A Gramática Racionalista em Portugal No Século XVIII

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MONICA LUPETTI, UNIVERSITÀ DI PISA.

A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM
PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

1. INTRODUÇÃO
A breve lista que se segue é o resultado de um simples inquérito bibliográfico
que levámos a cabo com o auxílio de catálogos informatizados, com a intenção
de responder à seguinte dúvida: quantas são e quais são as gramáticas que
se apresentam como filosóficas? Dum ponto de vista puramente formal, isto

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é, de superfície, os requisitos mais evidentes para esta consideração são o
de tais gramáticas conterem o termo racional ou filosófico e/ou o de terem
sido publicadas entre os séculos XVIII e XIX. Apesar de não se tratar de
um arco temporal muito vasto, registamos uma frequência mais elevada de
publicações do que aquela que estaríamos à espera, e as mesmas ocorrem num

A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII


raio territorial que se estende além-mar, no Brasil e em Goa:

Bernardo de Lima e Melo Bacelar, Grammatica Philosophica e


Ortographia Racional da Lingua Portugueza, na Off. de Simão Taddeo
Ferreira, 1783;

António José dos Reis Lobato, Arte da Grammatica da Lingua Portuguesa.


Composta e Offerecida ao Ill.mo Sr. Sebastião José de Carvalho e Melo,
Marquês de Pombal, Lisboa, na Reg. Off. Imp.1771;

João de Sousa Pinto de Magalhães, Grammatica Philosophica da Lingua


Portugueza, 1780 [parece que nunca chegou a ser publicada];

Fr. Bernardo de Jesus Maria, Grammatica Philosophica e Orthografia


Racional da Lingua Portugueza, para se Pronunciarem e Escreverem
com Acerto os Vocábulos deste Idioma, Lisboa, na Officina de Simão
Tadeu Ferreira, 1783;

António de Morais Silva, Epitome de Grammatica da Lingua Portugueza,


Lisboa, na Off. de Simão Tadeu Ferreira, 1806;

Jerónimo Soares Barbosa, As Duas Linguas, ou Grammatica


Philosophica da Lingua Portugueza Comparada com a Latina, para
Ambas se Aprenderem ao Mesmo Tempo, Coimbra, Real Impressão da
Universidade, 1807;

Manuel Pedro Tomás Pinheiro e Aragão, Memorias Curiosas para


a Grammatica Philosophica da Lingua Portuguesa, Compostas e
Arranjadas para uso dos Alumnos, Lisboa, na Imp. Regia, 1812;

João Crisóstomo de Melo, Grammatica Philosophica da Linguagem


Portuguesa, Lisboa, Imp. Regia, 1818;

Jerónimo Soares Barbosa, Grammatica Philosophica da Lingua


Portugueza ou Princípios de Grammatica Geral Applicados à Nossa
Linguagem, Lisboa, Academia Real das Sciencias, 1822;
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Fr. Diogo de Mello e Menezes, Grammatica Philosophica da Lingua


Latina, Reduzida a Compendio, Dedicada ao Infante D. Miguel, Glória e
Salvação da Pátria, Lisboa, Off. da Honrosa Conspiração, 1823;
A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

Fr. Diogo de Mello e Menezes, Grammatica Racional da Lingua Latina, para


Uso dos Alunos da Real Casa Pia de Belém, Dedicada a S. M. D. de Bragança,
Libertador e Regente de Portugal, Lisboa, Imprensa Nacional, 1835;

António Camilo Xavier de Quadros, Grammatica Filosófica, para Uso dos


Seus Discípulos e de Quem Mais a Quizer, Lisboa, Typ. Carvalhense, 1839;

P. António da Costa Duarte, Compendio de Grammatica Philosophica da


Lingua Portugueza, Escolhido pela Congregação do Lyceu do Maranhão
para Uso do Mesmo Lyceu, segunda edição acrescentada, Maranhão,
1840 [primeira edição, 1829];

João Nuno de Andrade, Grammatica Elementar da Lingua Portugueza


por Systema Philosophico. Offerecida ao Ill.mo e Ex.mo Sr. José Ferreira
Pinto Basto, Lisboa, Tip. de António Sebastião Coelho, 1841;
José Aleixandre de Passos, Compendio da Grammatica Portugueza pelo
Methodo Analytico, etc., Rio de Janeiro, na Tip. de M. A. da Silva Lima,
1848;

João Daniel de Sines, Extracto Racional da Grammatica Geral, ou


Metafísica das Línguas, Lisboa, na Imp. de Luca Evangelista, 1849;

Daniel Ferreira Pestana, Princípios de Grammatica Geral Applicados á


Lingua Portugueza, Publicados e Oferecidos a Mocidade de Goa, Nova
Goa, na Imp. Nacional, 1849;

José Joaquim da Silva Pereira Caldas, Princípios Elementares de


Grammatica Geral Applicados á Lingua Portugueza: ou Methodo
Philosophico de Apprender Esta Lingua com Facilidade, Braga,
Typografia Bracarense, 1851;

