p. 18.

34. A rrh éo lo g ie du Sovoir, p 14

35 . ( )p. cit., p. 15.

36. (1'livres, Gallimard, I a Pléiade, p. 34

37 ' 11ir effet populaire dans L e l ‘ère D uehvsne — l.a figuralité du corps”. in
T ravaux ile lexicorrlétrie el <le lex ieo lo g ie poliliq u e. n.° 03, 1978. Sohre a
noção de ethos em retórica, cf. "I.'Hlhos dans Ia ihétorique française de
Page classique", de M. l e Guern, in Slrulégies discursises, Lyon, 1978, p
281 -287.

38. A n . cit.. p. 70.

39 Ibidem.

40. I cconomie des échanges Imguísliques". in Langu e Ira n ia ise. n.° 34, 1977.
p. 31-32.

41 An cit.. p. 31

42 Ari cit.. p. 33.

52
2.

UMA “PRATICA DISCURSIVA”

Este capítulo, ao contrário do anterior, que apresentava ele­


mentos relativamente diversificados, centrar-se-á sobre uma única
questão. Pareceu-nos adequado ao projeto deste livro privilegiar
pesquisas que, embora ainda incipientes, ampliam com evidência o
campo habitual da A D, aprofundando a articulação entre discurso e
"condições de produção”.

AS DUAS VERTENTES DA D1SCURSIVIDADE

Esta noção de "condições de produção” , precisamente, assinala


bem mais o lugar de uma dificuldade do que a conceitualização de
um domínio. Através dela. designa-se, geralmente, o "contexto social"
que "envolve" um corpus, isto é, um conjunto desconexo de fatores
entre os quais são selecionados previamente os elementos que permitem
descrever uma "conjuntura”. Se é verdade, como escrevia Bakhtin,
que “a situação extraverbal nunca é apenas a causa exterior do enun­
ciado, (visto que) ela não age do exterior como uma força mecânica ,
mas entra no enunciado como "um constituinte necessário à sua es­
trutura semântica ’ ", então é preciso reconhecer que, em seu uso cor­
rente, a noção de "condições de produção" se revela absolutamente
insuficiente.

No capítulo anterior, vimos que a introdução ao problema da


“ instituição enunciativa” vem contestar a evidência enganadora da
concepção que opõe ao "interior” do texto o “exterior” das condições
que o tornam possível. Questionamento que se faz acompanhar de

5■
'>
uma desconfiança por esquemas "csiratificadores" (tlu tipo infia
estruiura/superestrutura. cm paiticular) c dc um interesse crescente
por uma microssociologia das interações. Certamente, os arcabouços
teóricos destes trabalhos com frequência são discutíveis, mas contri­
buem para remodelar uma apreensão excessivamente primária das
relações entre o discursivo c o “extradiscursivo". Gostaríamos, agora,
de aprofundar a questão e destacar a importância dc uma instância
muito desconhecida, aquela das comunidades que a enunciação de uma
formação discursiva pressupõe.

lista dimensão em geral é ignorada pela análise do discurso, cujo


procedimento mais frequente consiste cm associar, de forma mais ou
menos direta, um conjunto de textos a uma região definida da socie­
dade, pensada em termos de classes ou subelasses sociais. Num quadro
desta natureza, a formação discursiva aparece como uma zona onde
se manifestam com alguma perturbação as aspirações da classe que
seria seu suporte. Trata-se. então, de definir uma relação entre o "eu"
implícito desta classe e os lugares de enunciação presumidos pelo dis­
curso. Sobre este ponto, a reflexão em termos de "instituição enun
ciativa" não modifica radicalmente esta questão: cm lugar de confrontar
exclusivamcnte o conteúdo do discurso com uma topografia social,
passa-se a confrontar esta topografia com uma “encenação". Mas. tanto
cm um caso como no outro, a comunidade daqueles que produzem,
que fazem com que o discurso circule, que se reúnem em seu nome
e nele se reconhecem é apagada.

Mais amplamente, o que está em causa aqui é o problema dos


m ediadores. Devc-se, com efeito, questionar se a noção de "interme­
diário” entre um grupo social c um discurso é tão simples como
parece. No que tange à pergunta "em que condições uma formação
discursiva é possível?", não c suficiente lembrar a existência de um
conflito social, de uma língua, de ritos c dc lugares institucionais de
enunciação, é preciso ainda pensar que o próprio espaço de enunciação.
longe de ser um simples suporte contingente, um "quadro" exterior ao
discurso, supõe a presença de um grupo esp ecífico sociologicamente
carnctcrizável, o qual não é um agrupamento fortuito de "porta-vozes”

Não basta dizer que "entre" as informações Imitas e us jornais


existe o mundo da imprensa, "entre" os escritores e os textos literá­
rios. as instituições literárias, "entre" os cidadãos e os enunciados
políticos, os meios políticos, c assim por diante. He fato. não se dis

54
põe. inicialmente, das informações, cios escritores ou dos cidadãos; a
seguir, das instituições mediadoras e. por fim. dos enunciados em cir­
culação, mas tudo emerge ao mesmo tempo. A instituição “mediadora"
não é secundária em relação a uma "realidade" que ela se contentaria
em formular de acordo com ceitos códigos.

Dizendo isto. estamos bem conscientes de deriubar portas já aber­


tas. mas não é certo que. em suas pesquisas efetivas, a Al) tenha sempre
avaliado adequadamente o que uma tal perspectiva implica. Sc é
verdade que o grupo associado ao discurso não se contenta em ser um
intermediário transparente, então não podemos nos contentar cm teme
ter a questão do discurso às classe sociais, f preciso, de uma maneira
ou de outra, considerar o modo de existência destes grupos que negam
constantemente sua importância, ao se considerarem transparentes: fiéis
zelosos, simples técnicos, representantes dos trabalhadores, consumi­
dores, etc., sempre se apresentam como portadores de mensagens.

f. preciso que sejamos bem compreendidos: não se trata de trans­


formar a Al) em sociologia dos partidos, quando estuda corpos polí­
ticos, em sociologia das instituições universitárias, quando estuda
textos universitários, etc., porque entendemos por "sociologia" o estu­
do das origens sociais, das carreiras, do funcionamento dos apare­
lhos. . . revelando o que seria o '' 1adi-» oculto”, inconfessável, o avesso
mais ou menos sórdido de uma realidade brilhante, os textos. Assim
procedendo, recairiamos facilmente num campo tradicional de proble­
mas: a consideração do grupo transforma-se em determinação de
“ desvios", "obscuridades", "ruídos" que as fraquezas da natureza
humana itnporiam aos discursos. Preferimos admitir que não
existe relação de exterioridade entre o funcionamento do grupo c o
de seu discurso, sendo preciso pensar, desde o início, em sua emhri-
* cação. Dito de outra forma, é preciso articular as coerções que pos­
sibilitam a formação discursiva com as que possibilitam o grupo,
já que estas duas instâncias são conduzidas pela mesma lógica. Não
se dirá. pois. que o grupo gera um discurso do exterior, mas que a
instituição discursiva possui, dc alguma form a, duas jaces. uma que
diz respeito ao social e a outra, à linguagem. A partir daí, as form a­
ções discursivas concorrentes em um a determ inada área lam bem se
opõem pelo m odo d e funcionam ento d o s grupos que llws eslàn
associados
Alirmar que existe uma emhrioaçáu radical entre grupos, e lot ina­
ções discursivas, que não é possível colocar diretamente em relação
uma topografia das classes sociais c dos conjuntos textuais, não
significa, entretanto, que seja necessário, pura e simplesmente, sub>-
tituir uma niicrossociologia dos participantes de um discurso por uma
macrossociologia; mas. para analisar a discursividade, c preciso tornar
complexo o que se entende liabilualmente por "condições de produ­
ção", Ao afirmar que uma formação discursiva possui uma vertente
social imediata, não se pretende que esta se desenvolva à margem do
resto da sociedade

Se esta reaniculaçào é realizada, a noção de "lormaçáo discur­


siva”. a partir tle então, parece insuficiente para designar as duas
vertentes da atividade discursiva. Como o termo "instituição discur­
siva" apresenta o inconveniente de privilegiar os aparelhos e de podei
referir unicamente ao aspecto cnunciativo. falaremos de prática diseur
>:i»a para designar esta reveisibilidade essencial entre as duas faces,
social e textual, do discurso. Assim procedendo, reformulamos tini
termo de Micliel l oiieault que o ulili/.a para referir-se ao sistema que
no interior de uma formação discursiva dada, regula a dispersão dos
lugares institucionais passíveis de serem ocupados por um sujeito de
enuneiação. Aqui ver-se-á, de preferência, um processo de organização
que estrutura ao mesmo tempo as duas vertentes do discurso. A noção
de "prática discursiva” integra, pois, estes dois elementos: por um
lado. a formação discursiva, por outro, o que chamaremos de
comunidade discursiva, isto c, o grupo ou a organização de grupos no
interior dos quais são produzidos, gerados os textos que dependem
da formação discursiva. A "comunidade discursiva" não deve ser
entendida de forma excessivamente restritiva: cia não remete unica­
mente aos grupos (instituições e relações entre agentes), mas também
a nulo que estes grupos implicam no plano da organização material
e modos de vida. Como afirma Hourdieu: “ A instituição — tratar-sc-ia
de economia? — não é completa e inteiramente viável, u menos que
se objetive de forma duradoura, não apenas nas coisas (. . .), mas
também nos corpos3” , fs preciso ainda deixar bem claro que visamos
aqui aos giupos que existem unicam ente por e nu enuneiação, na gestão
destes textos, e não aos grupos que encontrariam sua razão de ser em
outro lugar: para o discurso político serão considerados, por exemplo,
os partidos políticos e não os cidadãos tomados em sua inscrição sócio
econômica.

ão
O DISCURSO CIENTIFICO

É compreensível que o discurso científico tenha sido o primeiro


tipo de discurso a ser objeto de um verdadeiro questionamento a
propósito das "comunidades” por ele supostas. Não resumiremos aqui
a massa considerável de trabalhos de sociologia das ciências que, ini­
cialmente nos Estados Unidos e mais recentemente na Europa, centra­
lizaram seu interesse sobre as instituições científicas l. Destaquemos
a influência exercida pelas idéias de T . S. Kuhn 5, o qual associa as
teorias cientificas aos grupos de pesquisadores que as reivindicam (Cf.
a noção de “ paradigma”) ou ainda a obra de O. Hagstrom, T he Scien-
tific C om m u n ityu, onde é desenvolvida a idéia de que a permuta
estrutura os agrupamentos de cientistas: o discurso produzido por um
pesquisador não resultaria apenas de um desejo de saber, mas viria
em troca da notoriedade existente no interior do meio científico visado.
De certa forma, esta concepção da produção discursiva — espécie de
vasto mercado — é reencontrada na teoria apresentada por Bourdieu 7
para quem o “campo científico” é o lugar de uma concorrência vio­
lenta onde o que está em jogo é “o monopólio da autoridade cien ­
tífica, indissociavelmente definida como capacidade técnica e como
poder social da com petência cien tífica, sendo essa última entendida
como capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira
autorizada e com autoridade) em matéria de ciência e que é social­
mente atribuída a um agente determinado 8” .

Não são relevantes, aqui, as particularidades das diversas teorias


da atividade científica; em nossa opinião, o essencial é que todas, em­
bora de formas diversas colocam em p rim eiro plano o funcionam ento
das instituições científicas, buscando estabelecer uma relação íntima
entre a produção discursiva e os grupos que a tornam possível. Se
tais questões desenvolveram-se tão intensamente em torno da ciência
e de modo independente de qualquer preocupação da AD, isto ocorre
em função da natureza muito particular do discurso científico. Na
realidade, trata-se de uma produção cujos laços com a topografia de
conjunto da sociedade são bem menos diretamente formuláveis do que
aqueles para os quais uma reflexão em termos ideológicos se impõe
imediatamente; além disso, a tendência desse tipo de discurso é fazer
coincidir o público de seus produtores com o de seus consumidores:
escreve-se apenas para seus pares que pertencem a comunidades res­
tritas e de funcionamento rigoroso.

57
Do poli Io de vista da AD. alguns problemas detonem desta sin
gularidadc do discurso científico. Na realidade, para examinar tais
corpus e definir relações entre discurso e comunidade discursiva, os
sociólogo? não necessitam recorrer à AD: basta-lhes evocar os inleres
ses não confessados dos cientistas para resolver a questão, bles se
esforçam muito para mostrar que os textos só adquirem sentido no
interior de um certo grupo, mas. em geral, não salientam com clareza
o elo existente entre o funcionamento discursivo propriamente dito
e o do grupo: as duas instâncias permanecem exteriores uma a outra
Seria diferente se os sociólogos das ciências levassem em conta a
economia própria aos discursos, cm lugar de considerá-los apenas co­
mo simples suportes de informações. Desta forma, chega-se a uma
situação bastante insatisfatória, absolutamente simétrica àquela em que
se encontra a AD. Knquanto esta última procura munir-sc de uma
teoria da discursividade. desinteressando-se pelas comunidades que
constituem seu correlato, a sociologia da produção científica investiga
os funcionamentos institucionais, ignorando, muito frequentemente. a
dimensão textual.

Nestas condições, a pesquisa de Michel de Ccrteau sobre a


historiografia, mesmo não se inscrevendo no quadro de uma teoria
explícita, mostra-se mais próxima das preocupações da AD ”, Hstu
dando mais especificamente a historiografia religiosa francesa. M. de
Ccrteau parte do princípio que não é possível compreender o discurso
histórico, desvinculando seu conteúdo das instituições que o produzem
Trata-se de repetir, no que tange à disciplina histórica, o próprio
gesto que a funda, aquele que "relaciona idéias a lugares", compre
endendo a história “como a relação entre um lugar (um recrutamento,
um meio, uma profissão, etc.), procedim entos de análise (uma disci­
plina) e a construção de um texto (uma literatura)1": os dois primeiros
elementos definem “ as leis silenciosas que organizam o espaço produ­
zido como texto11”. Há "uma instituição do saber", a emergência das
disciplinas está ligada àquela de grupos especializados e "cada disci­
plina conserva sua am bivalên cia d e ser a lei de um grupo e a lei de
uma pesquisa científica ' Fórmula decisiva, pois deve-se admitir que
“ um mesmo movimento organiza a sociedade e as “ idéias" que nela
circulam |:1”. O “ nós" do autor de um texto histórico “elimina a
alternativa de atribuir a história seja a um indivíduo (o autor, sua
filosofia pessoal, etc.) seja a um sujeito global (o tempo, a sociedade,
etc.). F.m lugar destas pretensões subjetivas ou destas generalidades
edificantes, propõe a positividade de um lugar no qual o discurso se
articuia sem, no entanto, reduzir-se a ele 14” . Através deste discurso,
descobre-se, pois, “ a com p lex id ad e de uma fabricarão especifica e
coletiva” , “ o produto de um lugar" que concide com um meio. uma
comunidade.

UM PROCESSO DE ORGANIZAÇÃO

Acabamos de fazer alusão a algumas questões que dizem respeito


aos discursos científicos, às "disciplinas” cujo espaço institucional
pode, por definição, ser circunscrito de forma bastante rigorosa. A
experiência de Régis Debray em C ritique d e Ia raison p olitiqu e
parte dc um ponto diametralmcntc oposto, já que o autor procura
pensar as condições de possibilidade de um tipo de discurso com
características contrárias. Ao estudar estas "ideologias" que fundam
a unidade dos corpos políticos, geralmentc negligencia-se o exame das
comunidades discursivas. Embora Debray não raciocine em termos de
“discurso", sua abordagem não deixa de interessar à AD, por aqui
encontrar objetos muito mais próximos de suas preocupações usuais.

Debray desenvolve uma crítica rigorosa às concepções mais


usuais das ideologias, atingindo, indiretamente, as questões abertas
pelas teorias pragmáticas. No capítulo anterior, lembramos a neces­
sidade dc questionar o lugar-comum que transforma o discurso em
“porta-voz" de uma realidade não verbal que seria a única pertinente:
da mesma forma, para Debray. mais do que “ representações mentais"
as ideologias são “ processos de organização": “ a ideologia, ao contrário
do que se crê, não ocorre na esfera das idéias"; assim, “em lugar de
questionar como agem as idéias sobre as coisas ou como as formas
de consciência social interagem com as formas materiais sociais, poder-
se-ia começar por indagar se a relação de um “ pensamento" com um
sistema de forças não está implicada pela e dada com a produção
deste pensamento mesmo, enquanto produção de uma força própria;
poder-sc-ia também perguntar se a sede última do pensamento seria
a terra c não o céu 10” .

Consequentemente, a atenção deve concentrar-se sobre as comu­


nidades discursivas: “ A ideologia ocupa-se simultaneamente da repre­
sentação do mundo e da organização dos homens, tarefas que signifi­
cam o direito e o avesso de uma mesma atividade. ( . . . ) Da mesma
forma que uma doutrina revolucionária edifica-se ao edificar as orga­
nizações que lhe darão suporte prático, a formação de uma doutrina

S9
religiosa funde-se com a formarão da comunidade hierárquica dos liei'
U processo de constituição do grupo não é exterior nem posterior ao
do pensamento, é seu corpo exotérieo, mas não extiínseeo. Não existe
um conjunto inais ou menos esqitemali/ado de representações, ao qual
sc sobreporia a seguir, e proveniente do exterioi, uma estrutura mais
ou menos complexa de organizações, As du as series constituem se e
desfazem -se conjuntantetUe, segundo uma única e mesma lógica t . . .)
Toda operação de pensamento remete a um dispositivo de transmissão
que o estrutura a partir do interior e do qual não pode ser dissocia
da l7” . E preciso, consequentemente, inietessar-se por estes "processos
de organização", pensar a instituição não como um organograma es­
tático, mas como um complexo que também inclui gestos e modos de
relação entre os homens. A ideologia não deve ser concebida como
"visão ilo mundo”, mas como modo de organização, legível sobre as
duas vertentes da prática discursiva.

Na perspectiva da Al), aqui ainda pode ser lida uma polarização


da reflexão sobre a eficácia dos discursos: o sujeito inscreve-se de ma
neira in dissociável em processos de organização social e textual. O
que nos remete à questão da crença, cio nós, ou seja, do lugar enun-
ciativo vazio que uma formação discursiva implica: "A dinâmica das
idéias práticas, isto é, das crenças sociais, intet-relaciona efetividade,
cficaciii e com unidade: categorias consideradas distintas, disciplinar
mente compartimentadas, inas cujo contato desencadeia uma maiot
consideração da idealidade — ou seja. u efeito ideologia 1S” .

O mais difícil, como é possível imaginar, será localizar nos textos


a remissão que as duas ordens — comunidade e discurso — estabe­
lecem entre si. Problema tanto mais delicado porque envolve domínios
cujos funcionamentos são liabiUialmente considerados heteronímicos.
Quando se trata de discursos científicos, é relativamente fácil defini)
as passagens enue estes dois domínios, pois ambos constituem sistemas
drásticos de exclusão. Hm compensação, é bem menos evidente esta­
belecer relações signilicativas quando eorpus menos privilegiados sao
examinados. Não que a idéia de considerar a possível existência de
conformidade entre as práticas de um grupo e o discurso ao qual este
se filia seja partieularmente nova. Ela é encontrada, de forma im­
plícita, cm muitos trabalhos de historiadores. Sainte-Beuve, desde
I 8' 7, a ela recorria para isolar os traços maiores do movimento jan-
semstu. No "Discours préliminaire” de Port-Royul, para definir o tipo


de "constituição civil da religião” suposta pelo jansenismo, elo lembra
a mistura entre urna certa lógica organizacional ela Igreja, o modo de
vida de uma parcela da burguesia e um conteúdo doutrinai:

"Os bispos, os padres, sobretudo os confessores, após terem


sido escolhidos, teriani formado uma espécie de poder médio, mais
ou menos independente de Roma, que se aconselhava habitualmen­
te através da prece e exercia sua influência sobre os fiéis, enquanto
superior venerado. 1’cde-se afirmar que a família Arnauld foi res­
ponsável, no contexte de Port-Royal, por grande parte do espíiito
e do culto doméstico, por este espírito do patriciado da alta
burguesia, que era próprio a certas dinastias parlamentares do
século XVI I (Bignon, Sainte-Marlhe. etc.). A religião que adota­
ram em Port-Royal, e que lhes foi transmitida por Saint-Cyran,
era (se não intencionalmente, pelo menos por instinto e de fato,
do ponto de vista civil e político) a tentativa antecipada de uma
espécie de terceiro estado superior, que se autogovernava na
Igreja; uma religião não mais romana, não mais aristocrática e da
corte, não mais plena de devoção ao estilo do povo humilde, mas
mais liberada de imagens vãs, de cerimônias esplêndidas ou sim­
ples e mais livre também, no nível temporal, face à autoridade;
uma religião sóbria, austera, independente ia”.

Nesta passagem, Sainte-Beuve insiste sobre o caráter ‘‘concreto1’


deste discurso: as estruturas eclesiásticas reivindicadas pelo movimento
jansenista encontram-se, de alguma forma, “encarnadas” no modo de
vida cotidiano de certas famílias e nas práticas religiosas; coisas estas
que envolvem uma certa organização dos ritmos, da relação com os
homens, etc. É algo muito próximo do que Bourdieu chama de “ ha-
bitus”: “Os condicionamentos, associados a uma classe particular de
condições de existência, produzem habitiis. sistemas de disposições
duráveis e transponíveis, ( . . . ) princípios geradores e organizadores
de práticas e de representações 2u”. Mas Sainte-Beuve contenta-se, aqui,
em relacionar diversos elementos, sem propor nenhuma explicitação
da forma como se articulam no interior de uma prática discursiva.

Os analistas do discurso, de uma forma geral, concordam que


não existe teorização sobre a articulação entre formação discursiva e
sociedade; a consideração das comunidades discursivas gera a expec­
tativa de resultados interessantes Não é possível afirmar que todosio

oi
os indivíduos que aderem, de loima mais ou menos próxima, a um
discurso apresentam o mesmo grau de envolvimento em tais ''comu­
nidades" mas elas. sem dúvida, representam uma condição essencial
de sua constituição e de seu funcionamento.

Não pretendemos eonceilualizar e ilusttar detalhadamente uma


hipótese deste gênero. Contentar-nos-cmos em lembrar, nas poucas
páginas qtte seguem, dois exemplos retirados de pesquisas pessoais.
Ü primeiro é originário do estudo dos manuais da escola leiga da
III República, o segundo deriva do estudo do humanismo devoto
Para cada um deles, tentaremos captar nos textos as marcas desta
troca incessante entre as duas vertentes da prática discursiva

A J SCOLA DA RI PllM.ICA

Durante o estudo que realizamos neste conjunto de manuais '.


percebemos que não era suficiente examinar a coesão semântica deste
discurso. Na realidade, ele não se limitava a dizer algo sobre a na
tureza, a língua, a moral, a história, etc., podendo, igualmente, sei
lido como um discurso sobre a própria escola republicana. Assim,
podia-se estabelecer a possibilidade de um constante retorno do dis
curso sobre o mundo em discurso sobre a escola, como se a enuncia-
ção remetesse a ela mesma, no momento ein que parecia apagar se
por tiás de um uso referencial.

A cena cnunciativa desta formação discursiva constrói o lugat


de um enunciador que, ultrapassando o autor empírico que assina
a obra, coincide com “a França” — “ a Pátria" — "a República" —
"a Pátria-Mãe" . . dirigindo-se a seus "filhos", constituídos em
“ pequenos franceses". P propósito do discurso lazer os alunos partici
parem das propriedades semânticas consideradas capazes de constituii
sua verdadeira essência de franceses; para tanto, esforça se cm airan
eá-los às propriedades contrárias, lista encenação é bem mai> do que
a condição desta entmeiação pedagógica, ela se constitui também em
sua legitimação: a instituição escolar "autoriza se" a si mesma através
do que profere. Consideremos, por exemplo, a colonização. I al conto
é apresentada nestes manuais, ela tende a sei reabsorvid.t ao identi­
ficar a França colonizadora com um professor e o colonizado com
uma criança que. graças a esta mediação, podetia chegar à racionali­
dade. J:, isto que é (emalizado insistentemente pela figura da "escola

tS,?
paia as colônias", isto é. das escolas abertas nas colônias. Da mesma
forma, referir que a entrada dos gaulescs na civilizarão romana
constitui “ progresso", consiste simplesmente em dizer que os romanos
abriram escolas, o que c ilustrado, nos livros de história da l i ança.
com imagens de escolares gauleses indo à aula. de pasta na mão. Não
é de surpreender que estes mesmos manuais de história terminem, ge-
ralmente, com uma comparação entre “ a escola de antigamente-’ e
“ a escola de hoje” , comparação que. supõe-se, recapitula o conjunto do
Progresso. Aqui, dizer o Sentido da História consiste em produzir a
figura da escola, aquela que comanda todo este discurso.

Não podemos nus contentar em ver aí um processo localizado de


autolegilimação: na realidade, há algo de radical neste fenômeno.

Esta formação discursiva, como se sabe. está “ destinada" a as­


sentar na população a reccm-nascida III República. Mas, em matéria
de discursividade. esta concepção instrumentalista não tem muita per­
tinência: legitimar a República é. na realidade, legitimar sua escola e a
República, por sua vez, retira sua legitimidade do fato de tei fundado
a necessidade desta enunciação escolar. O discurso dos manuais se
constrói sobre uma fronteira, a que separa os predicados positivos"
dos predicados “ negativos” : na criança, no colonizado, no reacioná­
rio. etc., misturam-se a inércia, os preconceitos, a superstição, o ilo-
gisrno, etc., subsumidos sob a categoria da “obscuridade", enquanto
o espaço republicano destina traços opostos às figuras que dele par­
ticipam. figuras afetadas pela “clareza” (da Razão): ora. a instância
mediadora, o ponto de passagem de um registro para outro reside
justamente na escola republicana: através dela o colonizado será
civilizado, o camponês rotineiro abrir-se-á ao progresso, a criança
transformar-se-á em um cidadão trabalhador, etc. Em suma, nestas
condições, compreende-se que a escola, não importa o que diga, só
fala dela mesma já que, através de uma espécie de perfotinatividade
generalizada, sua enunciação realiza o que ela diz pelo simples fato
de dizê-lo: o simples fato de estar inscrito na cena pedagógica faz
com que o sujeito atinja o espaço da racionalidade republicano

E preciso, ainda, não perder de vista que o termo “escola" não


é unívoco. Ele remete a um só tempo a uma instituição, a práticas,
a lugares... à escola que se legitima ao enunciar — é tudo isto ao
mesmo tempo. A chamada “ higiene”, por exemplo, não constitui
apenas um capítulo de ensino, mas define também um conjunto de
latos e de práticas que investem nu vida eseolai. li cu csnutclecida
uma constante reversibilidade entre o corpo imaginário da Pátria,
o aluno e o lugar escolar: nestes três casos, nenhuma sombra, ne­
nhuma obscuridade deve subsistir. Para a Pátria, a sombra signifi­
cará a falta de caminhos, de iluminarão, o distanciamento do pais
centralizador; para o aluno, consistirá na inumdície, nos micróbios;
para os prédios escolares, salas sombrias, mobiliário incômodo, pro­
miscuidade, etc. A mitologia dc Pastem que atravessa todo este
discurso vem autorizar a enunciarão pedagógica. Sentado em uma
sala de aula iluminada o arejada, envolvido em uma organizado de
práticas, de ritmos escolares cuiJadosainente regrados, o aluno é, de
alguma lorma, atravessado pela evidência de um discurso que se in­
corpora a seu modo de vicio. Não é apenas através de efeitos textuais
que o discurso produz uma cena enunciai iva eficaz, mas por sua ins­
erirão em uma comunidade, coi relato do discurso. Km suma, a ins­
tituirão escolar da 111 República "realiza” o mundo que pretende
descrever ou promover: ela pode pregar a higiene à medida que esta
higiene esteja nela mesma investida; a centralizarão, à medida que
ela mesma seja centralizada; pode pregar a missão eivilizadora da
colonizarão, à medida que esta colonizarão seja um alo pedagógico,
exatamente aquele (pie ela realiza, e assim por diante.

Pode-se ir além e considerar a língua cm que é enunciado este


discurso dos manuais. Obstinadamente definida como a língua “ cla­
ra” , por excelência, língua da Razão, da Ciência, língua do Centro,
da Capital, u francês constitui um objeto semântico pariicularmcnte
valorizado. Fazer falar, pensar, escrever na língua de Descartes e
integrar aos valores da escola republicana constituem íundamenlal-
tnente um só e mesmo ato de disciplina do espírito, de redurão da
obscuridade. A língua praticada na escola, pelo simples fato de
usá-la, faz alcançar o projeto que anima todo o discurso republicano.
Não é possível escapar à mistura radical dos conteúdos e da insti
tuiçáo. A comunidade discursiva e a formação discursiva conduzem
uma a outra indefinidamente.

O HUMANI SMO DEVOTO

Nossa segunda ilustração nos conlronta com um tipo de discurso


muito diferente. Como se trata de um discurso religioso, católico,
poder-se-ia pensar que não se distingue dos outros discursos católicos

04
íi não ser por seu conteúdo c que a Igreja constitui uma base insti­
tucional estável sobre a qual se desenvolvem conflitos entre agentes
cujo estatuto, por natureza, é idêntico. Na realidade, à medida que
as práticas discursivas implicam unia dinâmica organizacional cor­
respondente, pode-se pensar que tais conflitos não incidem unicamente
sobre os conteúdos, mas que envolvem também as comunidades
discursivas. Ora, a tendência mais freqüente é de examinar apenas
uma das duas faces do problema. Retomando o exemplo do discurso
jansenista, constata-se que muitos historiadores aí percebem apenas
uma doutrina sem originalidade, cujo sucesso seria devido a fatos
institucionais (em particular, a presença, junto às religiosas, de um
grupo de leigos, os “ solitários” de Port-Royal), enquanto outros pre­
ferem insistir sobre o aspecto doutrinai para explicar o impacto deste
movimento. Parece-nos, ao contrário, que as duas questões são inse­
paráveis e, segundo nossa hipótese, pertencem à mesma lógica.

U estudo do discurso humanista devoto demonstra-o claramente.


Na realidade, é possível recorrer às m esm as categorias semânticas p a ­
ra analisar a form ação discursiva e a com u n idade discursiva que é
seu correlato. Não nos é possível, aqui, entrar em detalhes22; levando
a caricatura aos limites do exagero, dir-se-á simplesmente que, no
plano semântico, este discurso se organiza cm torno de uma noção
de "ordem”, definida como uma totalidade cujos elementos estão
distribuídos em lugares complementares e em comunicação constante
e regrada. O universo que um tal discurso presume é o de uma
“ordem” máxima (o cosmo), constituída de uma multidão de " o r ­
dens” repartidas em múltiplos níveis que, generalizadamente, se re­
lacionam uns com os outros (Cf. a teoria da similitude entre micro­
cosmo e macrocosmo). Um tal universo de sentido valoriza todos os
agentes mediadores, todas as transições, em suma, tudo o que impede
a descontinuidade e o recuo auto-suficiente. Os mais variados objetos
do mundo natural e do mundo social aí são colocados como “or­
dens”: o corpo humano, a sociedade, a família, a Igreja, as plantas,
etc. Este princípio de “ordem”, como foi visto no capítulo anterior,
também organiza a cena enunciativa: o estatuto do enunciador deste
discurso, de seus destinatários, o “ tom” empregado, etc., visavam
precisamente a instituir ema estrutura de "ordem” . Reciprocamente,
todo objeto rejeitado pelo discurso só poderá ser o resultado de uma
ausência de “ordem” ou da deficiência de uma "ordem”. Será, por
exemplo, o caso de um indivíduo que não se integra a nenhum

ÒS
grupo, dc um corpo cujos componentes mio se comunicam, de timn
enunciação brutal que separa o falante de seus ouvintes, etc

Do ponto de vista que aqui nos interessa, u elemento crucial


decorre do fato que esta catcgorização pode igualmcnte servir para
caracterizar o espaço institucional sobre o qual sc desenvolve este
discurso humanista devoto.

Ide nasce c circula, de fato. no interior de uma organização de


"sociedades” religiosas dc diversos tipos, cujo denominado! comum
é o de inervar a sociedade laica, recusando qualquer separação entre
o religioso c o profundo para integrá-los a uma mesma "ordem".
Com a Contra-Rcforma católica, da qual participa plenamente o
humanismo devoto, apareceram inúmeras ordens regulares, comunida­
des dc padres seculares, (Cf. o Oratório, os I azaristas. ele.), colctivi
dades dedicadas ao ensino (seminários, colégios), congregações,
confrarias de leigos ("do Santo Sacramento", "da Assunção", ete.)
onde as pessoas se agrupam cm função dc seu estatuto social. Os
autores humanistas devotos de fato são membros de ordens regulares
(esscncialmente, jesuítas) e é em todo este movimento que se en
raíza seu discurso, cuja prosperidade coincide com a idade de ouro
da Companhia de fesn«

Ora, os jesuítas mantêm laços privilegiados com o princípio de


ordem:

— a própria Companhia de |csus constitui uma "ordem"


exemplar, cujo modelo é esta "ordem" leiga não menos exemplar, as
forças armadas:

— seu projeto fundamental coincide com o núcleo semântico do


humanismo devoto que tende a integrar, em uma mesma “ordem" de
sociabilidade, organizações mundanas e eclesiásticas. Os jesuítas de
fato não são religiosos que sc separariam do mundo, nem curas ou
leigos, vivem em comunidade, ao mesmo tempo que se inserem na
sociedade laica. Representam-se, pois, como m ediadores privilegiados
entre Deus e o mundo:

- concentram pouco a pouco suas atividades na gestão destas


"ordens" constituídas por colégios dedicados ao ensino (em 1610.
já existem 38 escolas na Trança e 50% dos jesuítas são professores).
Ora. estes colégios são um espaço onde se associam, harmoniosamente.
na mesma “ordem", clausura religiosa e abertura para a cultura gre­
co-latina, onde as crianças aprendem a tornar-se cristãos e indivíduos
ativos na sociedade. Além disso, no interior destes colégios, os je­
suítas encorajam o desenvolvimento de outras “ordens", as “congre­
gações de Nossa Senhora" que reúnem os alunos para iniciá-los nas
práticas de devoção: uma transição natural para as congregações de
adultos.

Fm toda esta lógica institucional encontram-se, sem diliculdade,


as categorias semânticas com que o discurso humanista devoto é
tecido. Saliente-sc que esta lógica não se reduz a um organograma,
da mesma forma que uma formação discursiva não sc reduz a uma
doutrina: as organizações são paralelas às práticas, disciplinas da fala,
do corpo, da sociabilidade. Assim, o que conceituamos, no capítulo
anterior, como “ethos", encontra-se de algum a form a encarnado no
m odo de com u n icação qu e prevalece no interior destas m últiplas "or­
dens”: o tom moderado, o ar alegre, o temperamento sanguíneo não
são apenas um ideal de comportamento preconizado pelas obras de
votas, mas encontram-se efetivamente em prática nos colégios, congre­
gações, etc., orientando profundamente os gestos dos agentes - As
obras pedagógicas destinadas aos professores insistem muito, aliás,
sobre esta dimensão.

Assim, a elicácia e a potência utópica da enunciação humanista


devota revelam-se inseparáveis, visto que, em certo sentido, esta
utopia já sc encontra realizada nos agrupamentos que ela atravessa
e que a tornam possível. O mundo racional, higiênico, centralizado,
etc., que a escola republicana desejava promover poderia transformar-
se cm espaço de vida escolar: o mesmo ocorre com o mundo huma­
nista religioso que adquire corpo na densa organização de suas
“ordens".

ENLAÇAM FNTOS *

A ausência de exterioridade entre coerçòes enuneiativas e prá­


ticas institucionais pode ser salientada nos textos que sc estruturam
frequentemente a partir desta primeira intrincação.

