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A CULTURA DIGITAL COMO IMPERATIVO:

Novas Mídias, Tecnologias e Educação.

Sandro Faccin Bortolazzo – UFRGS


Carla Simone Corrêa Marcon - ULBRA

Introdução

Por quantos artefatos digitais você se encontra rodeado? Um, dois, três, quatro,
cinco. Não se esqueça de contar o Ipad, o Ipod, (que pode estar guardado na bolsa ou
mochila) o laptop, o computador, o smartphone, o videogame do filho (a) e o seu também.
Se não forem muitos os aparelhos, pode ser que neste exato momento o seu telefone celular
toque, vibre, informe a chegada de mensagem de texto, anuncie o aniversário de um amigo
(a) ou um simples alerta de que a bateria chegou ao fim. Talvez você esteja cansado (a) e
precise dormir. Mas, por impulso, você conecta à internet e percebe que um amigo (a) está
chamando para conversar no Facebook e concomitantemente outro chama pelo whatsApp1.
As relações que se mantêm com artefatos digitais tais como telefones celulares,
computadores e tablets têm se configurado como elementos significativos nas
transformações sociais e culturais vividas na contemporaneidade. Assim, quando uma série
de invenções tecnológicas permitiu a conexão entre milhões de pessoas às redes de
informações, nossas práticas cotidianas passaram também a incorporar certos hábitos
gerados pelo uso intenso das tecnologias.
Inscrito no referencial teórico dos Estudos Culturais da vertente pós-
estruturalista, este trabalho se propõe investigar a manifestação de uma distinta Cultura
Digital atuando como imperativo. Além disso, o estudo tem por objetivo articular algumas
noções centrais nas pesquisas em comunicação, educação e tecnologias: Mídia Digital,
Novas Tecnologias de Comunicação e Informação e Cultura Digital. Ao propor este tipo de
investigação, pretende-se chamar atenção para a presença de um regime tecnológico

1
WhatsApp é um aplicativo de mensagem instantânea para smartphones. Além de mensagens de
texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e mensagens de áudio.
inscrito em vários lugares de sociabilidade, considerado imperativo e, muitas vezes,
indispensável.
Como referencial teórico, utilizam-se autores que discutem os conceitos de
Cultura, Novas Tecnologias e Cultura Digital, com destaque à Williams (1969), Lister et.al
(2009), Gere (2008) e Buckingham (2007;2010). Dessa forma, três movimentos de
investigação foram articulados. O primeiro pretende exibir um breve panorama dos meios
de comunicação com enfoque nas práticas sociais desenvolvidas a partir do digital, dos
computadores em rede e das formas como as tecnologias digitais alteraram outros meios. O
segundo movimento discute questões referentes às novas mídias, expondo igualmente
abordagens acerca do impacto das novas tecnologias na vida em sociedade. Com base nos
dois movimentos de investigação, finaliza-se com a arriscada problematização sobre o
conceito de Cultura Digital. Assim, a abordagem desenvolvida neste estudo aponta para
uma Cultura Digital que invade os espaços escolares, forjando e instituindo a integração das
tecnologias aos processos pedagógicos como marca de “uma educação do e para o futuro”.