Manuel Pinheiro de Almeida e Azevedo, Compendio de Philosophia


Racional, Contendo a Psycologia Empírica, a Ideológica, a Grammatica
e a Lógica, Braga, Typ. União, 1860;

Manuel Soares da Silva Bezerra, Compendio de Grammatica Philosophica,

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Ceará, Typografia social, 1861;

Raimundo Câmara Bettencourt, Epitome da Grammatica Philosophica


da Lingua Portugueza, Rio de Janeiro, editores E. & H. de Laemmert,
1862;

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Aleixandre José de Melo Morais, Grammatica Analytica da Lingua
Portugueza, Ensinada por Meio de Quadros Analyticos, Methodo
Facílimo para Aprender a Lingua, Rio de Janeiro, 1869.

O nosso objetivo não é, no presente trabalho, o de analisar exaustivamente


todos os títulos listados, o que seria um trabalho pouco profícuo e aborrecido,
mas sim o de levar a cabo um excursus daquelas obras que, por qualquer
motivo, deixaram uma marca na historiografia gramatical lusitana inserindo-
se num contexto racionalista europeu.
Refletiremos, então, sobre algumas destas gramáticas destacando as
razões do debate que as mesmas suscitaram, sublinhando, desde já, que duas
das gramáticas que tiveram um papel mais relevante durante o século XVIII
são, curiosamente, aquelas que não apresentam no seu título nem o termo
racional nem o termo filosófico.
Começaremos por afirmar que, se, de um ponto de vista geral,
racionalista é tudo aquilo que apresenta um esquema explicativo
resultante de uma ref lexão integral –, ou seja, que é correto partir do
conceito mais amplo do termo –, de um outro ponto de vista, há uma
razão pela qual poderá fazer sentido aplicar o conceito de “racional”
só a partir de um momento histórico preciso. A razão é o diálogo
que este conceito mantém com outras definições como aquelas de
gramática filosófica e gramática geral. A este respeito, tomemos em
consideração o Routledge Dictionary of Language and Linguistics
(Bussmann, Cazzazzi, Traugh 2013: 182), que nos apresenta o conceito
de gramática filosófica como: “the attempt to develop a general model
of grammar, based on logical principles and from which the structures
and regularities of all languages can be derived”.
A publicação da Gramática de Port-Royal, em 1660, por Antoine
Arnauld e Claude Lancelot (Simone 1969), assinala efetivamente uma
viragem epistemológica, dando início a um afastamento progressivo
do modelo latino dos textos escritos com fins de aprendizagem
linguística. Com base no racionalismo francês (exemplificado
na perfeição em obras como o Discurso do Método de Descartes),
encontramos, então, as primeiras tentativas de redação de gramáticas
filosóficas elaboradas a partir do axioma segundo o qual a língua é a
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expressão do pensamento e este último é regulado por leis universais


a todos os seres humanos. Daqui se deduz que a língua ref lete estas
mesmas leis e que, como tal, é possível elaborar uma gramática geral,
comum a todas as línguas.
Antes de Port-Royal, que – como acabamos de afirmar – representa
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o auge do pensamento lógico-racionalista, já Júlio César Scaligero


(De causis linguae latine, Lião, 1540), Petrus Ramus (Grammatica
latina, Paris, 1548) e Francisco Sanchéz de la Brozas, conhecido como
“El Brocense” (Minerva sive de causis linguae latinae, Salamanca,
1587) tinham tentado encontrar as bases filosóficas do estudo da
linguagem. Scaligero, em primeiro lugar, tentou aplicar à língua as
categorias lógicas de Aristóteles. Estas premissas, no entanto, não nos
autorizam a usar o conceito de racionalismo lato sensu que referimos
anteriormente. Se é verdade que já a partir da segunda metade do
século XVII a gramática deixa de ser definida apenas como um
conjunto de regras, normas e preceitos, existindo a preocupação de
dar ao seu uso bases racionais, é igualmente incontestável que, em
Portugal, só no fim do XVIII a norma e o bom uso deixam de ser a
única preocupação da teorização gramatical.
2. ROBOREDO: UM RACIONALISTA?

A primeira grande reformulação teórica dos métodos de ensino das


línguas estrangeiras, acontecerá em Portugal apenas em Setecentos. Esta
reformulação deve-se principalmente a Luís António Verney (1713-1792),
que no seu Verdadeiro Método de Estudar (1746), numa crítica profunda
à organização curricular do ensino – naquele momento dominado
exclusivamente pelos jesuítas – sublinha, em primeiro lugar, as exigências
da burguesia, culta e enriquecida graças ao recente desenvolvimento
mercantilista português1.
De acordo com aquilo que expusemos até agora, parece-nos anacrónica
e forçada a hipótese de inserir Amaro de Roboredo (ante 1590-post 1627)
na corrente racionalista. Trata-se mais de uma questão de conteúdo do que
de uma questão biográfica. Nos últimos anos, o gramático trasmontano tem
sido alvo de uma atenção que não tivera até aqui por parte dos estudiosos.
E, apesar de eu própria ter em várias ocasiões sublinhado o seu pioneirismo2
(refiro-me principalmente ao Methodo Grammatical para todas as Linguas,
de 1619, e à Porta de Linguas, de 1623) acho que é forçado atribuir-lhe um
racionalismo programático.
Se por um lado, como já notou Barbara Shäfer-Prieß3, é visível a dívida
de Roboredo para com o Brocense, por outro são muitos os pontos que o