* No original francês bou clan es (N. do T. 1


Chiando, por exemplo, Etienne binei, maior autor humanista
devoto e provincial dos jesuítas, escreve um livro sobre a boa maneira
de dirigir as relações nas comunidades religiosas, isto é. sobre o
'' et lios {Utial é v nicllior governo, o rigoroso ou o com preensivo? M)
sua obra pode ser lida ao mesmo tempo como uma amostra, entre
outras, do eorpus humanista devoto e como uma temalização das re­
gras i|ue atuam nas comunidades discursivas ligadas a este discurso.

ts ie livro de binei pode ser tomado como o exemplo de um


texto sobre as instituições, da mesma forma que pode ser lido como
um texto de doutrina. À medida que a reversibilidade entre os dois
aspectos é constante, os textos puramente doutrinários, em aparência,
se transformam, com facilidade, em textos sobre a instituição. Con­
siderando-se, por exemplo, as múltiplas descrições do “ Além” ofere­
cidas pelo discurso humanista devoto, percebe se que sua geografia
coincide com aquela que, idealmente, as comunidades discursivas
deste discurso implicam. Este espaço é apresentado como uma “or­
dem" imensa constituída por uma multidão de “ordens” hierarqui-
zadas que se comunicam em todos os sentidos e onde cada eleito está
inscrito em um lugar determinado (viúva, mártir, doutor, etc.).

Na mesma ordem de idéias, atinge-se uma espécie de paroxismo


com o livro Peiniures spirilu elles de i.ouis Richeome, também ele
provincial dos jesuítas B“. Esta obra de devoção nu realidade coin cide
com um a visita m elódica a uma com u n idade discursiva exem plar, a
saber, o noviciado dos jesuítas de Santo-André-do Qtiirinal, em Roma.
que acumula as propriedades de um colégio e de uma comunidade
de jesuítas. Esta instituição modelo é descrita como uma “ ordem”
que pode ser posta em correspondência com as rio cosmo e que per­
mite. ao mesmo tempo, uma exposição da devoção legítima. Em um
texto deste tipo, o universo religioso e a instituição, que é seu cor­
relato, coincidem com o percurso rio livro, o qual representa o
percurso da Criação inteira. Aqui, nada permite decidir o que vem
em primeiro lugar - - comunidade discursiva ou doutrina: a enun-
ciação envolve a ambas em um único e mesmo movimento.

Eneontrar-se-ia, sem dificuldade, equivalentes destes processos


reflexivos no discurso escolar da 111 República, l.e Tour de Ia F rance
par deu x enfants ~7, com milhões de exemplares vendidos, não sem
razão, é o livro-guia desta formação discursiva. Este livro, que integra
o conjunto dos conhecimentos dispensados pela escola primária, apa

b8
rece como o percurso melódico do corpo do linunciador-Destinatário
deste discurso, a Pátria, que define também o momento e o lugar da
enunciação escolar republicana. Descrevendo a viagem de iniciação de
duas crianças, uma das quais entra para a escola primária, enquanto a
outra dela sai, este texto faz coincidir percurso escolar e percurso
do mundo, uma vertente garantindo a outra, no interior de uma
prática escolar, a leitura.

Convencionando-se chamar de enlaçamentos aos processos pelos


quais o texto de uma formação discursiva reflete sua própria enun­
ciação, poder-se-ia considerar, de modo absolutamente informal, di­
versos níveis:

— textos de primeiro grau, que revelam unicamente sua


doutrina;

— textos de segundo grau, que descrevem um ideal enunciativo


realizado em sua própria enunciação ou uma comunidade cujo fun­
cionamento é o das comunidades discursivas que lhes estão associadas;
— textos de terceiro grau, em que a transmissão de sua doutrina
coincide com a descrição de seu ideal enunciativo ou de sua comu­
nidade discursiva;

— textos de quarto grau, que fundem estes diversos elementos


em um único: a descrição do mundo é, a um só tempo, definição de
uni ideal enunciativo e percurso de uma instituição.

ü livro V acationcs uutumnales do jesuíta l.ouis de Cressolles ^


aproxima-se deste quarto grau. Trata-se, na realidade, de uma obra
dc retórica que mostra a superioridade do estilo humanista devoto
(definição de um ideal enunciativo), apresentando-se como um con­
junto de conversações afáveis entre alunos de um colégio de jesuítas,
em um castelo campestre, onde se mesclam as belezas da natureza
c da arte, representando, assim, a harmonia do cosmo. Evidentemente,
a própria obra mobiliza o modo de enunciação que preconiza, lendo
sido elaborada e difundida no interior de comunidades discursivas (os
colégios) que ela tematiza.

Seria um erro limitar-se a identificar nestas figuras jogos sofis­


ticados destinados a divertir homens eruditos. De fato, tanto aqui
como nas teorias da enunciação, é preciso avaliar a duplicidade de
uma linguagem que não cessa de dizer, mostrando que diz. Fora dos

t>L)
"enlaçamentos". c impossível pensar a relação emre o lexinal <
institucional em lermos de interior c de exterior, de meio c de fim
Os textos aparecem, ao mesmo tempo, como uma das modalidades do
funcionamento da comunidade discursiva e o que a torna possível:
a comunidade se estrutura pelo mesmo movimento que gera os enun
ciados, suscetíveis, por sua ve/, de tcmali/ar. por ve/es sutilmente, as
instituições que neles estão implicadas e sua própria inlrincação com
estas últimas, /.'ste elo ciuciaf entre o fazer e o d i/ c de uma com:

1 . M ik h tiil B a k h tin e . I .r p r ín c ip e tlia lo g iq u e . T . T o d o r o v . P a r is , I r S e u d .


1981, p. 67.

2 l.'A rch éolu x ie tlu Stivoir, p. 71

1. I r \ens p r a tiq u e. P a iis . F d ilio n s d c M in u il. 1980. p. 0(1


9 Para uma apresentação de conjunto e uma bibliografia detalhada, conterii
o estudo de Bcrnard-Pierre I.éeuyer, “Bilan ci perspectives de Ia sociologic
dc Ia Science dans les pays occidentaux”. in A rchives eu ropeen n es ile
cinlovie. 1978, tomo X I X , p. 257-336

s r h e stru etu te o f scien tific revolutions, Chicago, The Crmcrsitv of C hicago


Press. 1962; trad. franc. Paris, Flamniarion, 1971). ( l d. luas ; .1 cstrnttnu
tias r e v o lu ç õ e s cien tifica '., São Paulo, Perspectiva)

(> T h e s c ie n tific can in iu n itv . New Yotk. Basic Books. I

7. "I e Champ seientifique". Metes d c Ia re clte n ite en Sciences socntles. |97r,


2 3. p. 88-104
8 Alt. cil . p 89.

9 / h ritm e th iltistoire. Paris. Ciallimard. 10 7 s

I f) ( )p. cit . p 64

II ( )p cit., p 65

12 Op cit., p. 69 (grilo c nosso).

13 Op. cit , p 70.

14 Op. cit., p. 72.

15 Paris, (iallimard, 1981


16. Op cit.. p 157.

70
17 Op. cil.. p. I SX-1 S9

18 R. Debray. op. cil.. r . |R4 . |^s

19 Pori-Roytil. Paris. Gallimard. I a Pléiade. I 9 <i2 . v. I . p 9 X 99

20. L e seus pratique, p, XX

21 L e i livres d e c o l e ,lt I,, R epu bliqu e. IR70-1VI4 tliu ttirs et uleolufHt


Paris. l e Sycomore. 1979

22 \ «• f f - J ' . ' J, . . .

27 F.rtte 155» e .>< 'csi -:.h rus.u ••• a.- ia v :v a;- o v —ud •
15.54-1

24 Sabe so. aliás nmilo bem. que a polêniiea anli-jcsuílica. de Pascal a Vol
taire. e bem além. incidiu tanto sobre este aspecto <cf. a imagem adocicada
do icsuítal quanto sobie a doutrina

25 Paris. 167»'

26 I m p e m t u r e s p tritu eU e v n l a t i d a d i n t r t 1 ■ aittter u l o c . t Ih tu <’ toitits 9 >


aeinres et lircr d e t o u t e s p r o /1 1 s a l u t a i t c . Lyon. 1611

27 Ce Bruno (pseudônimo de M ,m\ F-ouillée.). Paris. Belin. 1X77

28. I iteationes au lon in ales wir 1le p eileetu o n itotis actiu u e et ptniiuiitiaiirtiic
Paris. 1620

71
SEGUNDA P A R T E
A H ETERO GEN EIDAD E
1.

A HETEROGENEIDADE MOSTRADA

Dizer de um objeto que ele é heterogêneo, é. via de regra, des­


valorizá-lo. Entretanto, quando sc fala da lieterogeneidade do discurso
não se pretende lamentar uma carência, mas tomar conhecimento de
um funcionamento que representa uma relação radical de seu ‘‘in­
terior" com seu “exterior". As formações discursivas não possuem
duas dimensões — por um lado, sua relação çom elas mesmas, por
outro, sua relação com o exterior -— mas é p reciso pensar, d esd e o
início, a identidade co m o uma m aneira de organizar a relação com
o que se imagina, indevidam ente, exterior.

Nos dois capítulos que seguem vamos considerar esta heteroge-


neidade em dois planos diversos. Inicialmente, examinaremos a
heterogeneidade mostrada ' e. a seguir, a heterogeneidade constitutiva;
a primeira incide sobre as manifestações explícitas, recuperáveis
a partir de uma diversidade de fontes de enunciação. enquanto a
segunda aborda uma heterogeneidade que não é marcada em super­
fície, mas que a AD pode definir, formulando hipóteses, através do
interdiscurso. a propósito da constituição de uma formação discursiva.

üs inúltipios fenômenos dependentes da “ heterogeneidade mos­


trada" vão bem além da noção tradicional de citação c mesmo
daquela, mais linguística, de discurso relatado (direto, indireto, in­
direto livre). O levantamento exaustivo c a classificação das marcas
de heterogeneidade representam uma tarefa perigosa, talvez impos­
sível: assim, comentar-nes-emes em aerurar. de firma emr;' ; :a. um

r-j-f
No entanto, a utilização dos conceitos de Ducrot, no que tange
á heterogeneidade enunciativa, não deve levar à conclusão de que
esta é a única abordagem linguística que considera este tipo de
fenômeno. Kncontra-se. particularmente nos trabalhos de A. Culioli \
uma eoneeiluação excelente dos fatos de polifonia. Para além das
formulações de detalhes, que já variaram e ainda variarão nos pró
ximos anos, convém, sobretudo, atentar para os fenômenos lingiiís
ticos abordados neste campo.

A POLIFONIA

No capítulo anterior admitimos implicitamente que o falante é


único, isto é, que cada enunciado sé) pode ser relacionado a um único
autor, identificado com o locutor (oral ou escrito), aquele que diz
eu, que é responsável pelo que enuncia. I-, este pressuposto que l)u-
crol questiona para dar conta de certos fatos emmciativos. Para cie,
há polifonia quando é possível distinguir em uma enunciação dois
tipos de personagens, os enunciadores e os locutores

* Por "locutor" entende-se um ser que no enunciado e apre­


sentado como seu responsável. Trata-se de uma ficção discursiva
que não coincide necessariamente com u produtor físico do enunciado:
se assino um formulário preparado pela Administração, do tipo "Lu.
abaixo-assinado, declaro ", o eu do locutor deste texto sou eu
mesmo e, no entanto, não sou seu autor efetivo. Pa mesma forma,
na “ narrativa”, tal como a entende Benveniste, isto é, em um eintn
ciado narrativo desprovido de articuladores * e, mais amplamenie.
sem marcas de subjetividade enunciativa. é evidente que existe um
autor, mas o texto não indica o "locutor” que se responsabiliza por
sua enunciação. Pode-se, igualmente, estabelecer uma hierarquia de
"locutores" para descrever a citação cm discurso direto: há neste
caso dois "locutores” diversos em um enunciado que, além disso, é
globalmenle produzido por um deles, aquele que se constitui em Ia
lante, ao falar ou escicver

• Após haver dislinguido entre julcnue, autor eletivo, e locutor.


Pucrot distingue, nesta última instância, "o locutor propriamente dito"

* No original francês vmbrayeun i N do l i

7t>
(abrcviadamenie L) c "o locutor enquanto pessoa do mundo" (abrevia­
damente A). L é definido como o responsável pela enunciarão e con­
siderado apenas em fundão desta propriedade, enquanto v é uma
pessoa que pode possuir outras propriedades além dessa. Se reto­
marmos a noção de ethos, poderemos dizer que os traços atribuídos
ao "locutor” através de sua própria enunciação dependem de I ; se,
ao contrário, este "locutor” fala dele mesmo enquanto ser do mundo,
será A que estará implicado. Na autocrítica, por exemplo, L afirma-
se ao desvalorizar A.

• O enunciador representa, de certa forma, frente ao “ locutor”


o que o personagem representa para o autor em uma ficção. Os
"enunciadores” são seres cujas vozes estão presentes na enunciação
sem que se lhes possa, entretanto, atribuir palavras precisas; efetiva­
mente, eles não falam, mas a enuneiação permite expressar seu ponto
de vista. Ou seja, o “ locutor” pode pôr em cena, em seu próprio
enunciado, posições diversas da sua.

O fenômeno da ironia (que retomaremos mais adiante) podería


ser descrito nestes termos. Com efeito, um enunciado irônico faz
ouvir uma voz diferente da do “ locutor” , a voz de um “enunciador”
que expressa um ponto de vista insustentável. O “ locutor” assume
as palavras, mas não o ponto de vista que elas representam. Eviden­
temente, isto exige qtie uma marca de distanciamento apareça entre
as palavras e o “ locutor”; caso contrário, o ponto de vista do ‘'enun­
ciador” lhe seria atribuído. As Provincialcs * , por exemplo, supõem
uma distinção entre o falante (o autor, Pascal) e o locutor (o Amigo
do Provincial, o personagem que diz eu)\ nas partes irônicas deste
texto acrescentar-se-ia o personagem de um "enunciador”. Assim,
quando o Amigo do Provincial dirige-se ao jesuíta para comentar uma
decisão particularmente imoral dos casuístas e declara:

"Esta caridade de poupar a perdição de um pela perda do


outro é verdadeiramente extraordinária, meu P a i4”,

* A s P r o v in c ia le s consistem em um conjunto de 18 ca rta s de Pascal, inicialm ente


publicadas anonim am ente. E la s atacavam os jesu ítas e a m oral excessivam ente
indulgente dos casuístas, ao mesmo tempo que assu m iam a defesa dos janse-
nistas de P o rt-R o y a l (N . do T ) .

77
íi análise semântica será diferente, conforme u enunciado seja um
siderado irônico ou não. Interpretado como sincerainente admirativo,
ele será atribuído unicamente ao "locutor": se. ao contrário, foi
irônico, o locutor fará ouvir a vo/ de um "cnunciador" que defende
a idéia absurda de que a decisão dos casinslas coincide com a ca
ridade cristã. Dupla leitura que se articula na ambiguidade contida
em extraordinário, significando "admirável" ou "o que escapa à norma,
â ordem”. Dupla leitura inscrita na situação de enunciação construída
pelo texto, a qual se dirige concomitantemente a dois destinatários:
o jesuíta, parceiro do diálogo relatado, e o público do panfleto. U
autor empenha-se em fazer uma alocução legível nos dois planos:
por um lado, finge uma cumplicidade com o jesuíta, que não tem
acesso â leitura irônica e. por outro, indica tio público, que percebe
a ironia, a transgressão da moral.

A PRESSUPOSIÇÃO

O fenômeno bem conhecido da pressuposição, cuja importância


é considerável para a AD, pode ser examinado através da polifonia 5.
A relação entre polifonia e pressuposição foi estabelecida por A. Ber
r e n d o n n e r p a r a ele, em um enunciado do tipo le pretenda que
lides est nudade [ Pretendo que / úlio esteja doen te], não é possível
contentar-se, como de hábito, em ver um pressuposto negativo im­
posto pelo verbo, de tal forma que a proposição “ |úlio está doente"
seja falsa. Na realidade, se este fosse o caso, "Pretendo que" deveria
ser uma asserção contraditória. Beirendonner propõe, então, substituir
a formulação |p c falsaj por "segundo a opinião geral, p é falsa", ou.
cm termos de predicaçâo, |p c ON-falsaj. Kste "O N ", denominado
"agente verificador” , é a instância posta aqui como responsável, fia
dora pela validade deste enunciado. O referente deste ON ' pode
variar consideravelmente de uma enunciação a outra, incluindo ou
não o locutor, o destinatário c conjuntos, mais ou menos amplos, de
terceiros.

O N . pronome in d efin id o , pode sig n ifica r a lg u é m , imui p e s s o a , a g e m e . n u la


um , c a d a q u a l. tra d u z-se . geralm ente. por S K , podendo lam bem levar o
verbo para a I a e ou 3." pessoas p lurais, constituindo-se em um a form a p r i­
vilegiada de in d eterm in ação . A predicaçâo acim a expressa pode ser traduzida
por lp c S E - fa ls a 1 ( N . do T ).

78
Por trás desta reformulação da pressuposição, pode-se ler uma
reorientação da “ verdade" dos enunciados, ü que passa para
o primeiro plano é a instância qu e valida u enunciado: conforme
afirma C. Kerbrat-Orecchioni. “ toda asserção é assumida, explícita ou
implicitamente, por um sujeito enunciador e é para este sujeito, em
primeiro lugar, que ela c verdadeira Para Berrendonncr, o agente
verificador pode assumir três formas: um sujeito particular, UN e o
que ele chama de “fantasma", isto é, a instância sem nome que valida
os enunciados p é verdadeiro , aqueles cuja verdade está, de alguma
forma, relacionada à ordem do mundo, ao universo, "considerado
como um participante ativo do acontecimento de intcrlocuçao. e não
apenas como uma circunstância inerte

Entretanto, em Berrendonncr. a introdução de agentes verifica­


dores não desemboca verdadeiramente sobre uma concepção “ poli
fônica" da pressuposição. Para Ducrot, ao contrário, a pressuposição
consiste em um processo que apresenta dois “enunciadorcs' , Ei e Ej.
o primeiro, responsável pelo pressuposto e o segundo, pelo posto: E_-
seria assimilado ao “ locutor" e F.i a ON. a opinião pública. Assim
em:

O governo não quer mais decidir.

seria preciso distinguir entre o personagem do "enunciador’ que


sustenta que “ O governo decidia antigamente", e a opinião rio enun­
ciador ON que se lhe opõe ao afirmar que. atualmente, o governo
não quer mais decidir, “ enunciador" este que coincide com o
“ locutor".

Em uma tal abordagem, não c mais necessário afirmar que todas


as nominalizações <a decadên cia d o O cidente, o crescim ento da into­
lerância. etc.) são pressupostas como verdadeiras pelo locutor. Uma
frase como A dim inuição d o p o d er d e com pra e um a p ercep ção do
espírito não é pressuposta pelo “ locutor", mas relacionada a um ON
com o qual ele não se solidariza. Em compensação, caso o "locutor"
se inclua neste ON, tratar-sc-á de uma pressuposição em sentido es
trito. E preciso ainda lembrar que este locutor incluído em ON não
é o locutor L mas A, a pessoa que ele constitui independentemente
s do ato de enunciação que está realizando. Desta forma, o pressuposto

70
não é assumido. não é o objetivo reconhecido da enunciação, ma
apenas uma crença representada no discurso

lista concepção da polifonia empresta toda sua força à metáfora


teatral. A enunciação aparece aí como uma encenação onde a palavra
é dada a diversos personagens, sendo que as enunciações "sérias"
são aquelas em que o locutor se assimila a um dos enunciadores
apresentados. Ou seja, o locutor não falaria “ direlamente" lista é
uma tese bastante radical que merece ser discutida, mas o princípio
de uma pluralidade de fontes enunciativas enriquece indubitavelmen­
te a análise linguística.

A NFGAÇÂÜ

A negação pode igualmente ser objeto de uma análise polifónica.


Na realidade, é antiga a idéia de que é preciso distinguir, em um
enunciado negativo, duas proposições, a saber, uma proposição
primeira e uma outra que a nega, mas o recurso à distinção locutor/
enunciador permite ajustá-la e integrá-la a um quadro mais geral

Para Ducroi. a enunciação da maior parte dos enunciados ne­


gativos é analisável como encenação do choque entre duas atitudes
antagônicas, atribuídas a dois "enunciadores” diferentes: o primeiro
personagem assume o ponto de vista rejeitado e o segundo, a rejeição
deste ponto de vista. Consideremos o seguinte enunciado, extraído de
um artigo sobre as viagens de |oão Paulo II:

"hste perpétuo peregrino, na verdade, não inovou comple


lamente” (l.r M onde, 8 / 2 / 8 5 , p. I).

, enunciado põe em cena um "enunciador" que sustentaria o


ponti' ue vista segundo o qual o Papa inovou completamente, “ enun­
ciador” construído pelo texto e ao qual o leitor supostamente se
identifica: na realidade, as linhas precedentes do artigo impuseram
pouco a pouco a idéia de uma revolução na política do papado e a
negação permite rejeitar a suposição de que o leitor ter-se ia dela
apropriado.

80
Estes "enunciadores", cuja atitude é recusada, podem ser bem
diferentes: um indivíduo, o destinatário, uma outra imagem do Io
cutor, a opinião pública, etc. A operação de negação pode, além
disso, designar fenômenos variados, marcados por outros morfemas
além de ne. . pas [n ão]. As célebres Máximas de La Rochefoucault,
por exemplo, recorrem freqüentemente a n e. . .q u e [sen ão, somente,
apenas], recusando um “enunciador” identificado com ÜN, o qual
garante as idéias recebidas, tal como ocorre em:

— La constance des sage u'est que 1 art de renfermer leur agi


tation dans leur cceur. [A constância dos sábios não c senão a arte
de encerrar sua agitação em seus corações 1.
— Latnour de Ia jnstice n ’est, en la plupart des hommes, que
Ia crainte de souffrir 1'injustice. [O amor pela justiça, para a maior
parte dos homens, é somente o temor de sofrer a injustiça],

Ne. . .q u e acarreta problemas diferentes daqueles que decorrem


de ne. . .pas, mas seu caráter refutativo não oferece nenhuma dúvida.
Aqui, vê-se bem como é encenado o ponto de vista de ÜN que po­
dería ser assim parafraseado: “o que ON compreende por a constância
tios sábios, o am or pela justiça". As M áximas se apresentam, então,
como uma espécie de contradicionário que confronta a idéia recebida
com a definição “ verdadeira”, aquela que, segundo o texto, está de
acordo com a realidade. O leitor supostamente partilha a opinião de
ON e, conseqüentemente, vê sua própria opinião refutada: “ A má­
xima define-se como um discurso didático polêmico ( . . . ) ; o enun
ciado do leitor, que é negado, não é o de uma classe definida de
leitores, mas de todos os leitores possíveis"”’. Enquanto ne. . .pas
explicita o enunciado rejeitado sem oferecer a contrapartida positiva,
n e. . .q u e deixa implícito o que rejeita ao propor, em seu lugar, a
proposição reivindicada pelo locutor. Mecanismo possibilitado pelo
fato de que o leitor da máxima supostamente conhece o que é re­
futado ou, pelo menos, é capaz de reconstruído, apoiando-se. pau
isto, no enunciado formulado com n e . . que.

Na realidade, mesmo que se considere unicamente o caso de


ne. . .pas, a noção de negação é ambígua. Habitualmente, distinguem-
se dois tipos de negação com n e. . .pas, uma chamada “ polêmica ”, a
outra, “descritiva” 11 e esta distinção é muito importante para a AD,
que mantém laços privilegiados com a negação polêmica. Considerem-
se os dois enunciados que seguem:

v i
(1) Não há iwin nuvem no céu

(2) Este muro não é branco

Apesar de sua aparente semelhança, eles apóiam sc em dois u>os


diferentes da negação. Ao enunciar (1), o locutor descreve um estado
de coisas; seu enunciado pode ser parafraseado com o auxílio de
um enunciado positive do tipo o céu está absolutam ente lim po
trata-se de uma negação descritiva, que serve para falar do mundo.
I' bem diferente o funcionamento de (2), que contesta, opõe-se a
uma asserção anterior, explícita ou não, segundo a qual "este nutro
é branco”: trata-se, aqui. de um verdadeiro alo de negação, de refu­
tação do enunciado positivo correspondente e fala-se, neste caso, de
negação polêm ica.

lista última apresenta a particularidade dc poder contestar tanto


o pressuposto quanto o posto do enunciado que ela rejeita:

A ü / ’residen te é m enos popular.


(pressuposto: anteriormente ele era popular)

B: Ele não é m enos popular, jam ais o foi

Além disso, a negação polêmica mantém necessariamente uma


relação dc contradição com o enunciado que refuta, enquanto a ne­
gação descritiva é compatível tanto com a contradição como com a
contrariedade. (Diz-se que dois enunciados são “ contraditórios”
quando não podem ser a um só tempo verdadeiros ou falsos, no
interior de uma situação de discurso dada: l-.stá jrio e Não está frio
não podem ser verdadeiros simultaneamente. l:ala-se de “contrarieda­
de" quando os enunciados positivos e negativos podem ser falsos
simultaneamente: Está calor c Está frio são contrários pois. neste
caso. só pode estar ameno).

J. M o e s c h lc r p r o p ô s distinguir três tipos de refutação, através


da negação polêmica: a retificação, a refutação proposicional c a
refutação pressuposicional. Sua tripartição, ao mesmo tempo pragmá­
tica e lógico-semântiea, apóia-se sobre o fato essencial que a negação
c um marcador que apresenta a propriedade de incidir sobre um
elemento delimitado, de possuir um campo.
— A retificação corresponde às negações eujas incidências são
indicadas por um encadcamento que se dá sobre a enunciação
negativa:

A eleição de G iscard mio era provável, mas certo.

É o encadcamento com base em um “ par antonímico" teerta) que


seleciona o elemento refutado.

— A refutação proposicion al é o caso mais comum, cm que a


incidência da negação não é definida, bla conserva os pressupostos
do enunciado rejeitado, propondo-se unicamente a recusar a primeira
asserção, c não a corrigi-la. bstá frequentemente associada a um ato
de justificação:

O Presidente não é popu lar, porqu e ninguém se desloca


para ouvi-lo.

— A refutação pressuposicioital visa a refutar a pressuposição


associada ao enunciado rejeitado. F.la vem necessariamente acompa­
nhada de uma justificação. Assim, no exemplo dado, acima:

O Presidente não está m en os popular, jam ais o foi

a segunda enunciação justifica a primeira, especialmente que a nega­


ção incide sobre o pressuposto.

Ou seja, se a refutação incide sobre um simples constituinte do


enunciado rejeitado, trata-se de uma retificação: se ela diz respeito
ao conteúdo posto cm seu conjunto, é proposicional: se sisa ao
pressuposto, 6 pressuposicioital. Note-se que este último tipo de ne­
gação polêmica, como Ducrot já destacou, questiona diretamente o
enunciador do enunciado refutado, à medida que o quadro discursivo
que pretendia impor é contestado.

Recentemente, Ducrot precisou reformular sua concepção da


oposição entre as negações descritiva e polêmica para harmonizá-la
com sua teoria poli fônica: do fato. o que faria da negação descritiva
numa teoria desta natureza0 I m decorrência disso, também subdi
viiliu a amiga ruhrica da negação polêmiea. distinguindo, dessa forma

1) a negação m ctalingiiistica. que contradiz us próprios lermos


de um enunciado oposto. Hsta negação visa ao locutor que assumiu o
enunciado negado, podendo anular os seus pressupostos. Di/er .1
França não parou dc recuar, ela jamais recuou consiste em recusar
os lermos do locutor;

2) a negação polêm ica, para a qual a analise polilonica exami­


nada acima se mostra mais pertinente. Aqui. não há rejeição de um
locutor, mas de um enunciador mobilizado no discurso, enunciador
este que não é o autor dc um enunciado realizado. O que é rejeitado
é construído no interior da própria enunciação que o contesta,

">) a negação descritiva, a mais incômoda para a polifonia, cci


lamente a menos importante para a AD, em que os enunciados
negativos, em geral, representam um conflito, sendo tomados em um
interdiscurso que os opõe a outros enunciados. Para Oucrot, iraiar-se
ia de um derivado "delocutivo” 11 da negação polêmica. Um verbo
delocutivo, como, por exemplo, rem era er [agru dcccr], que denota o
ato realizado, enunciando uma íórmulu determinada, m crci! |obriga
d o ! J. na ocorrência. Por extensão, Ducrot laia de ‘ derivação dclocu
tiva" quando um termo toma um novo sentido a partir de um emprego
anterior em uma lórmula convencional: por exemplo, a partit de
"M ’as-tu va?" Você me viu7 ” I. constituiu-se o nome de qualidade
m atava (aíirmar que alguém é um "maiuvu" consiste etn aiiibuu lhe
a característica que o levaria a fazer incessantemente esta perguntai
Do mesmo modo, enunciando a lórmula Paulo não esta seria confeiida
ao seu enunciador a propriedade que. na negação polêmica, justifica
ria o locutor que se lhe opusesse ao afirmar o ponto de vista contrário,
isto é, “ Paulo está"

Antes de encerrar o tópico negação, vamos tever um tipo paiti


eular de operação negativa produzida por nc . cn rien [em nada.
não. dc form a algu m a] que estabelece laços privilegiados com a

' Seria possível propor ai tilieialmente como equivalente a este nome. em poi •
tuttucs, a forma "eemiviu" >Je "vocé me viu" (N. do T I

St
metalinguagem. Segunda ). M i l n e r q u e estudou este fenômeno, estu
operação contesta uma enunciação anterior, avaliando sua legitim idade.
a adequação entre as palavras utilizadas e o estado de coisas descrito
Assim, dizer de alguém que II n ’est en rien ait Service da pays (Lie
não esta de form a alguma a serviço do país] significa que não é legíli
mo enunciar a frase II est au Service du pays [L ie está a serviço do
p a ís]; a legitimidade aqui questionada remete à pertinência linguística
desta expressão. Esta contestação não precisa necessariamente incidir
sobre o enunciado anterior; neste caso, contesta-se aquilo que o enun-
ciador em questão considera por todos conhecido, conhecimento este
que implica ser possível formular com legitimidade a proposição asso­
ciada a ne. . . en rien. F.m La vicille fem m e réussit à porter Ia letu e de
ses mains trem blantes qiti ne iessem bluient en rien à de mains [A
velha senhora conseguiu carregar a carta com suas mãos trêmulas que
em nada pareciam com m ãos], n e. . .en rien questiona a legitimidade
de um enunciado virtual, implicado pelo contexto, algo do tipo "mãos
parecem com mãos”, cujo "enunciador” ON sustenta proposições que
parecem ser evidentes.

O DISCURSO RELATADO

Os discursos direfo e indireto, as manifestações mais clássicas da


heterogeneidade enuncialiva, continuam a ser objeto de trabalhos que
tentam inscrevê-los no campo dos problemas da enunciação Vimos
acima, no quadro polilònico de Ducrot, que o discurso direto se ca­
racteriza pela aparição de um segundo "locutor” no enunciado atri­
buído a um primeiro "locutor”. Freqüentemente é oposto, de forma
um pouco ingênua, ao discurso indireto, alegando que ele pretende
reproduzir literalmente as alocuções citadas; seria mais exato ver nele
uma espécie de teatralização de uma enunciação anterior e não uma
similitude absoluta. Dito de outra forma, ele não é nem mais nau
menos fiel que o discurso indireto, são duas estratégias diferentes
empregadas pura relatar uma enunciação.

Sabe-se que a AD dedica grande atenção aos fenômenos referentes


à citação u para descobrir, por exemplo, o contraste entre diferentes
formas de relatar a mesma enunciação, ou ainda o distanciamento
muito variável que o discurso, ao citar, introduz com relação ao dis­
curso citado. Neste sentido, sublinhamos a am biguidade fundam ental

85
do l<,nònicih) de citação, caso seja considerado o gian de adesão ilo
locutor ao que está dizendo. Assim, na opinião de A. Hencndoimci.
se um locutor "contenta-se cm relatar as alocações assertivas de um
terceiro, em lugar de garantir pessoal mente, através de uma simples
afirmação, a verdade de p. isto permite concluit que ele não potl,‘.
pot si só. subscrever p, não acreditando muito, por conseguinte, em
sua verdade em compensação, para KerhrutOrecchioni. ocultar
se por trás de um terceiro "é freqiicntemcnte uma maneira ltábil put
set indireta" de sugerir o que se pensa, sem necessitar responsabilizai
se por isto Aí reside Ioda a ambigiiídade do distanciamento:
locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o não eu. em relação
ao qual o locutor se delimita, e como a "autoridade" que protege a
asserção. Pode-se tanto dizer que "o que enuncio é verdade porque não
sou eu que o digo”, quanto o contrário.

O que é afinal "autoridade" em matéria de discussão, senão n


nom e de um ausente'.' Se a autoridade invocada estivesse presente,
expor-sc-ia à discussão, anulando-se como tal O valot de autoridade
ligado a toda cnunciação ("é verdade, porque ett o digo") é geralmente
insuficiente e cada formação discursiva deve apelar à autoridade pet
tinente, considerando sua posição2".

A partir do momento que se trata de loiinações discursivas, toda


concepção retórica da citação é inadequada. O sujeito que enuncia a
partir de um lugar definido não ciltt quem deseja, como deseja, em
função de seus objetivos conscientes, do público visado, etc. São as
imposições ligadas a este lugar discursivo que regulam a citação, lista
noção de citação é. entretanto, ambígua, pois remete tanto às regras
às operações, quanto tios enunciados citados. Dislinguir-sc-á. pois.
intcrtexti) de interlextualidade, da mesma forma como, em gramática
gerativa, “ performance" opõe-se a "competência"

Por intertexlo de uma formação discursiva, entendei-se á o


conjunto dos fragmentos que cia efetivamente cila e. por intertextuali
dade. o tipo de citação que esta formação discursiva define como
legítima através de sua própria prática. Além dos enunciados citados
há, pois, suas condições de possibilidade, Fm um nível trivial, isto é
evidente: segundo as épocas, os tipos de discurso, as citações nau
são feitas da mesma maneira: os textos citáveis. as ocasiões em que
é preciso citar, o grau de exatidão exigido, etc variam considerável
mente. Sabe-se bem que um texto científico contemporâneo não cita


da mesma maneira que um texto religioso, o qual possui uma relação
totalmcnte diversa com a tradição. Os analistas de discurso em geral
manifestam muito pouco interesse por esses problemas, à medida que
confrontam discursos de mesmo tipo, que obedecem, consequentemen­
te, a imposições similares neste domínio. Hntretanto. mesmo existindo
certa semelhança, muitas divergências podem aparecer por menus qu e
se considere a citação com o uma m od alid ad e totalm ente d iferen te d o
funcionam ento discursivo.

Ilustraremos esta afirmação cotn base nos discursos humanista


devoto e jansenista. Aparentemente, a intertextualidade de ambos é
idêntica, já que tanto um como o outro dependem do mesmo tipo de
literatura religiosa. Na realidade, uma análise mais apurada mostra
que o discurso jansenista tende a privilegiar os textos mais próximos
da Igreja primitiva e praticamente não invoca nenhuma autoridade
exterior à tradição católica. Se a relação com o corpus de seu próprio
campo for convcncionahnente chamada de intertextualidade interna.
pode-se dizer que intertextualidade e intertextualidade interna coinci­
dem, de forma tendenciosa, nesta formação discursiva.

Isso não ocorre com o humanismo devoto, o qual recorto am­


plamente à intertextualidade externa, citando constantemente os mora­
listas da Antiguidade ou os naturalistas. Esta predileção pelos costumes
dos animais, pela astronomia ou agricultura pode ser explicada se for
relacionada ao pressuposto “ teofânico" que anima todo este discurso:
nele o cosmo é apreendido como “ o Grande I ivto do Mundo", es­
critura viva que permite remontar a Deus, seu Criador. Quanto aos
moralistas pagãos (recusados pelos jansenistas por dependerem da
“ natureza corrompida"), a proteção de que gozam está particular
mente ligada à concepção da religião cristã sobre a qual repousa este
discurso: o cristão aí não aparece como o oposto do homem "natural",
mas como sua sublimação. seu acabamento. Visão escalar que permite
conceder uma certa autoridade aos escritos dos autores antigos, os
quais, supõe-se, tenham sido ultrapassados c não anulados pela Re­
velação. Nestas condições, intertextualidades interna e externa só po
dem harmonizar-sc. Vê-se bem como, nos dois casos, a citação mostra-se
inseparável do próprio conteúdo dos discursos, do qual constitui uma
dimensão essencial.

