Sartre e A Tese Da Transcendência Do Ego

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Griot – Revista de Filosofia v.9, n.

1, junho/2014 ISSN 2178-1036


DOI: https://doi.org/10.31977/grirfi.v9i1.592
Artigo recebido em 30/03/2014
Aprovado em 28/04/2014

SARTRE E A TESE DA TRANSCENDÊNCIA


DO EGO
Renato dos Santos Belo1
Universidade de São Paulo (USP)

RESUMO:
Em A transcendência do Ego, primeiro ensaio filosófico de Sartre, recusa-se
a presença do Ego na consciência. Apropriando-se da fenomenologia de
Husserl, Sartre critica as posições filosóficas e psicológicas que
transformaram o Ego num habitante da consciência. O presente artigo se
propõe a examinar a tese de Sartre e delinear o alcance de suas
considerações para a psicologia e para a filosofia. Trata-se de momento
importante da trajetória de Sartre porque nele podemos identificar as
primeiras preocupações do filósofo, assim como compreender o alcance da
fenomenologia em obras posteriores.

PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia; Psicologia;Ego.

SARTRE AND THE THESIS OF THE


TRANSCENDENCE OF THE EGO
ABSTRACT:
In The transcendence of the Ego, Sartre’s first philosophical essay, the
presence of the Ego in the consciousness is refused. Appropriating Husserl’s
phenomenology, Sartre criticizes the philosophical and psychological
positions that turned the Ego into an inhabitant of the consciousness. This
article proposes to examine Sartre’s thesis and delineate the reach of its
considerations for psychology and philosophy. This is an important event in
Sartre’s trajectory because we can identify the primary concerns of the
philosopher, as well as understand the scope of phenomenology in later
works.

KEYWORDS: Phenomenology; Psychology; Ego.

O filósofo Jean-Paul Sartre discute amplamente a questão do Ego e


suas consequências filosóficas em seu primeiro ensaio, publicado em 1933.

1
Pós-doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – Brasil.
Bolsista da FAPESP. E-mail: [email protected]
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A tese sartriana a respeito da questão do Ego é apresentada já no início de


seu ensaio, indicando, por assim dizer, um anticlímax narrativo. No entanto,
a afirmação quase que imediata da concepção fundamental que será
explorada em todo o trabalho pode ser compensada pelo estranhamento que
tal tese talvez cause no leitor desavisado. Trata-se, nada mais, nada menos,
da afirmação de que o Ego — diferentemente do que pensava a tradição
filosófica — é exterior à consciência e contemporâneo do mundo. A ordem
e o encadeamento do texto de Sartre nos obrigam a verificar uma primeira
parte que poderíamos chamar de negativa ou crítica. Em outras palavras,
depois da apresentação sem cerimônia de sua tese, Sartre examinará
detidamente as concepções que, a seu ver, consideram o Ego como um
“habitante” da consciência. É, então, só depois desse esforço de precisão ou
acerto de contas com as concepções clássicas a respeito do Ego que Sartre
se apresentará de maneira positiva, ou seja, marcando precisamente as
relações, extremamente complexas, entre o Ego e a consciência. Embora o
tom crítico de Sartre permeie todo o ensaio, pensamos ser possível
considerar a sua segunda parte (“Constituição do Ego”) como positiva ou
expositiva2.
O texto de Sartre já se inicia marcando a concepção a ser refutada.
Trata-se daquela que considera o Ego como “habitante” da consciência —
seja a dos filósofos que apregoam uma presença formal no seio das
“Erlebnisse” como um princípio vazio de unificação; seja a de certos
psicólogos que preconizam uma presença material, como centro dos desejos,
em cada momento da nossa vida psíquica. Essa é precisamente a ocasião
para que Sartre declare sua tese: “Nós queremos mostrar aqui que o Ego não
está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo;
é um ser do mundo, tal como o Ego de outrem” (SARTRE, 1994: 43).
Estamos, assim, diante de duas perspectivas que afirmam a presença do Ego
na consciência — ambas, no entender de Sartre, igualmente perniciosas para
a filosofia.
A estratégia argumentativa de Sartre começa por pôr em questão a
tese dos que afirmam a presença formal do Eu na consciência. Parte-se, para
isso, da famosa frase kantiana: “O Eu Penso deve poder acompanhar todas
as minhas representações” (Kant, 2010: 131). Segundo a interpretação que
Sartre faz dessa máxima não se pode concluir dela, a não ser que forcemos o
pensamento kantiano, que o “Eu Penso” acompanhe, de fato, todos os
nossos “estados de consciência”, nem que ele realize a síntese da nossa
experiência. Dito de outro modo, o problema crítico é de direito e não de

2
Nesse sentido, acompanhamos a divisão proposta por Luiz Damon Santos Moutinho,
segundo o qual: “Esse trabalho de limpeza precederá aquele de fundamentação. Ele
constitui propriamente a parte negativa da obra, onde, fazendo vigir a ideia de consciência
intencional, Sartre recusará a presença de qualquer conteúdo no interior dessa consciência;
a seguir, estabelecido o vazio do campo da imanência, buscará então fundamentar o Ego
transcendente e, com ele, todo o campo do psíquico”. (MOUTINHO, 1995: 24 e 25).

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fato. Contudo, há outra interpretação que pretende realizar aquilo que em


Kant era apenas uma condição de possibilidade lógica. Seus representantes
se localizam no neokantismo, no empiriocriticismo e no intelectualismo de
Brochard. Essa concepção se perguntaria pela “consciência transcendental”,
concebendo-a como um inconsciente; para tal interpretação, ainda, a
consciência transcendental constituiria a consciência empírica. A reação de
Sartre a essa “leitura forçada” do pensamento kantiano é imediata: Kant não
se preocupou com o modo de constituição de fato da consciência empírica.
Para ele, a consciência transcendental é apenas “o conjunto das condições
necessárias para a existência de uma consciência empírica” (SARTRE,
1994: 44).
É preciso, então, mudar de perspectiva para solucionar os problemas
colocados por Sartre à existência de fato do Eu na consciência. É preciso,
assim, abandonar as “interpretações forçadas” e reencontrar a
fenomenologia; aquela mesma de Husserl, com o objetivo de segui-la, mas
também de corrigir o fenomenólogo. Só assim poderemos resolver o
problema da existência de fato do Eu na consciência. A concepção que
Sartre assume da fenomenologia já é indicativa de sua relação com Husserl.
Trata-se de uma proximidade à distância. Sartre nos diz que a
fenomenologia é um estudo científico e não crítico da consciência; seu
procedimento essencial é a intuição; é uma ciência de fato e que põe
problemas de fato. Essa concepção de Sartre é extremamente relevante já
que ele mesmo nos adianta que os problemas das relações do Eu com a
consciência são existenciais. Para nosso filósofo, Husserl, ao realizar a
epoqué, reencontra e apreende a consciência transcendental de Kant. Com o
adendo de que essa consciência não é mais um conjunto de condições
lógicas, nem uma hipóstase do direito, e tampouco um inconsciente
flutuando entre o real e o ideal. Ela é um fato absoluto, uma consciência
real, acessível a cada um de nós a partir do momento em que executa a
“redução”. Ainda na direção de Husserl, a consciência transcendental
constitui a consciência empírica, entendida como uma consciência “no
mundo”, com um “eu” psíquico e psicofísico. Qual é a relação de Sartre
com essa apresentação de Husserl? Sartre crê na existência de uma
consciência constituinte, acompanha Husserl quando ele mostra a
consciência transcendental constituindo o mundo e se aprisionando na
consciência empírica, aceita que o eu psíquico e psicofísico é um objeto
transcendente que deve ficar ao alcance da epoqué. Entretanto, é necessário
fazer a seguinte pergunta: não basta o eu psíquico e psicofísico? “Será
preciso duplicá-lo por um Eu transcendental, estrutura da consciência
absoluta?” (SARTRE, 1994: 46). Sartre responde negativamente a essa
última questão. O que lhe permite extrair algumas conclusões que nem
Husserl teria conseguido — dada a sua concepção de consciência
transcendental após a reorientação de seu pensamento (precisamente após as
Investigações Lógicas). Quais seriam, então, as consequências sartrianas?