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afastam deste último e sobretudo que o afastam da corrente especulativa
que só surgirá em Portugal no século XVIII. Roboredo adota, do modelo do
Brocense, a distinção entre universal e particular, mas, para ele, a distinção
entre um nível abstrato e um nível concreto não é relevante. Ele atribui a
caraterística universal da língua à gramática mas, enquanto Sánchez de

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la Brozas procura explicar cada uso através da estrutura universal que lhe
subjaz, já para Roboredo a caraterística do uso é aquela de não se adaptar às
regras fixas, que não se podem aprender sistematicamente. Conceito que, do
nosso ponto de vista, se afasta bastante da lógica racionalista.
Roboredo foi, sem dúvida, um grande inovador do ponto de vista
pedagógico (apesar de ter sido, neste sentido, pouco citado, foi, na verdade,

1
Uma interessante síntese da polémica e do seu enquadramento sociocultural e histórico encontra-se
em Pires 2001: 135-155, onde a autora não se limita a salientar as ideias linguísticas elucidadas por Verney
no Verdadeiro Método, mas insere pormenorizadamente a sua política linguística dentro dos moldes da
reforma pombalina.
2
Veja-se a este propósito Lupetti 2010 e Lupetti & Tocco 2010.
3
Reporto-me ao texto da conferência que Barbara Shäfer-Prieß proferiu no CLUP a 28 de novembro de
2008. O artigo é publicado neste mesmo volume.
o primeiro a falar de aprendizagem e conhecimento minucioso da língua
materna como requisito prévio para a aprendizagem de uma segunda
língua4). Contudo, ele aparece ainda muito ligado à tradição clássica, à ideia
do bom uso linguístico, e os seus compêndios registam aqui e ali uma série
de normas que o aproximam mais das gramáticas normativas do que das
filosóficas. Schäfer-Prieß diz-nos o seguinte:

Se ‘racional’ implica ‘universal’, precisa-se de uma classificação das formas gramaticais


que serve para todas as línguas, no caso do Methodo grammatical ao menos para latim e
português. É pouco surpreendente que Roboredo tome como norma o sistema do latim,
visto o alto prestigio e a tradição da identificação de ‘gramática’ e ‘latim’. Põe, porém, as
formas portuguesas em primeiro lugar, segundo o principio didático que a língua materna
deve ser o ponto de partida (Schäfer-Prieß 2008: 4).

No entanto, e para além desta sagacidade pedagógica sublinhada por


Schäfer-Prieß, é a prática comparativa constante com a língua clássica, se
bem que devedora do intuito didático, que nos faz parecer pouco apropriada
a colocação deste nosso gramático dentro do pensamento racionalista
tout court, que surge de forma polémica como vontade de haver um rigor
científico que se contraponha ao formalismo das gramáticas renascentistas.
Toda a produção gramatical do século XVII se debate sobre a relação que
subsiste entre o método gramatical e o desejo de racionalização da gramática,
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colocando-se esta entre a tradição humanista do bom uso e a conceção de que


a gramática representa uma parte explicativa da ordem da razão. Roboredo
testemunha, certamente, esta dialética mas não vai além da mesma e dele
farão eco, especialmente, Domingos de Araújo, cuja Grammatica latina.
Novamente ordenada, e convertida em portugues pera menos trabalho dos
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que começam aprender (1627) é reformulada por António Félix Mendes


(Grammatica Portuguesa da Lingua Latina, 1741) e depois adotada como
consequência da reforma pombalina dos estudos; e ainda Fructuoso Pereira
com a sua Arte de Gramatica, latina, portuguesa, benedictina, de 1652.

3. PREDECESSORES DO RACIONALISMO: REIS LOBATO


Na linha da teorização de Verney e ciente da desadequação dos estudos
linguísticos, no que dizia respeito fosse às línguas vulgares fosse ao latim,
António José dos Reis Lobato (17??-1804) redige a Arte da Gramática da
Língua Portuguesa (1770), onde defende que a aprendizagem da gramática
da língua materna deve levar, por um lado, a saber falar corretamente essa