Colocando-nos, agora, em um outro nível, microcontextual, para


estudar como são feitas as citações, como elas inscrevem-se no detalhe

8/
da estrutura linguística, não é possível negligenciar os verbos destina­
dos a introduzir o discurso relatado. I)e lato. em função do verbo
escolhido (sugerir, afirm ar, pretender I, toda a interpretação da
citação será afetada. M. Charolles. ao estudar estes verbos, chamando-
os de "verbos de comunicação-'", mostra que, excetuando dizer.
aparentemente neutro, os demais veiculam diversos tipos de pressu­
postos. Tis algumas chis rubricas que enumera:

alguns incidem sobre o valor de verdade do enunciado citado:


neste plano, desv elar ou revelar opõem-se a pensar ;

sobre a posição cronológica, repliear. repelir, concluir.

sobre o ponto de vista atribuído ao enuneiadur, lace ao que


diz: reconhecer, con fessar

sobre uma hierarquia: ordenar, suplicar

No que tange exclusivainente aos chamados verbos de "opinião",


Ducrot propôs classificá-los com o auxílio de diversos critérios semân­
ticos, aos quais estão associados os valores |-/

1) C ritério I’ : o verbo implica um julgamento pessoal fundado


sobre uma experiência;

2) C ritério M o verbo implica uma experiência da própria coisa;

>) Critério C): o verbo implica uma predicação original. ( Trata-


se, por exemplo, da oposição entre fe trouve que sa voiture est une
Citroen [A ch o que seu carro c um C itroen] e / 'estime qu e sa voiture
est une Citroen [fu/gtí q u e seu carro é um 1'itrocn]; a segunda frase
supõe que seja do domínio de todus o julgamento prévio sobre a
classificação do objeto, enquanto, na primeira, o locutor coloca uma
etiqueta sobre algo que ainda não havia sido cunhado );

4) Critério C: o locutor mostra se seguro quanto â opinião


expressa:

5) Critério R: o locutor apresenta sua opinião como o produto


de lima reflexão.

88
P M 0 c R
C onsidérer
(Considerar) + + + + +
T rou ver (achar,
imaginar) + + + — ___

E stim er (estimar,
julgar, reputar) + + —
+ f
fu gcr (julgar,
decidir) T ___ __
+ T
A vo ir Vimpression
(Ter a impressão) + — — _

Etre súr
(Estar seguro) ___ ___ ___

Penscr (Pensar) — — - — -1-


C roire (acreditar) — -- - — —

AS PALAVRAS ENTRE ASPAS

Os enunciados relatados em discurso direto são postos entre as­


pas para marcar sua alteridade; esta última, além disso, é claramente
manifestada pela ruptura sintática entre o discurso que cita e o
discurso citado. Na palavra entre aspas, em compensação, esta
ruptura não existe: a expressão aspeada é, ao mesmo tempo usada e
mencionada, dependendo, conseqüentemenie, da “conotação autoní-
mica”. Os lógicos distinguem, em textos já clássicos, a m enção de
um termo, que consiste em uma remissão autonímica (“a palavra
cavalo”, por exemplo) e seu uso (“ meu cavalo está doente"). A pa­
lavra entre aspas (e/ou em itálico) apresenta a particularidade de
acumular menção e uso. No enunciado “ Sinal dos tempos: a imprensa
“ feminina" cede no momento em que a mulher se a firm a '1” , a
palavra fem in in a é, ao mesmo tempo, mostrada, marcada como es­
tranha e integrada à sequência do enunciado.

A colocação entre aspas pode ser acompanhada por uma glosa


do tipo “como X diz", onde X remete, de acordo com os contextos,


aos mais variados cnuneiadorcs: da opinião pública aos indivíduos,
passando por conjuntos discursivos mais ou menos extensos. À di­
ferença dos fenômenos polilônieos já lembrados, este não se refere
às proposições, mas às palavras, sintagmas atribuídos a um outro
espaço enunciativo e cuja responsabilidade o locutor não quer as
sumir. Questionando desta forma o caráter totalmente apropriado da
palavra, as aspas designam a linha de demarcação que uma formação
discursiva estabelece entre ela e seu “exterior '-'1": um discurso efe­
tivamente só pode manter à distância aquilo que ele eoloea fora de
seu próprio espaço. Uma formação discursiva se estabelece entre estes
dois limites, a saber, um discurso tolalmenie entre aspas, do qual
nada é assumido, e um discurso sem aspas que pretendería não e*
tabeleecr relação com o exterior.

Pode-se, de acordo com | Authier, aiiihuir várias funções a


esta operação de distanciamento: aspas d e diferen ciação. destinadas
a mostrar que nos colocamos além destes enunciados, irredutíveis às
palavras empregadas: aspas d e condescendência; aspas pedagógicas.
11a vulgarização; aspas d e proteção, para indicar que a palavra utili
zada é apenas aproximaliva; aspas de ênfase, ele. Ocorre corn fie
qüência que uma deontologia da linguagem exige a colocação entre
aspas, parlicularmente cptando se bata de empregar palavras perten
ccntcs a uma língua estrangeira, a outro nível de língua ou
a vocabulários especializados. Mas, mesmo nestes últimos casos,
nenhuma agramaticalidade ocorre caso as aspas não sejam usadas:
não as colocando onde são esperadas, o discurso significa que elas
pertencem plenamente a seu espaço.

O valor semântico das aspas e o interesse que representam pata


a AD estão ligados precisamente a este caráter im previsível hem
como à sua relação com o implícito. Colocai entre aspas não signi
fica dizer explieitamente que certos termos são mantidos à distância,
é mantê-los à distância e, realizando este ato, simular que é legítimo
fazê-lo. Decorre daí a eficácia deste mecanismo, lota de contexto,
não é possível interpretar a colocação entre aspas: para tanto, deve-se
reconstruir, apoiando-se em índices variados, a significação da ope
ração da qual as aspas são o vestígio. As “ intenções" do autor não
são visadas, mas as aspas estão relacionadas ao conjunto do movi
mento da enunciação c, além disser, à formação discursiva na qual
ele se inscreve.
As aspas constituem antes ilc mais nada um sinal construído
para ser d ecifrad o por um destinatário. O sujeito que utiliza as aspas
é obrigado, mesmo que disto não esteja consciente, a realizai uma
certa representação de seu leitor e, simetricamente, oferecei a este
último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de
locutor que assume através destas aspas. Colocará aspas, por exem­
plo, para proteger-se antecipadamente de uma crítica do leitor, que.
supostamente, esperará um distanciamento frente a determinada pala­
vra, mas poderá, igualmcntc. não colocar as aspas para frustrar esta
expectativa, provocando um choque semântico, etc. Cada dccodifi-
cação realizada pelo destinatário reforça a conivência entre os par­
ceiros do discurso, visto que estão partilhando a mesma forma de se
situar no interdiscurso. O risco permanente de um fracasso nesta
decodificação representa todo o peso desta conivC-ncia, que se esta­
biliza nas fronteiras de uma formação discursiva. Considere-se este
enunciado da imprensa do Partido Socialista unificado: “ A mulher
que interrompe uma gravidez não é uma “ doente"-''." 1 Hastuji
observa que a interpretação destas aspas “ faz intervir um interdis­
curso não especificado com julgamentos de saber implícitos. Dizer
que a denegação de “ doente" diz respeito à mcdicação/não medi­
cação do aborto, consiste cm conhecer a atualidade social, ideológica
e técnica do problema. Dizer que “ doente" também pode «cr inter
pretado como "louco, irresponsável, alienado", consiste em registrar
um uso linguístico, mas também significa pensar na psiquiatria como
prática ou ameaça social de isolamento e de rejeição-''". O leitor
encontra-se. pois. imerso em um interdiscurso. cerlamentc vago. mas
situado.

Conscqücntcmentc, reencontra-se, a propósito das aspas, as


idéias sublinhadas no início deste livro: o texto não é um estoque
inerte que basta segmentar para dele extrair uma interpretação, mas
inscreve-se em uma cena cnunciativa cujos lugares de produção c de
interpretação estão atravessados por antecipações, reconstruções de
suas respectivas imagens, imagens estas impostas pelos limites da for­
mação discursiva.

A esta luz, pode-se considerar o exemplo de "interferência dia


trópica", proposto no volume precedente Tratava-se de um
artigo extraído de Jours d e Vrance ~8 que se apresentava como a
recserilura do unia entrevista do IVD.Cí. * dos hipei-mercados
“ Carrefour” , Marcei Fournier. Havíamos cilailo este texto porque
ele colocava na boca cio locutor palavras inglesas — jo b ou
busincss sclw u l: mas deve se também insistir sobre o fato de
que estes termos são introduz.idos sem aspas ou qualquer outra
maiea de distanciamento. O que significa que não são colocados
como oriundos de um espaço diferente, a despeito das expecta
ti vas de um público que. em um texto deste gênero, está lia
bituado a ver respeitadas as normas do ttso. Uma tal transgressão
só pode ser explicada pelo contexto: é preciso que, de uma forma
ou de outra, esta heterogeneidade aparente participe do que o
texto «.onsidera legitimamentr seu

Fm um primeiro nível, encontramo-nos diante de um fonò


meiui de "etlius”. () locutor é descrito eotno um homem de 54
anos ejuc exerce pesadas responsabilidades. Ao empregar palavras
em inglês e sem aspas, o locutor, homem maduro, vem autenticar
sua alocução, a saber, que é preciso ler o espírito jovem para
vencer, que é possível divertir-se ao negociar, etc. Processo de
legitimação da cena enuneiativa: M Fournier é indicado para
falar aos jovens pois é um deles. Fm um segundo nível, esta
ausência de aspas pode estar ligada ao próprio conteúdo do ar­
tigo: foi dinante uma viagem aos Fstados Unidos que M. Four-
nier idealizou os hipermercados; foi para lá também que seu filho
puniu para iniciar-se no espírito ila empresa. O espaço de origem
dos termos anglo-saxões é. pois, duplamente tematizado no texto,
pelo pai e pelo lilho, e os dois traços que a eles estão ligados
('‘ juventude” e "americanismo") estão destinados a estes homem
exemplares. O lilbo de M. loutniei não c. pois, o quatio homem
do “ Carrefour" por ser o lilho de seu pai. mas porque foi inicia­
do nos FUA, terra mítica para os que são Idlios de suas obras
Dever-se-ia. igualniente. Ic\ui em conta a ameiicanofilia de lonr'-
</c I rance para justificar esta heterogeneidade detiegada: um arti
go de jornal só pode ser lido em dois planos, como um texto e
como um constituinte deste texto mais amplo, que é o conjunto Jo
jornal.

Abreviatura de Picxidenlc-Dhetoi-Geral de uma cntpiesa i N . do l >.


O METADISCURSO DO LOCUTOR

A heterogcneidade cnunciativa não esiá ligada unicamente à


presença de sujeitos diversos em um mesmo enunciado; ela também
pode resultar da construção pelo locutor d e níveis distintos no in­
terior de seu próprio discurso. Reconhecer-se-á aí os múltiplos fenô­
menos que resultam das glosas que acompanham o que o locutor
diz. Com efeito, em um enunciado, nem tudo é produzido sobre a
mesma frequência de onda: o dito é constantemente atravessável
por um metadiscurso mais ou menos visível que manifesta um tra­
balho de ajustamento dos termos a um código de referência. Esta
possibilidade de associar, a todo instante, na sequência do discurso,
os enunciados e seus comentários remete evidentemente à propriedade
que as línguas naturais possuem de se descrever sem passar por um
outro sistema semiótico. Do ponto de vista da AD, o metadiscurso
do locutor apresenta um grande interesse, pois permite descobrir os
“ pontos sensíveis” no modo como uma formação discursiva define
sua identidade em relação à língua e ao intcrdiscurso.

Como o mostra Andrée Borillo”1', é difícil definir o metadis­


curso. Oscila-se constantemente entre uma definição estreita, próxima
àquela da metalinguagem dos lógicos, e uma definição ampla que
tende a dissolver o metadiscurso no discurso, por pouco que se con­
corde com Duerot quando este afirma que "a partir do momento que
falamos, falamos de nossa fala Por conveniência, contentar-nos-
emos em assinalar aqui algumas manifestações particularmente claras
sobre o fenômeno enunciativo, sem pretendermos nem rigor nem
exaustividade. As classificações operatórias neste domínio são de or­
dem funcional, tão grande é a diversidade das estruturas lingüísticas
que contribuem para este metadiscurso. Pode-se, assim, enumerar al­
gumas rubricas:

— metadiscurso destinado a construir unia imagem do lo ­


cutor, diferenciando-se eventualmente de uma outra: “ para pare­
cer erudito” , “ para falar como os políticos” , etc.;

— m arcar uma inadequação dos term os: “ metaforicamen­


te”, "de alguma forma”, “ se é possível afirmar”, etc.;

— autocorrigir-se: “ou melhor”, “ deveria ter dito”, “olhe


o que estou dizendo!” , etc.
— confirm ar: "é exatamcnte o que estou dizendo". ele.:

solicitar perm issão para empregar certos termos' "se vuce


me permitir a expressão", ete :

— fazer uma preterição "eu ia dizer". "não direi", elt. :

— corrigir antecipadam ente um possível etru de interpreta


ção: "no sentido X da palavra", "em todos os sentidos da pala
vra", ete

Nenhuma classificação deste assunto e satisfatória; uma tlassi


ficarão sintética ’11 permanece muito abstrata e pouco utilizável, en
quanto uma classificação detalhada se desdobra ao infinito. Na
realidade, para a Al) o que interessa, acima de tudo. e articular a
funeáo deste ou daquele marcador de meladiscurso com o micio e o
macrocontexto nos quais intervém; uma operação metadiscursiva
inereve-se em uma interação rigorosa, reajustando a enunciação em
função de coerções imediatas ou gerais, não sendo em nenhum caso.
gratuita.

De um ponto de vista ingênuo, o mctadixcursu é apenas um


conjunto de acréscimos contingentes destinados a retilicar a traje
Unia da enunciação. colocá-la em conformidade com as intenções tio
locutor. A Al), cm geral, lida com textos cuja produção é rclativa-
mente bem controlada, de forma que. com frequência, o mctudisciiisu
mostra se com o tal. a "derrapagem" verbal produz sentido. I.onge de
ser um procedimento para corrigir falhas da comunicação, ele cons
liltii um sintoma e deve ser apreendido através deste estatuto; da
mesma forma, os discursos podem opor-se, de modo significativo, pela
quantidade, natureza e função de suas operações mctadiscursivax

C ada glosa apresenta se. pois. como a exibição de um debate


com as palavras, o qual se pretende exemplar: ela define pata o
co-enunciador o bom caminho através do rumor infinito dos signos da
língua c do interdiscurso. O sujeito cuja imagem é constmida pelas
glosas é um sujeito que domina um discutso e tpie o ferece este do
minio em espetáculo. Como observa | Authier r-, assiste-se. assim, à
dupla afirmação dn unidade da formação discursiva: em primeiro
lugar, porque a glosa faz acreditar que é possível circunscrever a

qj
indeterminação dü discurso, o erro. o deslizamento, etc.; em segundo
lugar, porque o encaminhamento a um exterior explicitamente espe­
cificado ou por especificar determ ina automaticamente, por diferença,
um interior, o do discurso ’’1 que, ao significar seus pontos de diver­
gência com seu exterior, marca seu território próprio em um campo
onde a luta pela existência passa pelo domínio dc um certo número
de significantcs. Através de seu poder metadiscursivo, o sujeito de-
nega o lugar que lhe destina a formação discursiva em que se cons­
titui: em lugar de receber sua identidade deste discurso, ele parece
construí-la, ao tomar distância, instaurando ele mesmo as fronteiras
pertinentes.

O metadiscurso se apresenta como um jogo com o discurso; na


realidade, ele constitui um jogo nu interior deste diseurso. Presume-
se, uma vez mais, que se possua uma concepção apropriada da dis-
cursividade: não um bloco de palavras e de proposições que sc
impõem maciçamente aos enunciadores, mas um dispositivo que abre
seus caminhos, que negocia continuamente através de um espaço sa­
turado de palavras, palavras outras.

A PA RAF R AS A GI: M

Fntre as operações metadiscursivas deve-se atribuir um lugar


privilegiado à parafrasagem *. Desde seus inícios, a AD manteve uma
relação essencial com a paráfrase; seja através do chamado método
“harrisiano", seja através da “ análise automática do discurso" de M.
Pêcheux 34, partia-sc do princípio que, cm uma formação discursiva,
o sentido é apreendido pelo deslizamento de uma fórmula à outra,
no interior de classes de equivalência: “ P preciso admitir, escreve
Pêcheux, que palavras, expressões e proposições literalmente diferen­
tes podem “ ter o mesmo sentido" no interior de uma formação dis­
cursiva dada15". Fste tipo de relações parafrásticas é construído pelo
analista, após um trabalho dc descontcxtualização das proposições,
enquanto as paráfrases que nos interessam aqui são produzidas pelo
próprio enunciador. Fste último exerce sua capacidade metalingiiís-

* D o francês p a r a p h r a s a g e , consiste na fo i ma nom inal qac in d ica o ato. o


processo envolvido na paráfrase, enquanto esta últim a remete ao produto a c a ­
bado ( N . do T )
liai. tealizando o que C. l-uchx chama de "metapredicações de iden
lifieução"; qu vem ilirc f isto quer d iz er], autrem ent dit Iilitu de outra
Uirnta]. il Iam en teiu lre par lá [ é preciso com p reen der através disso\
ele., que servem para identificar, ihi discurso, dois lermos, X e V,
eiiju equivalência não c insiiiuída pela língua.

Diante da atividade de parafrasagem a AD adula um puniu de


vista que vai ao encontro das representações que us usuários la/em
espontaneamente. I’ara estes liltiinos. parafrasear consiste em colocar
se em uma posição de exicriot idade relativa face à seqiiéncia de seu
próprio discurso; nessa concepção "a presença de um marcador de
reformulação paralrástico conduz à conclusão de que existem prohle
mas ou obstáculos á coimmieaçãn Por um lado. a relurmulaçáu pa-
rafrástica é um meio de superar estes obstáculos ( .) em tudo o
que depende da compreensão, das hipóteses dos interlocutores,
quanto aos conhecimentos ou às capacidades intelectuais dos outros,
as suposições cpie la/em sobre o conhecimento partilhado, etc.; poi
outro lado, existem problemas que resultam das relações cpie os in­
terlocutores estabelecem entre si, das atitudes de um face ao outro,
e das ameaças potenciais para suas faces positivas ou negativas que
qualquei alo comunicativo constitui :i:" I sto imagem de um falante
que constrói estratégias para vencei obstáculos não é peitincnte para
a Al), a qual articula a paralrasagem às coetções de uma formação
discursiva e não à confrontação psicológica de dois indivíduos. A
parafrasagem aparece em Al) como uma tentativa para controlai em
pontos nevrálgicos a polissemia aberta pela língua e pelo interdiscuiso.
Fingindo dizer diferentemente a "mesma coisa" para restituir uma
equivalência preexistente, a patálrase abre. na realidade, o bem estai
que pretende absorver, ela define uma rede de desvios cuja figura
desenha a identidade de uma formação discursiva

Ouando I rançois Mitieiiand. buscando dclendci a política dc


rigor de seu 1’ritneiioMinistro. latirem lahius. lembra a necessidade
de "um crescimento sadio, isto c. um crescimento sem inflação e
ancorado sobre um aparelho modernizado e lotlaleeido de produ
ç ã o :l'" . ele bloqueia a infinitiule de possíveis interpretações de sadio.
fornecendo um equivalente que. em vez de explicitar um sentido uní
voco, garantido por algum saber econômico, o constrói em sua entm-
ciação. Poder-se-ia objetar que isto ocorre put ser sadio um adjetivo
avaliativo cuja significação está disponível para os mais variados in
vestimenios. Na realidade nenhuma paralrasagem é discutsivamente

ll(»
neutra: até mesmo lima paráfrase como "a democracia, que significa
u governo pelo povo” não reproduz um sentido contido em algum
dicionário absoluto. Esta fórmula intervém, com efeito, em um mo­
mento definido de uma argumentação, em uma cena enunciativa e
uma formação discursiva particulares, entra cm uma rede de outras
fórmulas reivindicadas ou rejeitadas ("a democracia é a liberdade de
iniciativa” ou "a segurança para todos", etc.), cm suma, ela <5 um
fato discursivo, com tudo o que isto implica.

Remetendo ao código linguístico e/ou ao saber que ela presume,


a paráfrase coloca aquele que a ela recorre em posição de enunciador
“ autorizado” , capaz de dominar os signos. Enquanto o enunciador
comum contenta-se em dizer, aquele que pode lembrar o que as pa­
lavras significam e retornar ao fundamento se apresenta como o que
tem acesso, ultrapassando as armadilhas e as imperfeições da lingua­
gem, a este lugar onde o discurso reencontrai ia a própria coisa.

O DISCURSO INDIRETO LIVRE

Até aqui, consideramos fenômenos cuja helerogeneidade enuncia­


tiva estava associada a marcas claras, lingiiísticas ou tipográficas.
Porém, nem sempre é assim, pois a h elerogen eidade por vezes deve
ser reconstruída a partir de índices variados; é o caso, particularmente,
do discurso indireto livre ou da ironia, que examinaremos a seguir.

Já faz um bom século que o discurso indireto livre fascina iin


giiistas e literatos™. Suporemos conhecidos seus traços essenciais pata
examinar seu caráter polifônico. Fora de contexto, nada permite con­
ferir, com segurança, a um enunciado o estatuto de discurso indireto
livre; isto está ligado à propriedade notável que possui de relatai
alueuções fazendo ouvir duas vozes diferentes iuexti ieavelmeme mis­
turadas, para retomar os termos de Bakhtin ou, dois "enunciadores”,
segundo palavras de Ducrot. ü discurso indireto livre se localiza pre­
cisamente nos deslocamentos, nas diseordãncias entre a voz do enuncia­
dor que relata as alocuções e a do indivíduo cujas alueuções são
relatadas. Ü enunciado não p o d e ser atribuído nem a um nem ao
outro, e não é possível separar no enunciado as partes que dependem
univocamente de um ou de outro

D/
|. Authier. que muito contribuiu parti que uma tal concepção
prevalecesse, cita este exemplo significativo, extraído de uma discussão
entre o encenador Marcei Bluwal e o escritor Rernard 1’ingaud'

"Aí. lihnvul: l.emhro-me que. em OS. exatamente. paia ic


tomar o exemplo de 08, um certo número de valores tradicionais
toram jogados ao lixo. e surpreeudi-me com o lado não dialético
dessa atitude. I Ia foi puramente moral: os valorou poluídas pelo
burguesia deviam ser rejeitados ( . . . ) . Dizíamos, nós. que gerai
valores culturais, é também transforma los, desde que o sistema
social mude (. )".

B. 1’ingaud objeta então a M. Bluwal que não é muito "dialético


lembrar valores eternos, objetivos, que um determinado grupo social
teria maculado": a isto. Bluwal replica: "F.stou absolutamente de
acordo com 1’ingaud e digo-o de imediato, tanto é assim que empre
guci uma linguagem entre aspas que não era minha

Retirado de seu contexto, não seria possível interpretar o frag­


mento sublinhado como discurso indireto livre: é esta ausência de
marcas explícitas que explica o erro de 1’ ingaud. P. o contexto ime
diato (a presença de uma alusão ã condenação de certos valores, a
oposição assinalada por "dizíamos, nós, . " hem como o que se sabe
sobre as posições de Bluwal que permitem vislumbrar, eventualmente,
a piesença de uma outra voz

IRONIA

Se o discurso indireto livre institui um jogo na fronteira entre


discurso citado c discurso que cita, a ironia subverte a fronteira entn
o que é assum ido e o que não o é pelo locutor. Knquanto a negação
pura e simplesmente rejeita um enunciado, utilizando um operador ex­
plícito, a ironia possui a propriedade de poder rejeitar, sem passai
pot um operador desta natureza. Vimos, acima, que o "locutor" coloca
em cena um "enunciador" que adota uma posição absurda e cuja alo
cução não pode assumir: esse distanciamento é marcado por diferentes
índices: lingüísticos, gesluais, situacionais.

qg
A partir daí. pode-se compreender as dificuldades colocadas pela
transcrição da ironia, pois não d possível recorrer à entonação ou à
mímica para desvendá-la. Torna-se obrigatória, então, a diversificação
dos meios utilizados: caráter hiperbólico do enunciado, explicitação de
uma entonação ("diz ele ironicamente"), aspas, ponto de exclamação,
reticências. Na ausência destes índices, resta apenas confiar no contexto
para nele recuperar elementos contraditórios. C. Kerbrat-Orecchioni
cita este fragmento de um artigo de crítica teatral: "As duas jovens
fundam, com algumas revoltadas, um jornal, "Femmes en coldre” . O
amor conduz, uma c outra, às mais sadias concepções de sua femini
lidade 41". O contexto indica que o jornalista se distancia ironicamente
na segunda frase mas, sem levar em conta as opções ideológicas do
próprio jornal, tal fato seria indeterminável.

Os problemas ligados à identificação da ironia nada têm de


acessório: efetivamente, é da essência da ironia suscitar a ambiguidade
e, com frequência, a interpretação não consegue resolvê-la. Assim, o
famoso texto de Montesquicu sobre a escravatura ("Os povos da Eu­
ropa, tendo exterminado os da América, precisaram escravizar os da
África, paia conseguiiem desbravar tantas terras. O açúcar setia de­
masiadamente caro se o cultivo da planta que o produz não fosse
feito por escravos não foi percebido como irônico pelo Diction-
naire poríalif ile com m ercc (1762), como assinalaram S. Itclesalle e
L. Valensi.

A ironia é um fenômeno sutil, passível de análises diveigentes "


c cuja extensão é difícil de circunscrever, por menos que nos afaste­
mos de exemplos simples (particularmente, não é possível considerai
antifrásticos todos os enunciados que, de hábito, são taxados de irô­
nicos’’) . Não entraremos aqui neste debate 4,\ por preferirmos insistir
na função da ironia.

Ê conveniente jamais perder de vista que a ironia c um gesto


dirigido a um destinatário, não uma atividade lúdica, desinteressada.
A maior parte dos analistas preferem vê-la como um gesto agiessivo:
outros, como A. Berrendonner considcram-na, sob este ponto de
vista, como um gesto neutro e até mesmo uma atitude defensiva,
destinada a desmontar certas sanções ligadas às normas da instituição
da linguagem.
Rata Ikrrendonner, a :iiiviclaüc linguística submete-se a vários
tipos de normas mão falar sozinho, não injuriar, não ser incompreen­
sível. etc.) e estas normas ficam, de alguma forma, suspensas se um
dos interlocutores as infringe: o outro tem. então, o direito de fazer
o mesmo. O interesse estratégico da ironia reside no fato de que ela
permite ao locutor escapar às normas de coerência que toda argumen
tação impõe: o autor de uma enunciarão irônica produz um enunciado
que possui, a um só tempo, dois valores contraditórios, sem, no en
tanto, ser submetido às sanções que isto deveria acarretar. A ironia
parece então “ uma armadilha que permite frustrar o assujeitamento
dos enunciadores as regras da racionalidade e da conveniência
públicas l7“

Uiialquer que seja a pertinência das teorias gerais sobre a ironia,


estas não bastam aos analistas do discurso, pois eles liiluni com usos
esp ecífico s deste mecanismo e deles devem dar conta. Retomando o
exemplo das P rovinciales de Pascal, anteriormente examinado, o carálct
agressivo ou defensivo da ironia passa para segundo plano; o recurso
sistemático à ironia permite efetivamente resolver um problema estru­
tural: como dirigir-se simultaneamente, com os mesmos enunciados, a
dois destinatários (ao jesuíta e às pessoas piedosas) que o texto opõe?
Isto, aliás, não impede, de forma alguma, que as dimensões olensiva
e defensiva da ironia se exerçam: por um lado, a ironia desqualifica,
ridiculariza o jesuíta, que se revela exeessivameute estúpido para ul
trapassat o sentido literal; por outro lado. o caráter irônico dos enitti
ciados torna verossímil o fato deste jesuíta não rompei jamais o
diálogo, não podendo apanhar seu interlocutor em llagrunte delito de
zombai ia a seu respeito

Al) rORlDAUí:, 1’ROVl-RUK >. S I UCAN

Us lenómenos enunciamos em que o loeutoi proleie falas pelas


quais não sc responsabiliza não di/em respeito apenas á rejeição. A
distância assim estabelecida também pode marcar a adesão, como foi
visto a propósito da citação de autoridade, onde o “ locutor” sc apaga
diante de um “ I ocutor” superlativo que garante a validade da enun
ciaçáo. Cleralmenic. tratam-se de enunciados já conhecidos por uma eo
letividade, que gozam o privilégio da intangibilidade: por essência
não podem ser resumidos nem reformulados constituem a própria

100
Palavra, captada em sua fonte. ‘‘Os comentários, análises, glosas que
elas provocam não o esgotam. 1- preciso sempre partir dela e a ela
retornar'18'’. Produzindo uma frase do F.vangelho, por exemplo, sem
indicar sua proveniêneia, um autor religioso faz expressar-se, por seu
intermédio, uma voz da qual seria apenas o suporte contingente. As
coletividades supostas pelas formações discursivas partilham um tesouro
d e enunciados fundadores, cuja figura extrema será o slogan, a divisa.
Se não é necessário indicar-lhe a fonte, é justamente porque este nome
é o nome do Ausente supremo, aquele sem o qual a coletividade que
partilha o discurso não existiría ou não seria o que cia c. I-, aliás,
uma das características que distinguem as “ autoridades” próprias a
uma formação discursiva, daquelas a que recorremos nas trocas coti­
dianas. O raciocínio por autoridade repousa sobre o seguinte princí­
pio: “ partindo-se de um falo “ X disse [ —assertou] que P” e, com
base na idéia de que X ( "que não é um imbecil”) muito provavelmente
não se enganou ao dizer o que disse, é possível concluir sobre a ver­
dade ou a verossimilhança de P. A fala de X. fato entre outros latos,
é, dessa forma, tomada como o índice da verdade de P 1!'". Mas, para
uma formação discursiva dada, X não pode ser qualquer um; existem
eucrções muito fortes que pesam sobre sua identidade, coerções estas
que, como vimos, remetem aos próprios fundamentos desta formação
discursiva r,u.

Quando a citação de autoridade chega ao estatuto de sloy.au,


do ponto de vista pragmático, adquire novas propriedades, sobretudo
a de estar essencialmente ligada à ação: o slogan, a um só tempo,
“ impulsiona e engana" \"fait m a r c h e r ele está ligado a práticas. Se
ele “consegue dar a seu destinatário a ilusão de ser seu destinador “1 .
isto ocorre em função de que ele presume a ausência de um enuncmdor,
tal conto ocorre nas citações de autoridade, ausência esta que se volta
para o lugar que pode c deve ser ocupado por qualquer enunciador.

Considerado sob este ângulo, o prov érbio representa um enunciado


limite: o “ locutor" autorizado que o valida, em lugar de ser icco-
nhecido apenas por uma determinada coletividade, tende u coincidir
com o conjunto de falantes da línyua. estando aí incluído o indivíduo
que o profere. liste último toma sua asserção como o eco, a retomada
de um número ilimitado de enunciações anteriores do mesmo pro­
vérbio. Verdades imemoriais por definição, os provérbios, com muita
justiça, fazem parte da dicionário de língua. Não é possível, em

---------------------------■--------------------------------------, 101
1 U iflL IO ifc C A S E T O R IA L O I ÍD U C A Ç ÍO |
sentido estrito, citar um provérbio, relatá-lo; pode-se apenas referi-lo
a um Outro absoluto no qual estaríamos incluídos por direito

IMl CAÇÃO

líntie os lenômenos de hoterogcncidade, a imitação ocupa um


lugar importante, representando uma de suas manifestações mais visí
veis; há muito tempo que a retórica a codificara em torno da noção
de paródia. Mas este último termo é utilizado de modo depreciativo,
enquanto a imitação de um gênero de discurso pode assumir dois
valores opostos: a captação e a subversão. Realmenlc, quando um
lalante se apaga por trás do locutor" de um gênero determinado de
discurso, e mostra que o faz. poderá pretender beneficiar-se da au
toridade ligada a este tipo de enunciação ou arruiná-la No primeiro
caso. quando há "captação", a imitação incide sobre a estrutura ex­
plorada e, no segundo caso, quando há "subversão", a desqualificação
desta estrutura ocorre no próprio movimento de sua imitação. A
subversão parece próxima da ironia: no entanto, seus objetivos são
nitidamente distintos: enquanto a ironia, de forma paradoxal, anula
o que enuncia no próprio ato de enunciai , a subversão mantém uma
distância entre duas fontes de enunciação. que ela hierarquiza. I.ntre
tanto, da mesma forma que a ironia, a subversão pode não ser per
cebida como tal: neste caso, resta apenas uma única fonte emmciativa.

A noção de imitação precisa sei mellioi especificada: um gênero


de discurso, como já vimos, não é apenas um conjunto de proprieda
des textuais, pois estas últimas estão ligadas a condições de enunciação
de diferentes ordens, desde o estatuto do enunciador até o ethos (Cf
Cap. I. I). Além disso, a imitação pode incidir sobre um gênero, isto
é. produzir enunciados que não remetem a nenhum texto autêntico,
conhecido pelos destinatários, ou so bre um lexlo particular e, neste
caso. evidentemente, também absorve as coerçües do gênero uo qual
o texto pertence. Obtém-se. assim, quatro casos de figuras extremas:
a) captação de um gênero;

b) captação de um texto singular e de seu gênero:

cf subversão do um gêneio:

d) subversão de um texto singular e de seu gênero.

Illê
E x a m in a rem o s d ois e x e m p lo s , eu n esp o n d en ics às a lín e a s h c c.

No primeiro, trata-se de um texto que se apresenta como uma


captação das Proviticioles. Consiste em uma serie de quatro fascículos
editados pela "Ação francesa ,:1" no momento de sua condenação pelo
Vaticano, em 1926. Manifestando claramente sua relação de captação,
o fascículo n.° I, por exemplo, inicia por uma “ l.ettrc d'un provincial
à un de ses aniis doctcur cn Sorbonne à Paris" [ Carta de um pro­
vincial a um de seus amigos, doutor pela Sorbonne. em Paris' ], seguida
de uma “ Réponse du Parisien au provincial". ["Resposta do parisiense
ao provincial”], etc. Em uma perspectiva de AL), não é suficiente dizer
que a Ação francesa “utiliza", por comodidade, um texto de prestígio
para melhor se fazer ouvir. Na realidade, esta captação é significativa:
o desdobramento da cena enunciativa explica-se pelo cuidado em se
apoiar sobre uma “cena fundadora", compatível com a semântica desta
formação discursiva.

Procedendo a esta imitação, a Ação francesa identifica-se à si­


tuação de Port-Royal, também condenado por uma Igreja católica cuja
pureza de doutrina e tradição pensava defender, lista identificação diz
respeito, igualmente, a enunciadores e destinatários: estes fascículos
reivindicam a mesma população enunciativa das Provinciales. ou seja.
“ pessoas de bem" dirigindo-se a “ pessoas de bem", passando por cima
das intrigas dos meios eclesiásticos e políticos. Mas o código utilizado
também é envolvido: a Ação francesa apresentou-se. constantemente,
através da próptia produção (seu estilo e suas idéias), como defensora
da língua clássica do século XVI I . tida como capaz de encarnar as
virtudes autenticas do espírito e da civilização francesa. Ora, as /Y<>-
vinciulcs constituem justamente um dos monumentos mais prestigiosos
desta língua clássica. Enfim, em um nível mais fundamental, existe
uma afinidade semântica entre as formações discursivas do jansenismo
e da Ação francesa: ambas recusam qualquer aliança entre dois termos
que consideram inconciliáveis. “ Deus" e " o mundo", por um lado.
“ a ordem" (monárquica ou eclesiástica) e a “ democracia", por outro.
Isto leva-as a rejeitar violentamente as figuras que tentam unir os
opostos: os casuístas e os jesuítas para os jansenistas: os democratas
cristãos, para a Ação francesa.