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Precisamente as seguintes: o campo transcendental torna-se impessoal; o Eu


(Je) é a face ativa do eu (moi) e não aparece senão no nível da humanidade;
o Eu Penso pode acompanhar todas as nossas representações porque há uma
unidade prévia que ele não contribui para criar e que, no entanto, o torna
possível; é lícito perguntar se não se pode conceber consciências
absolutamente impessoais.
Sartre identifica, assim, um primeiro e um segundo Husserl. O
primeiro diz respeito às suas ideias apresentadas nas Investigações Lógicas,
onde o Eu era uma produção sintética e transcendente da consciência. O
segundo corresponde à orientação que toma o pensamento de Husserl a
partir de Ideias culminando com As Meditações Cartesianas, em que há um
retorno à tese clássica de um Eu transcendental que estaria por trás da
consciência; a consciência transcendental torna-se, assim, rigorosamente
pessoal e esse Eu seria uma estrutura necessária das consciências. Essa
mudança no pensamento de Husserl não pode ser seguida por Sartre já que,
sendo a consciência intencional3, não pode haver nada por trás dela que a
motive ou constitua.
O argumento que frequentemente é utilizado para a existência de um
Eu transcendental como polo da consciência é o de que ele realizaria a
unidade e a individualidade necessárias à ela. Para Sartre, a fenomenologia
não tem necessidade de recorrer a tal Eu para realizar a síntese das
consciências, uma vez que ela se define por sua intencionalidade. “A
unidade da miríade de consciências ativas pelas quais juntei, junto e juntarei
dois com dois para fazer quatro é o objeto transcendente ‘dois mais dois são
quatro’” (SARTRE, 1994: 47). Esse objeto não é o conteúdo da consciência,
ele lhe é transcendente, e é nele que se encontra a unidade da consciência.
No entender de Sartre, justamente Husserl não tinha necessidade de recorrer
a um Eu transcendental como faz em Ideias. “É a consciência que se unifica
a si mesma e, concretamente, por um jogo de intencionalidades
‘transversais’, que são retenções concretas e reais das consciências
passadas” (SARTRE, 1994: 47). A individualidade da consciência provém
de sua própria natureza. A consciência constitui uma totalidade sintética e
individual absolutamente isolada de outras do mesmo tipo. O Eu é, assim,
apenas a expressão (e não a condição) da incomunicabilidade e interioridade
das consciências. Ora, o que Sartre insiste em salientar é que,
diferentemente do que pensava Husserl e antes dele toda a tradição
filosófica posterior a Descartes —, a consciência não carece de um polo de
unificação que a individualize. E Sartre acha possível assumir essa
perspectiva em relação à consciência, paradoxalmente, graças à
fenomenologia.

3
Sartre leva às últimas consequências o conceito de consciência intencional extraído da
fenomenologia husserliana. A consciência seria, assim, um movimento transcendente de
apreensão do objeto intencionado, que está absolutamente fora dela. A consciência começa
e se esgota nesse movimento.

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Mas poderíamos estar nos perguntando em que medida interessa a


Sartre expulsar o Eu da consciência. A consciência tem o tipo de existência
que é a de um absoluto, tudo é claro e lúcido para ela, apenas é opaco o
objeto que está frente à consciência. O objeto é, em relação à consciência,
por natureza, exterior “e é por isso que, por um mesmo ato, ela o põe e o
apreende” (SARTRE, 1994: 48). O Eu, assim como todos os existentes do
mundo, está fora da consciência, tendo, assim, o seu modo de ser marcado
pela opacidade. Com isso, por mais formal e abstrato, o Eu é um centro de
opacidade para a consciência, o que ameaça todas as importantes conquistas
da fenomenologia. Portanto, Sartre está recusando, precisamente, a
concepção tradicional da relação entre o Eu e a consciência, que é a de um
existente substancial interior a ela e que garantiria a sua unidade. É mesmo
esse o sentido profundo da reprovação que Sartre dirige a Husserl. A
introdução do Eu na consciência faz com que ela perca toda sua translucidez
e espontaneidade.
Como podemos perceber, a consciência, em Sartre, é um absoluto
impessoal ou não substancial, que se define por sua intencionalidade. Ela é
um campo transcendental impessoal. O Eu só pode ser pensado como um
objeto para ela e Sartre não deixa de expressar isso com uma afirmação que
carrega a força da dramaticidade: “Todos os resultados da fenomenologia
ameaçam entrar em ruína se o Eu não é, do mesmo modo que o mundo, um
existente relativo, quer dizer, um objeto para a consciência” (SARTRE,
1994: 49). Em outras palavras, o que está em jogo é a própria
fenomenologia, pelo menos como Sartre a entende. Aceitar a ideia de que
um Eu “habitaria” a consciência significa introduzir nela um centro de
opacidade incompatível com sua espontaneidade.
Antes de respondermos diretamente a essa questão convém assinalar
os “tipos” de consciência concebidos por Sartre. A consciência é
intencional, ou seja, toda a consciência é consciência de alguma coisa —
precisamente é esta a noção que Sartre tomará entusiasticamente de Husserl.
Esse de da consciência (Toda consciência é consciência de alguma coisa) —
que não se confunde com uma relação de conhecimento estabelecida pela
consciência — se refere ao objeto intencionado por ela. Exemplifiquemos:
quando tenho consciência (perceptiva, no caso) de uma mesa, o objeto
intencionado por ela é precisamente a mesa que está localizada no mundo,
fora da consciência. Minha consciência de mesa é consciência posicional da
mesa e consciência não posicional de si. Em outras palavras, temos, nesse
caso, uma consciência irrefletida ou de primeiro grau. Apenas uma operação
de segundo grau me permitiria ter consciência posicional de minha
consciência de mesa. Nesse caso temos uma operação reflexiva ou uma
consciência que põe outra como objeto, permanecendo esta última como
consciência posicional de mesa e não posicional de si. A operação é a
seguinte: há uma consciência de mesa que é não posicional de si, surge,
então, outra consciência que põe como objeto aquela primeira que era

