Crianças Na Era Digital
Crianças Na Era Digital
Crianças Na Era Digital
Monica Fantin*
RESUMO: O objetivo deste artigo é dar uma visão geral sobre a mudança do nosso
ambiente sociocultural. Na primeira parte, destaca-se essa mudança, que se baseia no
desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação, particularmente os
aplicativos chamados 2.0. Essas ferramentas enfatizam alguns aspectos novos realmente
interessantes do ponto de vista da educação. Elas são fáceis e baratas: não é necessário
ter grandes competências para usá-las e são de fácil acesso – assim, organizações como
as escolas podem adotá-los sem um custo muito alto. Além disso, essas tecnologias
são interativas: através delas é possível falar, colaborar, compartilhar conteúdos com
outras pessoas. Finalmente, o destaque ao sentido do que hoje em dia é conhecido como
usuário ou produtor, User Generated Content: neste caso não há mais apenas leitores
de mensagens, mas leitores que são também autores. Em língua inglesa, é crescente o
uso do termo Prosumers, para referir-se aos produtores que são também consumidores
(producers + consumers). Na segunda parte, o artigo busca individualizar os principais
problemas educativos nesta paisagem, apresentando três situações típicas que ocorreram
em uma referida escola, mas que poderia acontecer em qualquer sala de aula do mundo.
Por fim, a partir desses casos, situamos algumas sugestões e orientações para a intervenção
educativa.
1 A SOCIEDADE MULTITELA
O termo “comunicação digital” indica, como foi mostrado por Farrel Corcoran
(2006), uma paisagem comunicativa marcada pela multimedialidade, pela
intermedialidade (ou crossmediality), pela portabilidade e versatilidade.
Na multimedialidade, enquanto lemos uma página Web sobre o laptop, podemos
abrir uma janela na qual vemos um vídeo e escutar música de fundo ou uma voz que
comenta uma fotografia.
Por outro lado, na intermedialidade, o processo de convergência das mídias
ao digital já produziu e produzirá cada vez mais um processo de contaminação e
pluriespecialização dos diversos suportes: hoje se pode ouvir rádio na Internet,
navegar na Web e descarregar o correio eletrônico pela televisão de casa, telefonar,
escrever mensagens, fotografar e ter uma agenda de anotações com um telefone
celular.
O próprio celular, por sua vez, é cada vez mais smartphone, sempre mais
comprometido com tecnologias capazes de desenvolver funções diferenciadas em
relação àquela clássica, da ligação viva voz: isso se propõe como um ponto de acesso
alternativo a respeito de serviços e conteúdos, assim como o computador e a televisão
já o permitem fazer com a portabilidade e mobilidade.
São “tecno-lógicas” que influenciam em profundidade as lógicas da comunicação
e do consumo.
A lógica comunicativa do tipo um-a-muitos, que no tempo da televisão generalista
configurava a condição do espectador como de um terminal mais ou menos passivo
Diante do quadro acima, é possível observar diferentes cenas que fazem parte
do contexto escolar na formação de crianças e revelam interações que estabelecem
com as mídias e tecnologias digitais, bem como diferentes aspectos das formas de
comunicação nos espaços da educação formal e informal.
Cena 1:
Crianças brincavam no pátio da escola enquanto esperavam o professor de
educação física. No hall de entrada da escola há três mastros para hastear bandeira, e
algumas meninas de 7, 8 anos brincavam com eles, rodeando, subindo e escorregando
em movimentos sensuais imitando uma personagem que fazia pool dance, “a dança
do cano”, na novela das 21h, em exibição num canal aberto de televisão. As outras
crianças ao redor, olhavam e cantavam fazendo o fundo musical da cena, e quando
o estudante-estagiário de pedagogia pegou a máquina para fotografar, elas faziam
poses provocantes dizendo para colocar a foto no jornal da turma do 2º ano, uma
vez que ele estava desenvolvendo o projeto de ensino sobre a produção de um jornal
escolar com crianças na escola.
Cena 2:
Estudantes-estagiárias desenvolviam seu projeto de ensino “Olhares das crianças
sobre o meio ambiente” pretendendo como produção final fazer uma exposição de
fotografias feitas por crianças sobre a referida temática, numa turma do 2º ano,
com crianças de 7, 8 anos. Em uma das atividades desenvolvidas em sala de aula,
a estagiária havia planejado assistir com as crianças a um audiovisual e um clip
musical, o “Rap do reciclar”, postado no youtube.
A empolgação das crianças com o laptop conectado à internet móvel e o data-
show projetando imagens e sons nas paredes da sala de aula era evidente, não só pela
novidade e ineditismo de tais equipamentos na sala de aula, mas pela brincadeira
de corpos projetando-se nas luzes, como se fossem aprendizes de artistas de teatro
de sombras.