Vê-se que a captação das Provinciales diverge muito de um pro­


cedimento retórico; trata-se da construção, através da própria enun-
ciação, de uma cena de legitimação. Dessa forma, o discurso jansenista.
que anteriormente se apoiara sobre a "lenda" da Igreja primitiva, é

IO!
transformado, por sua vez. cm lenda pela enunciação de uma ouira
lormação diseursiva

|’aia exemplificar a su bv ersão d e mu gênero, veja-se em Voltaire.


a narrativa da aparição de São C uculin"1. Neste panfleto, destinado
a lutar curtira a proibirão do trabalho dominical leita pela Igreja, o
autor adota uma estratégia subversiva já que ataca "inteniamenle"
o discurso teligioso. Para tanto, submete-c às cocrçõcs genéticas das
narrativas de milagres associados à vida de santos Narra. pois. a apa­
rição de São Cucufin que veio ensinar a doutrina dos filósofos aos
capuchinhos enfurecidos com um camponês que trabalha no domingo-

"Irmão Aiqo, di/ ele ao gttaidião. acalma teu santo /elo.


de forma alguma deves quebrar o semeador deste bom homem
em teu país. os pobres não tem pão; ele trabalha para os pobres
apôs ter assistido à Santa Missa. I um bom trabalho; já discuti
a esse respeito com St l.oup, o padroeiro da cidade; vai e dize
ao bispo que. em minha opinião, cultivar a terra é a mclhoi
lorma de honrar os santos"

O mecanismo da subversão e (lato aqui: as condições genéricas


são respeitadas, mas o texto as desqualifica em sua própria enunciação
já que é a doutrina de um homem das "l uzes" - homem cujo lugar
cinmchiiivo pressupõe exalamente a impossibilidade destas narrativas
de milagres — que sai fortalecida. Por um lado, a imitação arruina o
gênero "narrativas de milagres", e. com ele. o conjunto de suas con
diçòcs de possibilidade; por outro lado. legitima, através disso, sua
própria posição de enunciação A subversão, o leviiamento do texto
sobre ele mesmo, podem ser lidos neste processo em que as afirma
çóes de São Cuculin coincidem com a posição oculta, a do paiodiadoi.
Absoluiamenle significativo o jogo de substituição instaurado pelo di>
cmso do iluminismo que pretende, não sem ambiguidade, substituir
a autoridade do dogma pela da Razão, .1 dos padres "obscurantistas"
pela dos filósofos 51.

P A S I K l IL t I U R M A Ç À O D I S C U R S I V A

A imitação nau é um lenõmeno perilético; na realidade, através


desta questão, pode se analisai um fato tão crucial quanto evidente- os

104
sujeitos reconliecem c produzem enunciados que pertencem a cmu ou
aquela formação discursiva.

Não basta constatar que um conjunto de textos, com base em


certas hipóteses, podem ser dispostos em uma mesma formação dis­
cursiva; seria igualmente necessário compreender como, em determina­
do lugar, uma população de autores pôde produzir enunciados simila­
res, partilhar um conhecimento tácito das fronteiras de uma formação
discursiva, sabendo o que pode ou não ser dito aí. Trata-se de saber se
esta “ imitação" é o resultado de uma espécie de impregnação passiva,
lenta, que desencadeia a repetição de diversas dimensões da discursi-
vidade, ou se isto oconeu pelo acesso a um sistema de princípios
dotado de uma grande generalidade que permitiría produzir e inter­
pretar enunciados inéditos em situações inéditas como dependentes do
“mesmo” discurso. De acordo com a maneira que formulamos esta
questão, isto é. fazendo alusão a uma abordagem gerativista. vê-se que
ela leva a questionar se não seria útil postular a existência de tinta
espécie de "competência discursiva”, a qual não teria. aliás, nenhuma
razão para assemelhar-se à da língua naluial

Sobre este ponto, o modelo que nos oferece a prática do pastiche


pode ajudar-nos a refletir. O pastiche distingue-se, em princípio, da
paródia dado que o pastiche ideal é falso; ele deveria poder figurai
entre as obras do corpus que imita. Para preservar o afastamento
entre as duas fontes enunciativas. isto é, para que o pastiche seja
reconhecido como tal. seu autor é levado, frequentemente, a introduzir
índices de distanciamento (aumentando os efeitos, por exemplo). Ora,
a própria possibilidade do pastiche, o fato de poder produzir novas
obras do mesmo tipo a partir do conhecimento de algumas, supõe
uma certa "competência", a interiorização das regras que governam
este gênero. Considerando a complexidade dos fatores que intervém
em um discurso, o produtor de pastiches não é capaz de explicitar as
regras que interiorizou, mas a facilidade com que pôde fazê-lo mostra
que elas muito provavelmente se articulam em um sistema bastante
simples. A situação dos sujeitos de uma formação discursiva é, iminuis
mutandis, comparável à do produtor de pastiches, com a diferença,
entretanto, de não precisar ser dotado de dons miméticos particu­
lares 58.

Assim, à medida que os conjuntos textuais com que a Al) lida


presumem a existência de uma classe de enunciadores que. neste lugar

105
de cntmciação. revelani-sc suhsliiuíveis, alingc-se uma polifonia lotai
menie radical em que um sujeito encerra em seu interior o ÜN qm
sustenta sua form ação discursiva

1 Teimo utilizado poi J Aulhiei ( lléléiogénéite montréc et llélérogéttéiié


cimstilutivc: élémenls pom une approchr de Pautie duns le discouts".
D K I A l'. n.° 26. 1482. p. 41 1M )

2 ,\ formulação da leoiia polifonia evoluiu cm Uiictol; seguimos aqui a mais


letcnle. "Isquissc d'ut e Ihéoiie polvphoniquc de rénoneialion'', in l.e dtte
et le ilit, Paiis. Éditions de Minuif, 1484, p. 171-231. ( I d luas.: "Kslntço
de uma l eoria Polifònica da hnunciação". in O d izei e o duo. Campinas.
Pontes Fditores. 1487. p 161-2181

3 I ncontrar-se-á uma exposição sucinta da teoria de Culioli, acompanhada di­


urna bibliografia no artigo de C. 1-iichs -|.e sujet duns la théorie énoncialive
d Antoinc Culioli: quclques repetes" in O KI.. II . n.” 30. 1484. p. 45-53:
neste mesmo número, J. Simonin trata diretamente destes problemas de poli
fonia em um quadro cuiioliano ( "D e la necessite de distingucr énoneiatetu
et locuteur dans une théorie énoncialive". p. 55-62. (O texto de C. luchs
foi traduzido para o Potl., com o título de "O sujeito na teoria enuncialiva
de A. Culioli: algumas referências" c publicado em C a d en tes d e Estudos
l.tnnuisticos. n.° 7. II-I UNICA M P. 1484. p 77-85)

4 Patis. (íainier. 1465, p 112

5 Sobre esse aspecto ver Initiation u m m éth od es J e la iw lv s e da diseours, p


133-138.

6 l e fanlôme de la vétilé. questions sut lasseilion' ( 1 4 7 6 ) . retomado em


íléiiien t.s ile l>ranm aliqiie linviti.stique. Patis. Pilitions ile Mintlit. 1481.
p. 3 3-70.

7 ' Dénmbulation en territoire alélhiqtte". in Stialevtes d iscu n iv es, Ptesses


Iipiversitaircs de I von. 1478. p. 56

8 Op. cit.. p 61.

4 Uma exposição mais pormenorizada sobre a pressuposição nos desviaria de


nosso propósito, centrado sobre a heterogeneidade cnunciativa. f. preciso,
cntielanto. assinalar que Ducrol reformulou a teoria da pressuposição apre­
sentada cm l) iie et ne /><t.\ d ite (P rincípios de sem ântica lingiiistica) e re­
sumida cm Iniliatioii tnti m éth o d es d e lanaty.se d a discours t p. 13.3 e
seg ). Com efeito, ele admite que, além dos ptcssuposlos ligados ã "frase",
indcpendcnlcinente do eonlexto. existem outros que resultam dos encadca-
mentos textuais. Isto amplia a definição de modo decisivo: de ora em
diante, os pressupostos dc um enunciado são "as indicações que traz con­
sigo, mas sobre as quais o cnunciador não quer ( simula não qucier 1
fazer incidir o encadcamcnfo" ( "Prcsupposés et sons entendus" in S tratéeiet

I0('
discursives, Prcsses Universitaires dc 1 von. 1978. p. 3 9 ) . (Pd. h r a s . : Pies
supostos e subentendidos (Reexam e)". in O d izer t o ilim. Campinas. Pon
tes Editores, 1987, p. 31-43)

10. S. Meleuc, “Structure de la maxime", in L an gages. n." 13. 1969. p 96. So­
bre as Máximas de l.a Rocliefoucauld. ver também “ Introduelion à l ana
lyse sémiologique des M avim es dc I a Rochefoucauld" dc J. M. Martin e
lean Molino. in In log iqu e dn pltnisible. Paris. Pd. dc l a M a ta m ilc-
Sciences de I Honime. 1981. p. 147 776

11. Ver Ducrot P ile e! n e pas J i r t , Patis, llermann, 1972. p. 38. ( I rad bras.
Princípios dn S em ân tica l.ingiiíslictr dizer e n ã o tiizer. São Paulo. Cultrix.
1977) e l.a pren ve et le ilire. Paris, Mame. 1973. p. 117-131 ( I rad. bras.
P rovar A dizer, São Paulo, Global, 1981)

17.. D ite et con tredire, p ra g m atiqu e d e In négation et n ele d e tclrtralietn dan\


In conversatian, Berne, Pcler I ang. 1982. p 87-107

13. l.c ilire et le dir. p. 216-218.

14. Esta noção de delocutividade vem de P. Benveniste: "l.es verbes délocuttfs'


in P roblèm es de Unguistiqne g é n é r a h , p. 277-285. (Trad. bras.: P ro b lem a ,
de lingiiístiea g eral I. 2 .a cd.. Campinas. Pontes Editores, 1988).

15. "N égation m étnlingiristique et négation m étalin gu isliqu e". in S cm a n tikm


v. 2 ( 1 ), 1977.

16. Ver em particular “Le stxle narrat f et la grammaiie <les discours direct et
indirect", in Cliangc, n.°s 16-17, Paris, l e Senil, 1973 c J. \uthier. l.es
formes du discours rapporté". in 1)RLA\', Cniversite de Paris V I II . n.° 17
1978, p. 1-88.

17. Esta questão foi tratada cm Initinlion ntiv m clliodcs d'nrwl\se dn d isco u m .
p 123-127.

18. ‘"Le fantômc de la vérité”. in l.inguisnqiie et S ém in lovie. n." 4. 1976, Pies


ses Universitaires dc 1 yon, p. 1 3 6 .

19. 'Dcambulation en territoire aléthique”, in Stratcgies discursives p. 60-61

20. Questão retomada um pouco mais adiante neste capitulo,

21. "Exerciccs sut les setbcs de C om m unications", in P ratiqu es, n •’ 9 . 1976.

2 2 . "Je trouve que", in S ém a n tik os, 1975, v. I, n.° I, i>. 63 c scg. A propósito
de l e pen se, J e crois, ver lambcnt A. M. Diller. "Analyse scmanliquc et
ptagmatique des phrascs disloquccs". in S ém an tikos, v. 6, n."s 1-2. 1983

2 3 . l e N ou vel O bscrvateur, n.° 688, p 60.

24. Sobre esle assunto ver "Paroles tenues à distance" de í. Authier. in M ate
rialités discursives. Presses Universitaires de I i 1le. 1981

UI 7
2' liib u iu 'uiiiulnte, 1977: citado poi J. iiasi 11|i. "Sémanliquc, prnpm.uiqin r
discom s". / ih v, Paris X Nanlerrc. n." 4 1981. 1 p |l.

26 Ibidcm

27 liiituituui un\ ntetlunle\ d e r u n a liu (tu (Im in u i, p 122 |7 4

28 I slc pequeno .ulieo de J- 5 tiandmougin. ‘1 es gens qui prenneut des i is


ques ne s emnnem lamais" ("A s pessoas que se an iscam punais se ente
■ liam I. publicado na ses'ào " l e u ven pour les jeunes" ("passagem livre
paia os jovens"). desenvolve-se sob uma epígrafe de Mareei Dassaull: II
n esi pas néccssaire «1’hériter pom léussii. il suffil de peisévérei” I Não é
preciso lieulai para vencer, basla peiseverai J

l't "Discours UII mcladiscoiils". m DU! II . n " 1?, | S. p .|7 (, |

lb t. e\ m ot\ (In ( I i u íh iis. Pai is. fdilinns ile Mimiil. 19X0, p 40.

11 Alloiilln propoe nula classilicay\io em seu ail vil. p 5ll

12 "Melei oeenéitel s i cnonciativcl s ) iii / nin/uec» n " 74, 1484. p 105

11 Ibidem

14 Vei lililiation (Un inetliodi \ dt lu n u lvu (ti d iu iiu i*. p 6S-9X

1.1 l e i te n te s d e lu /'iilice, 1’aiis, Maspéro, 1 4 7 5 . P 14' l l i a d In as. Sr


m a n tu a < D isiursi um a i lilu u a afii mui, a o d o o lm o . ( ampinas I d da
Uniiamp, 19X8 1

lí» " l a paiaphrase enlie Ia languc el le discouis". in / <//r cnr /rii/ipimr n " 51
1982. Sobre esle assumo, do mesmo aulor. /o Paruphrute (Paris. P llf .
1981). bem como "Paraplnnse el mélalaiipue dans le dialogue de vulga
lisalion" tlu n n u c lru>nui\c. n " 54. 1982), de M I . Morlureus e " l e s
marqueius ile la ieíormulation p.iiaplnasliqiic" de L Ciülich e I. kolsclii
íC aJiiers de llil\'latlupie j m n e a ít e . u ° 5, 1984)

17 F im lic h e I koiscln. ail cil p 415

48 t iludo no l e M onde de 8-2-19X5. p. X

19. I nlre as comrihuiyoes recentes, pode se ul.ii a de \ HanfieUl ( Ou l‘épis


tcmologic. le slyle el la graininaire lenconlienl Ihisloiie lilléraire: le deve
loppemenl cie Ia parole el de la pensée represenlees", in l.tmgue Im in u iw.
n.1' 44. 1979, p 9 2 6 ) ; de M. Plénal ("Sm la gruminaue riu slyle indirecl
libie". ui (\ d ,ia » d e grum m uire, 1Ini versite de loirlrrnse l e Mirail. I.
1979. p 95-1 47 ): de J. Auihier ( " l e s form es du discouis rappoilé") in
D M A I . Universilé de Paris V III, n.° 17. p. 1 8 8 ). de 14 (erquiglini ( " l e
slyle indirecl libre el la inoderniie"); de 1 . Danou lioileau e J Housca-
len I "Pour en finir avec Procusle". in /ungrigcs. n.u 74. 1984)

411 1. Aulhier, "I es lormes du discours rappoilé". p. X4 A citação foi lelirada


de Mi n id e et Sm ieti• \eniuirie de lu p en tee m arviste h‘d Soeiales. 147-1
p |75 «. 1X(,

IOS
4 1 . "P ro b lèm es de 1’ironie” , in L 'iro n ie, Presses U n iv e rsiia ire s cie L y o n . 1978.
p. 28. Trata-se de um artigo de J . S ic lie r publicado no L e M o n d e ih
4-3-1974.

42 . D e 1'espril d e s lo is, X V . 2.

43 . " L c mot "nég re" dans les d ictio n n aii cs f i.m vals d A n c ic n Kégim e", l a n e m
fr a rn u ise , n .° 15, 1972, p. 103.

44 . N a lite ratu ra francesa recente conta-se. pelo m enos, quatro analises ddc
rentes: (1 ) D. Sperber e D. W ilson ( " l.c s iro nies comute m e n tio n s'. l’o e n
qu e, n .° 36, {9 7 8 ); ( 2 ) C . k c rb ra t-O re c c h io n i ( ” 1 'ironie eomme irope".
P oéliqtte, n .° 41, 19 80 ); (3 ) A . H errendonner que nela vê uma enunciarão
p arad o xal onde "o que o enunciado d iz é o c o n trá rio do que di/ a enun
c ia çâ o " (lilém en ts de pragm aliqu e linguistiquc, p. 2 2 2 ) ; (4 ) e a análise po
lifô n ic a de D u cro t.

45. Muito bem resumido no artigo de 1). Hasite "Ironie el Mélulungage". m


O R L A I ', n .° 32. 1985.

46 . ü p . c it., p. 224 e stg

47. Op. c it., p. 239.

48. B . G a rd in , "D isco u rs polilique et exp ressivitO ". in N é o lo p ie ei l.e u e o lo p i <•


Pa ris, Laro u sse. 1979, p. 117.

4 9 . O . D u c ro t, " L ’argumentation par a u to iite " , in / tirqinnentuluin. Presscs


U n iv e rs iia ire s de l yon. 1981, p. 25.

50 . N ão desenvolvem os aqui a interessante e su til d iferença le ita poi D u cio i


entre duas fo rm a s de argum entação por autoridad e, "o racio cínio poi au ­
to ridade” e "a autoridade p o lifô n ie a” , sendo a segunda uma necessidade
co nstitutiva de toda fala e a p rim e ira , um procedim ento acrescentado. (O
artigo “ L'argu m en talion par a u to rité ” foi id o m a d o em l.e d o e et le dii.
cap. V I I — O referido artigo está p u blicado em O ilizei e u dito. com o
título de “ A argumentação por au to rid ad e” . Pontes I ditores. 1987 )

5 1 . ü . R eb o u l, L e Slogan, Bru.xeles, I d. C o m p le x c , 1975. p. 24

52 . Sobre o p ro vérb io ver A . G re s illo n e D . M aing ueneau. "P o lyp h o n ie. pio
verbe et détournem enl” (Lnnpages, n .° 73. m arço, 1974 1 bem com o o
n .° 163 (1 9 7 6 ) da R ecue d es Sciences hu m ain es, in tciram enle consagrado
a esta questão.

53. Fu nd ad o no fim do século X I X por C h a rle s M a u rra s, este m ovim ento mo-
n arq uista exerceu uma in flu en cia co n sid erável sobre a vida política e inte­
lectual francesa até a segunda G u e rra M u n d ia l. O s íascícu lo s chamam-se
R o m e et l'A c tio n fra n çaise. P a ris , É d . R ég io n alcs, 1927

54. T e x to de 1769. reproduzido no A' V I U * S iè c le . de A . i.agarde e I . Mi-


chard. Bo rdas. 1965. p. 184. O irm ão C u c u fin foi realm ente canonizado em
1766.

109
ss I mi seu artigo " líis c o u rs b ih liq u c. discours polilique chc/ H cine tradilion
ou su bvctsio n” (A l o ls . n ." 2. M a rço , 1981. p. A5-5<>). A . (ir c s illo n c M
W crn e r m ostram com o um au to r, pertencente à mesma trad ição política de
V o lta ire . o scila entie a captação e subversão do discurso religioso : scra
necessário tra n sfo rm a i o discurso lib eral na nova Bíblia ou subvertei o dis
curso bíblico?

'b bste problem a é desenvolvido m ais sislem aticam enie em nosso liv ro (,V«< >
./// ./ h in ifi v i ap "*

I 10
2.

DO DISCURSO AO IN TERD ISCU RSO

No capítulo anterior, examinamos algumas formas que podem ser


mobilizadas por um discurso para marcar sua relação com o que ele
considera seu “exterior''. Entretanto, não é suficiente identificar di­
versas formas de rompimento no tecido de uma formação discursiva,
pois é também em um nível constitutivo que esta se relaciona com o
interdiscurso. Não sc trata, contudo, de absorver os discursos cm al­
gum interdiscurso indiferenciado, mas de avançar na reflexão sobre a
identidade discutsiva.

As recentes pesquisas sobre o texto giram constantemente cm torno


desta questão. Pode-se ler aí uma reação frente ao estruturalismo, cuja
tendência era fechar os discursos sobre eles mesmos. No domínio da
semiótica literária, por exemplo, vc-sc Gérard Gcnctte colocar em
primeiro plano o que chama de ''arquitextualidade", ou seja. relações
intertextuais1 e interessar-se particularmente pelos fenômenos de "hi-
pcrtextualidade". isto é, por “ toda relação que une um texto II (hiper­
texto) a um texto anterior A (hipotexto) sobre o qual se implanta de
modo diverso ao do comentário'". Atesta igualmente este movimento,
a descoberta dos trabalhos do "círculo de M. Bakhtin que fazem do
“dialogismo", da relação com o Outro, o fundamento de toda discur-
sividade e recusam-se a considerar a constituição dos falantes indepen
dentemente deste dialogismo generalizado.

Mas afirmar o primado do interdiscurso sobre o discurso constitui


uma tomada de posição cujas implicações, finalmente, permanecem
muito pouco especificadas. A priori, pode haver várias formas de pri
vilegiar o interdiscurso c não sc deve esperar que todas as abordagens
sejam semelhantes. Se elas convergem, é essencialmente pelo fato de
que sc opõem a uma certa concepção do discurso que prevalecia na
Al) anterior. Nns páginas que seguem, deter-nos-emos sobre duas destas
abordagens, muito diferentes, eoino se verá, tanto em suas formula
ções. c o m o em seus objetivos

A UlilM DF FORMULAÇúl S

Começaremos por lembrar a pesquisa de |. |. Courtine, que pre


sume uma reflexão sobre a identidade das formações discursivas 1
Em um artigo escrito com ). |. Marandin ele critica a vontade de
“ apreensão do idêntico” que animava a Al). De fato. considerando-se
o método mais utilizado, a análise impropriamente chamada de “ liar
risiana ' este pode ser lido, em cada uma de suas etapas, como
um projeto de eliminação sistemática de toda forma de heierogencidade

1) supõe a existência de um discurso homogêneo e sobre esta


base constitui um corpus tão exaustivo quanto possível;

2) extrai deste corpus sequências organizadas em torno de unida


des lexicais-pivôs. o que torna o corpus ainda mais homogêneo,

3) por fim, retorça esta homogeneidade, reduzindo a diversidade


das estruturas sintáticas a esquemas elementares (uma construção en
fática, por exemplo, será transformada em uma estrutura “ neutra").

I.sta liltrageni tríplice desemboca no que os autores chamam de


“ malogro da heterogeneidade” . que vem acompanhada por uma inter­
pretação inadequada da noção de formação discursiva. De falo, uma
formaçao discursiva não deve ser concebida como um bloco compacto
que sc oporia a outros (o discurso comunista contra o discurso demo
crata-cristão, por exemplo), mas como uma realidade "heterogênea poi
si mesma” :

" O lechamenio de uma formação discursiva é fundamental


mente instável, não se constituindo em um limite que, por sei
traçado de modo definitivo, separa um interior e um exterior, mas
inscrevendo-se entre diversas formações discursivas, como uniu
fron teira qu e se desloca em função dos embates da lula ideoló­
gica 7".

1 12
O que está em questionamento aqui é exatamente a relação com
o interdiscurso; é precise definir uma formação discursiva a partir de
seu interdiscurso, e não o contrário:

" O interdiscurso consiste em um processo de rcconfiguração


incessante no qual uma formação discursiva é levada ( . . . ) a
incorporar eiementes pré-construídos, produzidos fora dela, com
eles provocando sua redefinição e redirecionamento. suscitando,
igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para orga­
nizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o
apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determi­
nados elementos

Como se vê, contrariamente às representações espontâneas dos


sujeitos, a formação discursiva aparece como o lugar de um trabalho
no interdiscurso; ela é um domínio “ inconsistente”, aberto e instável,
e não a projeção, a expressão estabilizada da “ visão do mundo” de
um grupo social.

Nesta perspectiva, revelam-se errôneas as duas concepções mais


correntes da relação entre discurso e interdiscurso:

— a mais imediata, que consiste em considerar o discurso como


um objeto isolado, ao mesmo tempo “ idêntico a si próprio e contradi­
tório, em sua totalidade, face a um exterior não especificado8” ;

— a que se fundamenta sobre as individuações dos grupos sociais,


graças ao contraste entre seus discursos. Tiata-sc, neste caso. do “es­
tabelecimento de diferenças, de aproximações ou de afastamentos entre
conjuntos de discursos cuja individuação é postulada previamente
A esta concepção que afirma implicitamente a existência prévia de
contrários individuados na relação contraditória, deve-se preferir aquela
que coloca o primado da contradição, que une e divide ao mesmo
tempo os discursos, que faz da própria individuação um processo
contraditório.

Assim, ao estudar "o discurso comunista dirigido aos cristãos”,


Courtine põe em discussão a conformidade com a adoção do hábito
de construir corpus em sincronia. Uma investigação desta natureza não
deixa de ter seus inconvenientes: se todo discurso mantém uma relação
essencial com os elementos pré construídos (ou seja, produzidos em

II>
oui' ■ *!v icm y 1' nntcrioies a ele e independeu: •mciile dele " " ) , cond
dcranJü apenas a sincronia, a presença do inierdiscurso no discurso
é inevitavelmente apagada.

Ilustremos este aspeeio, examnuuido uni; eelaraçãi d.j secreta; >"


geral Io 1’a itid " Coinmo "t francês

( I > "'■ 'ossa pc1 - a com tração a<" tãos tu c. cm •"!


soluto. uma tática de circunstância, trai < «e de uma política de
princípio" t( í . Matclvis para o jornal i r tro ix . de i ‘ : i / W :

Além d is elos q estabelece com s c . contexto imediato, ui


enunciado d'"t;< natureza mantem idações c r ’ outros emueiados p r
t”'V'mtes à ura fo i"’ " m discur iva; ele ■ •■ ontra-sc em uma o de
iia oliscursi. a 'vertical de formulação do po:

“ I’ •■ ■ •ueçaratr acusar-tv>s. de 1 a pouco ••Ipinal d'


num obnt■ . nganar, ■ Ir com duplicidade' I Tliorcv. oul., 1 9 ' "t

"I7. • boje i urnamos nossa prel *••• de I'- > ’. é poi- o


não se datava, eiit.í ', como alguns prv idem. de um ardil, de
tuna tátu a ocasiona1, tuas de uma posiç política : ei fcilan v te
de acordo wOm nossu doutrina, o marxismo-ieninismo ’ ívVald^ k
Rochet, 11/12/1944).

"Para nós, a união não c uma tática ocasional, uma mano


bra ligada à conjuntura. A luta pela união constitui uma constante.
um pritteípio da política de nosso partido" (XXI Congresso do
PCF, 2 4 / 1 0 /1 9 7 4 )

As recorrências que esta série mostra permitem considerar estas


formulações como “ uma reformulação possível de qualquer outra for
mulação que pertença à rede 12".

Mas o enunciado (I) não constitui um núcleo exclusivo desta


rede; a negação polêmica revela que ele se inscreve em uma outra
rede simétrica, a do discurso dos cristãos que denunciam como ardil
a mão estendida dos comunistas. De Forma mais geral, a toda formação
discursiva é associada uma m em ória discursiva, constituída dc formu­
lações que repetem, recusam e transformam outras formulações. “ Me­
mória” não psicológica que é presumida pelo enunciado enquanto
inscrito :ia história.

lótns séries. <!c que acabamos dc examinar um exemplo, são cha­


madas por Courtine de redes d e form ulações: a invariante destas
repetições é chamada dc enunciado: a “ rede'' coriesponde, pois. às
diferentes formulações possíveis do “ enunciado'’ no interdiscurso. U
conjunto de redes associadas, desta forma, a uma formação discursiva
representa “o processo discursivo inerente a esta formação discursiva
Como a referência dos objetos do discurso estabiliza-se nestas redes
de formulações, sob a forma de pré-construídos, é também neste nível
que 'ntervém a instância do sujeito universal (específico a uma foi -
mação discursiva), “referindo ao lugar dc onde é possível enunciar:
cada um sabe/vê/diz./comprcende q u e . . . ”. Dito de outra forma, o
interdiscurso domina cada formulação rarticular. fixa o que cia fala e
o suj ito que a garante.

'sshn, toda formulação estaria colocada, de alguma forma, na in­


terstício dc d e s eixos: o “ vertical", do pré-construído. do dom ínio
d e rn.m ória e c “ horizontal”, da linearidade do discurso, que oculta o
primeiro eixo, já que o sujeito enunciador é produzido como se inte­
riorizasse de forma ilusória o pré-construído que sua formação dis­
cursiva impõe. O "domínio de memória” representa o interdiscurso
como instância d e construção de um discurso transverso que regula,
tanto o modo dc doação dos objetos de que fala o discurso para um
sujeito enunciador, quanto o modo dc articulação destes o b jetos11.
A intervenção deste interdiscurso se revela particularmente nas nomi
nalizaçõcs, graças às quais uma formulação já assertada vem encaixai
se como pré-construído:3*1

(1) “os comunistas são materialistas” —•> (2) “ [o materialismo


dos comunistas = (1)] está longe da fé religiosa dos católicos" —*
(3) “ Pois bem, podemos perfeitamente trabalhar em conjunto, apesai
de [nossas divergências filosóficas = ( 2 ) ] ” . . . Há aí um efeito de
encadeamcnto; os objetos p his quais a enunciação se responsabiliza
adquirem uma estabilida^ icncial através do domínio de memória.
No discurso comunista. igma nominal como a classe operária.

I 1’
par exemplo, pertence ;io domínio de memória, eom as predicações que
autoriza e os termos pelos quais pode sei substituído

A este domínio de memória Couilinc associa duas outras instân­


cias: o d om ín io de atualidade (aquele das seqüências que, cm torno
de um acontecimento, se refutam, se apoiam, cie., em uma conjuntura
definida) e o iluminio de an tecipação (isto c, enunciações posteriores
que são antecipadas pelo discurso), liste último domínio consequente­
mente tornou-se necessário porque “ se n discurso jti existe sempre.
pode-se acrescentar que ele existirá sem pre ainda" e que as formula­
ções discursivas consideram esta dimensão

UNI Vii USO. C AM l’Ü, bSIVXCl) DISCURSIVOS

Ate o presente momento, não especificamos muito a noção de


micrdiscurso. N;t sequência da exposição será necessário precisá-la
melhor e recorrer a três outros termos complementares: universo dis­
cursivo, campo discursivo c espaço discursivo

Lmende-se por "universo discursivo" o conjunto de formações


discursivas de todos os tipos que coexistem, ou melhor, interagem em
uma conjuntura. Ksie conjunto é necesariainente finito, mas irrepre
senlável. jamais concebível em su;i totalidade pela Al). Ouando uma
tal noção é utilizada, é essencialmenie para tií recortar os "campos dis
cursivos" Ida corresponde aproximadamente ao que ). M. Marandin
relormulando um termo de boucault, chama de ‘'arquivo":

O conjunto de enunciados constitui o arquivo de uma época.


Hste conjunto não é a coleção de um espaço homogêneo (o es
pírilo de uma época, um estado de cultura ou de civilização), de
tudo que foi dito, de tudo o que se diz, mas um conjunto de
regiões heterogêneas de enunciados produzidos por práticas dis
cursivas irredutíveis lu”

O "campo discursivo" é definível como um conjunto de forma


ções discursivas que se encontram em relação de concorrência, em
sentido amplo, e se delimitam, pois, por uma posição enuncialiva em
uma dada região. () recorte de tais campos deve decorrer de hipóteses

I 10
explícitas e não de uma partição espontânea do universo discursivo.
Certamente, a tradição legou um certo número de etiquetas (campos
discursivos religioso, político, literário, etc.), mas estas são grades
extremamente grosseiras, de pouco interesse para a AD, que é obrigada
a considerar múltiplos parâmetros para construir campos pertinentes.

Q “espaço discursivo”, enfim, delimita um subconjunto do campo


discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-
se, mantêm relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos
discursos considerados. Este é, pois, definido a partir de uma decisão
do analista, em função dc seus objetivos de pesquisa. Não é por sim­
ples comodidade que determinados subconjuntos são recortados (por­
que seria difícil apreender um campo discursivo em sua totalidade),
mas também e sobretudo porqu e uma fo rm a çã o discursiva dada não se
o p õ e de form a sem elhante a todas as outras qu e partilham seu cam po:
certas oposições são fundamentais, outras não desempenham direta-
mente um papel essencial na constituição e preservação du formação
discursiva considerada.

Além disso, os fenômenos de "intertexlualidade externa” , tratados


no primeiro capítulo, aí estão a lembrar-nos que nenhum campo dis­
cursivo existe isoladamente, havendo intensa circulação de uma icgiào
a outra do universo discursivo. Os caminhos percorridos por esta
circulação não possuem, entretanto, nenhuma estabilidade; dependen­
do dos discursos e das conjunturas visadas, estabeleeer-se-ão intercâm­
bios muito diferentes. Como já foi visto, o discurso humanista devoto
recorria aos escritos dos naturalistas; a linguística do século X IX apoia­
va-se constantemente na biologia; o discurso político contemporâneo,
em um saber econômico. . . Estas não são relações evidentes, tornando
se necessário justificá-las a cada vez.

Este estudo das trocas entre campos desemboca imediatameme


sobre a questão da eficácia dos discursos, sobre sua aptidão em sus­
citar a adesão de um conjunto de sujeitos. Essa rede de remissões de
um campo para outro (citações explícitas, esquemas tácitos ou capta­
ç õ e s . . . ) contribui bastante para essa eficácia: confrontado com um
discurso de certo campo, um sujeito encontra elementos elaborados
em outro lugar, os quais, intervindo sub-repticiamente, criam um efeito
de evidência. Assiste-se a uma “ metáfora” , a uma transposição genera­
lizada de um campo a outro (mas não de qualquer campo para não
importa qual outro), sem que seja possível definir um lugar de ori-
gem, em sentido “ próprio"; simplesmente, porque a própria questão
da origem não é pertinente neste caso. Este é o gênero de fenômenos
interdiscursivos que o livro de M. Eoucaull /l.s palavras e as coisas
tenta conceitualizar, procurando uma invariante entre diversas disei-
plinas contemporâneas. Foucault, sem dúvida, enganou-se ao conceber
monoliticamente estas disciplinas (que não estavam integradas a cam­
pos contraditórios) c ao interpretar as invarianles em termos de “ visão
do mundo”, mas a pertinência de seu pressuposto interdiscursivo é
indubitável.

Em geral, os analistas do discurso não se interessam muito em


estudar estas relações entre campos e se mantém nos limites de um
campo determinado. Esta restrição não tem fundamento, mas é com
preensível cm pesquisadores que temem cair na especulação. l)a mesma
lorma, não é de surpreender que os trabalhos mais notáveis neste
domínio venham de filósofos, cujo ponto de vista não coincide de
forma alguma com o da AD. Acabamos de lembrar o nome de Mi
chel foucault, mas poderiamos associá-lo ao de Michel Serres, que
fez desta circulação generalizada entre os campos um dos temas ca
pitais de sua obra 17

Comparando-se os procedimentos destes dois autores, c possível


perceber que esta questão oscila inevitavelmente entre dois extremos.
Em M. Serres, todos os trajetos entre uma região e outra de uma área
cultural parecem possíveis (um exemplo disso é o isomorfismo que o
autor estabelece entre uma fábula de I a Eontaine e o método carlcsia-
no 'D, recusando-se o filósofo a fazer a menor imposição a estes rela­
cionamentos. Em compensação, M. Foucault, em A A rqueologia do
Saber, criticando neste sentido As palavras e as coisas, declara que
sua análise comparativa “ não se destina a reduzir a diversidade dos
discursos c a desenhar a unidade que deve totalizá-los", mas a “re­
partir sua diversidade em figuras diferentes", de forma a obter "um
efeito multiplicador" A AD. à medida que não se preocupa prio
ritariamente cm se situar no espaço filosófico, mas se interessa poi
funcionamentos discursivos, não é tentada a adotar uma posição tão
definitiva. Ela não pretende reduzir à unidade todas as formações
discursivas de uma conjuntura, definindo uma invariante universal,
nem visa a multiplicar infinitamente c sem hierarquia as relações
entre os campos. Em um dado momento, uma formação discursiva
é associável a certos trajetos interdiscursivos e não a outros, e isto faz
parle integrante d e siw especificidade.

I 18
UMA INTERINCOMPRPENSÃO CONS1 ITIJTIV \

Abordaremos agora este problema da interdiscursividadc consti­


tutiva, apresentando alguns aspectos de uma pesquisa pessoal A
diferença mais marcante entre esta abordagem c a que acabamos de
examinar decorre dos quadros teóricos a que fazem referência. O
estabelecimento de “ redes de formulações" permanece na órbita da
“ análise automática do discurso" de Pêehcux e constrói seu corpus
no interior do discurso político; c preciso definir classes de seqücncias
em relação parafrástica. F.m compensação, nosso trabalho incide sobre
o discurso religioso e propõe um sistema de operações semânticas que
pretende dar conta das diversas dimensões da discursividade. ou me­
lhor, da interdiscursividade.