Entre velhas e novas tecnologias

Neste trabalho, o termo “tecnologia” se refere tanto ao conhecimento técnico e


científico, quanto às ferramentas e os processos para adquirir tal conhecimento. Entende-se
por tecnologia cada aparato que requer tempo de aprendizagem, adaptação e acomodação
por parte dos sujeitos. Como exemplo tem-se a escrita, a imprensa, os automóveis, o rádio,
o telefone, o computador, e assim por diante. Todas essas tecnologias mudaram em algum
grau o modo de vida nas sociedades ocidentais e se tornaram ferramentas, muitas vezes,
indispensáveis, a uma série de atividades. Deste modo, é preciso registrar que não se
emprega o conceito de tecnologia no sentido foucaultiano, utilizado para estabelecer uma
metodologia de análise do poder, a exemplo da disciplina.
Há cerca de 50 anos, os aparelhos eletrônicos chegados ao Brasil eram
importados. Usava-se dinheiro em espécie para pagar as contas e os meios de comunicação
mais acessíveis à população da época se restringiam às emissoras de rádio e aos jornais
impressos. No entanto, uma das maiores revoluções vividas pela humanidade estava por
vir. Cinco décadas depois, as tecnologias alteraram radicalmente o modo de vida nas
sociedades e nenhum aspecto do cotidiano permaneceu imune a suas influências.
Na primeira década do século XX deu-se a expansão do rádio e demorou muito
até surgir a televisão em preto e branco. Alguns anos depois, chega-se à televisão em cores.
O controle remoto, vendido junto aos televisores a partir de 1981, vai criando a
possibilidade dos telespectadores navegarem pelos canais e, junto ao colorido da tela,
outros aparelhos se ligam tais como consoles de videogames e videocassetes. A partir da
televisão em cores, menos tempo ainda se levou até surgir a televisão por assinatura e via
satélite. Poucos anos depois, a comunicação entre computadores via rede, a internet (nas
versões discada, banda larga e sem fio, respectivamente), aos poucos, foi invadindo
inúmeros lugares.
As expressões “Novas Mídias”, “Novas Tecnologias de Informação e
Comunicação”, “Mídia Digital”, “Cultural Digital” – entres outros termos que conectam
comunicação, mídia, sociedade, cultura e tecnologias – têm sido empregados nas
reportagens midiáticas, nos textos acadêmicos, na publicidade de vários produtos e no
vocabulário cotidiano. Contudo, discutir sobre essas expressões, inevitavelmente, gera
inúmeras problematizações. A começar pela qualificação “nova”. O “novo” carrega
historicamente uma marca ideológica que significa, continuamente, algo melhor. O novo
está associado com a vanguarda, com certa visão, na maioria das vezes, positiva, do futuro.
Junto às Novas Mídias e às Novas Tecnologias de Comunicação e Informação emergem
igualmente a utopia de maior produtividade e das oportunidades e possibilidades
educacionais. Para além das discussões sobre o novo, o que, de fato, se constitui como
novidade nos meios de comunicação?
De acordo com Lister et al. (2009), a expressão “Novas Mídias” emergiu para
capturar certa sensação de que, em passo acelerado, a partir dos anos 1980, o universo dos
meios de comunicação começou a se mostrar diferente. Esse foi o caso da televisão, da
fotografia e da mídia impressa que, gradualmente, estiveram envolvidas em um fluxo
constante e contínuo de mudanças culturais, institucionais e, principalmente, tecnológicas.
Para Lister et al. (2009), alguns indicativos dessas mudanças competem à passagem da
modernidade para a pós-modernidade, aos processos de globalização e à substituição de
uma era industrial de manufatura por uma era da informação. Mesmo assim, até que ponto
é possível identificar algum tipo de mudança significativa que se encontre subjacente aos
novos meios de comunicação, quer dizer, algo mais tangível que ultrapasse a discussão
sobre as mudanças de contextos? Neste sentido é que reside a expressão “Mídia Digital”,
uma vez que leva em consideração um meio específico, o digital, e suas implicações em
função do registro, da produção, do armazenamento, do consumo e da distribuição de
informações.
Na perspectiva de Lemos (2003), o que chamamos de Novas Tecnologias de
Comunicação e Informação surgem a partir do ano de 1975, quando dá fusão das
telecomunicações analógicas com a informática, o que possibilitou a veiculação sob um
mesmo suporte, o computador. Segundo Lemos (2003), essa revolução implica a passagem
dos mass media como a TV, a imprensa e o cinema, por exemplo, para formas
individualizadas de produção e estoque de informação. Interessante nessa discussão é que
não há uma mudança “radical” que dividiu o mundo da comunicação entre as velhas e as
novas mídias, ou melhor, entre as mídias analógicas e as mídias digitais. Isso porque a
distribuição das informações em rede, por exemplo, não existiria sem a “espinha
tecnológica” fornecida pelas então existentes formas de transmissão, dos telefones aos
rádios. Seguindo as orientações de Lister et al. (2009), o termo “Novas Mídias” pode ser
analisado se referindo, então, às novas experiências textuais, aos novos modos de
representar o mundo e às novas relações dos sujeitos (usuários e consumidores) com as
tecnologias midiáticas.
Muitas das abordagens críticas simplesmente negam que tenha ocorrido
qualquer tipo substancial de mudança, seja nas mídias, seja no contexto cultural em que
estão inseridas. Por outro lado, é preciso considerar também aquelas vozes que acreditam
que tudo foi alterado com as novas mídias, aqueles que enxergam as tecnologias e as mídias
digitais como sendo a própria utopia.
Para corroborar o debate, volta-se a dois teóricos: Marshall McLuhan e
Raymond Williams. Nos argumentos de ambos se debruçam e ecoam múltiplos
significados sobre o papel das tecnologias na vida em sociedade. As premissas dos autores
marcam o tom polarizado da discussão contemporânea, tendo de um lado os seguidores de
McLuhan que enxergam as novas tecnologias como revolucionárias, e do outro os que
seguem uma linha mais próxima de Williams, considerando as tecnologias como parte de
processos sociais e culturais mais amplos. De acordo com Lister et al. (2009), McLuhan
estava interessado em identificar e explorar o que ele percebia como grandes mudanças
culturais trazidas pelas tecnologias midiáticas, enquanto Williams estava mais voltado às
condições de possibilidade para o surgimento dessas novas mídias. McLuhan tinha
preocupações com os efeitos culturais das novas tecnologias, já Williams procurou mostrar
que não há nada novo em uma determinada tecnologia que possa garantir certos efeitos
culturais ou sociais. As teses de McLuhan procuram explicar todos os fenômenos, desde a
primeira produção comunicativa registrada entre seres humanos, como deterministas, no
sentido de depender de somente um fator dominante - neste caso, a tecnologia. Na
contramão das propostas de McLuhan está a de que as tecnologias não são nada até que
sejam dadas a elas determinado significado cultural, ou melhor, importa o que os sujeitos
fazem com as tecnologias e não o contrário. Assim, em Williams, as tecnologias estão
envolvidas em processos que McLuhan simplesmente descarta. Quer dizer, as tecnologias
não podem estar apartadas das questões práticas; elas emergem do próprio agenciamento e
também das intenções humanas. E tais intenções surgem para atender desejos e interesses
históricos e culturalmente específicos (WILLIAMS, 1975). Aliás, as tecnologias por si não
são capazes de gerar mudanças, enfatiza Williams. Seguindo novamente as análises
propostas por Lister et al. (2009), Williams não se contenta em compreender as tecnologias
apenas como artefatos, uma vez que na sua apreensão, os conhecimentos e as competências
necessárias e adquiridas para utilizar uma ferramenta ou uma máquina são parte integrante
de qualquer processo conceitual que pretenda definir o que é uma tecnologia e seus usos.

