Sartre e A Tese Da Transcendência Do Ego
Sartre e A Tese Da Transcendência Do Ego
Sartre e A Tese Da Transcendência Do Ego
RESUMO:
Em A transcendência do Ego, primeiro ensaio filosófico de Sartre, recusa-se
a presença do Ego na consciência. Apropriando-se da fenomenologia de
Husserl, Sartre critica as posições filosóficas e psicológicas que
transformaram o Ego num habitante da consciência. O presente artigo se
propõe a examinar a tese de Sartre e delinear o alcance de suas
considerações para a psicologia e para a filosofia. Trata-se de momento
importante da trajetória de Sartre porque nele podemos identificar as
primeiras preocupações do filósofo, assim como compreender o alcance da
fenomenologia em obras posteriores.
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Pós-doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – Brasil.
Bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]
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Nesse sentido, acompanhamos a divisão proposta por Luiz Damon Santos Moutinho,
segundo o qual: “Esse trabalho de limpeza precederá aquele de fundamentação. Ele
constitui propriamente a parte negativa da obra, onde, fazendo vigir a ideia de consciência
intencional, Sartre recusará a presença de qualquer conteúdo no interior dessa consciência;
a seguir, estabelecido o vazio do campo da imanência, buscará então fundamentar o Ego
transcendente e, com ele, todo o campo do psíquico”. (MOUTINHO, 1995: 24 e 25).
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Sartre leva às últimas consequências o conceito de consciência intencional extraído da
fenomenologia husserliana. A consciência seria, assim, um movimento transcendente de
apreensão do objeto intencionado, que está absolutamente fora dela. A consciência começa
e se esgota nesse movimento.
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Não é apodítica porque, ao dizer Eu, afirmamos bem mais do que sabemos;
também não é adequada porque se apresenta como uma realidade opaca,
cujo conteúdo precisaria ser desdobrado. Só a consciência, e não um Eu,
pode ser a fonte de si. Se o Eu fizesse parte da consciência haveria dois
“Eus”: o da consciência reflexiva e o da consciência refletida.
Após a análise do Cogito como consciência reflexiva, Sartre chega
às seguintes conclusões a respeito do Eu:
1-o Eu é um existente concreto, real e que se dá, ele próprio, como
transcendente;
2-a intuição o apreende de um modo especial: por detrás da
consciência refletida, de uma maneira sempre inadequada4;
3- só há surgimento de um Eu através de um ato reflexivo. Neste
temos a seguinte estrutura complexa da consciência: ato irrefletido de
reflexão sem Eu, posteriormente, mas não necessariamente, por um ato de
reflexão, surge uma consciência refletida, que é objeto da consciência
reflexionante. A consciência refletida não deixa de afirmar, no entanto, seu
objeto próprio (o mesmo de quando era consciência irrefletida). Há o
surgimento de um objeto novo para a consciência reflexiva, que não está no
mesmo plano nem da consciência irrefletida nem de seu (dela) objeto: esse
novo objeto é, precisamente, o Eu — o objeto transcendente do ato
reflexivo;
4-o Eu transcendental deve ficar ao alcance da epoqué. Quando o
Cogito afirma, por exemplo, “eu tenho consciência dessa cadeira”, o que ele
afirma é um excesso, seu conteúdo certo é “há consciência dessa cadeira”, o
que já é suficiente para constituir um campo infinito e absoluto de
investigações para a fenomenologia.
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É mesmo confuso o modo de aparição do Eu para a consciência: “Certamente que ele se
manifesta como a fonte da consciência, mas isso deveria fazer-nos refletir: com efeito, por
esse fato, ele aparece velado, pouco distinto através da consciência, como uma pedra no
fundo da água — por esse fato ele é, em seguida, enganador, pois sabemos que nada salvo a
consciência pode ser a fonte da consciência”. (SARTRE, 1994: 54).
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como desejo, temor etc. Uma consequência natural do que já foi exposto
leva-nos a considerar que é no plano reflexivo que se situa a vida Egoísta,
enquanto no plano irrefletido se situa a vida impessoal.
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que temos uma reflexão impura e cúmplice, “que opera de imediato uma
passagem ao infinito e que constitui bruscamente o ódio, através da
‘Erlebnis’, como seu objeto transcendente” (SARTRE, 1994: 61). A relação
entre estes dois domínios da reflexão é evidente: um é certo, pois se trata de
uma afirmação que a reflexão faz sobre uma consciência; o outro é
duvidoso, pois a consciência se ultrapassa e afirma algo, estendendo-se ao
infinito, sobre o que está fora dela.
A confusão cometida pelos psicólogos se estabelece quando, ao
deixar o domínio da reflexão pura ou impura, medita-se sobre os seus
resultados. O que se nota é uma confusão entre o sentido transcendente da
“Erlebnis” e a sua matiz imanente. Originam-se dois tipos de erro dessa
distorção:
1- como me engano muitas vezes em meus sentimentos, afirmo,
então, que a introspecção é enganadora. A solução encontrada após essa
constatação é a separação definitiva entre o meu estado e as suas aparições;
2- considero a minha introspecção como reta e também que o meu
ódio se encerra na imanência e na adequação de uma consciência
espontânea.
Notemos que não pode haver uma anterioridade causal do sentido
em relação às suas aparições, sob pena de ressuscitarmos o absurdo, para a
concepção sartriana, que seria a aceitação de uma consciência não
consciente ou um inconsciente.