4
O autor reitera este conceito em varias ocasiões nos capítulos preambulares do Methodo Grammati-
cal e da Porta das Linguas e fá-lo apresentando sistematicamente as razões que o levam a conceber essa
metodologia.
língua, e por outro, a perceber o funcionamento não só da língua materna,
mas também o das línguas estrangeiras, com base nos princípios universais
enunciados na Grammaire Générale e Raisonnée (1660) e na Logique de
Port-Royal (1662). A gramática da língua materna deve funcionar como
suporte para a aprendizagem de qualquer outra língua, ideia já defendida,
como dissemos anteriormente, por Amaro de Roboredo, no Método
Gramatical para Todas as Línguas (1619) e na Porta (1623). A recente
corrente da gramática contrastiva serve-se, de resto, do mesmo princípio.
Nas últimas décadas de Novecentos, os estudiosos da didática das línguas
movem-se nesta direção. A comparação sistemática de uma estrutura
linguística da mesma categoria, mas pertencente a línguas diferentes,
permitiu individualizar aspetos gramaticais que podem apresentar graus
diferentes de dificuldade no momento em que o aluno os estuda. Decorre,
então, que a dificuldade de aprendizagem pode variar de acordo com a
afinidade existente entre língua e objeto.
É na gramática de Lobato que podemos ler de forma evidente a exigência
de criar escolas onde o português se aprenda e se ensine, independentemente
do latim. Não podemos esquecer que o texto de Lobato é uma gramática
escolástica que dá forma a um programa político de reforma do ensino que
queria afirmar-se como racional.
Referindo-se ainda a Roboredo, Lobato trata novamente do problema

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da formação dos docentes de língua, que não só muitas das vezes eram
incompetentes – como já Barros tinha denunciado no seu Diálogo em Louvor
da Nossa Linguagem (1540)5– como ainda, guiados pelo desprezo da língua
vulgar e de tudo aquilo que não pertencesse à esfera dita clássica, teriam
sido os primeiros a considerar supérfluo o ensino do português.

A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII


Os alunos, por sua vez, que tivessem assimilado os princípios do
funcionamento da língua materna, estariam na posição de fazer autonomamente
a leitura de um historiador português “simples”, aprofundando posteriormente,
e sem qualquer dificuldade, os seus estudos linguísticos e aumentando ao
mesmo tempo a sua própria bagagem cultural. Para além disso, já Amaro
de Roboredo tinha indicado em varias ocasiões a fase da leitura como
fundamental para a aprendizagem da língua, materna ou não materna.
A este propósito, e referindo-nos mais uma vez ao século XX, é possível
averiguar que não há uma grande diferença entre o binómio naquela altura
inovador língua-leitura dos textos proposto por Roboredo e Lobato, e
a abordagem metodológica, mais recente mas já ultrapassada, definida
como tradicional, que defende a combinação da prática da leitura com a da
tradução para a aprendizagem de uma L2.

5
Leia-se Lupetti 2005: 19-24.
Para além do interesse que revela do ponto de vista pedagógico – em
certo sentido obrigatório, se considerarmos que a adoção escolástica da obra
de Lobato, imposta pelo governo pombalino como único texto6, limitava
consideravelmente a circulação de outras obras da mesma natureza – cabe
dizer que ela também se distingue por abrir as portas ao racionalismo
lusitano propriamente dito.
Nas suas páginas, encontra-se ainda o conceito de gramática como arte
que prescreve regras para formar corretamente frases, mas Lobato coloca-
se de forma central no meio daquela que Costa Assunção define como
bipolarização da gramática como ciência e como arte (Assunção 1997). Se,
por um lado, chama à atenção o facto de Reis Lobato recusar a classificação
tripartida do discurso e adotar aquela em oito partes, preferida pelo mundo
clássico, a subdivisão da sua obra em quatro e o equilíbrio interno no
desenvolvimento de cada uma delas, aproximam-no das gramáticas do
Brocense e de Petrus Ramus.

4. O RACIONALISMO LUSITANO TOUT COURT: A RECEÇÃO DE


PORT-ROYAL EM BERNARDO DE LIMA E MELO BACELAR,
JOÃO CRISÓSTOMO DE COUTO E MELO E JERÓNIMO
SOARES BARBOSA
A partir do final do século XVII, as estratégias de sistematização e
Monica Lupetti I 62

simplificação gramatical caraterizavam o ensino da língua, numa relação


fortemente conexa ao processo dialético/lógico do pensar. A ligação entre a
gramática e a dialética avançou muito com o magistério de Petrus Ramus e
daqui despoletou a transferência do método de dedução racional ao campo
da hierarquização dos conceitos gramaticais. Na onda do que acontecia no
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âmbito das ciências exatas, os gramáticos tentam estabelecer os princípios


linguísticos universais que estariam na base de todas as línguas e que
orientariam todo o pensamento humano7.
A análise sistemática das línguas, que será um dos traços diferenciadores
deste período, leva a distinguir dois níveis de descrição linguística: um que
reencontra as estruturas abstratas do seu próprio funcionamento, e outro
que estuda em particular e concretamente o funcionamento de cada língua.