Problematizando a Cultura Digital

Hoje, é difícil imaginar uma sociedade desprovida de televisões, computadores


ou redes de telefonia. Os avanços tecnológicos são contínuos como uma via de mão única,
não havendo qualquer possibilidade de retrocesso. Nesta perspectiva, o advento da internet
foi um marco histórico na evolução das tecnologias e os progressos de ordem econômica e
social ligados à rede, bem como a expansão do consumo de artefatos digitais, têm servido
igualmente para moldar muitas das nossas experiências. Na mesma corrente de
pensamento, há uma preocupação com os usos culturais das novas tecnologias. E uma
questão importante a ser considerada é que as tecnologias não são coadjuvantes em relação
às questões culturais, mas elementos centrais. As tecnologias não são acessórios periféricos
para os analistas culturais, mas elementos onipresentes. Em suma, “toda a cultura é
tecnológica” (LISTER, et al.,2009, p.16).
Para compreender a emergência de uma Cultura Digital como imperativo e
tentar posicioná-la como sintoma de uma sociedade que investe fortemente em material
tecnológico, é preciso analisar as condições de possibilidade, não somente históricas, mas
também econômicas e sociais que permitiram a produção dessa cultura. De fato, é difícil
apreender, em toda a sua extensão, as transformações ocasionadas pelo digital. A maioria
dos meios de comunicação – a televisão, o cinema, a indústria da música, as revistas, os
jornais – tem cada vez mais produzido e distribuído seus produtos em formato digital.
Mesmo assim, a tecnologia digital não se limita aos meios de comunicação. Computadores
com acesso à internet se transformaram em ferramentas indispensáveis a inúmeras
atividades do cotidiano – pagamento de contas, transferências bancárias, comunicações
instantâneas, compras, entretenimento e lazer, informação, estudo. Nos supermercados, nos
bancos, nos shoppings, nos elevadores, nos escritórios, nas escolas, nas universidades, nas
estradas e, muitas vezes, nas ruas e calçadas, somos monitorados digitalmente. Grande
parte dos meios pelos quais os governos e outras instituições e organizações atuam,
controlam, fiscalizam e punem contam e se apoiam também nas tecnologias digitais.
As transformações sob a égide da tecnologia digital também produziram uma
espécie de efeito express em que tudo parece ter um lugar e um ritmo acelerado, alterando
igualmente as percepções de espaço e tempo. Segundo Bauman (2001), os fluxos de capital
e as pessoas viajam com leveza — apenas com a bagagem de mão, que inclui pasta,
telefone celular e um computador portátil. Isso permite aos “passageiros” embarcar e partir
de qualquer ponto, sem precisar demorar-se em nenhum lugar além do tempo necessário.
Os telefones celulares são exemplos expressivos dessas mutações e acomodações. Antes
considerados objetos do mundo corporativo e empresarial, útil à vida de executivos de
grandes empresas, hoje sua popularização é inconteste e indispensável à vida dos sujeitos,
sejam eles crianças, jovens ou adultos. As versões smartphones estão amplamente
disponíveis e, para utilizar uma expressão de Lemos (2006), são uma espécie de “tele
tudo”, “um dispositivo que é ao mesmo tempo telefone, máquina fotográfica, televisão,
cinema, receptor de informações jornalísticas, difusor de e-mails e SMS (...), GPS, tocador
de música (MP3 e outros formatos), carteira eletrônica (...)” (idem, p.9).
Recorrer ao digital é evocar, metonimicamente, a todo um conjunto de
manifestações que incluem artefatos como tablets e smartphones, simulacros virtuais,
comunicações instantâneas, conectividade. É aludir a uma vasta gama de formas midiáticas,
possibilitadas pela tecnologia digital, abrangendo a realidade virtual, o cinema digital, a
televisão digital, a música eletrônica, os jogos de computador, a internet, a World Wide
Web, e assim por diante. Também compreende o mundo dos negócios dominados por
empresas de tecnologia como a Microsoft, a Apple ou Sony.
A partir dessas evidências seria possível propor a existência de uma distinta
Cultura Digital, em que o termo digital estaria representando uma forma particular de vida
de um grupo ou de grupos de sujeitos em um determinado período da história. Para invocar
uma das definições de cultura proposta por Williams (1975), à cultura digital compete
pensá-la como um marcador cultural, uma vez que envolveria tanto os artefatos quanto os
sistemas de significação e comunicação que demarcam e distinguem nosso modo de vida
contemporâneo dos outros.