Poder-se-ia, em uma perspectiva “ecumênica", considerar que a


distinção entre estas duas abordagens resulta de uma divisão tipoló-
gica: para uma, o discurso político, para a outra, o discurso religioso.
Poder-se-ia, igualmente, considerá-las complementares por um ou ou­
tro viés, mas é preciso não se enganar. Com certeza, os objetos c os
propósitos destas duns abordagens são nitidamente divergente? mas
isto não basta para justificar a distância que as separa. F.xiste. inega­
velmente, um fo«so entre elas e isto suscita uma pergunta importante
sobre a unidade da AD; deve-se procurar definir uma semântica de
operações abstratas para sobre elas articular o conjunto do discurso?
Deve-se, ao contrário, fundamentar a abordagem sobre procedimentos
de análise morfo-sintática e lexical associados ao estudo dos fenôme­
nos enunciativos? Fm que medida estes dois procedimentos são com­
patíveis? É difícil responder, por enquanto, a tais interrogações. Uma
coisa é certa, entretanto: a AD, bem como a totalidade do campo
linguístico aliás, apenas pode fazer coexistir de forma conflitante teorias
com pressupostos teóricos e metodológicos diversos, voltados preferen­
cialmente para este ou aquele tipo de corpus. Compreende-se que.
segundo a teoria considerada, a primazia do interdiscurso. por exem­
plo, corresponderá a procedimentos muito diferentes.

Naquela que seguimos, sustentar que o espaço pertinente para as


regras é da ordem interdiscursiva consiste cm propor ao analista o
interdiscurso como objeto e jazê-lo apreender, d e im ediato, não uma
form açã o discursiva, mas a interação entre fo rm ações discursivas.
Isto implica que a identidade discursiva está construída na relação
com u Outro. Não se distmguira. pois. cluas parles em um "espado dis
cursivo", a saber, as formações discursivas por um lado, e suas rela
ções por outro, mas entender-se a que Iodos os elementos são retinidos
da imerdiseursividade. Mesmo na ausência de qualquer marca de
heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido, qualquer que seja
seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com uma outra,
aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela
deriva define sua identidade. I felivamente,'a partit do momento em
que as articulações fundamentais são instituídas nesta relação inter-
discursiva. toda unidade que se desenvolverá de acordo com elas se
encontrará ipso fneto na mesma situação Um enunciado de uma for­
mação discursiva pode, pois. sei lido em seu "direito" e em seu
"avesso"; cm uma face, significa que pertence a seu próprio discurso,
na outra, marea a distância constitutiva que o separa cie um ou vários
discursos. Nesta perspectiva, as eternas polêmicas em qtte as formações
discursivas estão envolvidas não surgem de forma contingente do ev
terior. mas são a atualização de um processo de delimitação recíproca,
localizado 11a própria raiz dos discursos considerados. Diz.er que a
imerdiseursividade ê constitutiva é também dizer que um discurso não
nasce, como geralmente é pretendido, de algum retorno ás próprias
coisas, ao bom senso, etc., ma\ d e um trabalho sabre outros discursos.

bsta interação entre dois discursos em posição de delimitação


recíproca pode ser compreendida como um processo de “ tradução”
generalizada, ligada a uma " inierinconiprecnsão" Tradução de um
tipo bem particular, entretanto, pois ela opera, não de uma língua
natural para outra, mas de uma formação discursiva á outra, isto é.
entre zonas da mesma língua. Isto faz justiça à linguagem comum, que
lembra preeisamente certos “ diálogos de surdos” entre protagonistas
que, no interior do mesmo idioma, "não falam a mesma língua" As­
sim. quando uma formação discursiva faz. penetrar seu Outro em seu
próprio interior, por exemplo, sob a forma de uma citação, ela está
apenas "traduzindo” o enunciado deste Outro, interpretando-o através
de suas próprias categorias. Num espaço discursivo considerado, o
sentido não é algo estável, que podería ser relacionado u uma posição
absoluta, mas se constrói no intervalo entre as posições cnunciativas
A “ incompreensão", resultante do mal-entendido e do malogro oca­
sionais, se transforma em “ imerincompreensão" porque obedece a re­
gras e estas regras são as m esm as qu e definem a identidade das
form ações discursivas con sideradas. Dito de outra forma, o sentido aqui
é um mal-entendido sistemático e constitutivo do espaço discursivo

120
Mas esta interincompreensão, que determina que se deve falar e não se
deve compreender, posmi uma vertente positiva; se ela proíbe que um
mesmo sentido circule de um sujeito para o outro, ela também pos­
sibilita que os sujeitos partilhem o mesmo discurso, “ falem da mesma
coisa” .

Estas afirmações, algo especulativas neste momento, foram ilus­


tradas pelo estudo do espaço discursivo que, de acordo com nossas
hipóteses, os discursos humanista devoto e jansenista definem. Em
nosso entender, o segundo constitui-se a partir de uma série de ope­
rações sobre o primeiro, sua estrutura, sendo, pois, decorrência da
rejeição da estrutura do discurso humanista devoto. Este não é o
lugar para apresentar detalhadamente os processos semânticos que
atuam neste espaço discursivo. Vamos simplesmente lembrar um exem­
plo capaz de mostrar a divergência dos dois sistemas semânticos. O
discurso humanista devoto, como já vimos, tem por objetivo constante
integrar os elementos em totalidades organizadas cujos componentes
são diversificados e complementares (“ordens”), recusando, assim, as
formas de individualização e de ruptura; nele, por exemplo, o cristão,
isoladamente, jamais será considerado de forma positiva, mas será con
cebido como um ser inserido no cosmo, em sociedade, em uma família,
numa comunidade, etc. Da mesma forma, este discurso não marcará
descontinuidade irredutível entre o homem natural e o cristão: estes
são para ele dois graus positivos de uma escala ascendente da qual
Deus seria o ápice. O trabalho do discurso jansenista, em compensa­
ção, consiste justamente em destruir estas totalidades de propósitos
integradores: partindo de um ideal de “ concentração” e de disjunção,
estas totalidades são substituídas por pontos privilegiados e a integra­
ção, por linhas de ruptura. L.á onde o humanismo devoto propunha
um cristão inscrito ein grupos, ele propõe uma consciência solitária;
onde havia uma gradação positiva entre a natureza e o cristianismo, ele
introduz uma separação para opor natureza e sobrenatureza. Em termos
de “ tradução” e de “ interincompreensão” , isto implica que o cristão do
humanismo devoto será traduzido pelo jansenismo como uma mistura
de dois registros onde apenas a oposição é considerada válida. Inver-
sainente, o humanismo devoto lerá nesta oposição uma dissociação
entre elementos de sentido que, ao contrário, deveríam estai' associa­
dos: neste caso, a categoria negativa, por excelência, será não a mistu­
ra, mas a dissociação de totalidades, de “ordens" que são consideradas
naturais.

121
A RI I AÇÃO POI f-MICA

Este processo de duplas traduções permite-nos aprofundar o me


eanismo polêmico. Cada uma das formações discursivas do espaço
discursivo só pode traduzir como "negativas", inaceitáveis, as unidades
de sentido construídas por seu Outro, pois é através desta rejeição
que cada uma define sua identidade. Uma formação discursiva opõe
dois conjuntos de categorias semânticas, as reivindicadas (ciiamemo-las
de "positivas”) e as recusadas (as "negativas"). Note se que ela pro
jeta as unidades "positivas" deste Outro sobre as categorias de seu
próprio sistema: para preservar sua identidade, o discurso só p od e
relacionar-se com o Outro do espaço discursivo através do simulacro
que d ele constrói. Chamaremos discurso agente aquele que se encontra
em posição de “ tradutor", de construtor tio simulacro, e discurso
paciente aquele que desta forma é traduzido, lista noção de discurso
agente remete a um único papel: em uma polêmica, os papéis de agente
e paciente se alternam conslantemenie.

Esta representação da polêmica não pressupõe que a própria noção


de oposição entre duas formações discursivas seja unívoca. Ao con­
trário. ela pode recobrir relações diversas, pois. em um discurso, não
existe relação com o O utro que seja independente d e sua própria
organização sem ântica■ Não existe, pois. polêmica “cm si" que possa
ser abstraída dos discursos considerados: o discurso constrói, em um
mesmo movimento, sua identidade c sua relação com os discursos, os
quais lhe permitem estabelecê-la. Parece que, enquanto certas forma­
ções discursivas se desenvolvem, mantendo certa indiferença em relação
àquelas que compartilham o mesmo campo, outras estão constante­
mente envolvidas cm controvérsias. Não se deve concluir, entretanto,
que seja preciso distinguir entre formações discursivas que necessitam
confrontar-se com suas concorrentes e outras que se desenvolvem iso­
ladamente. Na realidade, se a inlerdiscursividade é constitutiva, uma
tal distinção só poderia ser ilusória: se um discurso parece indiferente
à presença de outros, é porqu e, sem anticam ente. lltc é crucial denegar
o cam po do qual d ep en d e e não porqu e poderia desenvolver-se jora
dele.

Isto se torna bem claro, ao considerar-se o exemplo de espaço


discursivo sobre o qual nos apoiamos. Enquanto o discurso jansenista
mostra-se quase sempre polêmico e intransigente, o discurso humanista

122
devotu parece muito menos preocupado cm atacar os outros, passando
mesmo por tolerante. F.sta disparidade é melhor explicada se for com­
preendido, que, para a semântica humanista devota, o ideal seria
fazer do discurso jansenista uma espécie, entre outras, de devoção,
austera no caso, cabendo ao cristianismo integrar estas diversas de­
voções de uma totalidade harmoniosa (uma "ordem"). Nesta pers­
pectiva, os partidários da austeridade são aceitos, participam da ordem
universal, mas com a condição de não serem mais do que um dos
componentes e de não reivindicarem o monopólio enunciativo. Este
esforço de integração do Outro, ou melhor de seu simulacro, fracas­
sou. já que o discurso jansenista constituiu-se precisamente ao rejeitar
esta semântica integradora, substituindo a por um sistema de disjunções
radicais. Construído sobre a disjunção, o discurso jansenista só pode
desenvolver-se em um conflito incessante destinado a atribuir no Outro
a posição negativa cm seu próprio sistema. Para o analista do discurso
esta dissimetria entre os dois pólos do espaço discursivo não implica
como conseqiiência que a relação com o intcrdiscurso seja menos es­
sencial, tanto num caso quanto no outro.

Mas não haveria algum perigo cm diluir dessa forma a diferença


usual entre polêmico e não-polêmico. cm proveito de uma intcrdiscur-
sividade generalizada? Certamente, tratam-se de relações semânticas
fundamentais que explicam as causas da "polêmica", ou seja. as con­
trovérsias explícitas, cm seu sentido usual, mas esta não c uma razão
suficiente para negligenciar as diferenças entre textos que explicitam
seus antagonismos e outros que não o fazem. Tomar um discurso à
parte, considerá-lo como adversário, responder a um ataque (supondo-
se que seja possível saber quem começou. . .) são gestos que têm
conseqüências consideráveis c não podemos negligenciar sua eficácia.
Também é preferível distinguir dois nívies de apreensão: o dialogisino
constitutivo e o dialogismo mostrado do qual o diálogo polêmico seria
uma das modalidades21, ü primeiro define as condições de possibili­
dade de uma formação discursiva no interior de um espaço discursivo,
enquanto o segundo diz respeito à inlerdiscursividade manifestada.

O estudo do dialogismo polêmico mostrado pode ser de grande


interesse para a AD, não apenas pela maneira como os diferentes
discursos o praticam, mas ainda por levar em conta assuntos de con­
trovérsia. Sc é o próprio universo semântico do Outro que c rejeitado,
a priori qualquer um de seus enunciados pode ser questionado: entre­
tanto, a lista de assuntos efetivamente debatidos parece muito limitada

I?-,
sc Ioi comparada com a lisia dos debates possíveis: as controvérsias
giram, em geral, obstinadamente, em torno de alguns pontos, deixando
na sombra zonas imensas. I- difícil de aí não perceber pontos-chave.
do mesmo modo como se fala de palavras-chave, que constituem outras
tantas \ias privilegiadas de acesso ao dialogismo constitutivo. Mas.
precisamente, os assuntos de controvérsia são previamente levantados
em dois domínios: as zonas que já foram objeto de ataques e aquelas
que ainda não foram debatidas. No primeiro domínio, o discurso liltra,
entre os enunciados contra ele dirigidos, os tenras aos quais lhe parece
impossível não responder; no segundo, ele mesmo define pontos que
no conjunto dos textos do adversário, lhe parecem particulurmenie im
porlantes. De tun lado conto rio outro, o analista postula que as
‘‘escolhas'’ são reveladoras e permitem invalidar ou corroborar
hipóteses.

I. pteeiso também não reproduzir aqui o erro que cometem as


análises lexicais fora de contexto. Assim como em um discurso não é
tanto a palavra que importa, mas a maneira como é explorada, da
mesma forma, um ponto em debate não poderia ser dissociado do
modo como este debate é tecido. Além disso, aqui tampouco dcve-sc
reduzir o discurso a uma doutrina: cm uma polemica, todas as dimen
sões da discursividade podem estar implicadas (a querela pode incidir
sobre o etlros. a intertextualidade, a deixis, etc.)

A polêmica não se instaura de imediato; ela sé) se legitima ao


aparecer como a repetição de uma série de outras que definem a
própria "memória polêmica" de uma formação discursiva. Considere
mos as poucas linhas que seguem de um airsu de mural para proles
sores pi imários da III República;

"Lslaremos com Michel de I'Hospital contra os fanáticos


com Pascal contra os jesuítas, com Descartes, Montesquicu, Vol
l.iire, Condorcel. d’Alemben e os lilósofos contra o autoritarismo
e o arbitrário? listaremos com a Revolução, com Madame de
Stael contra a estupidez e a brutalidade dos gov ernos reacionários
com Victor Hugo, Michelet, Ouinel contra o crime

A lormaçào discursiva de onde deriva este texto inscreve clara-


mente sua enuneiaçáo polêmica em uma sequência de outros textos,
que remete a um eterno Condito de arquétipos Os exemplos t os
modelos) lembrados só são levaniados às cusias de uma manobra dis­
cursiva, pois a priori são suscetíveis das mais variadas explorações:
a luta de Pascal contia os jesuítas, como vimos, pode ser reivindicada
pela Ação francesa, que, entretanto, se encontrava na outra extremidade
do tabuleiro político. As diversas memórias polêmicas recorrem a um
tesouro cujas linhas de partilha são incessantemente deslocadas. Quan­
do um discurso novo emerge, ele faz emergir com ele uma redisti ibuição
destas memórias.

Mas um discurso supõe mais que uma memória das controvérsias


que lhe são exteriores; h medida que aumenta o corpus de suas pró­
prias enunciações, com o passar do tempo e com a sucessão das ge­
rações de enunciadores, vê-se desenvolver uma memória polêmica
interna. Dessa forma, o discurso é mobilizado por duas tradições: a
que o funda e a que ele mesmo, pouco a pouco, instaura. Ao cabo de
um certo tempo, é inevitável que parte da tradição interna atinja o
mesmo estatuto da primeira, ganhando a "autoridade” necessária para
as produções de seus enunciadores.

Quando a polêmica é considerada desta forma, tende-se a privi­


legiar as descontinuidades entre os protagonistas do debate, ou seja.
aceita-se o ponto de vista que estes últimos adotam espontaneamente,
esquecendo, entretanto, que as semelhanças levam ampla vantagem
sobre as diferenças. O exercício tia polêmica presume a partilha do
mesmo campo discursivo e das leis que lhe estão associadas. I;. preciso
desqualificar o adversário, custe o que custar, porque ele é constituído
exatamente do Mesmo que nós. mas deformado, invertido, conse­
quentemente, insuportável. C. Perelman, em seus trabalhos sobre a
retórica, insistiu com muita propriedade sobre o falo de que a decisão
de procurar persuadir um público, de argumentar em lugar de usar
de violência ou de nada dizer, já constitui um ato absolulamente sig­
nificativo, que supõe o reconhecimento do outio como alter e a
existência de um terreno de entendimento. Com a polêmica não é
diferente. F.la supõe um contrato entre os adversários e. com ele, a
idéia de que existe um código transcendente, reconhecido pelos mem­
bros do campo (os protagonistas do debate bem como o público), o
que permite decidir entre o justo e o injusto. Que se trate de bom
senso, de partido, de justiça, do interesse do país, etc., deve existir
um referencial comum que legitime a figura de algum tribunal supremo.

, ------ ------------------------- — ----------------------- \25


| b ib l io t e c a s e t o r ia l ob bducac*o f
Infclizmenlo. cada lonmição discursiva está destinada a apropriar-se
deste tribunal, do qual constrói uma representação correspondente a
seu próprio universo de sentido

1 U é ra ril (ic n e llc . I n t r o d u c iio n à Í< o elu le\ ie. Paris | (- S c u il. 1979

2 P t d im p s e s n P a ris. l e S e n il. 19X1. n II

3 Ver p articu larm en le a antologia apresentada pm | f o jo r o v Uikluu.

IluU ilim . le p rín cip e d ialo g iq u c. Pai is. l e Senil. I9 X |

4 O essencial encontra-se no n .° í'2 de Ixin gaves. jnnlto. 19X1, "A n a lyse iln
discours p o liliq n c ". in le ira m e n le dedicado ao trab alho de ( o n ilin e

S. 'Ouel objet ponr 1'analvse du discours1" . in M aiérin lilés discursu es. p


21-33.

6 V e r h u ii o t io / i u n x m c l h o d e s </<’ V n n a lx se d u d is c o t o i. p. (.6 77. Retom am os


esle aspecto na p ie se n lc o b ra. em I I I . I

7 Op. cit.. p. 21

X Ibidem

7 I. o u p a g es . n ." f>2. p. 2 l).

10 Op. c it., p. 31

I 1 Op. c it.. p. 2X.

12. O p. c it.. p 4f>.

13 Op c it., p s(j

14 Op. cil . p 5(3

15 K n co n lrar sc-á uma ap resentação mais detalhada cm nosso liv ro ( l e i i c s e i


tln d iscou rs. cap. I .

|f>. Itm gagcs. n ." 55. 1979, p. 4X.

17. Particularm ente na série de trabalhos publicados pelas Pd itio ns de M in tiil.


sob os títulos da l l e i m è s I. II. III. II e I' entre 19(39 c 19X0

I X . H e r m e s II . Ia D ix t r ib u liim . 1977. p. 89 e seguintes.

19 I Art h éttlo g ic du S o e o ir . p. 209.

20. Para uma apresentação d e talhad a do modelo veja S è m a n l i q t t e d e Io p o l e ­


m iq u e c , para uma re fle x ã o tc ó iic a mais aprofundada, c o n fira ( i e n è s e s d u
d is c o u r s .

21 O termo "d ialo g ism o " fo i. cvidenteincntc. «<'•" 'do em prestado de Bakhtin

22 tules Pavot. ( o u r s tle m o n d e , A rm an d t < Ux, p ]77 17X.

12 b
T E R C E IR A P A R T E
AS PALAVRAS DO DISCURSO
Qualquer que seja a questão dominante da AD, nela o estudo do
léxieo ocupa um lugar importante. Mesmo que se entenda que, em
sua fase inieial, a AI) tenha atribuído um espaço exeessivamente am­
plo às palavras, isto não significa que seja necessário negligencia las
agora, mesmo que seja apenas em função do papel privilegiado que elas
ocupam na consciência dos locutores. Para estes últimos, a identificação
das formações discursivas passa frequentemente pela descoberta das
palavras características, objetos de amor ou de ódio. Por mais que o
analista afirme que o essencial não é a unidade lexical, mas as pro­
posições e, além delas, o texto no qual ela intervém, nem por isto esta
unidade perde seu estatuto singular.

Se forem considerados os estudos clciivamcnlc realizados em Al)


no domínio lexical, pode-se, muito esquematicamente, dividi-los em
três conjuntos:

1) No primeiro, serão classificados os estudos que, embora lilian


do-se à AD, se inscrevem, sob o ponto de vista metodológico, no
prolongamento da filologia tradicional, liste tipo de trabalho ("a pa
lavra X em tal corpos”) recorre quase exclusivamente à análise dos
contextos de ocorrência, fazendo intervir parâmetros de diferentes or
Jens: não só os eo-oeorrenles, certamente, mas também a cronologia,
o tipo de discurso considerado, a situação de enunciaçáo, o interdis
curso, etc. Km virtude da flexibilidade de tal procedimento, essencial­
mente é o talento do analista e seu conhecimento do discurso que
asseguram sua eficácia

2) Km segundo lugar, serão considerados os trabalhos cuja in­


tenção não é tanto estudar as variações semânticas de um termo, mas
o modo pelo qual este termo se constitui como parte integrante de
um dispositivo complexo, o da produção de um determinado texto
Como cm qualquer explicação de texto, trata-se, pois. de examinar
as unidades lexicais como elementos singulares integrados às estraté­
gias locais. Dada a complexidade e mesmo a sutileza dos processos
envolvidos, a diversidade dos fatores que interferem c o fato de que
cada texto apresenta problemas particulares, tompreende-se que seja
difícil, pelo menos no estado atual, de propor algoritmos de análise
dotados de alguma generalidade.

Mais exatamente, é preciso distinguir dois tipos de palavras que


acarretam problemas muito difereirtes. Por um lado. há palavras tra­
dicionalmente consideradas “ plenas” c, por outro, palavras "instrumen­
tais” c, em particular, aquelas que possuçm uma função argurnentativa
e/ou servem para estruturar os enunciados (um, aliás, pois. etc.). Se
as primeiras possuem um significado suscetível de valores discursivos
específicos, de acordo com os contextos, as segundas, em geral, têm
um valor pragmático estável, mas só podem interessar à AD se es­
tiverem inscritas em estratégias textuais particulares-

3) Neste último conjunto, colocar-se-ão as análises que pressu­


põem uma “delinearização" dos enunciados, construindo, a partir de
um algoritmo, redes de relações entre termos. Na realidade, este tipo
de estudos pode corresponder a abordagens muito diferentes, segundo
os fenômenos examinados c o grau de descontcxtualização implicado.
Em um extremo, estaria a estatística lexical fora de contexto, no outro,
trabalhos que, mesmo desestruturando os textos, conservam uma boa
parte do entorno sintático-enunciativo das unidades consideradas. T
esta segunda tendência que prevalece atualmente.

Dado que este tipo de abordagem não era empregada cm estudos


filológicos ou, se o fosse sua prática era insignificante, é neste
domínio que a AD inovou do modo mais evidente. Há, aliás, um
laço crucial entre os fundamentos teóricos da AD e este recurso à
“deslinearização" da superfície textual; para construir tais redes, faz-
se necessário, de fato, postular que existem cocrções específicas de
um corpus, coerções que não decorrem do sistema da língua e tam­
pouco são acessíveis à consciência dos locutores. Mostrando que elas
desenham uma figura coerente e que é possível aproximá-las de uma
posição sócio-histórica. afirma-se. unicamente, que existem “ formações
discursivas”.

130
Nesta terceira e última parte do livro, insistir-sc-á unicamente
sobre os aspectos da análise lexical que não foram tratados ou, se o
foram, esse tratamento não foi muito aprofundado no volume prece
dente. Tratar-se-á. inicialmente, das redes fora de contexto (cap. I).
que correspondem ao nosso terceiro conjunto e. posteriormente, tios
concelhos argumentalivos (cap. 2). que consistem nas "palavras ins
trumentais do segundo conjunto. Parece-nos que estes dois domínios
de pesquisa representam as tendências mais atuais do assunto. F.viden
temente, além das palavras, é uma certa concepção do discurso que.
mais uma ve/, está em questão
1.

PARA ALÉM DOS TERM OS-PIVÔS

CRÍTICA AO MÉTODO DOS TERMOS-PIVÔS

Se, na fase inicial da AD, o vocabulário constituía o objeto privi­


legiado de investigação, isto ocorria porque a semântica discursiva tinha
a tendência de fundir-se com a lexicologia, seja cm sua versão estatís­
tica ', ou através do chamado método “ harrisianu” . Este último reduzia
o discurso a um conjunto de proposições articuladas em torno de um
tertno-pivô; viu-se, anteriormente, que ele podia ser censurado por
homogeneizar seu objeto, crítica que se acrescentava àquelas tecidas do
ponto de vista das teorias da enunciação c da gramática de texto.

Pura as primeiras, os objetos com que o método dos termos-pivôs *


trabalha são impróprios a uma abordagem verdadeiramente lingüística.
visto que deles foram eliminados os traços das operações enunciativas:

“ Se for postulado como base um esquema Sintagma nonii-


nal-Sintagma verbal, é possível reduzir toda sucessão de enuncia­
dos a este esquema; dispor-sc-á de um material “ normalizado",
mas será que se disporá, igualmente, de um objeto de estudo que
corresponda, exatamente, à lógica que procedeu à produção ou
ao funcionamento do discurso examinado 3? ”

O método dos termos-pivôs, ao simular que o conteúdo lexical


poderia ser dissociado da sintaxe e dos enunciadores, reconduz à opo­
sição já ultrapassada entre "fundo” e “ forma”. Quanto à gramática de
texto, ela critica este método por não construir uma definição apro­
priada do contexto discursivo; entender a proposição como contexto

m
de uma unidade lexical é insuficiente à medida que os processos dis
cursivos se desenvolvem em unidades linguísticas mais complexas e
mais vastas.

A estas críticas de ordem puramente linguística, acrcsccntam-se


outras, que incidem sobre o próprio princípio do método. |. M. Ma-
randin 4, |. Guilhaumou e 1). Maldidier \ ). |. Courtine" convergem
ao mostrar os limites de um método qu e se apoia sobre um saber u
prioríslico, o qual preside à seleção que o pesquisador fará dos ter-
mos-pivôs: “ A análise responde à pergunta do analista; mas, ao apre­
sentar esta resposta como estrutura de base de um texto, o analista faz
uma passagem em um limite no qual acaba por confundir seu interesse
e o que é o d i s c u r s o . Escolher termos-pivôs consiste em definir os
temas do discurso: ora. no método dos termos-pivôs não é o texto que
possibilita a localização destes temas, mas os pressupostos do analista,
que formula certas perguntas de ordem sócio-histórica sobre o corpus

Esta crítica coloca o delicado problema da articulação entre dois


saberes sobre os quais se apoia o analista do discurso: um saber lin-
güístico c um saber não-lingüístico. O método dos termos-pivôs con­
tenta-se cm justapor suas intervenções, conforme observa E. I an­
do wski:

"Em um primeiro momento, o pesquisador torna-se historia


dor: inieialmcntc, o objetivo é traçar minuciosamente o quadro
de uma conjuntura referencial. ( ) Somente depois disso, chega
o "lingiiisia'’ s".

E possível, então, perguntar "qual é o papel que é preciso atri­


buir aos residtados da pesquisa sócio-histórica inicial referente à in­
teligibilidade das estruturas enunciativas descritas a seguir". Se esta
questão não for objeto de reflexão, corre-se o grande risco de recorrer
a um saber histórico elaborado independentemente do discurso o qual
orientaria sub repticiamente o conjunto da análise

PARA UMA UTILIZAÇÃO CONTROLADA

Após uma semelhante exposição, parecí d.i cil defender a perti­


nência de tal método. Entretanto, seria prejui-Udl desqualificá-la em

134
sua totalidade; cia ó perfeitamente legítima, sc duas condições forem
respeitadas:

1) deve-se considerá-la como um método auxiliar e não essencial


para a análise;

2) deve-se utilizá-la quando é possível controlá-la e não recorrer a


ela sistematicamente, qualquer que seja o corpus.

Examinaremos agora dois exemplos de análises: o primeiro, re­


tirado do estudo dos manuais da escola da 111 República que realiza­
mos, e o segundo de um trabalho sobre os discursos xenófobos suíços.

No primeiro caso. a análise da formação discursiva começou pelo


exame da relação entre o sujeito deste discurso, a França (Hnunciador
supremo, identificável ao mesmo tempo ao autor e aos destinatários), e
suas colônias.

Pôde-se, assim, descobrir o papel crucial que desempenha neste


discurso o deslizamento metafórico constante de “ mãe” para 'T ran ça",
projetado sintagmaticamente sobre o significante pátria-m ãe. Constituiu-
se, então, um corpus de todas as ocorrências de m ãe e Jillw * nos
exercícios propostos por um manual dc língua francesa considerado
como representativo9. Isto demanda algumas observações:

1) Trata-se apenas de uma análise auxiliar, destinada a apoiar,


de forma localizada, um estudo mais amplo.

2) Os dois termos-pivôs não foram escolhidos em função de um


saber histórico anterior, mas definidos durante a análise. Certamenle
não é uma palavra como mãe que a p riori teria retido nossa atenção,
mas preferentemente termos marcados ideologicamente conto R epú bli­
ca, nação, França, etc.

3) O corpus assim delimitado não pratica nenhuma violência à


realidade linguística: efetivamente, não há neutralização da comple­

* No original, en fan t oferece dupla leitura: pode ser interpretado como crian ça
ou como filh o . Dado o contexto em que se encontra o termo, ambas são
válidas. Optei por filh o para manter a relação com m ã e mas seria interessante
não esquecer a segunda leitura nas considerações que se seguem (N. do T . ).

135
xidade sintática c enuncialiva, nem eliminação do contexto, \r' que é
próprio a estas frases de exercícios exatamente oferecer enunciados
amplamente neutralizados e descontextualizados.

ü estudo dos ilados assim reunidos permitiu verificar em que


grau o uso de m ãe é obrigatório. Enquanto frases de exercícios deve­
ríam veicular, a priori. conteúdos muito variados, percebe-se que,
neste manual, todas as ocorrências de m ãe estão relacionadas com
as ocorrências de e u /m e ou de filh o . Frases do tipo Minha m ãe passeia
ou 1’au lo viu a m ãe ile Lucas estariam, pois, totalmente excluídas.
Além disso, quando m ãe está em posição de sujeito sintático <14 entre
18 ocorrências), sempre estabelece uma relação assimétrica com filho:
a mãe ensina, cuida, etc. Em compensação, nas quatro ocorrências cm
que m ãe é objeto direto, todas implicam um movimento orientado em
sentido inverso, destinado a completar a primeira dissimetria: amar,
obedecer a sua mãe

Esta análise permite, na sequência, que se abram novas redes de


inteligibilidade nos textos de nosso corpus. Especificamente, foi-nos
possível integrar uma série de leituras dispersas no mesmo manual
e às quais não tínhamos prestado atenção. Elas descrevem uma cena
inscrita em uma narrativa exemplar: em um primeiro momento, uma
criança adormecida, passiva, tudo recebe da mãe que vela seu sono;
a seguir, lembra-se a esta criança que, mais tarde, quando for adulta,
deverá restituir, pagar sua dívida. Fica assim enunciado o “contrato”
ideológico primordial que estrutura a cena enuncialiva pedagógica,
contrato sobre o qual se desenvolve a enuneiaçáo desta formação dis
cursiva: o ensino dispensado na escola constitui uma espécie de “ adian
lamento" feito ao escolar pela mãe/pátria. E através de seu comporta­
mento posterior de bom cidadão da república que deverá honrar os
termos deste contrato, quitando sua dívida 1U.

O segundo exemplo que vamos examinar inscreve-se em um pro­


cedimento muito diferente. O trabalho de |. ftoutet, M. Fbel e P. Eia
la 11 parle do princípio que duas palavras, Ü berfreim hm g (“dominação
e superpopulação estrangeiras") e x en o fo b ia representam, desde o
início dos unos 60. na Suíça, fórm u las dom inantes. E preciso perce­
ber que estas palavras “condensaram nelas uma massa considerável de
discursos, nos quais ocorriam como semanticamente equivalentes.
Enunciar uma ou outra implicava colocar em circulação significações

136
múltiplas, contraditórias, que remetiam à existência de séries de enun­
ciados parafrásticos bem comprovados através das quais os dois ler­
mos eram definidos 1~". Por exemplo:

— “ Os estrangeiros são uma pesada carga para nossas ins­


tituições sociais.”

— "Depois que os trabalhadores estrangeiros tiverem par­


tido, a habitação será menos cara.”

As “ fórmulas” remetem a um referente social, no sentido que


"nos anos 60, todo locutor, individual ou coletivo, sabia ou pretendia
saber o que tais fórmulas “ significavam” , ainda que nem todos lhes
atribuíssem o mesmo sentido. Pertenciam à formação da linguagem da
Suíça romana, em iguais condições que outras fórmulas mais antigas,
como pátria, neutralidade, independência nacional” . A um dado mo­
mento, todos são obrigados a se situarem em relação a estas fórmulas,
fazendo-as circular de um modo ou de outro, lutando para impor-lhes
sua própria interpretação.

A palavra Ü berfrem dim g perturbava os adversários da xenofo­


bia, dado que sua rejeição os faria passar por maus patriotas; tam­
bém assistiu-se ao aparecimento de x en ofobia que mudou a relação
de forças, obrigou seus inimigos a se entrincheirarem por trás de um
discurso defensivo: “ Não somos xenófobos, mas. . Uma análise de
termos-pivôs deve permitir que um processo desse tipo seja melhor
percebido.

A partir de um corpus constituído de cartas de leitores xenófobos


dirigidas a um jornal, os analistas extraíram os enunciados onde fi­
guravam x en ófobo, xen ofobia, bem como um certo número de substilii
tos semânticos tais como racism o, tem or aos estrangeiros, . . . com
vistas a “ procurar e classificar as formas lingüísticas da rejeição, exa­
minadas em suas características enunciativas e considerar tais formas
como índices de empregos diferenciados dos locutores em relação a
esta rejeição u ” .

A análise de semelhante corpus poderia adotar o procedimento de


um estudo absolutamente clássico de termos-pivôs. Na realidade, como
a citação precedente indica, o trabalho in cide so bre um fenôm eno
enunciativo tutu m ovim ento enunciativo). c não sobre o contendo
do termo xen ofobia, ü s enunciados foram repartidos em dois con­
juntos, de acordo com o tratamento dispensado ao termo. Se fosse
tratado como dc re (Cf. “ Não sou xenófobo, mas penso que, 11a ver­
dade, há demasiadamente. . ." ) 011 como d e dicto (Cf. “ Kntão por que
falar a torto e a direito em x en o fo b ia ? ). Certos enunciados apresen
Iam uma estrutura notável, aqueles do tipo

X enofobia'' Não'

Pouco analisáveis em termos de Sintagma nominal-Sintagma ver­


bal, teriam sido marginalizados por uma análise tradicional de termos
pivôs; aqui, ao contrário, são considerados fundamentais, à medida
que condensam a estrutura dialógica d este corpos, seu caráter de res
posta nuiltiforme a uma acusação. Salienta-se, a partir daí. que “sério
paralrásticas homogêneas são atravessadas por disparidades que de
pendem de fenômenos enunciativos. cuja análise necessita não apenas
dos instrumentos conceituais de uma análise sintático-semântica. mu>
também que sc leve em consideração o quadro dialógico e os dado-
contcxtuais ,5".

1 'sta alusão aos problemas contcxtuais é importante; para os au


lorcs, a análise fora de contexto efetivamente se constitui apenas como
0 primeiro acesso para uma abordagem; num segundo nível, eonside
raria os enunciados em contexto para descobrir a diversidade do'
processos argumentativos que são mascarados pela existência de um
mesmo movimento de rejeição de uma fórmula. Percebe m hem vi;-
disparidade, comparando, por exemplo, estes dois fragmentos

“ N ão som os absolutum ente x en ófobos pela simples razão


que, por ocasião de nossas viagens, tanto à Itália quanto à lispa-
nha. sempre encontramos nas lojas, restaurantes e hotéis uma
compreensão e uma amabilidade surpreendentes, e isto apesar de
não conhecermos a língua."

“ No prédio onde moro. dos quarenta apartamentos, vinte e


dois são ocupados por estrangeiros; acho todos eles encantadores
e não sou x en ófobo: partilhar seu pão com aquele que não tem.

I
tudo bem; mas é preciso ver as coisas objctivamenie. não há
apartamentos com aluguel acessível. . .

Como se vê, nesta perspectiva, não apenas o método dos termos-


pivôs procura associar léxico, sintaxe e enunciaçãu. mas ainda deve
considerar um estudo contextualizado.