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apenas consciência de um objeto transcendente, tornando-se, dessa forma,


objeto para a consciência reflexiva. Dito de outro modo, a consciência
reflexionante põe uma consciência irrefletida como objeto, a qual muda de
estrutura e passa a ser refletida (precisamente no sentido de estar sendo
refletida pela consciência reflexionante); temos, assim, uma operação
reflexiva ou de segundo grau. A relação que se estabelece entre a
consciência reflexionante e a refletida é muito simples: trata-se da síntese de
duas consciências, na qual uma é consciência da outra. Assim, o que a
consciência reflexionante afirma é em relação à consciência refletida ou, nas
palavras de Sartre:

Ela [consciência reflexionante] não se torna posicional senão


ao visar a consciência refletida, a qual, ela mesma, não era
consciência posicional de si antes de ser refletida. Assim, a
consciência que diz ‘Eu Penso’ não é precisamente aquela que
pensa. Ou antes, não é o seu pensamento que ela põe através
deste ato tético. (SARTRE, 1994: 50).

É importante salientar que, mesmo nos casos de reflexão, a


consciência que põe outra como objeto não é consciência posicional de si
mesma. Seria necessária uma operação de terceiro grau para que ela fosse
posta teticamente, mas isso, observa Sartre, não tem necessidade de ser, já
que uma consciência não precisa ser posicional de si para ser consciência de
si, a menos que confundamos consciência e conhecimento e acabemos por
cair numa regressão ao infinito.
Talvez agora já tenhamos elementos para responder à questão: de
onde deve partir uma “Egologia”? Notadamente de uma operação reflexiva
ou do Cogito. Uma “Egologia” deve partir precisamente do Cogito, que é
uma consciência reflexiva e inegavelmente pessoal, fato que todos os
filósofos notaram — apesar de não o conceberem adequadamente. A
apreensão de nosso pensamento, por uma intuição imediata ou apoiada na
memória, leva à constituição de um Eu — o Eu do pensamento apreendido,
afinal “eu posso sempre operar uma qualquer rememoração sob o modo
pessoal e o Eu aparece no mesmo instante” (SARTRE, 1994: 50). A
rememoração parece ter um papel importante na explicação de Sartre para a
apreensão de uma consciência provida de um Eu. Embora as consciências
irrefletidas sejam absolutamente impessoais, é através da rememoração e,
portanto, da atuação de uma consciência reflexiva sempre possível constituir
um Eu exatamente ali (consciência irrefletida) onde ele não existia. O Eu
que é apreendido e constituído pela consciência reflexiva é precisamente o
Eu da consciência (ir)refletida (evidentemente tendo sofrido uma mudança
radical caracterizada pelo surgimento do Eu, melhor chamá-la então
consciência refletida simplesmente). Notemos que não se trata de dizer que
o Eu é uma estrutura da consciência irrefletida — a consciência é impessoal
no plano irrefletido — o que ocorre é que ele surge por ocasião do ato

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reflexivo. Com isso, é o ato reflexivo que faz nascer o Eu na consciência


refletida. Isso é possível já que toda consciência irrefletida deixa uma
lembrança não-tética que pode ser consultada — para isso, basta reconstituir
o momento completo em que apareceu a consciência irrefletida, o que é, por
definição, sempre possível. Com o objetivo de mostrar que não há Eu no
plano irrefletido, Sartre nos dá um exemplo que consiste em relatar, por
meio da memória, o que acontecia momentos antes de se propor essa
experiência. Sartre declara que havia, enquanto lia, consciência do livro, dos
heróis, mas o Eu não estava presente. A operação efetuada pelo filósofo não
consiste, desse modo, em pôr a consciência irrefletida como objeto, mas em
inventariar os objetos percepcionados por ela sem, no entanto, perdê-la de
vista, já que esses lhe permanecem relativos. O resultado dessa operação
mostra que não havia Eu na consciência irrefletida. Havia apenas
consciência dos objetos percepcionados. Essa constatação permite a Sartre
afirmar: “Uma vez apreendidos ateticamente estes resultados, posso agora
fazê-los objeto de uma tese e declarar: não havia Eu na consciência
irrefletida” (SARTRE, 1994: 51 e 52).
Depois de termos esclarecido que uma “Egologia” só pode partir do
Cogito, é preciso atentarmos para as diferenças entre o Eu e a consciência.
O Eu não pertence ao mesmo plano da consciência pensante. Enquanto a
consciência que apreende o Eu está rigorosamente na duração, o Eu tem um
tipo de existência que se dá fora do tempo.

O Eu não se dá como um momento concreto, como uma


estrutura perecível da minha consciência atual; ele afirma, ao
contrário, a sua permanência para lá desta consciência e de
todas as consciências e — se bem que, certamente, ele não se
pareça com uma verdade matemática — o seu tipo de
existência aproxima-se muito mais do das verdades eternas do
que do da consciência. (SARTRE, 1994: 53).

Sartre vê, assim, uma precipitação no salto de Descartes quando da


passagem do Eu Penso para a ideia de substância pensante. Husserl cai,
mesmo que sutilmente, na mesma falta. Husserl confere ao Eu uma
transcendência que não é a do objeto, uma espécie de transcendência “pelo
lado de cima”. Sartre localiza aí um afastamento da fenomenologia, movido
por preocupações metafísicas ou críticas. É preciso, no entender de Sartre,
assumir toda a radicalidade e afirmar que toda a transcendência deve ficar
ao alcance da epoqué. Se Sartre se afasta de Husserl quando defende a
transcendência do Eu, o mesmo não ocorre quando do estabelecimento da
evidência do Eu. O Eu não aparece à reflexão como a consciência refletida,
ele dá-se à reflexão pela consciência refletida. O Eu é apreendido pela
intuição e é objeto de uma evidência. É a Husserl e à sua distinção das
espécies de evidência que Sartre recorre para explicar isso. O Eu não é
objeto nem de uma evidência apodítica nem de uma evidência adequada.