O debate sobre a Cultura Digital, segundo Gere (2008), se apoia em duas
crenças interligadas. “Uma delas é a de que tal cultura representa uma decisiva ruptura com
aquilo que a precedeu (no caso aqui a cultura analógica), e a outra é a de que a Cultura
Digital deriva e é determinada pela existência da tecnologia digital” [grifos nossos] (GERE,
2008, p.17). Mesmo assim, analisar a Cultura Digital como um ente completamente novo, e
seu desenvolvimento determinado tão somente pelos avanços tecnológicos, nos remeteria a
uma visão, fundamentalmente, determinista. Seria mais adequado sugerir, então, que “a
tecnologia digital é um produto da cultura digital, e não vice-versa” (GERE, 2008, p.17).
Ou como também sugeriu Gere (2008) ao citar Gilles Deleuze que “a máquina é sempre
social antes de ser técnica. Há sempre uma máquina social que seleciona ou atribui os
elementos técnicos utilizados” (idem, p.17). Assim, o digital não se refere apenas aos
efeitos e possibilidades de uma determinada tecnologia, mas abrange formas de pensar e de
desenvolver certas atividades que são incorporadas por essa tecnologia e que permitem a
sua existência. Na perspectiva apontada por Gere (2008), a Cultura Digital é um fenômeno
historicamente contingente que emergiu, primeiro, como resposta às exigências do
capitalismo moderno e, em seguida, combinada na contestação à guerra. Contudo, a
tecnologia digital é apenas uma entre inúmeras fontes que têm contribuído para o
desenvolvimento da Cultura Digital. Essas outras incluem, de acordo com Gere (2008), os
discursos tecnocientíficos, as práticas artísticas de vanguarda, a utopia da contracultura, a
Teórica Crítica e as subculturas como a punk.
De fato, foi no período da Segunda Guerra Mundial que o modelo binário da
computação passou a assumir a forma do digital que encontramos no presente. A Segunda
Guerra Mundial foi um dos catalisadores não apenas da invenção dos sistemas binários
precursores da tecnologia digital dos computadores, mas também do desenvolvimento de
uma série de teorias, incluindo a da Cibernética, a Teoria da Informação, a Biologia
Molecular, a Inteligência Artificial. Para Gere (2008, p. 51), mesmo que em diferentes
áreas e contextos, cada um desses sistemas foram influentes. “Com efeito, em grande
medida, eles representam, coletivamente, o paradigma do pensamento científico e
tecnológico do período pós-guerra”. Embora não sendo determinados nem determinantes da
invenção e do uso dos computadores, esse conjunto de teorias fazia parte de um mesmo
ambiente intelectual.
Um conceito associado à Cultura Digital permite articulações com outros tais
como Cibercultura (LEVY, 1999), Era da informação ou Era Digital (CASTELLS, 1999).
Cada um deles foi pensado para demarcar esta época em que as relações humanas têm sido
fortemente mediadas por artefatos digitais. A Cultura Digital envolveria, assim, a existência
de interatividade, interconexão e inter-relação entre homens, informações e máquinas. A
comunicação dominada pelas tecnologias digitais tornou possível a emergência da
expressão Cultura Digital porque se trata de algo que nos envolve como a atmosfera, algo
no qual participamos como produtores, consumidores, disseminadores e que, por isso, tem
integrado a vida cotidiana, invadido as nossas casas e interferido nas relações que
estabelecemos com o mundo, tanto material quanto simbólico, que nos rodeia. A Cultura
Digital poderia ser pensada como a própria representação de uma fase contemporânea das
tecnologias de comunicação, que segue a cultura impressa do século XIX e a cultura
eletrônica do final do século XX.
Ao pensar em Cultura Digital, se reflete sobre uma forma de produção, sobre os
caminhos nos quais o digital tem sido filiado a certos significados culturais. Quer dizer,
para que se possa pensar sobre o conjunto de práticas que envolvem os sujeitos e as
tecnologias digitais, é preciso dar a elas significados. Assim, muitos teóricos têm afirmado
que todas as práticas sociais são práticas de significação e, por isso, seriam
“fundamentalmente culturais” (DU GAY, 1997, p.2). Além disso, dentro dessa discussão,
cabe recorrer à ideia central de Williams (1975) de que "a cultura é material", ou seja, a
cultura não é simplesmente a maneira como vivemos nossas vidas, senão a própria vida.
Deste modo, as Novas Tecnologias de Comunicação e Informação não só incitam as formas
pelas quais enxergamos e experimentamos o mundo, mas produzem e são os próprios
produtos da sociedade em que vivemos.