LÉXICO, SINTAXF., ENUNCIAÇÃO

Os analistas do discurso estão constantemente envolvidos por


uma dupla alternativa, que resolvem de formas muito diversas: será
preciso privilegiar o estudo contextualizado ou construir redes de ele
mentos descontcxtualizados? Após ter optado pela segunda solução, S
Bonnafous preferiu a primeira:

“ Após experimentação, pensamos que o mais produtivo pro­


vavelmente situa-se ao nível das análises que se interessam pela
linearidade do texto e por suas articulações sintagmálicas (com o
risco de corroborar estas análises através de técnicas paradigmá­
ticas, como a lexicometria). É ao se debruçar sobre o que existe
de mais “encadeado” em um texto que o lingiiista talvez melhor
se distinga do historiador, o qual tende excessivamente a rom­
per as estruturas para isolar palavras ou temas

De nossa parte, pensamos que o ideal seria não ter que realizar
tais escolhas. Compreende-se que os analistas do discurso se sintam cm
terreno mais familiar quando estudam enunciados seguidos, mas nem
por isso deixa de ser menos necessário definir uma abordagem lin­
guística de processos que não dependam de uma contextualizaçào pró­
xima. A intrincação essencial entre os enunciados apreendidos cm
sua linearidade e os processos que atuam sobre o conjunto do discurso
só pode representar uma realidade incontornável para a AH

Os dois estudos de termos fora de contexto que serão apresenta


dos parecerão com toda razão muito diferentes, f sta diversidade não
tem nada de surpreendente, a partir do momento que não nos apoiamos
sobre um algoritmo suposto univcrsalmente válido e que a análise dc
vocahidáritt está articulada s<>bre as características linguísticas tios
corpus considerado:,. Notar-se-á que estas iliias análises recorrem cm
um determinado momento a índices de ordem estatística, associando
estreitam en to o qualitativo ao quantitativo. Trata-se, neste caso. de
utilizações absolutamente elementares da decomposição estatística, mn>
que apresentam a vantagem de escapar às críticas que são habitual
mente dirigidas a certas abordagens lexicométricas. 1' preciso observar
que a consideração de fenômenos de freqüência é implicitamente
exigida pelo falo de que elementos fora de contexto são estudados;
neste caso, diversamente do que ocorre quando os textos são abot
dados em seu processo, a redundância, necessariamente incontrolável
por parte de seus emmciadores, desempenha um papel importante.

G ru p o s Tem atizadus

Viu-se que uma das maiores críticas dirigidas ao método dos


termos-pivôs é que ele define “ lemas” (no caso, termos-pivôs), par­
tindo de um saber exterior ao funcionamento do discurso considerado.
Courtine propõe-se, então, a reverter este problema de delimitação
dos temas do discurso, formulando a seguinte pergunta: "Como. no
d iscu rso e através do próprio discurso, um elemento determinado
pode ser caracterizado conto tenta do discurso? (Conto, isto é, pela
presença de quais estruturas, sob que forma linguística? 1 ‘ Compete,
pois. às estruturas linguísticas e não ao saber histórico fornecer os
dados pertinentes.

I.sta opção conduz Courtine naturalmeme a interessar-se pelas


estruturas sintáticas da tematização e. dentre elas. de fornta muito par
tieular, por fórmulas do tipo

I. X que I’

() que I’ é X

V é o que I’

Fórmulas que põem em evidência elementos (X) que são objeto


de unia questão, localizável no contexto ou virtual. Empregando-as.
dois efeitos de sentido são produzidos:
— "Ê disto, e nãu de outra coisa, que Ialo".

— “ Ê isto que quero dizer, quando emprego este termo"

Ênfase e identificação que sao captadas por uma construção es-


sencialmertte dialógica.

Mais exatamente. estas tematizações são ambíguas, sendo inter


pretáveis como contrastivas, dêiticas ou constativas. A frase F a de­
m ocracia que qu erem os para a França pode receber, desta forma, três
leituras:
— contrastiva: “ é a democracia — e nenhuma outra coisa —
que queremos. . . ”
— dêitica: "esta democracia é a democracia que queremos. . ."

— constativu: "queremos a democracia e, eventualmente, outras


coisas. . . ”

A partilha entre as três leituras dificilmente pode apoiar-se sobre


critérios rigorosos. A primeira é, evidentemenle, a mais interessante,
do ponto de vista da AD, e é dela que nos ocuparemos aqui.

Consideremos agora a mesma estrutura de frase, porém mais


expandida: a violência não vem dos comunistas m as do grande capital.
Neste exemplo, a frase recusa um enunciado adverso (a violência vem
dos comunistas), construindo, ao mesmo tempo, uma oposição entre
comunistas e grande capital, uma oposição que, juntamente com outras,
permite "materializar a fronteira” entre formações discursivas, "de­
signar esta fronteira, exibi-la como regra para qualquer sujeito que
deva enunciar ou interpretar uma tal formulação 1H” : “deve-se dizer
que a violência vem do grande capital//ido se d ev e dizer que a vio­
lência vem dos comunistas”.

tste exemplo ilustra os tipos de refutação polêmica ligados a esta


estrutura:

— a refu tação com pleta, onde o enunciado explicita os elementos


que se opõem no interdiscurso (Cf. supra);

— a refu tação por den egação: neste caso os elementos do inler-


discurso são incorporados e dissimulados, o enunciado antagonista é

I H
designado como lal ((, ,áolên eia não vem dos comunistas), mas so-
mente ele é conservado.

a refutação /><>/ rcdirecion am en to trabalha no interior do d is


curso antagonista, suhverlendo-o ao absorvê-lo: o coleiivism o qu e
desejaria nivelar as consciências, o regim e no qual um pequeno nli
m ero pensa p or todos, p lutje qu e ele existe em nosso país.

Através desta apresentação sumária, percebe-se o deslocamento


que a análise lexical sofreu. Não apenas são as estruturas sintático-
enunciativas que definem o objeto de estudo, mas ainda a análise está
conslantemente apoiada na interdiseursividade, eomo ocorre no tra
ballio sobre os discursos xenófobos

Tem atizução. determ inação e estatística

Além disso, este trabalho sobre o discurso comunista permitiu que


Courtine utilizasse a informática para articular lematização e determi­
nação F.mpregando o programa logístico * DFRKDF.C *" para trata­
mento de texto, ele estudou uma mensagem enviada de I.yon, em
junho de 1976 por Gcorgcs Marchais aos cristãos; seu vocabulário foi
dividido em vários conjuntos, “ léxicos" em cuja definição intervém
categorias sintáticas, tematizações e determinação

I., : l éxico das formas plenas (nomes, verbos, adjetivos):


3251 entradas;

1.0 • l éxico das formas plenas tematizadas: 303 entradas:

l .i : Léxico das formas plenas da a l o c u ç ã u : 2134 entradas:

1.1 : Léxico das formas nominais tematizadas: 248 entradas;

L-, : Léxico das formas nominais determinadas: 437 entradas;

I.» : Léxico das formas plenas que determinam as formas nomi­


nais- 1236 entradas.

Ou original francês lon ieiel (N. tio I I.

147
Esta divisão permite estabelecer comparações. Se. por exemplo,
cm Li forem selecionados os elementos cuja freqiiência absoluta é
superior ou igual a cinco ocorrências, serão localizados oito nomes
(cristãos, com unistas, crise. Franceses. França. Partido, pai-, p ov o);
se o comportamento destes oito nomes for observado em L-„ descobrir-
se-á que alguns deles são frequentemente tematizados e, inversamente
pouco determinados: povo, cristãos, França, com unistas. Em compensa­
ção, observando em L.% as formas nominais que. com maior freqiiência.
encontram-se cm posição de forma nominal determinada e comparan­
do-as com os resultados obtidos em Et, vê-se que algumas das pri­
meiras são muito pouco tematizadas, a saber: classe, dem ocracia, m un­
do, união, vida.

Formas Nominais com maior freqiiência


de determinação

N em I.s em Li Diferença
Ação 5 3 2
Classe 8 0 8
Democracia 7 í--> 5

Homens 8 4 4

Mundo 6 1 s

União 8 3 f>

Vida 7 1 b

Percebe-se, por conseguinte, uma espécie de distribuição comple­


mentar entre as formas nominais mais importantes de 1_, e I

Certas formas nominais, freqiientemcnte tematizadas. são


pouco determinadas; noções como o povo. os cristãos, a França,
os comunistas, que freqiientemcnte figuram cm posição temática,
dispensam a determinação: “Sabe-sc o que é ". pode-se falar nelas,
é possível instituí-las como tema de seu discurso porque “ são
cv:dentes". Tais noções. . . estão saturadas p elo consenso ideoló-
5 O’ que estabiliza sua referência: elas realizam, no discurso
^o\ík(.9 francês, uma verdadeira intersecção lexical entre as for-
mas de organização lexical e de construção da referência das pa
lavras próprias a discursos diferentes e. cvenlualmente antagó
nicos.

A estas noções dadas como evidentes, opòem-se os nomes muito


determinados e pouco temati/ados, palavras que devem ser explicadas:

as palavras do vocabulário de partido: </ classe ("operária",


" e x p lo r a d a " ...) , a dem ocracia ("política", "moderna", “ socialis­
ta’’ . .). etc.

as palavras da língua comum que necessitam reintei pi ctaçau


o mundo ("melhor", "de manhã". ). a vida ("mais justa", "mais
livre" )

I nvontram-sc. dessa forma, diferentes /onas de vocahulaiio. em


função de sua estabilidade:
— u da neutralização discursiva, em que as palavras sao toma
das consensualmenle com um mesmo sentido para todos;
— a do fecham en to d e um saber, onde o sentido das palavras e
delinido:
aquela oiulc a con tradição aflora, onde as palavras represei)
tam conflito.

hste estudo insiste, com razão, sobre a importância dos fen o


menos d e determ inação. F. bastante notável que o método dos termos
pivôs apoiou seu procedimento sobre alguns nomes, sem levar em
conta, frequentemente, sua determinação. São sobretudo os lógicos
c os filosofes que refletiram sobre este problema e. em particular,
sobre a oposição definido/indefinido, mas a AD dilicilmente pode ne­
gligenciá-los; os processos de referenciaçào desempenham um papel
considerável na construção de um universo discursivo. Não é possível,
além disso, contentar se em considerar unicamente os determinantes,
a correlação que Courtine estabelece entre a tematização e as expan
sões nominais o mostra claramente

l\uo é muito lácil definir o estatuto destes giupos nominais,


referencialmente “saturados” ( a crise, os países livres. . .), que " fo r­
mam conjuntos fechados, como se extraíssem deles mesmos as razões
de sua própria determinação Dados como evidentes, “ autodetermi-
nados” . remetem implicitamente a um interdiscurso espesso de con

144
lurnos indetermináveis, que lhes assegura seu caráler pré-construido
Estas expressões aproximam-se da questão do nome próprio, verda­
deiro leito de Procusto da Semântica. Pode-se sempre dizer que o
artigo definido veicula, além dos pressupostos de existência e unici-
dade, o de que o referente é conhecido pelo destinatái io. mas isto não
é suficiente para justificar o estatuto referencial de os comunistas em
um texto comunista ou de a m udança nos enunciados dos governantes
de esquerda, em 1981.

A inform ática para além do léxico

Este estudo sobre a determinação, com o auxílio do programa


logístico DEREDEC, revela igualmente um questionamento do pri­
mado da análise lexical, em sentido estrito, no que se refere ao recurso
à informática. Mesmo a análise automática do discurso de M. Pêcheux,
que se pretendia sintática, “ interessava-se unicamente pelos sintagmas
constituintes da proposição (SN ou SY\ cont primazia dos SN) ', como
observam A. Lcoomte, 1. I.éon c |.M. Marandin 23. Estes últimos, ao
apresentarem o DEREDEC, insistem sobre sua polivalência e a ne­
cessidade de multiplicar os pontos de vista sobre o texto:

“ A descrição de um objeto tão complexo reclama a multipli


cação dos pontos de vista descritivos, [multiplicação que] não é
induzida unicamente pela complexidade do objeto, mas pela pró­
pria natureza do gesto de descrição de textos. Se ioda descrição
pressupõe interpretação, uma descrição não pode ser unívoea

Esta flexibilidade deve ser encontrada ao nível da análise sintá­


tica, já que o programa logístico permite produzir estados diferentes
e modificá-la cm função do objetivo visado, e mesmo ajustá-la retroa-
tivamente. Para maior precisão, dispõe-se de duas estruturas: as
EXFAD, arborescências sintáticas das sequências analisadas, e as arbo-
rescências EXFAL, que introduzem outras informações, essenctalmen-
te contextuais. Pode-se. por exemplo, “ exfalisar” uma unidade lexical
determinada: 1

1) os itens lexicais com os quais ela co-ocorrc nas proposições


do texto;

1-15
2 ) um subconjunto destes itens: por exemplo, os sintagmas que
o determinam (ter-sc-ia acesso, então, à construção do objeto denotado
no discurso e o meio para estudar o impacto desta determinação sobre
a construção das proposições):

3) os sintagmas que lhe são equivalentes, isto c. que aparecem


em um contexto idêntico, em nível lexical e sintático.

As informações do tipo KXFAI. não constituem um peso morto li


gado a uma seqiiência. mas devem desempenhar um papel exploratório.
No texto analisado, uma unidade lexical ou um enunciado são conside
rados “como um ponto cm uma rede de formulações ou de enuncia
dos". Trata-se de “ poder confrontar uma seqiiência textual, em cada
um de seus pontos ( . . ), com o que a precede e o que a segue; e.
em uma estratégia de eo tcxlo construído, com sequências que perten­
cem a outros textos "'”'. Dito de outra forma, a análise deve abrir-se
em direção ao interdiscurso que sustenta tacitamente o texto, ultra
passando o contexto imediato.

O mais importante consiste na variedade de abordagens que um


tal procedimento pressupõe. O texto é explorado em diversas dimen­
sões, através de algoritmos reformuláveis ao longo da análise. De uma
visão puramente quantitativa, passa-se, pois, para a de uma rede de
redes, na qual é possível circulai.

Ksta necessidade de ultrapassar a decomposição sintática pura


faz-se sentir mesmo nas pesquisas que não recorrem a programas capa
zes de construir arborescências sintáticas. Isto aparece com clareza,
por exemplo, neste artigo de J. I\ Sueur, cujo título c revelador: "Sin
taxe. léx ico e enunciação em algumas resolu ções sindicais no qual
afirma: “ Os estudos estatísticos que incidem sobre o vocabulário dos
discursos devem necessariamente ser completados pelo estudo das es
ti nturas sintáticas c dos quadros enunciativos nos quais as foi mas
lexicais e gramaticais aparecem"7". O autor é conduzido, desta forma,
a correlacionar em seu corpus de resoluções sindicais '\ “os dados
estatísticos relativos ao grau de especificidade das palavras instru­
mentais" e "as especificidades sintáticas e enunciativos de cada emis­
sor"””. Assim procedendo, leva em consideração elementos habitual
mente negligenciados: modos verbais, pronomes, proposições, coorde
nações.

I tõ
É preciso, entretanto, não se enganar; o interesse desse gênero
de abordagens será inevitavelmente limitado, enquanto não forem
postas em evidencia correlações estreitas entre os fenômenos de dife­
rentes ordens. Caso contrário, corre-se o risco de chegar a um dese­
quilíbrio entre a insignificância dos índices e a riqueza da interpre­
tação que se lhe pode atribuir, ou, então, contentar-se com simples
constatações. Assinalando, por exemplo, que a C'G I' (Confederação
Geral do Trabalho) utiliza eles e elas com maior frequência que os
outros sindicatos, ).P. Sucur sugere, prudentemente, que esta predile­
ção pelo plural “ manifesta uma realidade fundamental: a C G T é
sensível ao fato de que a luta sindical é, antes de mais nada. um
embate coletivo'10". Observar-se-á, entretanto, que esta interpretação,
na realidade, não se apoia sobre cies,'elas, mas sobre o estudo dos
substantivos que são seus antecedentes e que mais parece decorrer de
um saber exterior ao corpus do que de sua análise. Km compensação,
quando o autor registra o emprego superabundante que a mesma CG’I
faz da coordenação, dificilmente pode daí extrair uma interpretação:
dizer que a coordenação permite, por exemplo, “manifestar que um
processo se estende no espaço e no tempo" e que “é um traço constan­
te na língua da C G T 11’’ (Cf. continuar e agravar esta política, o
número e a duração das greves, etc.), não vai muito além do estágio
da constatação.

Seria difícil esperar um grande progresso decorrente de uma me­


lhor interpenctração do léxico, da sintaxe e da enunciação, sem cons­
truir procedimentos de análise concebidos para esse fim.

GRÀTICOS DK ASSOCIACÕKS F. PALAVRAS CHAVI

O estudo que agora vamos lcm biar:,s, cm certo sentido, é mais


tradicional, pois a articulação entre a sintaxe e o léxico é mais pobre
e, desde o início, semântica. Desenvolve-se a partir de questões e de
um corpus muito diferentes do caso precedente, mas aí encontram-se
dois traços maiores: a construção do objeto a partir das propriedades
linguísticas do corpus e das hipóteses sobre o funcionamento discursi­
vo; por outro lado, a intrinenção do qualitativo com o quantitativo.

O método dos termos-pivôs pretendia ser aplicável a qualquer


corpus; esta era, certamente, uma pretensão exorbitante. Cabe ao
analista avaliar o que ele pode esperar de semelhante abordagem cm

147
determinado corpus. Se a abordagem que vai ser apresentada losse
aplicada a um corpos como o de Courlinc os resultados seriam extre
mamente pobres: nao apenas porque os dados não seriam suficientes,
mas ainda porque o estudo de elementos adjetivais não seria muito
rentável neste gênero de discurso.

ü trabalho que realizamos sobre "gráficos de associações" lexi­


cais inscreve-se no quadro do estudo do espaço discursivo formado
pelos discursos jansenista e humanista devoto. Após a formulação do
modelo das operações e das categorias semânticas deste espaço, a
análise de vocabulário deveria contribuir para validá-lo. Diversas con
sidernções, que não vêm ao caso aqui, levaram-nos a escolhei a litiro
iliiclion a Io vic d ev ote 33 de São Francisco de Sales como texto repre­
sentativo de> discurso humanista devoto. Deste conjunto, foram relidas
as cadeias Je adjetivos parassinônimos (Cf. "uma ação am orosa e
lem a", "uma virtude prudente, discreta") bem como as cadeias ce>r
respondentes de advérbios de modo (Cf. "agir prudentem ente, doce-
m ente"). Na realidade, este corptis foi dividido em dois para distin­
guir as cadeias selecionadas das cadeias rejeitadas; procurava-se, assim,
não misturar duas categorias que, na enunciaçáo dependiam dc regis
tros antagônicos.

ü recorte deste objeto foi determinado pelas propriedades do


texto. Fletivamente, muitas obras do fim do século XVI e início do
século X V I I justapõem desta forma os adjetivos e os advérbios, defi­
nindo através disso os lermos que, cm sua formação discursiva, são
dados como substituíveis. Quanto â divisão do corpus em dois con
juntos e a própria delimitação deste corpus, não foram feitas direta
mente pelo analista, mas determinadas p elo texto Considerando o
papel crucial desempenhado pelo "retrato da Devoção31", neste dis­
curso, extraiu-se destas poucas linhas os adjetivos "positivos" (selecio
nados) (bom . b elo . doce. feliz, agradável, am igável) e os que foram
rejeitados (deplorável, triste, rabiijenlo. m elancólico, insuportável) A
seguir, foram levantadas todas as cadeias parassinonímicas em que
estes adjetivos figuram bem como as cadeias dos termos que a
eles se associam. Assim procedendo, abordou-sc um fenômeno dis
cursivo importante, pois os dois conjuntos assim constituídos (85b
ocorrências de elementos selecionados e 55b de elementos rejeitados
para respectivamente 187 e 120 lexemas distintos, em uma obra de
cerca de 500 páginas de uma edição de bolso) não apresentaram inter
secçao.

148
O interesse niamlestado aqui pelos adjetivos de tipo avuliativo
contrasta notavelmente com os hábitos da AD, que se volta, geral
mente, para os substantivos, cujo conteúdo iJeológico parece mais
evidente. Na realidade, não há razão para marginalizar os advérbios
ou os adjetivos; no caso de um discurso devoto, compreende-se muito
bem que estas categorias desempenham um papel importante: a função
deste tipo de discurso é mais de definir um “ modo de ser” do que
uma doutrina, em sentido estrito. A devoção não é tanto uma virtude
particular, quanto um modo de regulação generalizada dos compor­
tamentos.

Mas o aspecto qualitativo não exclui a consideração da dimensão


quantitativa; cada um destes aspectos, na realidade, deve favorecer o
controle do outro. Dispõe-se, efetivamente, de um corpus que oferece
a possibilidade de uma dupla exploração: pode-se considerar, por um
lado, que termos são substituíveis por quais outros, mas também qual
é a frequência destes lerm os e destas associações parassinonímicas.
Chamar-se-á grau d e valência ou valència de um termo o número de
adjetivos diferentes com os quais está associado. Um termo que seria
muito freqüente no corpus, mas constantemente ligado somente a um
outro, teria apenas valència 1 : este critério permite, pois, corrigir as
ineonseqüências de recorrer unicamente à frequência.

Em termos matemáticos, estes dados constituem dois gráficos


conexos (G f , gráfico dos adjetivos selecionados e G ~ , gráfico dos
adjetivos rejeitados) onde cada adjetivo representa um "vértice” e a
relação “estar associado a ”, uma “ aresta”. Através destes dois gráfi­
cos, obtêm-se três tipos de informações:
— a lista dos associados de cada termo, com a freqiiência de
cada uma destas associações;
— uma classificação dos termos, segundo sua frequência nu
corpus;
— uma classificação segundo o grau de valência.

Estas informações podem ser utilizadas de mudo a pôr em evi­


dência as linhas de força de um universo semântico. Começa-se por
circunscrever um núcleo de termos particularmente específicos, elimi­
nando aqueles cuja valência e frequência são inferiores a 3 em (■
(permanecem 26 adjetivos) e inferiores a 6 em G *■ (permanecem 35
adjetivos). Para estruturar este núcleo, não se trata de considerar o

149
sentido das unidades em língua, é preeiso referir-se au seu valoi n o
discurso: para tanto, são colocados na mesma classe os lermos que,
nas listas de associados, apresentam uma forte intersecção. podendo-se.
pois, considerá-los como equivalentes para esta formação discursiva
Por exemplo, em G~ inquieto e ap ressad o possuem os seguintes as
sociados 35:

— inquieto: azedo, rabugento, apressado(5). impaciente, pettur


bado(5), turbulento, violento;
— ap ressado: azedo, rabugento(2), irado, inquieto! 5), pertur
bado(2 ), turbulento, violento.

F.ntre sete, estes dois adjetivos possuem seis associados comuns


e eles mesmos aparecem associados por cinco vezes: com base nisto,
são colocados juntamente com outros em uma mesma classe, caracteri­
zada semanticamentc e relacionada com o modelo do espaço discur
sivo. Nesta experiência, existe a possibilidade de definir equivalências
semânticas qu e a língua não perm itiría prever que são próprias do
discurso: a priori, nada indica que apressado e inquieto são termos
rejeitados e substituíveis, enquanto prestes c um adjetivo selecionado
ou ainda que inquieto e triste, ambos rejeitados, não são substituíveis

Ksla análise do "núcleo" deixa, entretanto, dois resíduos pata


G ~: os adjetivos rabugento c im pacien te apresentam a particularida­
de de possuírem associados em várias classes, não entrando cm ne­
nhuma. Pode-se considerá-los como pontos de intersecção das classes.
Como rabugento ocupa o primeiro lugar quanto à valcncia e o terceiro
quanto à frequência, é lícito pensar que este termo encontra-se na
encruzilhada de redes de sentido maiores; será considerado uma pala-
vra-eliave de G F m compensação im paciente não podetin scr consi­
derado uma palavra-chave; cm quarto lugar, no que concerne à va
lência, e no vigésimo oitavo lugar para a freqiiência ( —4), sua valência
é elevada apenas porque está associado em cada uma das ocorrências
a longas cadeias de parassinônimos.

Üs resíduos da análise de (! 1 são heterogêneos: aí encontram-se


misturados três tipos de lexemas:

os mais frequentes em língua (verdadeiro, belo. etc.);

— unidades impostas pelo gênero do discurso (santo, louvável,


justo,. .):

150
— unidades cuja posição singular é explicada pela especificidade
da formação discursiva.

Evidentemente. são os elementos deste último conjunto que nos


interessam, desde que sua freqüência e sua valência estejam em har­
monia. Decorre daí que o termo d oce desempenha, inegavelmente, o
papel de palavra-chave; nenhuma eoerção linguística ou lipológica
pode explicar que suas frequência e valência sejam as mais eleva­
das (72 ocorrências, 51 associações diferentes). Este estatuto privi­
legiado de doce decorre do fato de que uma parte notável de suas
acepções na língua recobre as categorias semânticas que permitiram
definir as diversas classes do núcleo; esta palavra, consequentemen­
te, dá acesso ao conjunto dé categorias sobre as quais se manifesta
a formação discursiva. Assim, um enunciador ligado a este discurso,
a cada vez que emprega a palavra doce, encontra-se sob a ação de
toda sua dinâmica semântica e manifesta, através disso, sua depen­
dência deste discurso. A função de uma “palavra chave" consiste exa­
tamente em cristalizar a maior parle das redes de sentido de um uni­
verso textual. Esta função lhe confere uma “ riqueza” que resulta da
conformidade notável entre uma polissemia linguística e coerções dis­
cursivas.

Para encerrar, insistir-se-á no caráter construído da noção de pala


vra-chave que aqui é empregada. Uma unidade só é definida como
tal através de uma grade explícita dc análise de vocabulário que leva
em conta, a um só tempo, o funcionamento da formação discursiva e
o valor da unidade cm língua.

LÍNGUA. DISCURSO. 1NTERD1SCURSO

I ornou-se lugar-comum dizer que o léxico de uma língua não


pode scr considerado independentemente das ideologias que circulam
no interior de uma sociedade, das posições de seus usuários. O analis­
ta do discurso certamente lida com palavras que figuram nus dicio­
nários. mas não é nele que encontrará todos os elementos que lhe são
necessários pata apreender o valor de uma palavra em uma formação
discursiva determinada. Como é possível prever, uma divisão opcra-sc
imediatamente entre os pesquisadores que. sobre este assunto, maxinú-

B I0 U O T 6 C A S E T O R IA L DC ÍD U C A Ç * 0 | 151
FACUI DAOE DE EDUCAÇÃO • 11 f ' ' ______
/um o peso da semântica linguística e aqueles que adotam uma atitude
contrária, tazendo tudo o léxico oscilar no campo do discurso.

liste gênero de controvérsia é amplamcnte lalsiliçado pelo lato


de que o problema se coloca difeientemente, segundo o tipo de pala­
vras que são tornadas implicitamente como ponto de referência. A isto
acrescenta-se o caráter lalacioso de uma oposição elementai entre
"língua” e "discurso”; não é muito pertinente conlrontar um léxico
supostamente comum a todos os locutores e do qual o dicionário seria
o depositário com usos específicos desta ou daquela lormavão dis­
cursiva Na realidade, a situação c mais complexa: o que chamamos
"língua" está atravessado por múltiplos discursos e não podei ia esta-
bilizar-se já que. de acordo com os estatutos dos locutores, existem
acessos muito diversificados aos estoques lexicais. A Al) deve iesig
nar-se a isto: ela não pode se contentar em recorrer aos dicionários
mas ela também não pode recusar a existência de um Dicionário, dc
um espado de uniformização semântica relativa, o que ) M. Marandin
chama de um "discurso nacional" onde "cada entrada constitui um
conjunto consistente de enunciados, separado da foi inação discursiva
onde foram produzidos e, de alguma forma, "naturalizados". O con­
junto consistente de enunciados, ao "definir" um termo, constitui um
tipo particular de pré-construído: um pré-construído assimilado à
própria existência da língua nacional”

Mas a questão não consiste unicamente em saber como uma for­


mação discursiva constrói seu espaço próprio através das virtualida-
des da língua; isto também se dá sob a pressão do interdiseurso, que
força estreitamento esta interação entre o linguístico e o discursivo.
Como bem o sublinha Bakhtin, todo discurso, através de suas palavras,
é envolvido no interior de um imenso rumor "dialógico” :

"Voltado pata seu objeto, ele penetra neste meio de palavias


estrangeiras, agitado por diálogos e tensionado por palavras, se
insinua em suas interações complicadas, funde se com algumas,
afasta-se de outras, cruza-se com terceiras, (. .) Um enunciado
vivo, significativamente surgido em um momento histórico e em
um meio social determinado, não pode deixar de tocar em milha­
res de fios dialógicos vivos, tecidos pela consciência sóeio-ideo
lógica em torno do objeto de tal enunciado ’17"

152
Comentando uir. irabalho de A D 'iB que incide sobre os substan­
tivos programa, projeto, p rop osição cm textos eleitorais de 1977-1978,
| Bastuji empenhou-se em mostrar que o sentido destas palavras não
é inteiramente determinado pelas posições ideológicas, isto é, que a
semântica da língua ai intervém com muita força. Na realidade, neste
corpus os empregos dos substantivos estudados correspondem com
exatidão aos significados que lhes estão associados nos dicionários de
língua: “ As quatro formações políticas exploram valores lexicais fixa­
dos em francês contemporâneo sem absolvíam en te m odificar seu sen-
t i d o 39”, Estas palavras possuem certas virtualidades em língua e a
eficácia leva a respeitadas já que se trata de um discurso eleitoral
dirigido a um público a priori indeterminado, cujo interdiscurso é
muito pouco especificado. Program a é o termo convencional para
designar este tipo de produção; como o "programa comum" da es­
querda dele se apropriou (fato de interdiscurso), os outros partidos
esforçam-se para encontrar, no interior do mesmo paradigma lingüís-
tico, substitutos entre os termos prefixados por pru-, o qual está asso
ciado a um esquema de “ movimento para frente” . Por outro lado,
há conformidade entre a necessidade de diferenciar-se de programa
e o próprio conteúdo dos lexemas em questão: projeto ou proposição
estão ligados, tanto na língua quanto neste corpus, a um indivíduo e
designam conjuntos abertos de enunciados e não, como programa,
um sistema relacionado a um sujeito coletivo. Assim procedendo, os
textos do Partido Republicano e do RPR* reafirmam obliquamente
suas opções liberais, ou seja, individualistas e pragmáticas. Utilizando
termos que não pertencem ao vocabulário político consagrado, fingem
escapar às singularidades politiqueiras.

Logo, explorar as tendências semânticas da língua tem se mos­


trado, frequentemente, útil. J . M. Marandin chega ao mesmo tipo de
conclusão quando examina os empregos de cam ponês no primeiro
capítulo de Quand la C hine s ’év eillera (Quando a China despertará)
de Alain Peyrefitte:

“O conjunto de enunciados com que são construídas estas


sequências parece ser idêntico ao conjunto de enunciados com
que é construído o verbete “ camponês” no G rand R obert c no
Cl rand Larousse de la langue français. ( . . . ) Q uand la C hine mos-

* Rassemblemenl pour la Republique (União pura a República) (N. do T . ).


tra-se. de alguma forma, um sistema de expansão desse sistema
mínimo de frases. Poder-se-ia dizer que a entrada de "camponês”,
no dicionário de francês nacional, constitui a “ situação" descrita
pelo textcTde Peyrefitte (o que nos conduz para bem longe da
China! 40) “.

Uma tal coincidência não é destituída de sentido. Peyrefitte enun­


cia no círculo de uma cultura, de um pré-construído cristalizado nos
dicionários. O leitor encontra este pré-construído com a ilusão de um
desvio exótico, o que confere ao texto uma autoridade particular.

Todavia, uma tal conformidade dificilmente seria encontrada


entre língua e discurso, se fosse preciso tratar de termos cujo sentido
apenas estabelece relações muito pobres com a língua. Para socialism o,
liberdade, d em o cra cia .. . . por exemplo, recorrer ao dicionário de
língua não apresenta grande interesse; é quase unicamente pela consi­
deração do interdiscurso político que seu valor poderá ser circunscrito.
Trata-se, aliás, de palavras privilegiadas pelo método dos termos-
pivôs, e isto é lógico, visto que desembocam diretamente sobre o
conteúdo doutrinai.

Deste ponto de vista, um termo como doce, examinado acima,


representa exatamente um caso simétrico. Com efeito, ele pertence às
tnais profundas camadas lexicais da língua e sua exploração pelo
discurso humanista devoto obedece rigidamente suas coerções. Entre­
tanto, a partir do momento que d oce tornou-se palavra-chave de uma
certa posição discursiva, não escapará do interdiscurso: uma posição
antagônica poderá sistematicamente evitar seu emprego para marcar sua
alteridade, transformando-o em uma espécie de tabu. Uma ilustração
disto encontra-se nas Provinciales que, além dos acontecimentos ime­
diatos que suscitaram sua produção, se constituem em uma máquina
voltada contra o humanismo devoto. Nas dez primeiras cartas deste
livro, d o ce só é empregado duas vezes e, nos dois casos, inserido em
alocuções que parodiam:

“ Nossos casuístas analisaram os vícios cm que mais freqüen-


temente incidimos, em todas as condições, a fim de estabelecer
d oces máximas, sem, todavia, ferir a verdade, pois dificilmente
estaríamos de acordo se não estivéssemos contentes'"”.

154
D oce c palavra-chave do registro positivo do discurso humanista
devoto; nos textos que dependem desta doutrina, cada substantive
ao qual este termo está associado é afetado ipso f a d o por um estatuto
positivo. Como o discurso jansenista constituiu-se contra o humanismo
devoto, ele não pode mais assumir d o ce e emprega-o, desviando-o
através da paródia; colocada na boca de um humanista devoto carica­
tural, esta palavra passa para o registro negativo jansenista: o contexto
mostra claramente que doce m áxim a equivale, de fato, à m áxim a ímpia
( = q u e autoriza o vício, em lugar de proibi-lo). Este processo de
“ tradução” modifica, pois. completamente o valor do termo, o que
uma simples analise cm língua não poderia mostrar.

A partir destes exemplos, percebe-se a importância da dimensão


interdiscursiva no uso do vocabulário. Enunciar certos significantes,
implica significar (nos dois sentidos da palavra) o lugar de onde os
enunciamos; é também significar sobretu d o o lugar de on de n ã o enun­
ciam os, de onde, em hipótese alguma, se deve enunciar. A palava
não aparece tanto como a projeção do que um grupo “ deseja dizer",
o meio de expressar uma doutrina, quanto como o resultado de uma
negociação que sempre deve ser retomada, entre diferentes coerções
através de um espaço saturado de outros signos.

Tudo que foi dito a propósito do vocabulário nas páginas ante


riores tende a questionar o estatuto preponderante que lhe havia sido
atribuído em uma AD que permanecia na órbita da semântica estru-
turalista. A “análise do discurso” varia em função do que c entendido
por “ discurso” e do que se julga pertinente de aí apreender. Houve
um tempo em que a AD se interessava quase exclusivamente pelos
substantivos de conteúdo ideológico imediato; se atualmente tornou-se
possível examinar tematizações, determinações, adjetivos avaliativos,
. é porque a concepção do discurso enriqueceu-se. Isto poderá set
melhor percebido no capítulo seguinte, onde serão examinadas as
palavras com função argumentativa.

ü vocabulário encontra-se necessariamente situado no cruzamen­


to de múltiplas instâncias, da cena enunciativa aos modos de coesão
textual, passando pelo interdiscurso. . Sua análise deveria, pois, dai
acesso a esta complexidade. O termo d oce, já examinado, não constitui
apenas um predicado da devoção no humanismo devoto (“a verda­
deira devoção é doce”) que se opõe aos predicados de outras forma­
ções discursivas, mas diz respeito igualmente ao “ tom” do enunciador

155
legítimo (que deve expressar-se “ docemente”), seu “ caráter”, o gênero
de cenas enunciativas requeridas (cartas, conversas fam iliares)...
Tende-se a passar d e um a lex icolog ia a uma sem ântica “g lo b a l”, susce­
tível de integrar as diversas dimensões da discursividade. Não é neces­
sário que isto tome a forma de uma dependência comum face a um
mesmo sistema de restrições semânticas; o essencial é que, de direito,
nenhuma destas dimensões fique fora da análise

1 . So b re a le xico m etria ver I n itia tio n a u i m é t h o d e s d e t'a n a ly s e du d isco u r s,


p. 22-45

2. P ie fe rim o s u tiliz a r esta d e n o m in ação à de "an álise h a rris ia n a ” , que. com o


v im o s, é absolutam ente im p ró p ria . Poder-se-ia tam bém f a la r , com o o fa z
1 B . N larcellesi, de “ an á lise do discurso com entrada le x ic a l” .
3. I ou is Ciuespin, “ l.'a n a ly s e du disco u rs politique en 1-rance. A c q u is et ten-
dences” , in L e d is c o u r s p o lit iq u e , p. 147.