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Não é apodítica porque, ao dizer Eu, afirmamos bem mais do que sabemos;
também não é adequada porque se apresenta como uma realidade opaca,
cujo conteúdo precisaria ser desdobrado. Só a consciência, e não um Eu,
pode ser a fonte de si. Se o Eu fizesse parte da consciência haveria dois
“Eus”: o da consciência reflexiva e o da consciência refletida.
Após a análise do Cogito como consciência reflexiva, Sartre chega
às seguintes conclusões a respeito do Eu:
1-o Eu é um existente concreto, real e que se dá, ele próprio, como
transcendente;
2-a intuição o apreende de um modo especial: por detrás da
consciência refletida, de uma maneira sempre inadequada4;
3- só há surgimento de um Eu através de um ato reflexivo. Neste
temos a seguinte estrutura complexa da consciência: ato irrefletido de
reflexão sem Eu, posteriormente, mas não necessariamente, por um ato de
reflexão, surge uma consciência refletida, que é objeto da consciência
reflexionante. A consciência refletida não deixa de afirmar, no entanto, seu
objeto próprio (o mesmo de quando era consciência irrefletida). Há o
surgimento de um objeto novo para a consciência reflexiva, que não está no
mesmo plano nem da consciência irrefletida nem de seu (dela) objeto: esse
novo objeto é, precisamente, o Eu — o objeto transcendente do ato
reflexivo;
4-o Eu transcendental deve ficar ao alcance da epoqué. Quando o
Cogito afirma, por exemplo, “eu tenho consciência dessa cadeira”, o que ele
afirma é um excesso, seu conteúdo certo é “há consciência dessa cadeira”, o
que já é suficiente para constituir um campo infinito e absoluto de
investigações para a fenomenologia.

***

Faz-se necessário, agora, expor de que maneira Sartre recusa a ideia


de uma presença material do Eu na consciência. Sua crítica se refere
imediatamente aos moralistas do amor-próprio, que afirmavam, por motivos
puramente psicológicos, exatamente esse tipo de presença. Para Sartre, esses
psicólogos considerariam que:

(...) o amor de si mesmo — e, por conseguinte, o Eu [Moi] —


estaria dissimulado em todos os sentimentos sob uma miríade
de formas diversas. De um modo muito geral, o Eu [Moi], em
função desse amor que ele se tem, desejaria para si mesmo
todos os objetos que deseja. A estrutura essencial de cada um

4
É mesmo confuso o modo de aparição do Eu para a consciência: “Certamente que ele se
manifesta como a fonte da consciência, mas isso deveria fazer-nos refletir: com efeito, por
esse fato, ele aparece velado, pouco distinto através da consciência, como uma pedra no
fundo da água — por esse fato ele é, em seguida, enganador, pois sabemos que nada salvo a
consciência pode ser a fonte da consciência”. (SARTRE, 1994: 54).

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dos meus atos seria uma chamada a mim. O ‘retorno a mim’


seria constitutivo de toda consciência. (SARTRE, 1994: 55).

Não basta, segundo Sartre, para recusar tal corrente psicológica


afirmar que o “retorno a mim” está ausente nos casos de consciência
irrefletida. Para La Rochefoucauld, por exemplo, o amor-próprio dissimula-
se sob as mais diversas formas. Os moralistas fazem uso da noção de
inconsciente, considerando que se o Eu não está presente para a consciência
é porque está escondido por trás dela, sendo o polo de atração das
representações e dos desejos. Segundo essa teoria, o objeto desejado seria
um meio para o fim, que é o Eu desejante.
Na perspectiva sartriana, essa teoria evidencia o erro essencial dos
psicólogos, qual seja, o de confundir a estrutura da consciência irrefletida
com a estrutura da consciência reflexiva. Há, no entender de Sartre, sempre
duas maneiras de existência para a consciência: a irrefletida e a reflexiva.
Esse fato é ignorado pelos psicólogos. Ao tentarem achar uma estrutura
reflexiva em toda consciência irrefletida acabam por supor essa estrutura
reflexiva como um inconsciente. Portanto, é a confusão quanto à natureza
mesma da consciência que estabelece o erro dos psicólogos, daí a crítica
sartriana.
“Tenho piedade de Pedro e socorro-o”. Para Sartre, nesse tipo de
caso há apenas uma qualidade: “deve-ser socorrido”; é “Pedro-que-deve-ser-
socorrido”. É o desejável, e aqui Sartre retoma Aristóteles, que move o
desejante. Nesse nível, o desejo é consciência tética do “dever-ser” e
consciência não-tética dele mesmo. Não é assim, entretanto, que os
psicólogos do amor-próprio concebem essa operação. Para eles, há outro
estado que permanece na penumbra e que seria a motivação para o desejo e
sua realização. Para Sartre, tal visão é inconcebível já que:

(...) não serve, portanto, para nada, pôr, por detrás da


consciência irrefletida de piedade, um estado desagradável de
que se faria a causa profunda do ato piedoso: se esta
consciência de desagrado não retorna a si mesma para se pôr
por si como estado desagradável, permaneceremos
indefinidamente no impessoal e no irrefletido. (SARTRE,
1994: 57).

Admitir, como os teóricos do amor-próprio, que o refletido é


anterior ao irrefletido no inconsciente seria um absurdo. O irrefletido tem
prioridade ontológica sobre o refletido. O que Sartre afirma, assim, é uma
autonomia da consciência irrefletida em relação ao plano refletido/reflexivo,
a qual seria ignorada pelos psicólogos.
Sartre insiste em afirmar que há uma autonomia da consciência
irrefletida, ou seja, ela não depende do plano reflexivo para ser. Sentimentos
como “Eu odeio Pedro” ou “Eu tenho piedade por Pedro” só podem se dar
quando se efetua uma reflexão, pois é só nesse caso que se põe a afetividade

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como desejo, temor etc. Uma consequência natural do que já foi exposto
leva-nos a considerar que é no plano reflexivo que se situa a vida Egoísta,
enquanto no plano irrefletido se situa a vida impessoal.

A reflexão envenena o desejo. No plano irrefletido, eu socorro


Pedro porque Pedro é “deve-ser socorrido”. Mas se, de súbito,
o meu estado se transforma em estado refletido, eis-me então
em vias de me observar a agir, no sentido em que se diz de
alguém que ele se ouve a si mesmo ao falar. Já não é Pedro que
atrai, é a minha consciência socorrista que me aparece como
devendo ser perpetuada. (SARTRE, 1994: 58).

Para Sartre, uma psicologia como a de La Rochefoucauld é


verdadeira apenas para aqueles sentimentos particulares que se dão
imediatamente na vida reflexiva, aqueles que se dão desde o início como
meus sentimentos sem primeiro se transcenderem para um objeto.
Em resumo, o estudo fenomenológico e o psicológico de Sartre em
relação à consciência “intramundana” convergem para uma mesma
conclusão: “o eu não deve ser procurado nem nos estados irrefletidos de
consciência nem por detrás deles” (SARTRE, 1994: 58). O Eu apenas surge
através de um ato reflexivo e é o correlato noemático de uma intuição
reflexiva. Eu e Mim [le Je et le Moi] não são senão um. Esse é o resultado
da investigação crítica realizada por Sartre. Depois de ter liberado a
consciência tanto do Eu formal quanto do material, Sartre nos adianta o
próximo passo de sua argumentação: “Vamos tentar mostrar que este Ego,
de que Eu e mim não senão duas faces, constitui a unidade ideal (noemática)
e indireta da série infinita das nossas consciências refletidas” (SARTRE,
1994: 58).