6
Continuam a ser, a este respeito, duas referências imprescindíveis, Andrade 1981 e 1982. Mas veja-se
também Costa 1979.
7
Esta tendência é anunciada pelo gramático espanhol Francisco Sánchez de las Brozas, que, na sua
Minerva Seu de Linguae Latinae Causis et Elegantia (1562), se propunha destruir algumas ideias radicadas
entre os gramáticos que o precediam oferecendo ele propostas originais. Por exemplo, a propósito das áreas
que constituíam a gramática, ele mesmo nega a repartição clássica em quatro partes. A sua obra teve grande
sucesso aquando da sua publicação e a sua influência fez-se sentir, continuando a ser citada por grandes gra-
máticos – não só portugueses – nos séculos que se seguiram.
É a tendência racionalista daqueles anos que faz com que o texto de
Port-Royal, para perceber os fundamentos da gramática, apele ao espírito,
desenvolvendo principalmente três operações: conceber, ajuizar e raciocinar.
Estes pressupostos filosóficos, propostos já pela corrente modista medieval,
farão nascer uma teoria gramatical complexa e inovadora que se desenvolve
em torno do conceito fundamental de signo, ao qual cabe a função de
exemplificar o pensamento. Assim, o signo será estudado sob dois aspetos:
em primeiro lugar como som e carácter e, sucessivamente, enquanto portador
de significado8.
A propósito das partes do discurso é introduzida uma novidade, ou seja,
uma distinção entre as palavras que designam um objeto do pensamento
e aquelas que identificam a forma do pensamento humano. Ao primeiro
conjunto pertencem o nome, o artigo, o pronome, o particípio, a preposição e o
advérbio; no segundo podemos encontrar o verbo, a conjunção e a interjeição.
À sintaxe, identificada mais uma vez em Port-Royal como construção, é
dedicado apenas o último capítulo do volume, onde encontramos a clássica
subdivisão em concordância e regência. A primeira é considerada idêntica
para todas as línguas, enquanto que a segunda se realiza sempre de maneira
diferente. A explicação para esta variedade é clara se considerarmos que
em algumas línguas a regência dá-se por meio dos casos, e noutras através
de partículas (preposições, conjunções) que desempenham o mesmo papel.

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Usando a lógica, a gramática atribui ao sistema da razão pura um espaço
específico na disciplina filosófica: falar de gramática filosófica significa
elevar a lógica à categoria de arte de pensar. Na tradição clássica, sendo
uma das partes da filosofia, a lógica tem o dever de analisar a veridicidade
ou a falsidade dos juízos de valor, concatenar os juízos e o próprio método

A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII


científico. Neste sentido, e já que coloca em relevo não só o conjunto das
regras necessárias ao pensamento correto, mas também o conjunto das leis
que demonstram esta correção, a lógica tende a elevar-se de arte a ciência.
Os séculos XVIII e XIX assistem ao aparecimento, em Portugal, de
muitas gramáticas filosóficas. Isto é verificável se olharmos para a lista
que abre este trabalho. No entanto, uma análise sumária das obras listadas
permite-nos afirmar que o uso dos termos racional e filosófico nos conduz
a uma categoria vazia, indício de uma reivindicação banal de cientificidade,
de um desejo por parte dos autores em aderir mais a uma moda do que a
um discurso disciplinar. Não são poucos os casos em que a uma proposta
de inovação, apresentada com letras maiúsculas no frontispício e reiterada

8
Esta é a mesma dicotomia que levará Ferdinand de Saussure (1857-1913) a falar de significante e
significado.
com eloquência nos preliminares, correspondem, na verdade, conteúdos
conservadores e, além do mais, repetitivos.
Existem, no entanto, três obras na lista proposta que merecem uma
reflexão mais atenta até por terem sido objeto, nestes anos, de discussões
por parte de críticos e estudiosos, a propósito da dívida que estas têm com o
racionalismo europeu.
Refiro-me, nomeadamente, à Grammatica Philosophica e Orthografia
Racional da Lingua Portugueza (1783), de Bernardo de Lima e Melo Bacelar,
à Grammatica Filosófica da Linguagem Portuguesa de João Crisóstomo, de
1818 – um caso, curiosamente, até hoje quase desconhecido – e a Jerónimo
Soares Barbosa, com a sua Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza
ou Principios da Grammatica Geral applicados à Nossa Linguagem (1822).
Estes textos, ainda pouco conhecidos e estudados, podem ser reconhecidos
como “monumentos” do racionalismo que imperava no panorama intelectual
da época.
A Grammatica Filosofica e Ortográfica Racional da Língua Portuguesa
(1783) de Melo Bacelar9 permanece até hoje para muitos estudiosos de
interesse questionável; há quem, como Amadeu Torres10, tenha defendido
que esta devia ser resgatada do esquecimento e reclamado a necessidade de
um estudo monográfico sobre a mesma. Não nos interessando a polémica,
aquilo que é importante perceber é a ligação deste texto às gramáticas que o
Monica Lupetti I 64

precederam e às que lhe são posteriores.


