Revista Energia
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Com uma matriz elétrica em que as fontes limpas respondem por mais de 80% (frente à média mundial de 29%), abundância de recursos hídricos, sol e vento e a capacidade de gerar energia elétrica 24 horas durante sete dias da semana com fontes limpas, o que pode destravar investimentos em hidrogênio verde, a descarbonização de países desenvolvidos e emergentes poderá passar pelo Brasil, que em 2025 sediará a COP30 em Belém (PA).

O Brasil foi o terceiro país no mundo que mais atraiu investimentos em energias renováveis em 2023, totalizando mais de US$ 25 bilhões, segundo dados da BloombergNEF (BNEF), atrás apenas da China e dos Estados Unidos. Considerando todos os segmentos da transição energética e tecnologias de baixo carbono, o investimento no país totalizou US$ 34,8 bilhões, atrás de China, Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e França.

O momento cria oportunidades, desafios e dilemas que envolvem da governança setorial à estratégia de inserção internacional sob o novo contexto geopolítico, que combina políticas industriais em países desenvolvidos e uma nova ordem mundial. Isso coincide com o fato de o Brasil chegar até o fim dessa década entre os cinco maiores produtores de petróleo do mundo, sendo que parte do óleo extraído no pré-sal é associado ao gás.

No pano de fundo, as mudanças climáticas impõem reflexões sobre operação, planejamento e contratação e tornam urgentes a mudança do modelo do setor elétrico. “O Brasil pode fazer muito pelo clima, mas o clima pode fazer muito com o Brasil”, sintetiza o presidente da PSR, Luiz Barroso. O modelo de regulação do setor elétrico, que completou duas décadas em março, exige aperfeiçoamentos.

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“O setor elétrico precisa passar por uma completa reordenação, a governança está fragilizada e deverá piorar ainda mais nos próximos anos. Já a conta está ficando cada vez mais cara para o consumidor cativo, que paga as ineficiências”, afirma Edvaldo Santana, ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e presidente da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace).

“O diagnóstico é unânime no sentido de que precisamos fazer um novo marco regulatório para o setor elétrico. O marco atual levará o setor à insustentabilidade. Hoje temos a tarifa de energia elétrica pesadamente sobrecarregada por subsídios”, destaca Sandoval Feitosa, diretor-geral da Aneel. Ele lembra que os subsídios custaram ao consumidor R$ 40 bilhões em 2023 e poderão ficar de R$ 3 bilhões a R$ 4 bilhões mais caros em 2024.

Prado, da EPE: corte de 65% no orçamento para 2024 prejudica os trabalhos — Foto: Wenderson Araujo/Valor
Prado, da EPE: corte de 65% no orçamento para 2024 prejudica os trabalhos — Foto: Wenderson Araujo/Valor

Hoje, 12,5% da conta de luz são subsídios e encargos. Levantamento da Abrace apontou que em 2022 o Brasil teve o maior custo residencial com energia elétrica na comparação com 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Mudar essa realidade exigirá reformular a governança.

Em abril, o governo federal lançou a Medida Provisória (MP) n° 1.212/2024, com o objetivo de reduzir em média 3,5% as tarifas de energia elétrica. De um lado, o texto antecipa recursos devidos pela Eletrobras, que seriam pagos nos próximos anos à Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), para reduzir a conta de luz. Mas estende subsídios para fontes renováveis terem desconto à conexão, o que pode elevar a tarifa. “Com a nova MP, esse custo aumentará ainda mais e de forma imediata”, segundo análise da Frente Nacional dos Consumidores. A conta pode ficar ainda mais alta com a interferência do Legislativo, uma constante no setor desde a Lei nº 14.182, de 2019, que autorizou a privatização da Eletrobras e a contratação compulsória de térmicas.

Em menos de uma semana, já havia 160 emendas de parlamentares na MP 1.212/2024, uma defendendo a renovação de contratos de termelétricas a carvão até 2050. A interferência do Legislativo no setor elétrico, motivada por grupos de interesse, tem sido uma constante nos últimos anos e criado subsídios e sobrecontratação de energia. “Será preciso frear esse movimento”, afirma Santana.

Aprimorar a governança setorial, ampliando a independência institucional e reduzindo interferências pelo Legislativo, passa pelo fortalecimento das instituições. Um exemplo está na Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão estatal de planejamento, que completa nesse ano duas décadas de existência. A estatal sofreu um corte de 65% no orçamento para 2024. “Isso prejudica nosso trabalho”, diz o presidente da EPE, Thiago Prado. Não é caso isolado. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) trabalha com uma defasagem de 30% de pessoal em relação ao idealizado em sua criação, em 1996.