Educação e Tecnologias: alguns atravessamentos

Com o reconhecimento da relevância que as tecnologias digitais apresentam na


sociedade contemporânea, compreende-se que um conjunto de elementos atrelados ao
digital, incluindo os sites pessoais ou institucionais, as redes sociais, os artefatos digitais,
entre muitos outros, e todos os tipos de relações que os sujeitos mantêm, compõem parte de
um emaranhado de conceitos e ideias que produzem a Cultura Digital. Nesse sentido,
certamente o mundo da educação não passaria imune diante de tais reconfigurações.
Um dos gurus das tecnologias na década de 1980, o americano Seymour Papert
(1980), dizia que os computadores transformariam a educação e tornariam o processo
educativo praticamente redundante. Segundo o autor, os computadores iriam proporcionar
aos sujeitos o poder de determinar seus próprios padrões de educação. Para Buckingham
(2010), Papert foi ainda mais radical ao afirmar que no futuro não existiriam mais escolas.
Ele não estava sozinho. Steve Jobs, o fundador da Apple Computers,
então preparando o caminho para alcançar o mercado educacional
americano, era outro defensor apaixonado do potencial revolucionário da
computação educacional; eles mais tarde juntaram-se a uma coorte
entusiástica de marqueteiros visionários, como Bill Gates, da Microsoft,
ávidos por usar as escolas como trampolins para um mercado doméstico
muito mais valioso [grifo do autor] (BUCKINGHAM, 2010, p. 38).