Sabemos através do próprio autor que se trata de uma gramática filosófica
porque pensa segundo as leis gramaticais, não se limitando a colecioná-las
como se fazia nas gramáticas de preceitos. Apesar da matriz filosófica da
obra, Melo Bacelar não se abstém de apresentar as letras do alfabeto e as
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sílabas do português, considerando dois aspetos, aqueles do som (pronúncia)


e aqueles da figura (grafia), que em grande parte dos casos não coincidem.
A descrição detalhada da articulação dos sons muito deve, claramente, a
Fernão de Oliveira, apesar de a finalidade desta exposição ser completamente
diferente. Oliveira, como sabemos, ilustra os sons apenas para guiar o
discente na pronúncia, porque é assim que devem ser pronunciadas. E as

9
Sabemos muito pouco sobre a biografia deste autor. Nasceu presumivelmente em Chaves, por volta
de 1736, e entrou na ordem franciscana onde foi rebatizado com o nome de Frei Bernardo de Jesus Maria.
Viveu no Alentejo, e de 1769 a 1777 foi preso por aderir ao movimento reformista da Jacobeia. Influenciado
pelos ideais iluministas, publicou em 1783, além da Gramática, um Dicionário da Língua Portuguesa. No
mesmo ano saiu também a Arte e Dicionário do Comércio e Economia Portuguesa. A partir desta data, dele
sabe-se muito pouco, apenas que em 1786 trabalhava na Biblioteca Real de Paris.
10
Veja-se a introdução do estudioso na edição ao cuidado do próprio da Gramática Filosófica da
Língua Portuguesa de Bernardo de Lima e Melo Bacelar, Lisboa, Academia da História. Em bibliografia,
veja-se Bacelar 1996.
suas intenções terminavam aqui. Melo Bacelar, atento seguidor de Port-
Royal, vai além disto: confere aos sons uma função mais difícil, ou seja,
“tornar concreto” o pensamento do homem para transmiti-lo a quem o ouve.
A gramática é então uma coleção de leis com as quais produzimos e
dispomos os próprios sons. Afastando-se da tetra-partição clássica da
gramática, Melo Bacelar apresenta-nos uma subdivisão sui generis. A
subdivisão é feita em três secções: “Grammatica do Agente ou Nominativo”,
“Grammatica da Acção ou Verbo” e “Grammatica do Accionado, Paciente
ou Caso”, onde as listadas são, então, as partes essenciais da Grammatica.
Tal como Barros, também ele defende que as categorias principais do
discurso são as do nome e do verbo11. A propósito do nome, apresentam-se
duas subdivisões: a primeira faz uma distinção entre substantivos concretos
e abstratos; a segunda entre nomes próprios e comuns (ou apelativos)12.
Até neste caso a classificação adotada é muito semelhante àquela de Port-
Royal. Os verbos analisados dividem-se, por sua vez, em: ativos, passivos,
neutros, recíprocos, regulares, irregulares e defetivos. Tratando-se de uma
das partes mais importantes do discurso, o verbo – tal como acontecia com
o nome – pode apresentar adjuntos; estes, por sua vez, podem ser anteriores,
concomitantes ou posteriores. Por fim, e no que se refere ao adjetivo, são
apresentadas várias tipologias: de duas formas, de uma forma, positivo
ou absoluto, comparativo, superlativo, numeral, universal, particular,

Monica Lupetti I 65
demonstrativo. Dentro da categoria adjetival encontramos os pronomes
possessivo, relativo e interrogativo, e o particípio ativo e passivo, que tem a
função de determinar o nome.
Apesar de não se negar a originalidade de Melo Bacelar ao apresentar
uma gramática tripartida, muitos estudiosos continuam a exprimir as suas

A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII


perplexidades com razão; perplexidades devidas, em primeiro lugar, à
confusão que se cria dentro da obra entre as funções semânticas (agente,
paciente) e aquelas sintáticas (os casos latinos). O modelo de análise proposto
pelo gramático, no qual o agente também é chamado nominativo e o paciente
também é identificado como acusativo, gera de facto vários problemas, na
medida em que não é certo que as funções semânticas coincidam sempre
com a funções sintáticas.
A obra de Couto e Melo, segundo José Moreira da Silva (1997: 561),
supera a exemplificação conceptual de Melo Bacelar e aproxima-se da lição
das gramáticas gerais, que parece conhecer muito bem, fazendo referências