Os estados, como já vimos, não só não fazem parte da consciência
como seria inadmissível que o fizessem, pois a passividade é constitutiva
daqueles. Por passividade entende-se aqui uma relatividade existencial, isto
é, uma dependência, para a existência, de algo externo ao que passa a existir
passivamente. A consciência é um absoluto e sua espontaneidade repele de
si a passividade dos estados. Para Sartre, a psicologia dos estados e, com ela
toda a psicologia não fenomenológica em geral teria deixado escapar tal
evidência, ou seja, não se preocuparam em investigar precisamente a
natureza da consciência; tornando-se, assim, uma psicologia da inércia.
Como vimos, é sempre por meio de uma precipitação, a qual lhe é
própria, que a consciência passa de um estado para a afirmação de uma
qualidade (por exemplo, é certo que sinto repulsão por Pedro, mas é para
sempre duvidoso que eu o odeie). É preciso ainda que nos desvencilhemos
de uma interpretação equivocada da relação entre os estados e a consciência.
O estado não age da mesma forma sobre o corpo e a consciência. Sua ação
sobre o primeiro é francamente causal (teorias como as que Sartre denomina
de freudismo admitem a mesma relação para a consciência). Há uma relação
complicada entre o ódio e a consciência espontânea de desagrado, isto é,
entre a qualidade e o estado; daí a origem da confusão e da passagem ao
infinito. A explicação para a relação entre o ódio e a consciência de
desagrado é dada por Sartre através da introdução da noção de emanação,
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O Ego está para os objetos psíquicos assim como o mundo está para
as coisas. A diferença é que o mundo aparece muito raramente como fundo
das coisas (referência a Heidegger), enquanto o Ego aparece sempre no
horizonte de cada estado; a separação entre Ego e estado (ou ação) apenas se
dá por abstração.
Há uma totalidade transcendente que participa no caráter duvidoso
de toda transcendência. As nossas intuições acerca do Ego podem ser
contraditas, isso devido ao caráter duvidoso deste; o que “não significa que
tenho um Eu [Moi] verdadeiro que ignoro, mas somente que o Ego visado
traz em si mesmo o caráter de dubitabilidade (em certos casos, o da
falsidade)” (SARTRE, 1994: 67). O Ego também poderia (não se exclui a
hipótese) ser constituído por falsas recordações, o que explicaria seu caráter
de falsidade. Notemos que o Ego é duvidoso, mas não hipotético. Não se
trata de uma hipótese o fato de que o Ego é a unidade transcendente de
nossos estados e de nossas ações. Quando Sartre nos dá a saber o tipo de
relação entre “consciência e eu” verificamos a reafirmação do caráter
mágico do Ego. A relação da consciência com o sentimento é de emanação;
a relação da qualidade com o estado é de atualização; mas a relação do Ego
com as qualidades, estados e ações é de produção poética ou, se se quiser,
de criação. Notemos que é renovada a caracterização do Ego como uma
instância mágica, poética.
Por via da intuição, o Ego se nos apresenta e, assim, podemos
estabelecer algumas relações entre ele e os estados e as ações:
1- o Ego é dado como produzindo os seus estados;
2- cada novo estado é religado diretamente (ou indiretamente, pela
qualidade) ao Ego como sua origem;
3- o estado não é dado como tendo sido já antes no Eu [Moi], o que
quer dizer que o tipo de criação é ex nihilo;
4- mesmo no caso de atualização de potências, o que surge é algo
novo, isto é, que é mais do que simplesmente uma potência atualizada.
As relações entre o Eu e as ações se dão do mesmo modo. Já as
qualidades, estas qualificam o Eu [Moi], o que não quer dizer que este exista
independentemente de suas qualidades, como um polo X. É por uma criação
continuada que o Ego mantém suas qualidades, é uma espontaneidade
criadora; o Ego é “criador” de seus estados. Sartre nos alerta de que a
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Provavelmente Sartre se refere ao trabalho Esboço de uma Teoria das Emoções.
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O desenvolvimento do argumento sartriano exige que ele faça uma
distinção entre dois tipos de Eu: o psíquico e o psicofísico. Se há um Eu no
plano irrefletido, trata-se, na verdade, de um Eu psicofísico e não psíquico
(o qual só se dá à reflexão). Esse Eu psicofísico é muito simplesmente um
conceito vazio, destinado a permanecer assim. Esse conceito não pode ser
preenchido pelos dados da intuição. O eu-conceito (psicofísico) é o suporte
objetivo e vazio das ações do plano irrefletido. O corpo e as imagens do
corpo podem consumar a degradação total do Eu concreto (reflexão) no Eu-
conceito, quando servem ao último como preenchimento ilusório. “Digo
‘Eu’ parto a madeira e vejo e sinto o objeto ‘corpo’ em vias de partir a
madeira. O corpo serve então de símbolo visível e tangível para o Eu. Vê-se,
portanto, a série de refrações e de degradações de que uma ‘Egologia’ se
deveria ocupar” (SARTRE, 1994: 75). Sartre constrói um gráfico que
promete dar conta de esquematizar a passagem do Eu-concreto para o Eu-
conceito:
Consciência refletida — imanência —
interioridade
Plano refletido Ego intuitivo — transcendência —
intimidade
(domínio do psíquico)
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Referências bibliográficas
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