4 l.a n g a g e s , n .° 55, p .19 c seg.

5. “ C o u rte critique pour une longue h isto ire” , in D ia le c tiq u e s , n .° 26, 1979

6. l.a n g a g e s . n .° 62, p. 79

7. J . M . M arand in. op. c it ., p 37

8 l.a n g a g e s , n .° 70, p. 76

9. T ra ta -se do C ours rég u lier d e lan gu e jtan çaise (C u rso In te rm e d iá rio ), liv io
do m estre, de E . H a n rio t e E . H u le u x , P a ris, A lc id e P ic a rd et K a n n , 1906.

10. P a ra uma análise m ais d e ta lh a d a , ver L es livres d ' é c o le d e la R e p u b liq u e .


I, cap . 5.

11. "K c la tio n s p arap hrastiques el constru ction du sens. A n a ly s e d ’une form ule
dans le discours xén ophob e” , in M o d e le s lin g u istiq u es, tom o IV , fascículo
I , 19X2, p. 39 e seg. Sobre o mesmo assunto, ver " R e c h e rc h ts sur les
d isco u rs xénophobes” de M . E b e l e P . E ia la , in T ru vau x du c en tre d e re-
c h e r c h e s s é m io lo g iq u e s . n .° s 27 e 28 . N euchátel, 1977.

12. A r i. c i l ., p. 60.

13 A r t . cit , p. 58.

14 A r t . c it., p. 63.

15. A l t . c il., p. 73.

16. “ B ila n d u n e recherche en analyse du discours” . in M o ls , n .° 6, m arço,


1983, p. 157.

156
17. Lunguges. n.J 62, p

18. Art. cit., p. 98.

19 “ l.c xiq u e et syn taxe cn analyse du d isco u rs: proposilions d a n a ly se am orna


tiq u e". co m u nicação apresentada no C ongresso Internacional de ‘'In fo rm á ­
tica e C iên cias H um anas", I.ièg e, n o v.. 1982. M im eo.

20 Fste program a logístico é apresentado por P ie rre Plante no n .° 6 de M ots.


p. 101 e seg.

2 1 . Trata-se aqui da oposição tema co m en tário (em inglês t o p i c /c o m m e n l ) ■


P a ra uma abordagem de A D sobre a lem a tiza çã o ver M . Borel e M . Hbel,
“lntaginez-vous, suisses et suissesses. N ote su r un consensus", in L u n g ag e
et s o c ié t é . p. 49-72

22. B. B asire , "G ro u p e s nom inaux satures et d isco u rs", in O R L A I'. n .u 27,
p. 47.

2 3 . "A n a ly s e s de d isco u rs: stratégie de d escrip tion le xlu e lle ". in M ots. n .° y,
p. 151.

2 4 . A r t . c it., p. 152.

2 5 . A r t . c it., p. 158

26 A i l e s itu d e u x iè m e e o tlo q u e d e le x ic o lo g t e p o litiq u e . Pa ris, K lin c k s ic c k ,


1982. p 473-492

27 üp. c it., p 489

28 Tratam -se de resoluções sin d icais votadas nos congressos da C F T C (C o n fe-


dération F ra n ç a ise des T ra v a ille u rs C h r é lie n s ) . da C F D T (C o n féd ératio n
Fra n ça ise D ém ocratiquc du T r a v a il ) , da C G T (C o nféd ératio n G é n é ra le du
F r a v a il) de F O , entre 1971 e 1976

2 9 . O p. c it., p. 473

30 . O p. c it., p. 48 3.

31 Op. c it., p. 4 8 y

32 . P a ra uma apresentação m ais detalhada vei "R é se a u x dassoctations et mois


clés en analyse du discours’’, in C ah iers d e lexicologte. n ° 40, 1982 — I

33. A obra m ais célebre de São F ra n c is c o de Sales, de 1609

34 . U m Irag m ento deste texto fo i apresentado no capitulo 1, I , quando a


noção de ethos foi introduzida.

35. A frequência da associação está in d icad a entre parênteses

36. Lttngtiges, n .° 55, p. 55.

37 Citado poi J Authiei. in H R l.A 1’. n ° 26. 1982. p 113

)/
38. T r a ta se de um a dissertação de m estrado de I . Ricateau-Pcrego que estuda
os textos sobre o en sin o , produzido pelo Partido R ep u b lica n o , pelo R P R
(R assem blem ent pottr Ia R é p u b liq u e ), pelo Partido C o m u n ista, pelo P a r­
tido So cialista para as eleições leg islativas. A escolha destas palavras c e x­
plicada pelo fato de elas figurarem nos títulos dos p ro g ram as: l.e P rojel
républicain , P rop osition s p o u r Ia F ran ce, P rogram m e C otnm um de G ouver-
nem ent. O artigo de J . B astu ji, “ Sém antiquc. pragm atique et discou rs".
encontra-se em l.in v . n " 4. 1981. p. 7-45

39. Alt. cit.. p. 36.

40 / nngages. n.° 55, p 80

41 Op c it . p 103 ÍO g rifo é no sso ).

158
2.

OS CONECTIVOS ARGUMENTATIVOS

A análise da coesão textual recorre a um campo de ptoblemas


diversos: fenômenos de anáfora em sentido amplo, recuperações pres-
suposicionais, progressão temática, narratividade, argumentação, etc.
O desenvolvimento destes domínios não c recente *. Neste capítulo,
concentraremos nossa atenção sobre o que Ducrot chama de "palavras
do discurso”, apenas aludidas no volume precedente. O interesse cres­
cente pelos conectores argumentativos {mas. pois. l o g o . . . ) ocorre
paralelamente ao deslocamento que a AO sofreu em seu conjunto.

Não é inútil, quando teorias que empregam constantemente


o termo “ discurso” são mencionadas, lembrar, ainda uma ve/, que
este uso de “ discurso" não se situa no mesmo nível que o da
AD, a qual com este termo refere-se à “ formação discursiva”.
Mesmo que estas teorias da argumentação utilizem amplamente
os elementos do contexto, apelem para as circunstâncias da co­
municação, isto não as transforma cm AD. filas preferem consi­
derar a prática ordinária da linguagem, enquanto a AD se inte­
ressa pelas interpretações construídas a partir de hipóteses funda­
das na articulação das formações discursivas com as conjunturas
históricas. Ê conveniente não ser vítima desta ambiguidade.

Em geral, as teorias da argumentação oscilam entre uma concep­


ção “ logicista" e uma concepção “ retórica". O estudo da argumentação
em língua deixou, pouco a pouco, de copiar os modelos utilizados na
denionctração matemática; isso teria ocorrido, talvez, em função de

1Õ9
que a “ argumentação é sempre construída por alguém, contruriamenic
a uma demonstração que pode ser feita por "qualquer um". Trata-se.
pois, de um processo, pelo menos viitualmenle. dialógicu Quanto
mais estes trabalhos se refinam, mais parece evidente que a língua,
com certeza, pusbtii um valor argumentativo que é essencial, mas que
obedece a princípios absolutainente específicos. Nem por isso a AI)
deve ser relegada a uma concepção "retórica" da argumentação,
mesmo que, em boa parte, ela se construa no interior do campo que
a retórica tradicional ocupava. Permanece uma separação irredutível
entre esta retórica e seus prolongamentos modernos (as múltiplas téc­
nicas da comunicação eficaz, da persuasão.. ) e a Al): enquanto a
primeira supõe um sujeito soberano que "utiliza" “ procedimentos”
a serviço de uma finalidade explícita, para a segunda, as formas de
subjetividade estão implicadas nas próprias condições de possibilidade
da formação discursiva.

Se as teorias lingiiísticas da argumentação se revelam cruciais


para a Al), é precisamente porque são linguísticas, porque liberam
estratégias argutncniaiivas tão discretas e sutis quanto eficazes, porque
questionam o emmciador e o co-enunciador. l.ongc de serem super­
postas às estruturas, estas estratégias só se manifestam à medida que
a própria organização da língua é condicionada por esta necessidade
de agir sobre outrem. Nesta perspectiva deve ser compreendido parti-
cularmente o fato que a argumentação da linguagem se apóia freqüen
temente sobre o implícito: o implícito não é uma lacuna presente em
uma alocução que, de direito, deveria ser explicitável, mas constitui
uma dimensão essencial da atividade discursiva.

Os lenômetios para os quais estão voltados os trabalhos que


tratam da argumentação na língua são muito variados: poderá ser uma
estrutura interrogativa, uma negação, um advérbio de quantidade, uma
interjeição, ete. Neste capítulo serão considerados os conectiros, isto
é, os morfemas que têm por função ligar dois enunciados. Sobre esses
conectivos já existe uma bibliografia importante, embora desigual,
alguns deles sendo muito estudados e outros, pouco ou nada; contentar-
nos-emos em lembrar alguns. Não se trata de estudar estes conectivos
por eles mesmos, mas de verificar o proveito que a AL) pode tirar de
sua analise sistemática

lbü
SEMÂNTICA E ARGUMENTAÇÃO

I
À medida que o estudo destes conectivos repousa em boa parte
sobre as pesquisas de O. Ducrol e de |.C. Anscombre, é necessário
referir alguns de seus pressupostos teóricos. Trata-se, em primeiro
lugar, de uma certa concepção semântica; “ uma decisão que não de­
pende de lima demonstração com pretensão científica". Como explica
Ducrot,

"um enunciado é composto de palavras para as quais não é


possível fixar nenhum valor intrínseco estável ( . . . ) , seu valor
semântico não residiría, pois, em si mesmo, mas apenas nas rela­
ções que estabelece com outros enunciados, enunciados estes que
ele está destinado a admitir ou aqueles que são supostamente
capazes de por ele serem admitidos3".

Concepção que, como se vê, liga radicalmente semântica linguís­


tica e argumentação. Esta última noção é assim apresentada:

"SJm locutor faz uma argumentação quando apresenta uni


enunciado Ei (ou um conjunto de enunciados) destinado a jazer
adm itir um outro (ou um conjunto de outros) E-. Nossa tese é
que existem coerções na língua que regem esta apresentação1".

"Na língua”, este é o ponto decisivo. Considerem-se, pot exem­


plo, os dois enunciados:

( 1) I\u.lu nãi) 1 /1/ todos os /Umes d e Kurosaiva.

( 2 ) juão viu alguns film es d e Kurosavva.

Em um plano estritamente informativo, é bem possível que Paulo


conheça muito melhor a obra de Kurosawa do que |oão. Entretanto,
a inserção destes enunciados em uma argumentação revela uma dife­
rença inesperada: após (2), é possível encadear Ele pod erá informá-lo,
mas não após ( 1 ). Isto significa que ( 1 ) está orientado para uma
conclusão negativa c ( 2), para uma conclusão positiva, independente-
l
I
mente do estado de coisas expresso por estes dois enunciados. Os
encadeamentos argumentativos possíveis dependem, pois. da estrutura
linguística dos enunciados e não apen as das informações qu e veiculam

Na definição de argumentação dada anterioimenie, afirmou-se que


o locutor, ao argumentar, “ apresenta" um enunciado destinado a
admitir um outro. liste ponto é importante; com efeito, quando um
locutor utiliza um enunciado A a favor de uma conclusão (.’, isto não
significa que A é dito para que o destinatário ‘pense" C (problema
que não depende da linguística), tampouco para que "conclua"
Na realidade, ele apresenta A como c a p a : de conduzir o destinatário
a concluir C. como razão para acreditar em C f. constitutivo do sen­
tido de uin enunciado pretender orientar a seqiiência do discurso em
uma certa direção, reivindicar um certo limite que im põe ao destina
tário através d e sua própria enunciação. Isto não significa, evidente
mente, que o interlocutor não possa escapar a este limite.

Entre estes fenômenos que restringem os encadeamentos argu­


mentativos convém distinguir duas grandes classes: os conectivos e os
operadores. Os primeiros servem para ligai dois ou vários enuncia
dos, destinando a cada um um papel particular em uma estratégia
argumentativa única, enquanto os segundos (não. quase, etc.) aplicam
se a um enunciado único, ao qual conferem um potencial argumen
lativo específico.

Umas das particularidades destes conectivos é que, diferentemen


te dos conectivos lógicos, eles podem ligar não apenas proposições
mas também enunciações a proposições, e mesmo encadear com
elementos da situação extraiingüística ou com reações não ditas que o
locutor atribui a si mesmo ou ao destinatário. Dito de outra forma,
os elementos conectados podem perfeilamente sei de naturezas dis
tintas. Consideremos estes dois exemplos

tl) Estamos prontos para com bater, já que [puisqu e] vocês q u e­


rem con hecer nossas intenções.
(2) (Diante de uma audiência que o difama, um político grita:)
Vocês pretendem , pois \donc\. a liberdade de expressão.

Em (1), o enunciado que segue já qu e não representa evidente­


mente a causa da decisão de combater: é a enunciação de Estamos
prontos para com bater que é assim legitimada, e não o conteúdo do
enunciado propriamente dito. Em (2), a relação estabelecida por pois
liga, não duas proposições, mas uma situação (a agressividade do
auditório) a uma proposição: note-se que, neste último exemplo, é o
locutor que constitui as reações do público como argumento a favor
da conclusão que enuncia; é através disso que coloca seus interlo­
cutores em posição de transgressores.

Da mesma forma, enquanto cm lógica, os conectivos incidem


sobre duas proposições explícitas c delim itadas, na língua, as impo­
sições relativas à boa formação não se mostram absolutamente neces­
sárias. Uin conectivo tão bana! como m as, por exemplo, em geral
não explicita a conclusão que pretende fazer admitir. Quanto à deli­
mitação dos enunciados postos em relação, não se trata obrigatória
mente daqueles que precedem e seguem imediatamente os conectivos.
Enfim, o conectivo pode pôr cm jogo. não um enunciado preciso, mas
todo o movimento discursivo cujas fronteiras são, por vezes, indeci­
sas. Pode mesmo ocorrer que uma conexão se estabeleça sem a inter­
venção de um conectivo explícito; em

Os fran ceses estão cansados d e sua p olítica Cp): eles rcapem (q).

a colocação do enunciado p parece autorizar a produção de q. mas


sem especificação suplementar.

Uma boa ilustração deste funcionamento bastante complexo en­


contra-se na fala de Valérv Giscard d Estaing, analisada por Ducrot:

tl) "Enfim, desejo ser um presidente democrático. (2) Quero


dizer com isso que, aconteça o que acontecer, respeitarei a deci­
são do sufrágio universal (3) Não exerço sobre os senhores ne­
nhuma ameaça, nem qualquer chantagem. (4) Os scnhoics farão
sua escolha e vossa escolha, eu a respeitarei".

Segundo Ducrot. trata-se de um encadeamento heterogêneo onde


o enunciado (3). apresenta-se sem conectivo, incide a o m esmo tem po
sobre o enunciado qu e o p reced e e a qu ele qu e o segue. Todavia, a
relação de (3) com (2) e (4) é bem particular: trata-se de um comen­
tário que incide não sobre o conteúdo factual (que está no futuro).

16'
mas sobre o p róp rio ato de enunciar (2) on (4). O que podería ser
assim interpretado: “ O ia to de o candidato afirmar, antes das elei­
ções, que respeitará, após as eleições, a decisão do povo pode ser
suficiente para mostrar que se recusa a ser, iw m om en to em qu e lula.
como se dizia na época, o “candidato do medo” que se apoia no temot
de um golpe de Fstado para arrancar os votos s” .

U estudo destes fenômenos de argumentação conduz, igualmente,


à retomada de uma possível interpretação dos enunciados, da ativi­
dade do destinatário suposta por tais mecanismos. Compreender uma
sequência onde figura um coneelivo não consiste em decifrar seu signi­
ficado para associá-lo ao de seus concorrentes, mas em aplicar um
certo número de instruções ligadas ao emprego deste conectivo para
reconstruir o sentido do enunciado:

“ A significação ( . . . ) contém, sobretudo, cm nossa opinião,


instruções dadas àqueles que deverão interpretar um enunciado
da frase, solicitando-lhes que procurem, na situação de discurso
este ou aquele tipo de informação para utilizá-la desta ou daque­
la maneira para reconstruir o sentido visado pelo locutor'1’'.

Se várias reconstruções se revelarem possíveis, isto implica que


a interpretação pode ser defeituosa ou duvidosa. Uma tal concepção
incide sobre a representação que fazemos da textualidade, considerada
como uma espécie de "armadilha” lançada ao destinatário. “ Pata a
compreensão de um texto, são importantes, não apenas as indicações
que ele traz para o destinatário, mas tam bém as m anobras às quais
é subm etido, os percursos qu e é obrigado a seguir". Assim, o caráter
indireto da interpretação, longe de constituir uma imperfeição ocasio­
nal. seria sua dimensão essencial: ela prescreve, através de sua estru
tura. o percurso que sua leitura implica.

ler-se-á, sem dúvida, notado, a partir da leitura desta apresen­


tação sumária, que tais formulações acarretam um certo perigo pata
a AD. Na verdade, somos constantemente levados a falar de “ sentido
pretendido pelo locutor”, de “ estratégias", de "manobras”, etc., diri­
gidas para o destinatário. O linguista dificilmente pode dispensar este
gênero de formulações, mas seria preciso não considerá-las em seu
sentido estrito, nem representar a enunciação como uma partida de
xadrez onde cada jogador calcula com toda a lucidez como vencer

1b4
seu adversário. Se este modo de dizer não traz consequências para u
estudo do uso comum da linguagem, é muito diferente para a Al), a
qual trata com sujeitos dominados pelas imposições das formações
discursivas e não com manipuladores que dominam do exterior suas
enunciações.

MAIS [MAS]

"É difícil, após ter começado a observá-la, de não ficar fascinado


pela conjunção m as”, escreve Ducrot 7. De fato, trata-se do conectivo
que, de longe, foi o mais estudado s. Note-se que ele apresenta utn
interesse indiscutível para a AD, em razão da sua grande frequência e
de sua ligação com o implícito.

Os linguistas distinguem habitualmente dois m as: um mas de


"refutação” (cf. em alemão S on d em e em espanhol sino) e um m as de
"argumentação” , sobre o qual nos deteremos um pouco mais. O pri­
meiro é ilustrado pelo seguinte texto:

"O protocolo de 16 de dezembro de 1984, embora rejeitado


no último momento, será lembrado por muito tempo: o sindicato
não mais aparece como um agrupamento de defesa dos interes­
ses dos assalariados, mas como um instrumento de gestão econô­
mica à disposição de quem dele deseja se servir” ( l.e M onde,
3/ 1/ 1985, p. 2).

Estamos diante, aqui, da encenação de uma estrutura de diálogo,


no interior de um movimento único de refutação, que liga a negação
e a retificação.

Ü mas argumentativo, em compensação, liga dois atos distintos.


Ducrot parafraseia desta forma o movimento “ P mas Q ” : "Sim, P é
verdadeiro; você teria a tendência de, em decorrência disso, concluir
R; mas não deve fazê-lo, pois Q (Q é apresentado como um argu­
mento fais forte para não-R do que P o é para R 8” . P é apresentado
pelo locutor como devendo conduzir o interlocutor a concluir R;
não está inscrito na natureza das coisas e, fora de contexto, a priori,
não há nenhuma razão para opor os enunciados que são opostos por
mas. É o texto que. através de seu movimento, institui uma tal
oposição. Tomemos o exemplo de Ducrot no qual H. Kissinger declara,
a propósito de uma conversa havida entre o Presidente Ford c o
Primeiro-Ministro belga, “que ele tinha sido muito franco mas a
atmosfera havia sido amigável”. Esta oposição entre franqueza e ami­
zade só é legitimada pelo contexto situacional: dada a tensão entre os
dois países naquele momento, a “ franqueza" teria implicado a ruptura.
Este apoio necessário sobre o implícito aparece com toda sua força
nos enunciados peremptórios: dizer Ele é d e esquerda, mas inteligente.
consiste em pressupor, a partir de uma certa posição ideológica, uma
incompatibilidade entre pertencer à esquerda e ser inteligente, incom­
patibilidade requisitada pela interpretação da seqüência.

A existência de dois mas, refutativo c argumentativo, não deve.


entretanto, mascarar suas afinidades pragmáticas. Tanto em um caso
como no outro, institui-se um afrontamento entre o locutor e um des­
tinatário (real ou fictício), e não uma simples oposição entre dois enun­
ciados. ü mas de refutação recusa a legitimidade daquilo que um
destinatário disse ou pensou, ou poderia ter dito ou pensado. |á o
mas argumentativo possibilita a oposição à interpretação argumentaliva
que um destinatário atribui ou poderia atribuir à proposição P de
" P mas O ”. São dois interlocutores que se opõem, não dois conteúdos.

Mais tarde, Ducrot introduziu urna correção à sua análise habitual


do mas argumentativo, onde o argumento não-R era considerado “mais
forte” do que R: “ De fato, a única coisa constante c que o locutor
declara negligenciar o primeiro [enunciado] da argumentação que está
construindo, para apoiar-se apenas no segundo — a força argumenta-
tiva superior atribuída a este não passa de uma justificação desta de­
cisão Este funcionamento de “ P mas O " pode ser resumido com
auxílio do esquema que segue:

P MAS Q

conclusão r - « ------------- ► c o n c l u s ã o não-r

< - “ ser um argumento menos forte"

----- *- - "ser um argumento a favor de”

•*— -*■ — "ser contraditório em relação a"

Ib í S
Na análise que considerava a “ força argumentativa", dizia-se que
mas colocava Q como mais forte; na versão mais recente, m as não
estabelece diretamente relação entre P c Q, apenas coloca P como
“negligenciavcl". derivando a força maior de C).

liste esquema pode ser percorrido de duas formas, dependendo


do fato de mas introduzir O ou não-R. Sejam os enunciados

P : E le é paulista

ü : Ele é honesto

R : N ão se p o d e con fiar nele

Pode-se obter tanto E le é paulista, tttas honesto (P mas O), quanto


Ele é paulista, mas é possível confiar n ele (P mas não-R). No primeiro
caso, é preciso encontrar a conclusão implícita; c o percurso mais fre-
qiiente, o qual consideramos até aqui. No segundo, a conclusão é dada.
sendo necessário encontrar o argumento mais forte. O. Como a ausên­
cia de um argumento é difícil de reduzir, o enunciado frequentemente
o explicita: Ele é paulista (P), mas é p ossível co n fiar n ele (não-R);
ele é honesto (Q). ü primeiro percurso de mas estabelece uma relação
indireta entre P e não-R, enquanto o segundo o faz diretamente

A associação muito frequente de certam en te com mas em movi­


mentos do tipo “ecrtamente P. mas Q “ permite que Ducrol intioduza
a análise polifônica para estes empregos: certam en te atribui a um opo­
nente fictício um argumento que desqualifica o enunciado introduzido
por mas. Põe-se, desta forma, em cena “ dois enunciadores sucessivos.
Pi e Eü, que argumentam em sentidos opostos. ( . . . ) Embora o locutor
se declare de acordo com o fato alegado por Ei, ele, no entanto, se
distancia de Ei " " para assimilar-se a l j. Consideremos o fragmento
de um artigo consagrado aos maus tratos infligidos a um livreiro fran­
cês pela polícia polonesa:

“Os fatos lalam por si e lembram infalivelmente outros epi­


sódios. certam ente muito mais graves, mas de mesma natureza,
c, em primeiríssimo lugar, o rapto do padre l’opielus/ko“ </e
M onde. 1 9 /0 3 /1 9 8 5 . p. 1)
"Certamente muito mais graves" é uni argumento que se orienta
para lima conclusão do tipo "não é legítimo afirmar que estes fatos
lembram outros episódios"; argumento que é negligenciado pela enun-
ciação tio que mas introduz, conduzindo a uma conclusão contrária. O
locutor atribui o primeiro argumento a um cnunciador l£i que tlefen-
deria o governo polonês e dele se distancia para identificar-se ao cnun­
ciador que considera legítimo pensar que este caso lembra o do padre
Popieluszko. O primeiro enunciado corresponde a um ato de "con ­
cessão”, o segundo, a uma afirmação, atos que o esquema “certamente
P, mas ü ” não coloca sobre um mesmo plano.

Lsta descrição de mas. entretanto, não permite, de imediato, dar


conta de todos os empregos que podem sei encontrados. Na realidade,
esta é uma das particularidades desse tipo de unidades linguísticas:
elas podem engendrar, neste ou naquele contexto, efeitos de sentido
aparentemente distantes, os quais, entretanto, continuam articuláveis
u partir do valor fundamental que possuem na língua **. Assim, em
uma alocução televisionada, V. Giscard dT.staing faz a pergunta:
"Quem escolher, e para fazer o qu ê?" e. após ter respondido à pri­
meira parte da questão, retoma a: "Quem escolher, mas para fazer o
quê?” Hsie último mas não deixa de intrigar.

Para Duerot, este emprego desconcertante seria explicado pela


consideração da cronologia enunciaiiva. A pergunta "Quem escolher?
à medida que acaba de receber uma resposta, orienta, de preferência,
em direção a uma conclusão do tipo “ Minha fala está encerrada” ; cm
compensação, "para fazer o quê?", como ainda não foi respondida,
orienta melhor em direção a "P. preciso que eu fale ainda”. Neste con­
texto, o P de “ P mas O ” teria, consequentemente, uma função de
fechamento e Q, de abertura. Aqui a conclusão sugerida por P seria
uma espécie de atitude metalingüística que consistiría, para o ouvinte,
em desviar-se do discurso quando este parece acabado. Atitude con
tradita pelo que segue ao mas. A explicação deve, pois, lazer intervir
o lugar da pergunta na sequência do texto; os "argumentos” e as
"conclusões" de que se trata neste caso não dependem, de forma al­
guma, do que diz o texto, mas da m aneira pela qual este texto se
desenvolve. Com exemplos deste tipo, pode-se ter uma idéia da sutileza
de certos empregos
lilEN ÜUL [AINDA QUE]

Mas é apenas um dos elementos da classe dos conectivos conces­


sivos. A con cessão constitui um movimento argumentativo que inte­
gra uma aprovação e uma refutação, apresentando um argumento a
favor de uma certa conclusão e um argumento mais forte em favor da
conclusão inversa. Deve-se distinguir entre a concessão lógica, a de
ainda que e a concessão argumentativa, a de m as K1. Na segunda, os
enunciados ligados estão orientados em direção a uma conclusão, en­
quanto na concessão lógica não se pode falar de "orientação” argu­
mentativa, mas de relação de causalidade, de inferência entre propo­
sições que denotam fatos. Nesta perspectiva:

Ainda qu e u insegurança aum ente continuam ente, os eletivos


de polícia perm anecem estáveis

poderá ser analisado como segue:


— I* (“a insegurança aumenta continuamente") implica não-ü
tos efetivos de polícia aumentam);

— tem-se Q (“ os efetivos de polícia permanecem estáveis”), que


estabelece uma relação contraditória com não-Q.

Há oposição direta entre Q e não-ü (mesmo que não-Q permaneça


implícito): em circunstâncias normais, o fato P é a causa do fato
não-Q.

Esta distinção entre concessão lógica e argumentativa, e é aí


que reside seu interesse, não corresponde a um recorte da realidade
entre fatos e orientações argumentativas, mas a m odos diferentes de
apresentação do discurso: c o concctivo que decide a interpretação
pertinente. Isto não significa, entretanto, que o conteúdo das propo­
sições assim ligadas seja indiferente; não é qualquer coisa que pode
ser argumento para uma conclusão ou causa para um efeito, e a
relação de causa é mais restritiva: Ainda que Paulo seja simpático.
Maria é m orena tem pouca probabilidade de ser aceitável porque é
difícil perceber uma relação entre os dois fatos assim ligados. Em
compensação, Paulo é sim pático, mas Maria é m orena, passa facil­
mente. a medida que é possível imaginar contextos onde, para uma

Itm
cena conclusão, u fato dc sei moreno podería coimiiuii um argumento
mais 101 to do que o lato de uma outra pessoa mu simpática.

A análise dos movimentos concessivos mostra pois que m as e


ainda 1/110 introduzem constituintes cujos estatutos são distintos: en
quanto mas introduz o argumento mais forte, ainda </ue introduz uma
causa não determ inante"

listes dois ccmcetivos. entretanto, não esgotam o leque de mar


cadores de concessão. Seria preciso igualmente considerar termos '
como cepen dan t \ con tu do), nénnm oins [en tretan to], i/uand bien menta
\apesar d e q u e I. etc. I)e passagem, assinalemos a divergência entre
quand mente [a p esa r d e | e pourtant |no entanto], que faz intervir,
entre outtas coisas, o caráter "subjetivo" ou "objetivo" da norma
subjacente à relação de inferência que estabelecem estes eonectivos:
encontra-se aí uma oposição entre o "lógico" e o "argumentativo". l’or
exemplo

L ie é paulista (I’); iw entanto, nem sem pre seguiu u U cne


ral (01

pode significai que. em viriudc de alguma norma "objetiva", o lato


dc ser gaulista (IM deveria ser a causa para seguir o General (não-
0 ) : ora. tem-se U ("ele nem sempre seguiu 0 General"), ü im­
plícito c. pois. aqui. a própria norma: I’ é nonnalnieme causa de
não-C). Segundo |. G. Anscombre. " de lato, trata-se não de uma iclaçáo
causai no sentido científico do termo, mas de um topos ( lugai
comum], com o qual o locutor joga 1'" F.m compensação.

I l e e paulista (I’): a p esa t disso, pode-se confiar nele (U)

remete às orientações aigumentativas. U destiiuitái 10 c obrigado a


procurar a intenção argumenlativa de I’ ("ble é gaulista"). conclusão
em cuja direção o enunciado está orientado, e interpretar O como
não-R. a conclusão contrária Confrontando apesar de e no entanto.

Nos exem plos trad uzid os que o eo ire rão ao longo deste capitulo, manteremos
sempre essa mesma co rre lação e n lic fta tu ê s e português (N do I I
descobre se a diferença entre a argumentação e a demonstração eoin
base em relações causais

C A R [ P O I S ] , PARC li 0 1 I f F O R Q U F ]. PUISOUF. [ P O I S O U b ]

bstes conectivos parecem sinônimos para a maior parte dos Io-


cutores; na realidade, há divergências importantes entre eles. as quais
nos obrigam a opor, de um ponto de vista pragmático, por um lado
p arcc q u e a car e p u isqiie e. por nutro lado. car a p u isqu e " '•

T p arcc qu e 0 " coluca-nos diante de uma verdadeira subordi


nada, integrada a uma frase complexa. Isto não ocorre com as frases
que começam com pu isqu e e car. Unicamente as Irases introduzidas
por p arcc qu e podem responder à pergunta pcntrquoi? [/><>/ q u ê ? ].
podem ser associadas a c c s l . . . q u e [ é . . q u e ] ou esl e e . q u e
(* est-cc p u isqu e. . ); apenas elas podem ser negadas ou interrogadas
sem se romperem semanticamente í “ cst-cc q i í i l a ec ep te p u isq u e j
car il parí? 7^ est-ce qu'il a e ce p te p arcc q u i l pari? [ S o v q u e ele
aceita p e r qu e p a rte? ]. A oposição pertinente não ocorre, pois. entre
coordenação (car} c subordinação (p arcc que. puisque}. mas entre parcc
qu e c as duas outras.

P parcc que O forma um todo c corresponde a um ato único de


enuneiação que permite fornecer a explicação de um fato P conhecido
pelo destinatário, estabelecendo uma relação nova de causalidade, a
partir de P e de Q. O locutor de " P parcc que Q " empenha sua
responsabilidade, afirmando este elo de causalidade tem sentido am­
plo: é possível tratar-se de um pretexto, de uma condição, etc.). Psta
integração semântica e sintática se traduz, como acabamos de ver.
pela possibilidade de uma interrogação global, incidindo sobre o pró­
prio elo de causalidade.

* A questão que está sendo d iscu tid a passa por um a re p artição um p o u co d i­


ferente cm português (" p o iq u c " c a rn a l \ "porque" e x p lic a tiv o ) e as re s tri­
ções linguísticas para seu uso. em fra n c ê s, estão m u ito hem m a rc a d a s, ta/ão
pela q u al. nesta seção, optei por m anter os conectivos cm fla n c o s , se rv in d o a
trad ução in ic ia l apenas com o um ponto de rcfctêtteia (N . do 1 .)
* A interrogação, em francês, é m arcad a lirrgiiisiicanreirte pela in v e rsã o da
fo rm a verb al, distinguindo-se do português que u tiliz a tinra m arca supra-
s c v in e n la l ( N . d o I t
O mesmo não ocorre com eur e puisque, que fazem aparecer
tanto com a interrogação, quanto com a negação, uma dissociação
dos enunciados em dois atos distintos: a enunciação de I’ seguida
por uma segunda enunciação, que justiliea a primeira. Consideremos
este exemplo retirado das Provinciulcs-

"Encontrei junto à porta um de meus bons amigos, grande


junsenista, pois \car\ tenho-os de todos os partidos, mas ele não
procurava o mesmo Padre que eu 1#”.

Seria impossível empregar aqui paree que: o narrador não en­


contra um amigo jansenista p o rq u e |paree que) ele os tem de todos os
partidos (causalidade), mas justifica sua afirmação "um de meus bons
amigos, grande jansenista”.

Utilizando “ P p aree q u e O", o locutor coloca P como algo co­


nhecido, incontestável, enquanto Q pode ou não ser conhecido peio
interlocutor. Isto explica a eficácia deste conectivo no discurso pu­
blicitário: " E m lugar de afirmar brutalmente um fato — o que po
deria suscitar a idéia que ele é contestável -— propõe-se uma expli­
cação, o que faz aparecer o próprio fato. desprovido de qualquer
dúvida Identifica-se bem tal deslocamento neste enunciado de )
M. L.e Pen: ‘‘Nós nos sacrificamos porque era preciso pensar na Fran
ça e no futuro” ( l.e M onde, 19 /3 /1 9 8 5 , p. 8), que coloca o “sacri
fício” como um fato definitivo e questiona-se sobre seus motivos,
enquanto a questão consiste justamente em saber se este sacrifício, na
realidade, não é algo completamente diferente como, por exemplo,
uma hábil manobra política que, além disso, nada custaria a seus
autores. (Trata-se da desistência de candidatos da Frente Nacional em
favor de seus concorrentes de direita).

tse em " P cur U" existem dois atos de enunciação, dos quais o
segundo é apresentado como destinado a legitimar o primeiro, esta
legitimação pode incidir sobre o direito de enunciar, como foi feito,
ou, mais freqüentemente, sobre o fato de apresentar Q como uma
razão para crer P verdadeiro. Enquanto com paree qu e o enunciado
era dado como incontestado, com ear. que permite a justificação,
P aparece necessariamente como objeto de uma contestação possível.
Em compensação, para o estatuto de Q. cur não impõe muitas res

172
triçõcs; este conteúdo pode ou não ser conhecido pelo destinatário
mas não precisa ser diretamente verificado na situarão de enunciação
(o que o tornaria incontestável). Fm geral, enquanto “ P purce que
Q ” estabelece uma relação de causalidade. "P car Q ” presume "que
tal relação existe, supõe que a verdade de Q torna aceitável a enun­
ciação de P P assim que poderia ser explicado o efeito cômico
deste enunciado de Voltaire: “ O Senhor barão era um dos mais po­
derosos senhores da Wesífália. pois [car] seu castelo tinha uma porta
e janelas”: a justificação Q aqui não tem valor, mas empregando car.
o autor simula considerá-la como suficiente. Distanciamento este que
permite perceber um fenômeno de ironia. A este emprego perverso,
opõe-se este oulio que explora, ao máximo, o valor pragmático de cu r

"A decisão soberana tomada pela Nação nu dia 28 de ou


tubro impõe-se indiscriminadamente a todos e pode ser cio maior
alcance para u futuro da França.

l’ois [ca r] a lei constitucional, tal como foi votada, deter­


mina que, de hoje em diante, o povo francês eleja seu presidente
pelo sufrágio universal” (De Gaulle. discurso difundido pelo rá­
dio e pela TV, em 7 /1 1 /1 9 6 2 ) .

Car encontra aqui sua eficácia plena na legitimação pela lei.