Passadas quase três décadas, o setor assistiu ao avanço da geração distribuída (GD) solar e seus mais de dois milhões de minigeradores e novas tecnologias como armazenamento. “Essa multiplicidade de lados coincide com a maior complexidade, sendo que a agência foi pensada em um setor que há 20 anos não vivenciava os desafios atuais”, disse Fernando Mosna, diretor da Aneel, em recente evento sobre o setor solar, que há duas décadas era incipiente no Brasil.

Nesse cenário, será preciso redesenhar o modelo, baseado na Lei nº 10.848, de março de 2004. A regulação foi criada há 20 anos, quando usinas eólicas e solares não respondiam nem por 1% da geração. Hoje o país tem cerca de 30% da geração baseada nas duas fontes, sendo que mais de dois milhões de consumidores produzem sua própria energia a partir de placas fotovoltaicas.

O avanço de fontes que dependem de fatores climáticos, como sol e vento, traz uma série de desafios, seja um sistema de precificação mais aderente à realidade da operação, seja a gestão da demanda pelos consumidores. Isso criou sinalizações incertas sobre as condições de oferta e demanda. “O modelo de 2004 não mexeu na questão estrutural da formação de preço e não revisou a garantia física das hidrelétricas, que são a base do sistema. De outro lado, não se buscou dar ferramentas para a gestão de demanda dos consumidores”, diz Élbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica).

Feitosa, diretor da Aneel: o marco atual levará o setor à insustentabilidade — Foto: Wenderson Araujo/Valor
Feitosa, diretor da Aneel: o marco atual levará o setor à insustentabilidade — Foto: Wenderson Araujo/Valor

Um exemplo dos desafios que o país terá é destravar novas tecnologias, como o hidrogênio verde, que desponta como um promissor combustível da descarbonização de setores como a siderurgia. Com capacidade de produzir energia 24 horas, sete dias da semana, a partir de hidrelétricas, eólicas e solares, o país pode se tornar uma potência nesse nicho. “Temos recebido consultas de várias empresas e em projetos não apenas localizados no Nordeste, mas todos estão à espera da regulação”, diz Paulo Alvarenga, CEO da thyssenkrupp para a América do Sul.

Estudo da BloombergNEF projeta o país como um dos únicos capazes de oferecer hidrogênio verde a um custo inferior a US$ 1 por kg até 2030. Um projeto de lei está em discussão no Congresso. Um ponto em aberto é o tamanho do subsídio que poderia ser criado para a tecnologia. Nesse momento, segundo uma fonte, o Ministério da Fazenda avalia um estudo dos produtores de hidrogênio verde de um incentivo tributário que pudesse ser devolvido a partir da operação da unidade. Também se avalia que esse incentivo só seria destinado aos primeiros 7 GW de projetos.

Nessa discussão, dois pontos se sobressaem. Primeiro, a criação de subsídios se torna cada vez mais complexa. Hoje 12,5% da conta de luz, de acordo com dados do governo, são subsídios e encargos. A segunda questão é o impacto sobre a transmissão. Em apenas um Estado, o Piauí, existem 11,6 GW de projetos de hidrogênio verde. Se todos saíssem, isso seria 70% do consumo de ponta da região Nordeste. Para serem rentáveis, eles precisam gerar quase todo o tempo, o que implicaria reforço em subestações e linhas de transmissão. “Isso traz questões: quem vai bancar?; quem vai pagar o custo de transmissão?”, pondera Prado, da EPE.

“Tem de haver um cuidado para que esse hidrogênio não seja só para exportação. Ele pode ser usado na nossa indústria. Isso poderá permitir que a gente produza bens e produtos e serviços de baixas emissões e possa exportar. Aí, sim, tem um valor agregado grande para a sociedade brasileira. Tudo que é subsídio tem de ser revertido para o bem do país”, observa Rosana Santos, diretora-executiva do Instituto E+ Transição Energética.

Outra discussão premente é a abertura total do mercado livre, uma ideia que vem sendo discutida há mais de duas décadas. Desde 1º de janeiro de 2024, o setor vive a maior ampliação do mercado livre, com a possibilidade de todas as empresas ligadas à alta tensão aderirem ao segmento. Pouco mais de cem mil empresas ganharam essa opção. Fica a dúvida de quando a abertura chegará aos cem milhões de consumidores.