Para o bem ou para o mal, “a escola enquanto instituição ainda está firme entre
nós e a maior parte do ensino e aprendizado que aí se dá manteve-se quase intocável apesar
da influência da tecnologia” (BUCKINGHAM, 2010, p.38). Mesmo diante da
argumentação, hoje é visível que tablets, computadores e internet têm se tornado elementos
significativos na vida dos sujeitos escolares. A primeira relação das crianças com as
tecnologias, por exemplo, já não ocorre no contexto escolar. Elas ingressam nos espaços
escolares, muitas vezes, previamente munidas do conhecimento e das habilidades
tecnológicas. Assim, ao mesmo tempo em que se atribuem às tecnologias digitais grande
potencial como ferramenta pedagógica, se sustenta que seus usos na educação não estariam
estimulando a imaginação e a inteligência dos jovens. Ambas as perspectivas têm sido cada
vez mais presentes nos estudos sobre alfabetização, aprendizagem, ensino, etc.
Os argumentos sobre a presença das tecnologias digitais nos espaços escolares
se baseiam, de maneira geral, em oposições deterministas, em que as tecnologias são vistas
como autônomas em relação a outras forças que atuam na sociedade e independentes de
quaisquer contextos. Nos primórdios da televisão, o debate contrastante era recorrente. A
televisão foi inicialmente promovida entre pais e professores como um meio educacional.
Segundo Buckingham (2007), a televisão era vista como a materialização do futuro da
educação. “Elas eram descritas como máquinas de ensinar que iriam trazer novas
experiências e novas formas de aprender do mundo exterior para dentro da sala de aula”
(idem, p.31). Mesmo naquela época, as esperanças utópicas eram contrabalançadas pelos
receios de que a televisão pudesse substituir os professores. O meio de comunicação “foi
celebrado como uma forma de nutrir o desenvolvimento emocional e educacional das
crianças e, ao mesmo tempo, condenado por afastá-las das atividades mais saudáveis e
valiosas” (idem, p.31).
A integração das tecnologias aos processos pedagógicos é parte de um poderoso
discurso atrelado também à Cultura Digital. Há uma abordagem das novas tecnologias
como recursos pedagógicos produtivos e, nesse sentido, observa-se uma marca imperativa
associando as tecnologias a “uma educação melhor”, “uma educação digital”, “uma
educação do e para o futuro”. A inserção das novas tecnologias nos ambientes escolares,
além de constituir um discurso próprio, nos últimos anos, tem materializado ou
sugestionado a inclusão dos alunos e das escolas na lógica das redes, estendendo os
benefícios de uma educação ao estilo digital. Além disso, hoje é possível notar certo
governamento2 das práticas pedagógicas para que os recursos digitais sejam inseridos e
utilizados nas salas de aula. Essas práticas vão sendo operacionalizadas quando as escolas
instituem os laboratórios de informática, disponibilizam lousas digitais, ou mesmo quando
a medicina traz evidências de que o raciocínio dos jovens melhora com o uso das
tecnologias. O movimento de entrada dos aparatos tecnológicos na educação tem
produzido, inclusive, políticas públicas, como no caso da distribuição pelo Ministério da
Educação em 2012 de tablets para professores da rede pública de ensino. Asseguro junto
com Buckingham (2010, p.41) que boa parte dos planos de ação são igualmente
caracterizado por uma forma de determinismo tecnológico – a noção de que “a tecnologia
digital automaticamente produzirá certos efeitos (por exemplo, em relação aos modos de
aprendizagem ou a determinadas formas de cognição) sem restrição dos contextos sociais
em que seja usada, nem mesmo dos atores sociais que a usem”.
Vale ressaltar ainda que a maioria das experiências que os jovens mantêm com
as tecnologias se dão para além dos muros escolares. No entanto, a ideia de que a
tecnologia por si transformaria a educação é uma ilusão. A educação escolarizada
provavelmente continue servindo a muitas funções – econômicas, sociais, políticas – que
não se limitam ao seu papel exclusivamente de ensino. Mesmo assim, é importante ressaltar
que os sujeitos jovens que adentram nos espaços escolares vêm sendo produzidos, desde o
berço, com o auxílio da informática. Câmeras de monitoramento estão lá para garantir o
2
Entenda-se aqui governo como uma grade de análise estratégica para os múltiplos tipos de
relações de poder, não apenas daquelas relações que se estabelecem entre Estado e população, mas
de qualquer uma que possa ser entendida como conduta de conduta.
sono dos bebês; aplicativos para tablets e filmes animados atuam como “babás” do século
XXI, divertindo os filhos e garantindo sossego aos pais; numa idade mais avançada chegam
jogos de videogame e computadores, ou seja, desde cedo esses jovens se encontram
envoltos pelo universo das tecnologias. Portanto, talvez seja difícil desvencilhar o uso e
consumo de artefatos digitais quando crianças e jovens ingressam nas escolas e
universidades. Quer dizer, as revoluções no campo tecnológico e os meios de comunicação
operando com seus aparatos e produtos têm sido um dos grandes propulsores dessa
expansão cultural dita digital e têm estimulado outras formas de compreender e de se
relacionar com o mundo material e simbólico, notadamente, vistas como práticas culturais
de significação.

Referências

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