***

Sartre define o Eu (Je) como sendo o Ego enquanto unidade das


ações e o Eu (Moi) como sendo o Ego enquanto unidade dos estados e das
qualidades. Esses dois Egos não são senão um, ou melhor, são dois aspectos
de uma mesma realidade, cuja distinção, afirma Sartre, é simplesmente
funcional, mais (ou menos) ainda, gramatical. A consciência, notemos, não
necessita do Ego para unificá-la. A unidade imanente das consciências
refletidas é o fluxo da consciência que se constitui ele mesmo como unidade
de si. A unidade transcendente das consciências refletidas são os estados e
as ações. Dito de outro modo, o Ego não é unidade imanente ou
transcendente da consciência, ele não é diretamente unidade das
consciências refletidas; é unidade dos estados e das ações, facultativamente
das qualidades. Trata-se, na verdade de dois tipos de unidade da
consciência: um imanente e outro transcendente, não sendo o Ego qualquer
um deles. O Ego é, portanto, unidade de unidades transcendentes, sendo ele

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mesmo transcendente. “É um polo transcendente de unidade sintética, tal


como o polo-objeto da atitude irrefletida. Só que este polo aparece apenas
no mundo da reflexão” (SARTRE, 1994: 59).
Já que o Eu não é unidade da consciência, sequer de forma indireta,
cabe examinar os estados, as ações e as qualidades e verificar a aparição do
Eu como polo dessas transcendências. O estado aparece à consciência
reflexiva. O ódio por alguém, por exemplo, é um estado que pode ser
apreendido pela reflexão. Esse estado, porém, não é imanente e certo, apesar
de estar presente ao olhar da consciência reflexiva e ser real. “Nós não
devemos fazer da reflexão um poder misterioso e infalível, nem acreditar
que tudo que a reflexão atinge é indubitável porque é atingido pela reflexão.
A reflexão tem limites de direito e de fato” (SARTRE, 1994: 59). É certo e
adequado apenas o que a reflexão afirma sobre a consciência posta por ela.
O estado, apreendido pela consciência, é exterior a ela e, assim, não
participa da certeza inerente ao Cogito. Sartre nos dá um exemplo de uma
experiência reflexiva de ódio para mostrar que em tal estado a consciência
compromete o futuro e, desse modo, afirma mais do que poderia. Em outras
palavras, transforma um “estado” momentâneo de repulsão em perpétuo.
Entretanto, recusar comprometer o futuro é cessar de odiar. O ódio e a
experiência de repulsão aparecem ao mesmo tempo, mas o primeiro se
mostra através dessa experiência. É por meio de cada movimento de
repulsão e de cólera que o ódio se dá, mas ele não se reduz a nenhum deles;
ele os ultrapassa a todos. O ódio afirma-se como já existindo no passado (no
caso de se tratar de, pelo menos, uma segunda repulsão) e continuando a
existir no futuro; opera-se, assim, uma distinção entre ser e aparecer, pois o
ódio estaria lá mesmo quando nenhuma consciência o revelasse. Para Sartre,
isso é suficiente para dizer que o ódio não é da consciência, posto que para
ela não há distinção possível entre a aparência e o ser. O ódio é, assim, um
objeto transcendente. Agora, talvez possamos entender em que sentido a
reflexão afirma demais. A consciência é transparente para si mesma, daí a
certeza absoluta do ato reflexivo. Mas o mesmo não se pode dizer quando a
consciência faz uma afirmação sobre algo exterior a ela. O ódio é um
ultrapassamento que ela realiza ao sintetizar infinitas consciências, passando
a constituir a unidade transcendente dessa infinidade de consciências. Nesse
sentido, “é certo que Pedro me repugna, mas é e ficará para sempre
duvidoso que eu o odeie. Com efeito, esta afirmação extravasa infinitamente
o poder da reflexão” (SARTRE, 1994: 60). O ódio, no entanto, não é uma
simples hipótese, um conceito vazio; ele é real, é apreendido através da
“Erlebnis”, mas ele está fora da consciência e a própria natureza da sua
existência implica sua “dubitabilidade”. Temos, então, dois domínios quanto
à evidência da reflexão: um é o da certeza reflexiva, o das evidências
adequadas, o da reflexão pura, em que a consciência atém-se ao dado sem
manifestar pretensões quanto ao futuro, sendo simplesmente descritiva; o
outro é o domínio duvidoso da reflexão, o das evidências inadequadas, em

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que temos uma reflexão impura e cúmplice, “que opera de imediato uma
passagem ao infinito e que constitui bruscamente o ódio, através da
‘Erlebnis’, como seu objeto transcendente” (SARTRE, 1994: 61). A relação
entre estes dois domínios da reflexão é evidente: um é certo, pois se trata de
uma afirmação que a reflexão faz sobre uma consciência; o outro é
duvidoso, pois a consciência se ultrapassa e afirma algo, estendendo-se ao
infinito, sobre o que está fora dela.
A confusão cometida pelos psicólogos se estabelece quando, ao
deixar o domínio da reflexão pura ou impura, medita-se sobre os seus
resultados. O que se nota é uma confusão entre o sentido transcendente da
“Erlebnis” e a sua matiz imanente. Originam-se dois tipos de erro dessa
distorção:
1- como me engano muitas vezes em meus sentimentos, afirmo,
então, que a introspecção é enganadora. A solução encontrada após essa
constatação é a separação definitiva entre o meu estado e as suas aparições;
2- considero a minha introspecção como reta e também que o meu
ódio se encerra na imanência e na adequação de uma consciência
espontânea.
Notemos que não pode haver uma anterioridade causal do sentido
em relação às suas aparições, sob pena de ressuscitarmos o absurdo, para a
concepção sartriana, que seria a aceitação de uma consciência não
consciente ou um inconsciente.
Os estados, como já vimos, não só não fazem parte da consciência
como seria inadmissível que o fizessem, pois a passividade é constitutiva
daqueles. Por passividade entende-se aqui uma relatividade existencial, isto
é, uma dependência, para a existência, de algo externo ao que passa a existir
passivamente. A consciência é um absoluto e sua espontaneidade repele de
si a passividade dos estados. Para Sartre, a psicologia dos estados e, com ela
toda a psicologia não fenomenológica em geral teria deixado escapar tal
evidência, ou seja, não se preocuparam em investigar precisamente a
natureza da consciência; tornando-se, assim, uma psicologia da inércia.
Como vimos, é sempre por meio de uma precipitação, a qual lhe é
própria, que a consciência passa de um estado para a afirmação de uma
qualidade (por exemplo, é certo que sinto repulsão por Pedro, mas é para
sempre duvidoso que eu o odeie). É preciso ainda que nos desvencilhemos
de uma interpretação equivocada da relação entre os estados e a consciência.
O estado não age da mesma forma sobre o corpo e a consciência. Sua ação
sobre o primeiro é francamente causal (teorias como as que Sartre denomina
de freudismo admitem a mesma relação para a consciência). Há uma relação
complicada entre o ódio e a consciência espontânea de desagrado, isto é,
entre a qualidade e o estado; daí a origem da confusão e da passagem ao
infinito. A explicação para a relação entre o ódio e a consciência de
desagrado é dada por Sartre através da introdução da noção de emanação,