Enquanto a estagiária acessava o endereço pretendido, apareceu na tela “You
Tube” e aí foi o maior alvoroço: “You Tube, olha aí, a ‘profe’ vai entrar no You
Tube. Que massa!”, diziam as crianças querendo falar ao mesmo tempo. A estagiária
aproveitou os depoimentos espontâneos das crianças e perguntou se elas conheciam
o youtube e a que assistiam nele, e então uma menina de sete anos respondeu: “Tudo
o que você pode imaginar”. Sem aprofundar tal resposta, a estagiária, aparentando
certo receio diante desse “tudo”, problematizou algumas atitudes em relação a
certos riscos para crianças na internet enfatizando alguns cuidados necessários, e
passou a palavra para outras crianças, ávidas por falar a esse respeito também.
Cena 3:
Estudantes-estagiárias realizavam seu período de observação de aulas para
elaboração de um projeto de ensino a ser desenvolvido com uma turma do 4º. ano,
crianças de 10,11 anos. Antes de iniciar uma atividade de socialização de uma pesquisa
feita num site previamente indicado pela professora, uma confusão se fez na sala
de aula: crianças comentavam sobre um acontecimento envolvendo duas meninas
e um menino ocorrido durante o intervalo, resultado de um combinado feito no
orkut, e consequência indireta da referida atividade. Além da pesquisa solicitada, as
referidas crianças entraram no orkut umas das outras, deixaram diversas mensagens
e fizeram uma espécie de desafio e combinado “no dia seguinte, durante o intervalo,
no pátio da escola, o menino teria que beijar uma menina na boca, na frente de outra
menina”. Assim, no dia marcado, no intervalo da aula, as crianças se encontraram
no lugar combinado, o bambuzal da escola, e o menino deu um beijo na boca de uma
menina, que não queria, sob a testemunha daquela que o desafiou. No entanto, o
fato não ocorreu exatamente conforme o esperado e criou diversos constrangimentos
aos envolvidos, com seus desdobramentos espalhando-se pela turma e isso provocou
uma interessante discussão no grupo, feita na sala de aula sob a coordenação da
professora.
Esses fragmentos das três cenas brevemente relatadas na escola nos levam
a pensar em algumas questões que de certa forma refletem certas relações
estabelecidas na sociedade multitela: o que fazem, pensam e dizem as crianças
a partir de suas interações com as mídias e tecnologias em contextos formais e
informais e quais as possibilidades de mediação adulta em contextos formativos?
Como a escola no sentido da educação formal se relaciona com as práticas culturais
das crianças desenvolvidas em contextos informais? Que deslocamentos e estratégias
são necessários para trabalhar pedagogicamente com a especificidade dos âmbitos
de educação formal e informal?
Alguns pontos para pensar a partir das cenas descritas:
cultura de mídia? Mas por que não brincar com outros tipos de dança? Mas se fosse
outra dança qualquer, será que iria chamar a nossa atenção? Para além da dimensão
simbólica, podemos pensar que a brincadeira/dança revela-se como espetáculo e
nesse caso, revela também uma faceta da própria educação como espetáculo. Por que
essa dança chama atenção? Pela inadequação do tipo e espaço à especificidade do ser
criança? Mas o que é ser criança quando alguns aspectos dos limites estabelecidos e as
fronteiras entre o mundo dos adultos e das crianças estão cada vez menos evidentes?
Considerando que as crianças captam as informações do mundo considerado adulto
para responder aos problemas específicos, neste processo em que os sentidos são
construídos em contextos sociais definidos, também serão diferenciados conforme o
espaço social em que ocorrem, e as crianças “não se limitam a interiorizar a sociedade
e a cultura, mas contribuem ativamente para sua produção e transformação”, diz
Corsaro (2003, p. 44). Porém, na situação acima, o que elas estão produzindo e
transformando? Se no fluxo do pensamento, as imagens se modificam e ultrapassam
a realidade e no fluxo imaginário há espaços de intervalo que permitem recriar e ir
além, uma mediação intencional poderia atuar neste interstício sem comprometer a
brincadeira?
Fonte: EU Kids Online (Adaptação a partir da tabela “Classificação das oportunidades e riscos para crian-
ças online”. http://www.lse.ac.uk/collections/EUKidsOnline/Reports/EUKidsOnlineFinalReport.pdf
Fonte: EU Kids Online (Adaptação a partir da tabela “Classificação das oportunidades e riscos
para crianças online”. http://www.lse.ac.uk/collections/EUKidsOnline/Reports/EUKidsOnlineFinal-
Report.