11
As outras partes do discurso (pronome, preposição, advérbio, conjugação e interjeição) são consi-
deradas, de acordo com o Brocense, como meros adjuntos ou sincategoremas.
12
Os adjuntos do nome podem ser de dois tipos: intrínsecos (número e género) e extrínsecos (artigo,
adjetivo, preposição, advérbio, conjugação e interjeição).
explícitas a Garat, Descartes, D’Alembert, Beauzée, Girard, Condillac e muitos
outros. Partindo da consideração de que os nossos sentidos são os veículos da
consciência do mundo, é fundamental para o gramático definir os conceitos de
ideia, cor, cheiro, juízo, substância, sujeito, atributo, frase, sintaxe e linguagem.
Para pensar corretamente, para falar e escrever com exatidão, é fundamental
conhecer as operações do nosso entendimento, conhecer e dominar a nossa
faculdade linguística, desenvolver a capacidade de raciocínio.
Se as gramáticas apresentadas até aqui se caracterizam de forma unívoca
como artes de pensar, aquela de Soares Barbosa, à qual nos dedicaremos
brevemente, caracteriza-se pelo confluir dos termos gramática e filosofia,
ou seja ciência que, tendo várias declinações possíveis ao longo da obra,
deixa transparecer um substrato cultural superior àquele das duas gramáticas
referidas anteriormente.
Jerónimo Soares Barbosa13 foi um pedagogo incansável que se dedicou seja
à didática seja à investigação. São da sua autoria as reformas mais importantes
levadas a cabo no ensino primário durante o período que nos interessa.
A partir da obra Escola Popular das Primeiras Letras (1796) reparamos
numa tónica claramente pedagógica: trata-se de uma gramática elementar do
português, onde cada capítulo contém estratégias metodológicas dirigidas
ao professor. No volume As Duas Linguas (1807) compara, por sua vez,
o português e o latim, com a intenção de sabotar o obsoleto costume
Monica Lupetti I 66

escolástico, que aqui e ali se usava ainda e, segundo o qual, a aprendizagem


da língua latina deveria preceder a da língua materna.
Barbosa defende esta tese e, segundo o seu parecer, os alunos aprendem
com mais facilidade a gramática da língua que praticam todos os dias. Uma
vez assimilada a gramática portuguesa, aprender a gramática latina seria
A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

muito mais simples. Esta teoria não é original: sabemos, e cá também o


repetimos varias vezes, que gramáticos como João de Barros, Amaro de
Roboredo e Reis Lobato já a haviam ilustrado. No entanto, e de acordo
com Barbosa, estes não conseguiram modificar totalmente o método
de aprendizagem da língua porque continuavam a moldar a gramática
portuguesa na latina.
A obra que tornou célebre Soares Barbosa foi, no entanto, a Gramática
Filosófica14 (publicada postumamente, em 1822), que se insere na tradição

13
Jerónimo Soares Barbosa nasce em Ansião, em 1737, e morre provavelmente em 1816. Estuda no seminá-
rio em Coimbra, onde é ordenado presbítero em 1762. Naquela mesma cidade frequentou a universidade onde,
em 1768, obteve o grau de bacharel em direito canónico. De 1766 a 1790 foi professor de retórica e poética no
Colégio das Artes de Coimbra. Em 1789 foi eleito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa e em 1799
membro da Junta da Direção Geral dos Estudos da Universidade de Coimbra.
14
Segundo Malaca Casteleiro (1979: 203) a obra é ainda hoje “um dos melhores modelos de descrição
gramatical existentes sobre o português”.
universal e filosófica de Port-Royal e que, ao seguir os princípios racionalistas
da linguística cartesiana, revelou um conhecimento aprofundado, por parte
do autor, das gramáticas racionalistas anteriores, mas também a leitura dos
franceses Beauzée e Du Marsais15.
A organização da obra de Barbosa segue o modelo da maioria das
gramáticas filosóficas: trata primeiramente da parte mecânica da língua
composta pela Ortoépia (= fonética) e pela Ortografia; e sucessivamente da
parte lógica, ou seja da Etimologia (= morfologia) e da Sintaxe.
Sustentando, de acordo com Port-Royal, que as línguas se distinguem
umas das outras apenas na forma que cada uma escolhe para combinar e
indicar as mesmas ideias, o gramático enuncia, em primeira instância, os
princípios gerais e depois, a partir destes, formula as regras gerais que aplica
primeiro ao português e depois ao latim.
Cada regra vem seguida de exemplos que demonstram as categorias
comuns das duas línguas. Quando isto não ocorre segue-se o procedimento
inverso: dá-se primeiro o exemplo latino e depois a tradução portuguesa
acompanhada da explicação da divergência.
Barbosa define as línguas como instrumentos analíticos do pensamento:
o sistema morfológico de cada língua baseia-se, portanto, no sistema lógico
das ideias do homem. Como consequência, se todos os homens pensam
segundo as suas próprias leis, todas as línguas devem ser governadas

Monica Lupetti I 67
pelos mesmos princípios universais. À gramática filosófica cabe o dever de
descrever cientificamente os eventos linguísticos descobrindo as estruturas
linguísticas profundas que lhes subjazem. Assim argumenta:

A Grammatica […] tem naturalmente duas partes principaes; huma Mechanica, que
considera as palavras como meros vocabulos e sons articulados, ja pronunciados, ja

A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII


escriptos, e como taes sujeitos ás leys physicas dos corpos sonoros, e do movimento;
outra Logica, que considera as palavras não ja como vocabulos, mas como signaes
artificiaes das ideas e suas relações, e como taes sujeitos ás leis psycologicas, que
nossa alma segue no exercicio das suas operações e formação do seu pensamento:
as quaes leis sendo as mesmas em todos os homens de qualquer nação que sejão
ou fossem, devem necessariamente communicar ás Linguas, pelas ques [sic] se
desenvolvem e exprimem estas operações, os mesmos principios e regras geraes, que
as dirigem. Á parte Mechanica das Linguas e sua Grammatica pertencem a Orthoepia
e a Orthographia; e á parte Logica pertencem a Etymologia e a Syntaxe (Barbosa 1822:
VIII-IX).