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fundamental para a compreensão da ligação dos estados psíquicos inertes


com as espontaneidades da consciência.
(...) a relação entre o ódio e a consciência espontânea de desagrado é
construída de modo a gerir ao mesmo tempo as exigências do ódio (ser
primeiro, ser origem) e os dados certos da reflexão (espontaneidade): a
consciência de desagrado aparece à reflexão como uma emanação
espontânea do ódio (SARTRE, 1994: 62).
É por isso que se tem a impressão de que o sentimento de ódio é
anterior à consciência espontânea de repulsão. Trata-se, na verdade, de uma
relação que assume a aparência de emanação. Esse tipo de relação só é
possível porque a ligação do ódio à “Erlebnis” não é lógica, mas sim
mágica, ou seja, as relações entre o eu e a consciência se dão em termos
exclusivamente mágicos.
Se é nesses termos que se coloca a relação entre o eu e a consciência,
não é menos difícil para a fenomenologia a distinção entre a consciência
ativa e a consciência simplesmente espontânea (assunto que Sartre se exime
de tratar). Fato é, apenas, que a ação concertada (de qualquer maneira que
seja a consciência ativa) é um transcendente. Sartre nos oferece como
exemplos de ações, tocar piano, conduzir um automóvel (ações tomadas no
mundo das coisas); duvidar, raciocinar, meditar, pôr uma hipótese (ações
puramente psíquicas); ambas devem ser concebidas como transcendências.
Para Sartre, a dificuldade em conceber também as ações puramente
psíquicas como transcendências se dá porque nestas “a ação não é
simplesmente a unidade noemática de uma corrente de consciência: também
é uma realização concreta” (SARTRE, 1994: 63). A realização de uma ação
exige tempo. Durante esse período há momentos aos quais correspondem
consciências concretas ativas. A reflexão se dirige para essas consciências e
as apreende numa ação total como unidade transcendente das consciências
ativas. É nesse sentido que Sartre identifica uma ambiguidade, que pode ser
a fonte de graves erros, no “duvido, logo sou” de Descartes; “trata-se da
dúvida espontânea que a consciência reflexiva apreende na sua
instantaneidade — ou trata-se antes justamente do empreendimento de
duvidar?” (SARTRE, 1994: 63). Pelo que já foi exposto, somos levados a
responder que a dúvida de Descartes é o empreendimento de duvidar, isto é,
é já o Cogito reflexivo operando. Os graves erros a que Sartre se refere
devem nos remeter aos problemas de se conceber o Cogito cartesiano como
uma operação de primeiro grau da consciência; trata-se nada menos do que
introduzir o Eu na consciência.
Aos poucos Sartre foi se livrando das concepções que consideravam
o Ego um habitante da consciência. Esse trabalho permite-lhe, agora, defini-
lo. O Ego é diretamente unidade transcendente dos estados e das ações, às
vezes, das qualidades. A qualidade é um eventual intermediário entre o Ego
e os estados e as ações, é uma disposição psíquica para produzir os estados e
as ações. Nesse sentido, é mais que um termo médio, é um objeto

Sartre e a tese da transcendência do ego – Renato dos Santos Belo

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transcendente, é o substrato dos estados, assim como os estados são o


substrato das “Erlebnisse”. A relação da qualidade com os sentimentos não
é de emanação; a relação da qualidade ao estado ou à ação é de atualização.
A emanação religa as consciências às passividades psíquicas. Há uma
diferença essencial entre a qualidade e o estado: “O estado é unidade
noemática de espontaneidades, a qualidade é unidade de passividades
objetivas” (SARTRE, 1994: 64). As qualidades podem ser eventualmente
unificações dos estados e das ações; é sempre possível que ideias pré-
concebidas e fatores sociais influenciem meus estados ou ações, mas essa
unificação não é nunca indispensável, pois os estados e as ações podem
encontrar diretamente no Ego a unidade de que necessitam.
Parece que as coisas se tornaram mais claras nessa altura da
exposição. Desde o início já sabíamos que o Ego não habitava a consciência
— antes era essa a concepção que se tratava de refutar veementemente. Mas
só agora podemos afirmar que consciência e psíquico não se confundem; é
precisamente este último que precisa ser fundamentado. O psíquico é o
objeto transcendente da consciência reflexiva e objeto da psicologia. O Ego
aparece à reflexão como um objeto transcendente que realiza a síntese
permanente do psíquico. O Ego, assim, está do lado do psíquico e não da
consciência. Sartre salienta que considera aqui o Ego psíquico e não o
psicofísico, não sendo por abstração que realiza essa separação. O Eu [Moi]
psicofísico é um enriquecimento sintético do Ego psíquico, o qual pode
muito bem (e sem redução de espécie alguma) existir em estado livre. É
evidente que, por exemplo, quando se diz: ‘eu sou um indeciso’, não se visa
diretamente o Eu [Moi] psicofísico. (SARTRE, 1994: 65). Após essa
distinção, é novamente contra Husserl que Sartre se coloca, desta vez para
repreendê-lo severamente. Husserl teria feito do Ego um polo-sujeito que
suportaria todas as determinações. Ora, exatamente Sartre não pode aceitar
tal concepção visto que a consciência é unidade imanente de si mesma — o
que é garantido pelo fluxo da consciência—, e, assim , não carece de polo
que a unifique — aliás, admiti-lo seria um retrocesso em tempos de
fenomenologia. Sartre prossegue em sua reprovação a Husserl e interpreta o
§131 de Ideias. Nosso filósofo nos diz que as coisas, para Husserl, seriam
sínteses pelo menos idealmente analisáveis. As qualidades de uma coisa
estariam ligadas entre si enquanto pertencentes ao mesmo objeto X (como
um predicado a um sujeito). Essa concepção é, no entender de Sartre,
extremamente discutível. “O que nos interessa é que uma totalidade sintética
indissolúvel e que se suportasse a ela mesma não teria nenhuma precisão de
um X suporte, com a condição, naturalmente, que ela seja real e
concretamente inanalisável” (SARTRE, 1994: 65). Seria inútil, observa
Sartre, buscar um suporte para a unidade das notas de uma melodia; essa
unidade vem da “indissolubilidade absoluta dos elementos, que não podem
ser concebidos como separados, salvo por abstração” (SARTRE, 1994: 66).
O Ego não é, assim, um polo X, o suporte dos fenômenos psíquicos, o Ego

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não é indiferente a seus estados, está “comprometido” com eles. Esse


“comprometimento” é tal que ele:
(...) nada é fora da totalidade concreta dos estados e das ações
que ele suporta. Sem dúvida que ele é transcendente a todos os
estados que unifica, mas não como um X abstrato cuja missão é
apenas unificar: é antes a totalidade infinita dos estados e das
ações que se não deixa jamais reduzir a uma ação ou a um
estado (SARTRE, 1994: 66).