Hoje tramita no Congresso o Projeto de Lei 414, que trata da abertura do mercado, mas sem previsão de quando poderá voltar à pauta legislativa. A abertura depende do equacionamento de um ponto. O atual modelo, estabelecido em 2004, fixa que os geradores ofertem contratos de longo prazo, de 25 a 35 anos, o que também contribui para financiar os projetos. São os chamados contratos legados. Alguns vão até 2054. Ampliar esse segmento implica resolver os contratos legados e o papel das distribuidoras.

Dutra, da FGV/Ceri: distribuidoras se tornarão plataformas multisserviços — Foto: Leo Pinheiro/Valor
Dutra, da FGV/Ceri: distribuidoras se tornarão plataformas multisserviços — Foto: Leo Pinheiro/Valor

Quanto mais se amplia o mercado livre, maior fica a conta para quem se mantém no ambiente de contratação regulada. O Ministério da Fazenda encomendou um estudo para a PSR sobre o tema. Foram feitas simulações para a abertura total do mercado livre de energia elétrica. Um ponto central do trabalho é sugerir tratamento aos contratos legados das distribuidoras. Uma ideia apresentada no estudo seria a criação de um encargo a ser cobrado entre consumidores cativos e livres.

Mesmo diante da incerteza da abertura total, a ampliação do mercado livre para toda a alta tensão desde 1º de janeiro atrai novos players. A operadora de telecom Vivo firmou parceria com a geradora Auren. “A empresa tem como foco de atuação o segmento de clientes que estão na alta tensão com demanda inferior a 500 kW, mas vai se preparar para operar no segmento de baixa tensão, tanto para micro e pequenas empresas como para residencial, em um cenário de abertura total do mercado de eletricidade brasileiro”, afirma Rodrigo Gruner, diretor-executivo de inovação, novos negócios e consumer electronics da Vivo.

O mercado de gás natural, visto como combustível de transição, também assiste a movimentações. Para reduzir a presença de carvão mineral nos processos produtivos, a Gerdau firmou acordo com a Petrobras para ser consumidora livre em Minas Gerais na unidade de Ouro Branco. “Isso nos tornou mais competitivos e estamos avaliando essa migração em outros Estados”, diz o diretor industrial da empresa, Mauricio Metz.

A potencial abertura coincide com a discussão da renovação dos contratos das distribuidoras, que vivem uma realidade distinta dos anos 1990. Dados da consultoria Bright Strategies apontam que a GD solar tem índice superior a 7% de penetração em grandes distribuidoras, como Copel, Cemig, RGE, Energisa MT e Energisa MS. Para Joisa Dutra, diretora da FGV/Ceri, a renovação é o momento propício para incluir nos novos contratos a separação fio e energia, uma resposta adequada à transformação pela qual o setor elétrico passa. “As distribuidoras passarão a se tornar plataformas de multisserviços, sendo que muitas dessas soluções poderão ser oferecidas em ambiente concorrencial em que uma multiplicidade de agentes competirá”, diz.

Hoje os dois serviços, de conexão ao sistema elétrico e de venda de energia, estão misturados na mesma conta de luz. A queda na demanda impacta diretamente a comercialização de energia, enquanto fios, postes, transformadores e subestações continuam operando. Com a separação, haveria dois contratos, que poderiam ser cobrados na mesma conta – um para a conexão ao sistema elétrico, paga por uma taxa fixa mensal, e outro com o fornecedor de energia de escolha, proporcional ao consumo. As empresas fornecedoras de energia, por seu lado, arcariam com os riscos de falta ou sobra de energia, como em qualquer negócio competitivo.

A transmissão terá papel relevante na transição. Com acréscimo de fontes variáveis na matriz, o escoamento de energia entre as regiões ganhará ainda mais relevância. Isso implica tanto os leilões de novos projetos quanto investimentos em ativos com mais de 30 anos, boa parte dessas linhas nas regiões Sul e Sudeste. “Além de construir novas linhas, é preciso garantir a modernização e melhoria contínuas do nosso sistema de transmissão. Na Eletrobras, há uma estratégia em curso, adicional e não menos importante, de modernizar os sistemas, e isso está sendo feito paulatinamente”, diz Elio Wolff, vice-presidente de estratégia e desenvolvimento de negócios da Eletrobras.

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