15
Nicolas Beauzée (1717-1789), gramático e tradutor francês simpatizante da Revolução, é recordado
por ter participado, com César Chesnau du Marsais (1676-1756), na redação da Encyclopédie Méthodi-
que (1786-1789) – obra duramente criticada pela Igreja – nascida como complemento à Encyclopédie
ou Dictionnaire Raisonnée des Sciences, des Artes et des Métiers, par une Société de Gens de Lettres
(1751-1752).
Uns parágrafos depois, ao refletir sobre a ligação entre a língua e o
desenvolvimento das ideias16, conclui: “Porêm deixada pelos Philosophos nas
mãos de homens, ou ignorantes, ou pouco habeis, [a gramática] se reduziu
a hum systema informe e minucioso de exemplos e regras, fundadas mais
sobre analogias apparentes, que sobre a razão, a quem só pertence inquirir
e assignar as verdadeiras causas da Linguagem, e segundo ellas ordenar a
Grammatica de qualquer Lingua particular” (Barbosa 1822: X).
Se os juízos sobre a obra de Melo Bacelar foram unânimes, já sobre Soares
Barbosa a crítica expressa-se de maneira não homogénea. Muitos estudiosos,
sobretudo brasileiros, defendem que as suas definições são cerebrinas. Para
Leonor Lopes Fávero esta obra é pioneira porque “o seu autor vê a língua
como um cientista: pressente, discerne, apresenta posicionamentos que a
linguística vem privilegiando em nossos dias” (1996: 258). Encontram-se, na
verdade, assuntos como o infinitivo pessoal e a subdivisão e classificação das
preposições trabalhadas a partir dos conceitos de espaço e tempo, movimento
e repouso (= situação) que denotam uma modernidade extraordinária, tanto
que serviram de modelo ainda ao longo do século XIX. Voltando, pela última
vez, ao diálogo entre gramática e pedagogia linguística, podemos assinalar
os traços deixados por esta obra na análise sintática, durante muito tempo
inflacionada nas aulas de português.
Muitas das ideias de Barbosa são ainda percetíveis dois séculos mais
Monica Lupetti I 68

tarde na teoria da gramática generativa de matriz chomskiana. Ou seja, esta


gramática, tida como confusa e complicada por muitos contemporâneos do
gramático revela-se, contrariamente, uma fonte linguística moderna e fértil,
que merece ser ainda aprofundada e estudada17.
A GRAMÁTICA RACIONALISTA EM PORTUGAL NO SÉCULO XVIII

5. CONCLUSÕES
Apesar de termos traçado um percurso lógico ao longo deste trabalho é
evidente que faltam as provas substanciais para podermos afirmar a existência

16
“[…] sendo a Grammatica de qualquer Lingua a primeira theoria, que principia a desenvolver o em-
brião das ideias confusas da idade pueril; e dependendo da exatidão de seus principios e bom progresso
nos mais estudos: ella deve ser huma verdadeira Logica que, ensinando-se a falar, ensine ao mesmo tem-
po a discorrer. Que por isso a Grammatica foi sempre reputada como huma parte da Logica, pela intima
connexão, que as operações do nosso espirito tem com os signaes, que as exprimem” (Barbosa 1822: X).
17
Testemunho da fertilidade desta gramática e do facto de ela ter sido apreciada fora de Portugal
é, por exemplo, a sua tradução/adaptação italiana (de cuja realização e circulação estamos a tratar por-
menorizadamente em outro trabalho): Grammatica della lingua portoghese ad uso degli italiani sulle
tracce della grammatica filosofi ca della lingua portoghese dell’Illustre Signor Jerónimo Soares Barbo-
za, socio dell’Accademia Reale delle Scienze di Portogallo, ec. ec., com vari esercizi nelle due lingue,
compilata da Antonio Bernardini, cancelliere del Consolato Generale dell’impero del Brasile negl’II.
RR. Stati Austriaci e giurato traduttore e interprete della lingua portoghese, Trieste, 1858 – Milano,
Tipografia Borroni, 1859.
da continuidade efetiva de uma corrente racionalista em Portugal. Para que
isto seja possível, deve-se tentar uma análise detalhada e comparativa dos
títulos da nossa lista inicial que, apesar de tudo, são apenas uma amostra. Só
assim será possível ter um quadro completo do racionalismo português em
termos de micro e macroestruturas (imitações estruturais, reformulações,
reutilizações de exemplos, mas também os contextos políticos e sociais da
produção das gramáticas).

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