O Ego está para os objetos psíquicos assim como o mundo está para
as coisas. A diferença é que o mundo aparece muito raramente como fundo
das coisas (referência a Heidegger), enquanto o Ego aparece sempre no
horizonte de cada estado; a separação entre Ego e estado (ou ação) apenas se
dá por abstração.
Há uma totalidade transcendente que participa no caráter duvidoso
de toda transcendência. As nossas intuições acerca do Ego podem ser
contraditas, isso devido ao caráter duvidoso deste; o que “não significa que
tenho um Eu [Moi] verdadeiro que ignoro, mas somente que o Ego visado
traz em si mesmo o caráter de dubitabilidade (em certos casos, o da
falsidade)” (SARTRE, 1994: 67). O Ego também poderia (não se exclui a
hipótese) ser constituído por falsas recordações, o que explicaria seu caráter
de falsidade. Notemos que o Ego é duvidoso, mas não hipotético. Não se
trata de uma hipótese o fato de que o Ego é a unidade transcendente de
nossos estados e de nossas ações. Quando Sartre nos dá a saber o tipo de
relação entre “consciência e eu” verificamos a reafirmação do caráter
mágico do Ego. A relação da consciência com o sentimento é de emanação;
a relação da qualidade com o estado é de atualização; mas a relação do Ego
com as qualidades, estados e ações é de produção poética ou, se se quiser,
de criação. Notemos que é renovada a caracterização do Ego como uma
instância mágica, poética.
Por via da intuição, o Ego se nos apresenta e, assim, podemos
estabelecer algumas relações entre ele e os estados e as ações:
1- o Ego é dado como produzindo os seus estados;
2- cada novo estado é religado diretamente (ou indiretamente, pela
qualidade) ao Ego como sua origem;
3- o estado não é dado como tendo sido já antes no Eu [Moi], o que
quer dizer que o tipo de criação é ex nihilo;
4- mesmo no caso de atualização de potências, o que surge é algo
novo, isto é, que é mais do que simplesmente uma potência atualizada.
As relações entre o Eu e as ações se dão do mesmo modo. Já as
qualidades, estas qualificam o Eu [Moi], o que não quer dizer que este exista
independentemente de suas qualidades, como um polo X. É por uma criação
continuada que o Ego mantém suas qualidades, é uma espontaneidade
criadora; o Ego é “criador” de seus estados. Sartre nos alerta de que a

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espontaneidade criadora ou conservadora é diferente da “Responsabilidade”,


que é um caso especial de produção criadora a partir do Ego. As processões
do Ego em relação a seus estados são geralmente mágicas; mesmo nos casos
de processão racional (vontade refletida, por exemplo) há um fundo de
ininteligibilidade, permanecendo sempre uma produção poética. Sartre dá o
exemplo da psicose de influência (o que se quer dizer com a expressão:
“fazem-me ter maus pensamentos”?). Mas isso será estudado em outra
obra5.
Sartre não nega, mesmo aqui, a espontaneidade do Ego; o que
acontece é que ela está como que enfeitiçada. No entanto, atentemos para
esse tipo de espontaneidade a fim de evitarmos confusão. A espontaneidade
do Ego não se confunde com a da consciência; o Ego é objeto e, como tal, é
passivo. Tal espontaneidade é, assim, uma aparência, uma pseudo-
espontaneidade. O que ocorre com a espontaneidade do Ego é que, por ser
ligada sinteticamente a outra coisa que não ela mesma, envolve uma
obscuridade, uma passividade. Tal espontaneidade admite uma passagem de
si mesma a outra coisa, ela se escapa a si mesma. Daí não se tratar
verdadeiramente de uma espontaneidade, pois esta necessita ser algo que
produz e não pode ser nenhuma outra coisa. “A espontaneidade do Ego
escapa-se a ela mesma visto que o ódio do Ego, se bem que não podendo
existir por si só, possui apesar de tudo uma certa independência em relação
ao Ego. De modo que o Ego é sempre ultrapassado pelo que produz, se bem
que, de um outro ponto de vista, ele seja o que produz” (SARTRE, 1994:
69).
Sartre critica Bergson (Os Dados Imediatos da Consciência) por
tomar a espontaneidade ininteligível do laço entre o Ego e seus estados
como a liberdade, sem se dar conta de que sua descrição se referia a um
objeto e não à consciência. Quando temos uma intuição do Ego verificamos
que o produtor (Ego) é passivo em relação à coisa criada, o que é fruto de
uma ligação que se dá no plano da irracionalidade. O que não poderia ser
diferente, pois o Ego é apreendido e constituído pelo saber reflexivo. Sartre
opõe uma produção real do Ego a um sentido inverso constituído pela
consciência. Sentido real: “o que é primeiro realmente são as consciências,
através das quais se constituem os estados, depois, através destes, o Ego”
(SARTRE, 1994: 69). Sentido inverso: “as consciências são dadas como
emanando dos estados e os estados como produzidos pelo Ego” (SARTRE,
1994: 69 e 70). A consciência, que se aprisiona no mundo para fugir de si,
projeta a sua espontaneidade no objeto (Ego). O que resulta dessa
espontaneidade, representada e hipostasiada num objeto, é uma
espontaneidade bastarda e degradada, mas que conserva magicamente o seu
poder criador, apesar de passiva. A esse jogo Sartre chama de “a
irracionalidade profunda da noção de Ego”. Há, por assim dizer, passividade

5
Provavelmente Sartre se refere ao trabalho Esboço de uma Teoria das Emoções.

Sartre e a tese da transcendência do ego – Renato dos Santos Belo

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na espontaneidade do Ego — diferentemente do que ocorre com a


consciência, que nada pode agir sobre ela por ser causa de si. O Ego, ao
produzir os estados e as ações, sofre o choque do retorno destes. Há um
“comprometimento” entre o que produz e o que é produzido; os estados e as
ações voltam-se para o Ego para o qualificarem. Quando Sartre nos fala a
respeito das relações entre o Ego e o mundo parece ficar mais claro o tipo de
espontaneidade daquele, ao mesmo tempo em que tal espontaneidade se
revela como a mais falseada. Ego e mundo não estão no mesmo plano:
enquanto o segundo se apresenta à consciência irrefletida, o primeiro apenas
se dá à reflexão.
Tudo se passa como se o Ego estivesse protegido, pela sua
espontaneidade fantasmática, de qualquer contato direto com o
exterior, como se ele não pudesse comunicar com o mundo a
não ser por intermédio dos estados e das ações. É visível a
razão desse isolamento: é muito simplesmente porque o Ego é
um objeto que não aparece senão à reflexão e que, por esse
fato, está radicalmente cortado do mundo. Ele não vive no
mesmo plano (SARTRE, 1994: 70).