Esses e outros riscos e possibilidades interpelam aos que atuam com a educação
de crianças e jovens mas também à formação de professores. Considerando que a
pesquisa no campo da educação de crianças tem mostrado a necessidade de abrir
horizontes para campos teóricos que relacionem diversos aspectos das práticas
educativas nos âmbitos social, cultural, estético, cognitivo, afetivo, há que ampliar
também os campos teórico-práticos da formação para que estejam sintonizados com
tais perspectivas e com os novos desafios colocadas pela cultura digital.
Para pensar a formação de professores nesta perspectiva, poderíamos entender
a formação como “política cultural” ou discutir a “formação cultural do professor”.
Em ambas as possibilidades, é necessário pensar a formação de crianças, jovens
e professores numa perspectiva integrada de educação, cultura, arte e tecnologia
na sociedade contemporânea. Para tal, há que pensar esta relação no constante
movimento entre continuidades e rupturas, efêmero e permanente, e na normatização
e transgressão desses elementos.
A maioria das diretrizes curriculares estabelece proposições para a formação
docente através de estudos teórico-práticos, da investigação e da reflexão crítica,
que propiciarão o planejamento, a realização e avaliação das atividades educativas
e sua aplicação ao campo da educação e da cultura. Ao lado de contribuições de
conhecimentos provindos da Filosofia, História, Antropologia, Sociologia, Psicologia,
Linguística, Economia, Comunicação e Arte estão os conhecimentos ambiental-
3 O termo nativos digitais (PRENSKY, 2001) diz respeito às crianças que já nasceram num contexto
como o atual, caracterizado pela presença das tecnologias e da mídia digital. Na ideia de Prensky, este
fato produz uma mudança no perfil cognitivo dessas crianças: elas são rápidas (os “imigrantes” adultos
são lentos), multitarefa (fazem muitas coisas ao mesmo tempo), autorais (não apenas leem as mensa-
gens da mídia, mas, sobretudo, produzem mídia, como se pode ver no You Tube, nos blogs, no Face-
book). Muitos pesquisadores não concordam com essa perspectiva por dois motivos principais. Pri-
meiro: parece estranho que uma mudança do cérebro possa acontecer em poucos anos. Como costuma
dizer o neurocientista italiano, Edoardo Boncinelli, o cérebro do homem é sempre o mesmo há 120.000
anos. Segundo: como muitas pesquisas demonstraram (BRANCATI; AJELLO; RIVOLTELLA, 2009),
a diferença entre o que os nativos e os imigrantes digitais fazem também não é tão grande. Por exem-
plo, em relação ao uso do celular: as mães tanto mandam mensagens aos seus filhos como também
para outras pessoas, por vezes num comportamento que poderia ser definido como "adolescencial". Na
pesquisa sobre os usos do celular (RIVOLTELLA, 2008), muitos adolescentes procuram no celular dos
pais mensagens de outras pessoas com receio de que eles possam ter relações com outros/as que não
sejam o pai ou a mãe. Nesse caso, quem seria o adolescente e quem seria o pai?
De posse dessas mentes e/ou inteligências, é possível pensar que uma mediação
significativa, crítica, sensível e informada em relação à cultura das mídias envolve
pensar noutras possibilidades para a prática pedagógica em relação aos usos da
cultura nos espaços educativos. Uma concepção ecológica e integrada de mídia-
educação, que se refere a fazer educação usando todos os meios e tecnologias
disponíveis: computador, internet, celular, fotografia, cinema, audiovisual, livro, CD,
DVD, integrando a corporeidade, a expressividade, a brincadeira, o teatro, a dança,
o movimento, pode nos ajudar a pensar nessas mediações.
Afinal, as crianças convivem com essa realidade e, brincando, vão interagindo,
aprendendo e construindo novas relações entre si, com os pares e com a cultura, e
a educação não pode deixar de mediar essas produções de sentidos. Para além da
homologação da cultura e da crítica ao consumismo na era digital, as mediações
educativas podem assegurar a diversidade de experiências e potencializar as
oportunidades considerando as inúmeras relações que as crianças estabelecem nos
cenários contemporâneos.
REFERÊNCIAS
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CORSARO, W. Le culture dei bambini. Milano: Il Mulino, 2003.
FERRI, P. La fine dei mass media. Le nuove tecnologie della comunicazione e le
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FANTIN, M. Mídia-educação: conceitos, experiências diálogos Brasil-Itália.
Florianópolis: Futura, 2006.
_______. Do mito de Sísifo ao vôo de Pégaso: as crianças, a formação de professores
e a escola estação cultural. In: FANTIN, M.; GIRARDELLO, G. Liga, roda, clica:
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