Se ' T puisque U ” aproxima-se de car no que tange à sucessão


de dois atos de enunciação, dele distingue-se, ciai amente, entretanto.
pur lançar mão da “p o l i f o n i a Na realidade, o locutor assume a
enunciação de ” P car O ”; já ao produzir “ P puisque Q". deixa a
responsabilidade de Q a uma outra instância, variável segundo os
contextos. Compreende-se. nestas condições, a impossibilidade de uma
retomada como segue:

A: Ele veio

15: ’ Tu deves estar triste, pois [car] ele veio

Aqui seria possível empregar puisqu e; efetivamente, a alocação


que está sendo enunciada não é do locutor.
f-sla propriedade notável explica a impotiánciu de p m s q u e paia
as argumentações. À medida que o que segue p itisqu c é eoioeado
como já conhecido ou admitido pelo interlocutor, o locutor, mesmo
que não admita 0 . pode fingir colocar se no terreno do adversário
para avaliar as consequências. Kxisto aí uma estratégia interessante-
o locutor, utilizando cur. assume posição defensiva. proetirti justificar-
se: já eom puisipic. |H>de fechai o destinatário, agir sohie ele Pode-se
impor, assim, uma conclusão da qual o destinatário não deve escapai
considerando o que ele já admite ou a tealidade da situação de eium
eiação Neste frapnienlo-

"Não poderão mgiiir-me poi ter destruído a confiança que


em vós era possível depositar; pois que [ptiisque] é hem mais
jm-to conservar para tantas pessoas que dilamastes a reputação
de religiosidade que elas não merecem perder do que deixar vos
a reputação de sincciidade que não mereceis p o s s u ir '1".

Pascal, para justificar seus ataques aos jesuítas, apoia se em uma


"ON-verdadc" ("é bem mais justo "). uma espécie de máxima
cuja validade seria universalmente reconhecida e ve imporia a lodo*
Se houvesse utilizado cur. teria apresentado sua alocação como uma
juslilieaeáo pessoal, não suscetível de set imposta iguulmeiili. aos
adv ersários

L ar e pitisquc definem, pois, movimentos opostos, como liea


demonstrado pelo fato de poder dizer "puisqu e (.), P" (neste último
caso, o destinatário deve ir da verdade de O à de P) enquanto, ao
enunciar " P cur O ", o locutor diz. P e volta alias para limclamentai
sua afirmação. Quanto ao P de " P pitisquc O ", o locutor neeessaiia
mente não u admite (pailiculai mente, cm um tipo de raciocínio em
que o locutor apela para o absurdo quando quer justamenic realçai
a falsidade de P: neste caso. não se pude falar em autojuslilicação: o
locutor pietendc unicamente obrigar o destinatário a admitir a enun
eiação de P). Além disso, nos raciocínios correntes. Duciol •* mostra
bem que ' pitisquc O " pode apoiar a enuneiação de P de outras ma­
neiras: por exemplo, afirmando que aquilo pode iniciessar ao dcsii
natário: "Pois que f pitisquc] os senhores falam ineessantemente em
inllaeão. as cifras do mês de maio são conhecida’-'
Ultrapassando os delalhcs da análise, é preciso ver bem que aqui
está engajada toda uma concepção da atividade cmmciativa: o locutor
aparece como um sujeito que é colhido em uma rede de obrigações de
ordem jurídica, que estabelece lontinuamenle seu direito de lalai como
ele o laz. o que mostra estar ele au torizad o a enunciar.

DONC [IO C .O . POIS']. M .ORS | l-NTÃO 1. AIXSI (ASSIM |

Consideraremos agora alguns conectivos que ligam argumentos a


uma conclusão no interior de uma verdadeira demonstração, isto é,
sem recorrer a "orientações" argumentativas e a implícitos Ycre
mos sucessivamente donc. alors e air.si. que pertencem à classe am­
pliada dos conectivos "consecutivos

Para examinar o donc argumentativo, é preciso começar por se-


pará-lo dc outros empregos de donc (l c disais donc que j eu dizia
pois qu e: allons donc! / vamos pois' etc.). Em "1’ donc 0 "

a relação é dada como necessária:

— o antecedente P é apresentado como lato definitivo:

— o conseqüente 0 aparece legitimado por princípios


gcralm entc adm itidos, não por motivos pessoais.

F.sta consecução pressupõe a existência de uma norma implícita


do tipo "Se lemos P. devemos ter O " Não se tinta de um implícito
"argumentativo" (como as conclusões associadas a mas) que introdu­
ziría uma nova proposição sobre a qual incidirá a enuneiação. mas de
urna relação implícita que fundamenta a demonstração. Reencontra-se
aqui a estrutura canônica do silogismo tradicional (“Todos os ho­
mens são mortais, ora. Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal"),
com a diferença que a premissa maior está implícita. Mais do que uma
verdadeira dedução, trata-se de uma justificação da enuneiação de O.
que e apresentada como se fosse conduzida por uma enuneiação P
que a legitima Gessa forma, a propósito da visita do ministro das
Relações Exteriores da República Federal da Alemanha a Mo-eott. em
I de março de l u8 ã. pode se ler no jornal / c M onde•

a m u o i e c A SETORIAL UB ■ OuqxçiQ V
I DADt p* E o uo A p rp *M 1
'|a que nenhum elemento verdudeiramente novo a propósito
ilos grandes proeessos internacionais foi trazido pelo ministro da
Alemanha Ocidental, é forçoso, pois [</ti/ic], que nos questione
mus sobre as razões desta visita relâmpago" (/ <•M onde. 6 / 1 / 1985.
P 4)

A relação que aqui desempenha o papel de norma implícita seria,


por exemplo: um ministro das Relações F.xteriores não se desloca
sem um motivo sério. Observe-se que o texto, ao utilizar a construção
" e forçoso, pois, que nos questionemos" de certa forma explicita a
obrigação que supostamente justifica u enunciaçào do que segue. Co­
mo se a relação não fosse estabelecida pelo autor, mas pela força das
circunstâncias.

A substituição de dono pot alors pode provocar interessantes


mudanças de sentido. No enunciado que segue, uma tal substituição
parece mesmo muito difícil •

" 0 sentimento que prevalece aqui é que nenhum desmentido


impedirá a população xiila do sul do I.íbano ( . . . ) de consi­
derar Israel como responsável pela explosão de Maraké. Jeru-
salém aguarda pois [d o n c ] (* ? então |«/ws]), uma nova escala
da da guerrilha” (L e M onde. 6 /3 /1 9 8 5 , p. 5)

Gcralmente, "P ulors O " aparece cuntu um processo de dedução


dotado de tonalidade mais subjetiva, menos ligada à existência de
uma norma reconhecida. A partir daí. compreende-se que J o n c se
presta a "manobras” discursivas, quando é empregado para dar um
caráter necessário a uma inferência pessoal. O caráter “ subjetivo"
de alors implica ser necessário recuperar a presença de um sujeito
capaz de asstimii a responsabilidade da conclusão. F.nquanto d on c liga
de maneira necessária, alors contenta-se em validar a transição de um
a outro, de colocar O como a finalidade do dizer. Por esta razão,
alors cobre um amplo leque de empregos, desde os que comuta com
don c até aqueles em que é preciso substitui-lo por nestas condições,
neste m om ento. . . Neste último caso, percebe-se que ele guarda fortes
laços com seu valor temporal, com a sucessão no tempo, e, neste
caso, a tendência é de interpretá-lo em termos de causalidade. Assim,
estamos diante de uma escala contínua de empregos em cujas extre­
midades, opondo se, encontram-se, dc um lado o valor temporal puro
e. o de outro, valor dedutivo puro.

Quanto a ainsi, além de sua função de advérbio de modo, é


suscetível de duas outras interpretações: consecutiva e ilustrativa.
Como conectivo consecutivo, indica menos uma dedução do que
uma relação de meio e fim, de causa e efeito, de razão e consequência.
Substituível por desta form a, d e m od o que. etc., liga um estado de coi­
sas e um acontecimento ou uma situação possibilitados pelo antece­
dente. Comparemos:

( 1 ) C hove: assim (ainsil não saio

(2) Chove: assim (am si) n ão serei obrigado a sair

O enunciado ( 1 ) dificilmente é aceitável, mas o seria se amsi


fosse substituído por donc ou alors. Em compensação, (2) passa mui­
to bem. Isto explica-se pelo fato de que a relação de dedução nau se
enquadra com ainsi. Em “ P am si Q ” , a relação entre P e Q aparece
de imediato, sem mobilizar nenhum implícito intermediário, como se
a conclusão, de certa forma, já estivesse contida no antecedente; ain­
si orienta-se mais para o que precede do que para o que segue.

Consideremos este texto consagrado à visita de Laurent Fabius,


então Primeiro-Ministro, à República Democrática Alemã:

" O senhor Fabius está acompanhado especialmente da Sra.


Edith Cresson e de uma importante delegação de industriais fran­
ceses. ( . . . ) A infase será dada, pois [d o n c ], ao aspecto econô­
mico das relações entre os dois países.

Um programa de cooperação econômica, industrial e técnica


havia sido celebrado entre os dois países, em 4 de setembro de
1984, por ocasião da visita que a Sra. Cresson fez a l.eipzig
Ele previa, de hoje até 1990, trocas da ordem de 7,5 milhares
de francos entre os dois países (em 1984, atingiram 4 milhares
de francos). A viagem do Sr. Fabius teria assim [u/usi] por obje­
tivo contribuir essencialmente para a realização dos compromis­
sos assumidos em setembro. I )

177

JL
Uma visit;i ;i Berlim Oiiental reveste-se, entretanto, queira
sc ou não, de um valoi político c simbólico que ultrapassa de
muito o aspecto puramente econômico" ( / c M onde l l / b / i q S i
P U-

O “donc" do primeiro parágrafo não podería comutar com ulors


cm ra/ao do caiátci objetivo da dedução que se apoia sobre uma
norma evidente. Se uinsi tivesse sido empregado em lugar de d om .
não se o ataria mais de uma operação de dedução manifestada comu
tal, mas de uma explicitação do sentido desta visita, l endo o artigo
em sua totalidade e relacionando-o a seu título (' O Senlioi lloneckei
pretende tirar proveito político da visita do Senhor l:ahius"), percebe
se que o emprego de donc não é inofensivo: o texto desenvolve uma
oposição entre o ponto de vista dos franceses c dos alemães sobte esta
viagem, sendo que don c se inscreve na apresentação do ponto cie vista
francês. Deduz-se. através de donc. que a delegação francesa pretende
fazer imposições ao governo alemão. Fmpregando uinsi, esta tensão
ficaria suprimida: far-se-ia como se a interpretação econômica da
visita não trouxesse problema. Além disso, esta tensão é reforçada
pela presença de um futuro simples que. difcreriiemente do luliiio
perifrástico. constitui uma espécie de "aoristo" isto é. marca tuna
ruptura em relação ao momento da enuneiação e pertence ao campo
do não-certo, do não-asseilado. O coneetivo uinsi do segundo pará
gralo estabelece uma relação totalmente complementai com o donc
precedente. Na realidade, ele explicita apenas o ponto de vista Iraneês.
fingindo adotá-lo, como indica a forma icrin que remete a um "enun
ciador" de discurso indireto livre. Utilizando uinsi, o jornalista esta
belecc um quadro enunciativo no qual o ponto de vista francês é
evidente, a visita de I.. Fabius |á aparece contida no acordo de -1
de setembro. Mas. recorrendo ao discurso relatado, distanciando-se.
o mesmo locutor prepara o "entretanto" do parágrafo seguinte que
vem contestar o caráter lalsamente unívoco desta \isita

Falta-nos examinar o uinsi "ilustrativo", aliás nem sempre fu


cilmente distinguível dos empregos consecutivos. Fm sua versão ilus­
trativa, uinsi introduz fatos ou razões O, conhecidos ou não do des
tinalário, que supostamente apoiam a afirmação do antecedente I*
Seu emprego pressupõe que existiríam outras ilustrações de I*. das
quais Q é apenas um elemento de uma série virtual. Quando o 1’ri
mciro-Ministro português M Soares declara:
"|á realizamos profundos ajustes econômicos. Assim [ainsi]
nossa agricultura, atrasada em tantos aspectos, já começou a es­
pertar novos produtos para a Europa — legumes, flores poi
exemplo. Exportamos também tecidos, roupas, sapatos, porcelana,
vidraças" (l.e Moitilc. 1 1 /6/1985. p. 5).

ele cita exemplos de "profundos ajustes econômicos", validando a pet


tinência de suas afirmações, sem sujeitar-se à exatistividade.

Utilizando ainsi, o locutor indica que poderia dar outras provas,


se isto se revelasse necessário

FINM .F.M ENT [ EINAI.MEN1 E l, DF T O V T F \ÇOM


[DE QUALQUER MODO]

Estes dois conectivos pertencem a uma classe de elementos cuja


função c a de realizar a conclusão de um movimento enuncintivo
De um ponto de \ista argumcntalivo, apresentam o interesse em as
segurar coerência ao fin al, colocando os enunciados anteriores como
coorientados cm relação àqueles que devem servir de conclusão. O
conectivo conclusivo supõe, pois, um processo de “ retrointeipreta-
ção" tio movimento discursivo, mas cada um deles o faz de um modo
próprio.

f inahncnte tem dois valores essenciais, cronológico e conclusivo:


unicamente o segundo interessa-nos aqui. Com semelhante interpreta
ção. este conectivo:

— "incide sobre comunicados considerados do ponto de


vista de seu valor argumentativo e não de seu sentido literal:

— indica que os propósitos argumentativos implícitos destes


enunciados são contraditórios-

- - tem por função interpretar estes propósitos argumenta-


livos cm relação a um propósito intencional global que legitima
esta contradição

I 7c>
Como se vê, não há nenhuma necessidade que haja eletivamente
uma argumentação anterior, já que a função de fiihilm ente é precisa-
mente de reinterpretar toda a seqiiência de enunciados anteriores
como orientada para uma certa conclusão, como se fosse conduzida
por um propósito argumentativo implícito Por exemplo, na seqüência:

£ voz corrente que a pobreza aumenta (P); constato que as


praias estão sempre igualmente lotadas (Q). rinalm ente, as coisas
não estão tão mal assim (R)

P tende para uma conclusão negativa implícita; Q. em direção a


uma conclusão contrária e liiuilm eiU e encadeia estes dois propósitos
argumentalivos, resolvendo a contradição, no sentido positivo. A ie-
solução poder ia também ser feita, mantendo a contradição; por exem­
plo, se R correspondesse a um enunciado do tipo l inalmente. mula i-
sim ples. U essencial, na realidade, é legitimar retroaiivamenle o mo­
vimento contraditório, assegurar-lhe a homogeneidade e, conseqüente
mente, assinalar o domínio do locutor sobre seu próprio discurso

Consideremos uma ocorrência registiada ua imprensa:

"Os franceses atacam-se sobre muitos aspectos (P); mas há


muitos outros sobre os quais se entendem mais do que se poderia
acreditar. A gestão dos negócios do país face à crise internacional
e ao egoísmo sagrado do aliado americano dependo cada vez mais
deste consenso (Q); e é porque esta gestão começa a pioduzir
seus frutos que ocorreu a leve agitação que as eleições regionais.
fin alm cn le. registram ( R )” ( L e Monde. 1 9 /03/1985, p 3)

Pode-se tecer aqui duas hipóteses, não excludentes, sobre a fun­


dão de jir.mrr.cr.-.i 5-.r_r.de a primeira, finalm ente, apesar de sua po
sição de incisa, incide sobre o conjunto P-Q e resolve a contradição
anterior no sentido de Q, o sentido positivo. De acordo com a segunda,
este conectivo conclusivo incidiría apenas sobre “ a leve agitação que
as eleições regionais registram” ; neste caso, o texto remetería a uma
situação em que pontos de vista contraditórios se afrontam, u saber,
o debate entre aqueles que teriam percebido uma "agitação” do elei
torado em favor do governo de esquerda e aqueles que contestariam
esta análise; neste caso, o texto tomaria partido a favor desta “ leve

I8U
agitação". Para que esta última interpretação seja possível, como
frequentemente ocorre quando se trata de conectivos argumentativos,
o conhecimento do interdiscurso se mostra indispensável. L-. uma di­
mensão particularmente importante no discurso jornalístico, o qual
trabalha com um universo de boatos

Enquanto finalm entc legitima e resolve a contradição dos argu­


mentos apresentados pelos enunciados anteriores, de qualquer m odo
interpreta os propósitos argumentativos contraditórios em relação a
um propósito global que desqualifica esta contradição, dando-a como
inadequada. Caso apareça como resultante de um raciocínio contia
ditório, ele invalida a alternativa, em lugar de legitimá-la pela sua
resolução.

D'AILLF.URS [ALIÁS]

Encerraremos esta revisão das diversas classes de conectivos argu­


mentativos com aliás, que está ligado a uma estratégia discursiva ori­
ginal 28. Pode-se descrever seu funcionamento da seguinte forma: após
ter dado um argumento P a favor de uma conclusão R, o locutor
acrescenta um argumento Q, que vai no mesmo sentido de P. Este
segundo argumento oferece a particularidade de ser dado como não
necessário à argumentação. Ele é, pois, lembrado mas o locutor pre­
tende não fundamentar sobre ele seu raciocínio:

"O s libaneses imputam o atentado aos serviços secretos


israelenses. A quem mais poderia ser atribuído, dizem eles, quan­
do, excetuando as vítimas, unicamente os israelenses e seus
agentes tiveram acesso à aldeia? Nem m esm o as forças libanesas
(milícias cristãs), aliadas de ontem do Estado hebreu, teriam tido
a possibilidade de cometer o atentado, supondo-se que o tivessem
desejado. Aliás (d ‘ailleurs) ninguém as colocou em dúvida" (Le
M onde, 6 /3 /1 9 8 5 , p. 5).

Apoiando a conclusão enunciada na primeira frase, dois argu­


mentos são dados sucessivamente. O segundo é introduzido por
mesmo, conectivo cuja função é indicar sobre o que incide, na quali­
dade de um argumento melhor do que o precedente 30; o enunciado
intioduzido poi iiluís tlosliu;i-sc ;i justilicar CMC segundo argumento,
cujo olijelivo é desviai das milícias cristãs a responsabilidade pelo
alentado. Como se ve. o argumento introduzido por aliás c dado como
supérfluo, colocado ao final da sequência argumenlativa. Observe-se
que um ponto permanece obscuro: a quem se deve atribuir este enun
ciado: ao jornalista ou aos libaneses? ou a ambos? Na medida em
que o conjunto depende provavelmente do discurso indireto livre, esta
ambigiiidade se explica: há aqui dois “entinciadores" que mesclam
suas vozes. Isto não é menos significativo: o jornalista poderia tei
posto claramente à distancia a alocucão dos libaneses.

A eficácia da estratégia implicada poi este eoneclivo decorre em


particular do falo que as enunciações de I’ e C) são apresentadas como
diferentes; o locutor procede como se. nu momento em que diz I’.
não tivesse previsto O. como se C). cm um outro registro, fosse colo­
cado em primeiro lugar. Não é muito difetente da “ preterição" teto
rica. que consiste cm dizer algo e acrescentar um comentário destinado
a desonerar-se da responsabilidade de dizê-lo: Não o niem io n a rei.
para raio falar n ele. . . lería eu n ecessidade de dizer qu e . c sabido
(pie . . . ele. Nos dois primeiros exemplos, diz-se. dizendo que não se
diz., enquanto os dois outros permitem proceder como se o destina
lário já estivesse inteirado, o que tornaria inútil a justificação do dizei
e colocaria outrem na "obrigação" de já ter assumido um enunciado
que. de fato, é novo para ele. Já aliás ilustra um outro mecanismo de
preterição, que diz respeito à utilidade de enunciar um argumento
este último é enunciado de modo a sugerir que alguns (entre eles. o
locutor) não necessitam de semelhante argumento, subtraído, desse
modo, á discussão.

liste estatuto paradoxal de aluís, cuja enunciação denuncia a si


mesmo como supérfluo, pode apresentar um interesse estratégico su­
plementar caso o(s) argumento(s) P permaneça!m) implícito(s). Ao
dizer por exemplo-

.4 crise está generalizada (IO; aliás os funcionários não são pou


pados (Ol

laz.-se duas coisas: U é apresentado como uma pro\a suplem entar de


R e indica-se que a enunciação de R está autorizada por um ou vários
outros argumentos que não precisam ser explicitados, como se a enun

IS?
ciação de R fosse suficiente para produzir autoridade. Indica-se, pois.
o lugar de argumentos cuja produção é dispensada.

F.m uma ordem semelhante de idéias, pode-se lembrai uma outra


estratégia. Se, por exemplo, O também é um argumento para uma
conclusão diferente de R. é possível, graças a aliás, sugerir esta con­
clusão ao mesmo tempo que se simula argumentar e\elusi\amcnte em
favor de R. Knv

Hste programa é absolutamente notável ( R >. Não esquece


nenhum aspecto do problema (P); aliás, ainda não tivemo- tempo
de captar todas as suas sutilezas (O).

pode-se imaginar que o locutor linge elogiar R. sei vindo-se de P c Ü.


mas Q permite igualmente argumentar cm favor de uma conclusão
do tipo: este programa é incompreensível.

1 N ós os m encionam os rapidam ente na q m u ta parte de In itiu tion ui>\ m é i h o


d es d c ia n u ly si du diseu u rs. Pode-se ig u a lm c n lc co n su ltar o n " 30 dc
l-iin g iw / r a il( íii) f . " E n seig n cm en t du r é e it et o d n u e n e e le s t iu V e " . 1478.

2 J. B. Crrize. "l.'argumcntation: explication ou ilcituctimi". in / ,r eiinu mu-


lion. Presses Univeisilailcs dc l yon. 19X1. p. 30.

3. "N o te sai rareum entation et l aele d ã u p u m e n tc i". in ( id iiei * i I, itm u iisii


que n .1’ 4. 1982. p. 157

-1 ig u m c t in it io n d u n s lu Ittn g u e. Liège, P . Mardaga. 14X3. p x.

5 “ A n a ly sc s prngm atiqucs". in ( ' o t n m iw ie u t io n s . n .° 3 2. 1480. p. 10

fc. I.e s i n o l i d u d i u o i n s . 1980. p. 12

7 " A n a ly s c s pragm atiques". in ( o n w i u n i e u l i o n s . n ." ' 2 . 14S0. p II

8 C ita re m o s, sem pretensão dc evau stiv id ad e , J. C . A n sco m b re e d . D u c ro i.


" D e u x M A IS en fra n ç a is". in l.in g u u . n .° 43 , 1977. p. 23-40; S . H ru xe llC '
et idii. M a i s oeeupe-toi d Anu-lie . in .- Ir/ o d e ln r e e h e r e h e eu u i e t i t c .
t. | »-4 . p 4 ' #«7- í 1’l.m im 0 , n \ M \|S in x, .-,.>///-•
vo l. 2. n “s 2-3. 1978; O. D u c io t. " A n a lis e s p ia g m a liq u c s". in ( o n im iin i
cu tion s n.” 32. 1980. p. t l 2 9 ; ) . M . A d a m . "V o te / M ir rose. a c in te / Cos
c a r il: analyscs pragm atiques", in 1’n itiq u e s , n ." 30. 1987; A . t n jio t et
nlii. "O u i M A IS non M A IS ou il y a dialogue et d ialo g u e", in l.u n g u e
fr w n u is e . n " 47 1478. p 44 |0 2 (so b re om piego o ra l de m u i )
9 Les niots du discours, 1980, p. 97

IÜ "O p é ra le u rs arg u m cn ta tifs ei visee a rg u m c n ta live ’’, iu C ahiers d e lingutsti-


qu e (rançttise, n ." 5, 1983, p 9

I1 I r 1 iir e el Ir ilil . p. 229

12. D u c ro t fa z algum as ilu straçõ e s p a itic u la rin e n le su lis cm "A n a ly s e s pragma-


liq u e s” , in C om m u n ication s, n ” 32. 1980.

13 D istin ç ã o in tro d u zid a poi J . M oeschlei e N . de Spengler em (Ju an d M r


m e: de la eoncession à la re fu ia tio n ” , C ahiers d e linguistique (rançaise
n .° 2, 1981, p. 93-112. Sobre a concessão, ver tam bém J M oeschler e N
ile S p e n g le r, " l .a eoncession ou la re fu ia lio n interdite, approclies argumen-
tative et c o n v e rsa lio n n e lle ", in C ahiers d e linguistique (rançaise. n .° 9.
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de lin gu istiqu e tra n ça ise. n .° 5. 1983, p 85-111

14 lista a n á lise de bien q u e exa m in a apenas sua função a rg u n ie n ia liva . não


. esgotando a questão. R estrin gind o o enfoque à fo rm a lin g u ística, poder
se-ia q u estio n ar, por exem p lo , por que este m arcad o r bien possui um valoi
co ncessivo e que relações podem ser estabelecidas entre este e os outros
em pregos deste m a rc a d o r; é o que faz A . C u lio li ao associar estes diversos
va lo re s de bien a um a única operação fund am ental (" V a le u rs modales
et o pératio ns é n o n cia tives” , in l e (ran çais m od etn e. n .° 4, 1978, p
3 0 0 -3 1 7 ). Esta o bservação vale para o co njunto dos conectisos que exa
m in a m o s: não é, evidentem ente. por acaso que este term o está investido
de la l fu n ção sem ân tica

15 R oto autant, po u rla n t (et com m en t): â petues causes, grands e lte ls ” , in
C a h iers d e lin guistiqu e fran çaise. n .° 5. 1983, p 69

16. N ossa apresentação é p articularm ente su m á ria a q u i; no artigo de A nscom


bre sobre pou rtan t encontra-se um a d istin ção entre dois valores deste co
n c c tiv o : um de “ re fu ta ç ã o ", outro de “ denegação’’ no quadro de uma ana
lise p o lifô n ic a .

17 So b ie estes tei m os, pode-se consultai O . D u cro t et ata. "C aiparcc que.
pu isqu e” , R ev ite R on u m e, 2 -X , 1975, p. 248-280; O. D ucro t et alii. Les
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18. P a sc a l, F rov in ciales, p. 25.

19. O . D u c ro t et alii. “ C a r , parce que, puisque ”, in R evu e Ronum e, 2-X . 1975.


p 260.

184
20 Ari. cil.. p. 271.

21 P rovin ciales. p. 29o.

22 "Analyses pragmatiques", in Coirm m nicalinns, n." 32. 1980, p. 31.

23. Seguimos aqui em suas linhas gerais o trabalho de A. Zenonc. " I a con
sécution sans conti adiction: d on c, por con seg u em , tilors, ainsi, oussi", iu
C ahiers d e linguistique fra n ça ise. n.°s 4 e 5. Todavia, não salientamos a
dimensão conversacional (ou seja, o papel que estes coneelivos desempe­
nham na estruturarão das conversações) para nos atermos unicamente ao
valor argumentativo.

24 A propósito de donc, mais especificamente, vei também A. Zenonc: ' Mai


qtieurs de consecution: Ic cas de donc", in Cnlners d e lingm stiqtie fiançaiu-,
n.° 2. 1981; A. Berrendonner, “ Note sur Ia dédution naiurelle et le
connecteur ilonc", in L og iqu e, argum en tation, con v ersaiion , Berne, 1’eter
Lang, 1983.

25. Ou melhor, da imagem que dele se tem: sabe-se, com efeito, que este
exemplo deformado não é arixtolélico. Aristóteles não considera o caso das
proposições singulares.

26 Sobre a noção de aoiislo, ver A. Culioli, "Valems aspeclurelles et opérations


énonciatives: l'aorisiique”, L u sp e c t, R ech erch es lin guisliques Centre
d’analyse synta.xique de 1'Université de Mctz, 198(1, p. 181-195; sobre o
futuro: "Futur “simple" et futur “ proche” ”, de I. J. Franckel, L e Fronçais
dans le m onde, jan , 1984. p. 65-70.

27 Sobre os conclusivos, pode-se consultar o artigo de M. Schelling em quem


nos inspiramos aqui: “Quelques modalités de clôtures: les conclusifs //-
nidem ent, en sornrne, nu fo n d , d e lo u le focou ", in C a h ie rs d e linguistique
fra n ça ise. n.° 4, 1982, p. 63-107.

28. M. Schelling, art. cil., p. 75.

29. Sobre d a illeu rs vei L es m o is d a discours, cap. 6; " D ailleu rs ou la logique


du camelot”

30 Sobie m ètne ver o uabalho tle J. C. Anscombre: “Mente le roi tle France
est sage". in C unm iunicalions. n.° 20. 1973 p 40-82

18 s
C O N C U JS A O

Tal como aparecem neste livro, as novas tcnücncias qne desta­


camos em Al) não revelam lima evolução linear desta disciplina.
Percebe-se não tanto uma serie de melhoramentos precisos, mas uma
m udança global na form a d e considerar o discurso. Os movimentos
recentes tendem a lazer vacilar alguns dos pressupostos maiores que
regiam lacitamente os trabalhos anteriores. Ao longo destas páginas
foi-nos possível localizar alguns deles e. para concluir, lembremos três
outros

O primeiro aborda a questão da identidade de uma formação


discursiva, que era imaginada espontaneamente sob a figura do fecha
mento. f. esta visão "contrastiva" das relações entre formações dis
cursivas que se encontra superada; a relação com o Outro não é deri­
vada, mas constitutiva. F.ste "Outro", entretanto, não é um meio
indiferenciado: o sentido circula entre posições definidas. São assim
contestadas tanto a concepção do discurso como "visão do mundo",
quanto aquele qtie o institui em manifestação do querer-dizer de um
sujeito coletivo

Assiste-se, igualmente, ao questionamento da oposição enite "su


perfície” e "profundidade" comumente utilizada na análise textual,
oposição que leva a distinguir entre conteúdos "profundos" e arran
jos “ superficiais" ligados aos parâmetros contingentes das “ciieimstân
cias" da comunicação. Na realidade, a cnunciação não se destina a
"fazer passar" um conteúdo, a teatralizar um sentido já existente.
Uma formação discursiva não é uma doutrina, mas um dispositivo que
institui ao mesmo título e em um mesmo movimento o conjunto da-
condições de sua cnunciação e do que enuncia.
O último pressuposto sobre o qual gostaríamos de insistir diz
respeito à maneira de pensar a articulação entre discurso e sociedade.
Seja pelo viés de uma certa vulgata marxista ou através da chamada
Escola “ dos Anais”, opondo a história "pesada” à história “ leve” , exis­
te liá muito tempo uma propensão em considerar a sociedade como a
superposição de um alicerce maciço (o econômico, as classes sociais)
e de falas destinadas a “ traduzir” (representar, inverter, negar, deslo
car, etc.) esta realidade já constituída. Toda dificuldade consiste, como
vimos, em admitir que o sentido e a linguagem não se superpõem às
lelações econômicas e sociais, mas consistem em uma dimensão cons­
titutiva dessas relações. A introdução de problemas da “ instituição
discursiva", o aprofundamento do elo entre o discurso e os grupos que
o geram, obrigam a remodelar as partilhas tradicionais sobre este
assunto.

Frequentemente, a Al) renova-se em contato com teorias cujos


pressupostos são incompatíveis com os seus. Esta situação não deve
provocar um fechamento defensivo. A Al), tal como a entende a
Escola Francesa, não é apenas uma disciplina fugaz, nascida da con­
vergência do marxismo, da psicanálise e da linguística, sob a égide do
estrutuialismo, devendo desaparecer com essa conjuntura; ela dcsii
na-se a filtrar e integrar os movimentos das disciplinas sobre as quais
se apoia e, em primeiro lugar, os da linguística. Isto implica que ela
seja capaz de perceber a especificidade de sua própria experiência.
Sobre este ponto, o maior perigo que a espreita decorre, certamente,
do sucesso de seu nome: em uma época em que a "análise do discur­
so” provoca entusiasmo, é mais importante traçar fronteiras, excluir,
do que se beneficiar das vantagens de uma situação equívoca que, em
um prazo mais ou menos longo, só lhe pode ser mortal

188
BIBLIOGRAFIA

Considerando a diversidade dos domínios lingiiístieo e extra


linguístico nos quais a A 0 se abastece, qualquer bibliografia é forço
sainenle incompleta. Conlcntar-nos-einos em dar aqui as lelerências
dos textos citados no livro, com exceção do que já figura em Initiation
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19b
índice r em issiv o

\ constitutiva (regra), 31.


agenle (discursivo), 122. (cf. heterogeneidade — ), 22, 75.

argumentação. 159, 160, 169. corpot alidadc. 47. 48


arquitcxtualidadc, 111
arquivo, 23. 116 I)
aspas, 89. dei.vis discursiva, 4 1.
alo de fala, 29, 36. delocutividadc. 84.
associação (gráficos d e), 147, 148. D E R E D E C , 142. 145.
autoridade. 37. 57. 86. 100. destinação discursiva, 41
determinação, 142
H dialogisrno, 123, 138
houclage. (cf. enlaçamenio) 67, 68. direto (discurso), 85.
discurso, 12. 15. 16. 23, 49. S(i
187.
I
domínio de atualidade, 116
campo discursivo. 116 - (antecipação), 116
captação, 102 ímemória) 115
caráter. 46, 47.
cena, 29. 32
I
cenografia. 31. 41. 42.
científico (discurso). 57. eslaçumento ( boiw lu ge). 67, 68.
citação. 85. 100. cnunciador ( vs. locutor), 83. >JX
competência. 23. 105 espaço discursivo. 116, 117.
comunicação (verbos de ethos, 45, 92
comunicação). 88 E X F A D , 145 146.
comunidade discutsiva. vo
E X F A L 145 146.
concessão. 168.
conclusão. 179
1'
condições de produção. 8 3
concctivo. 160. 161 falante ( vs. locutor), 76. 77
cronografia. 41, 42. filologia, 9, 129.
conotação uutonímica. 89. formação discursiva. 14. 22. 34.
consecução 178 |76 105 112, 118. PO
fundadora I liei xis). 42. -44 ()
fórmula dominante. I Ve opetadot, 162
opinião (vçrhos de). 88
(>
oralidadc. 46
genérico (sujeito). 14.
gênero de discurso. 14, 1'). |i)2. I'
glosa. 91 paciente (discurso). 122
gráficos. 147. 148. 149 palavra-chave. 124 147. |S|
parafrasagem 95
H pastiche, 105
hahitns. 61. ponto-chave. 124
heterogeneidade. 14. 22. 75. 112 polifonia. 75. 76. l()(i
popular (língua). 18, 47
I pragmática. 20. 29. 15
imitação. 102. pragmática textual. 32
implícito. 20. 90. 166. 175 prática discursiva. 56
incorporação. 4.X. pressuposição. 78. 88.
indireto (discurso). 85 preteiiçáo. 94. 182
indireto livre (discurso). 97. 9 * provérbio. 101
informática. 145 K
instituição, 51. 55.
interdiscurso. I I I . 113. 152. reconhecimento. 36
relatado (discurso). 85. 86. 97
interinconiprccnsão. 119, 120.
retificação, 83. 165.
intertexlo. 86. 87.
referente social. 137
intertexluulidade, 86, 87.
refutação. 81. 141, 142, 165
ironia, 77. 97. 98. 99.
retórica. 33. 45. 125. 159. 160.
I tede de formulações, 112
tedirecionamcnlo. 142
lexicometria, 19. 97 '. 139.
locutor (vs. enunciador). 76, 77 5
locutor discursivo. 41. slogan, 101.
locução fundadora. 42. subversão. 102, 142
lugar. 34 superfície discursiva. 23.

M I
M áxinnis, 81 tematização, 142. 144.
memória discursiva, I I 5, termos-pivôs ( métodos dos ). 133. 137.
menção (vs. uso). 89. 90. tom. 46
mostaula (heterogeneidade). 22. 75. topografia. 41 42
mctadiscurso, 93 U
metaprcdicação. 96
universo discursivo. 116.
uso (vs. menção). 89.
N
negação, 80. V
(descritiva). 81. 82 valência, 149.
— ( inctalingiiislica ). 84 verificador (agente). 78.
- (polêmica), 81, 82 visão do mundo. 50. 60, 187.
nominalização. 79 voz. 44.

198
L IN G U A G E M /C R ÍT IC A

- 0 Desafio de Dizer Não


S u sy Lagazzi
A noção de “sujeito-de-direito" na
análise do juridismo que permeia
a linguagem.
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Eduardo Guimarães
Um estudo de conjunções do
português
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América Latina
E n i Pulcinelli Orlandi (org.)
Apresenta discussões
lingüfsticas importantes em
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