De posse do significado da espontaneidade do Ego, podemos defini-


lo de maneira mais precisa. O Ego é uma síntese irracional de atividade e
passividade e, também, síntese de interioridade e de transcendência. O Ego
é mais interior (na verdade trata-se de uma intimidade, como veremos) à
consciência que os estados. Trata-se, então da interioridade da consciência
refletida contemplada pela reflexão. Interioridade no sentido de que ser e
conhecer-se, para a consciência, não são senão um; ou ainda, “para a
consciência, a aparência é o absoluto enquanto ela é aparência ou ainda que
a consciência é um ser cuja essência implica a existência” (SARTRE, 1994:
71). Diante desse caráter da consciência, a contemplação que a reflexão
realiza sobre a consciência refletida não faz da interioridade um objeto,
nesse sentido, esse contemplar é um viver da interioridade. “O caso é
específico: reflexão e refletido não fazem senão um, como o mostrou muito
bem Husserl, e a interioridade de uma funde-se na do outro” (SARTRE,
1994: 71). O Ego se dá à reflexão como uma interioridade fechada sobre ela
mesma, como um objeto. A interioridade é para ele, não para a consciência;
uma interioridade não tem exterior e só pode ser concebida por ela mesma
— daí não podermos apreender a consciência de outrem. Há duas estruturas
para analisar essa interioridade degradada e irracional: a intimidade e a
indistinção. O Ego se dá como íntimo da consciência, como se fosse da
consciência; única ressalva, fundamental, é que ele é opaco para ela;
opacidade que é apreendida como indistinção, que não é senão uma
interioridade vista do exterior ou, se se prefere, a projeção degradada da
interioridade. Sartre localiza essa indistinção, por exemplo, na
“multiplicidade de interpenetração” de Bergson e no Deus de numerosos
místicos.

Sartre e a tese da transcendência do ego – Renato dos Santos Belo

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No entanto, mesmo tendo sido desvendada, por assim dizer, a


espontaneidade do Ego, Sartre nos fala da impossibilidade de conhecê-lo tal
e qual é. Esse Ego é um objeto e, como tal, o único método para conhecê-lo
é a observação, a aproximação, a espera, a experiência. Todo problema é
que se trata de um transcendente íntimo que, por isso, “está demasiado
presente para que nos possamos pôr, a seu respeito, de um ponto de vista
verdadeiramente exterior. Se recuarmos para ganhar distância, ele
acompanha-nos nesse recuo. Ele está infinitamente próximo e não posso
contorná-lo” (SARTRE, 1994: 72). Uma imagem para entendermos a
impossibilidade de conhecimento “convencional” em relação ao Ego é a do
cão que corre atrás do próprio rabo; por mais que o cão se esforce jamais o
apreenderá, pois o esforço realizado para a aproximação é proporcional ao
“esforço” do rabo para distanciar-se e, no entanto, nada é tão íntimo e
próximo. É a própria intimidade do Eu que nos barra o caminho a seu
conhecimento. Para “conhecê-lo bem” seria preciso tomar sobre si o ponto
de vista de outrem, isto é, um ponto de vista forçosamente falso.
E todos os que tentaram conhecer-se concordarão, esta
tentativa de introspecção apresenta-se, desde a origem, como o
esforço para reconstituir, com peças desligadas, com
fragmentos isolados, o que se deu originariamente de uma vez,
de um só lance. Assim, a intuição do Ego é uma miragem
perpetuamente falaz, pois ela ao mesmo tempo dá tudo e não
dá nada (SARTRE, 1994: 73).

Para a exata compreensão do sentido desse peculiar modo de


apreensão do Ego, Sartre apela para o conhecimento do seu leitor da
fenomenologia, pois só dessa forma se entenderá que o “Ego é uma unidade
noemática e não noética”. Notemos que a relação do Ego com a consciência
é de intimidade e não de interioridade. O próprio modo de apreensão e
constituição do Ego pela reflexão nos garante tal especificidade. Sartre nos
dá um retrato preciso da tentativa (sempre frustrada) de conhecermos o Ego
tal e qual um objeto externo. O Ego é, por natureza, fugidio. Ele não é
objeto direto da consciência, o olhar da consciência deve se voltar para a
“Erlebnis”, enquanto ela emana do estado, para apreendê-lo. É sempre de
“rabo de olho” que apreendemos o Ego; cada vez que o olhamos
diretamente ele desaparece. O Ego aparece por trás do estado, no horizonte.
É que, com efeito, ao procurar apreender o Ego por ele mesmo
e como objeto direto da minha consciência, recaio no plano
irrefletido e o Ego desaparece com o ato reflexivo. Daí essa
impressão de incerteza irritante que muitos filósofos traduzem
ao pôr o Eu para aquém do estado de consciência e ao
afirmarem que a consciência deve voltar-se sobre ela mesma
para aperceber o Eu que está por detrás dela. Não é nada disso,
mas por natureza o Ego é fugidio (SARTRE, 1994: 74).

Sartre e a tese da transcendência do ego – Renato dos Santos Belo

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Dessa forma Sartre pensa ter localizado o erro de toda a filosofia


anterior a ele, inclusive da fenomenologia husserliana. Que forma? A não
compreensão da maneira complexa pela qual o Ego se dá à consciência fez
com que os filósofos se precipitassem e construíssem explicações pouco
verdadeiras para a relação entre ambos.

***
O desenvolvimento do argumento sartriano exige que ele faça uma
distinção entre dois tipos de Eu: o psíquico e o psicofísico. Se há um Eu no
plano irrefletido, trata-se, na verdade, de um Eu psicofísico e não psíquico
(o qual só se dá à reflexão). Esse Eu psicofísico é muito simplesmente um
conceito vazio, destinado a permanecer assim. Esse conceito não pode ser
preenchido pelos dados da intuição. O eu-conceito (psicofísico) é o suporte
objetivo e vazio das ações do plano irrefletido. O corpo e as imagens do
corpo podem consumar a degradação total do Eu concreto (reflexão) no Eu-
conceito, quando servem ao último como preenchimento ilusório. “Digo
‘Eu’ parto a madeira e vejo e sinto o objeto ‘corpo’ em vias de partir a
madeira. O corpo serve então de símbolo visível e tangível para o Eu. Vê-se,
portanto, a série de refrações e de degradações de que uma ‘Egologia’ se
deveria ocupar” (SARTRE, 1994: 75). Sartre constrói um gráfico que
promete dar conta de esquematizar a passagem do Eu-concreto para o Eu-
conceito:
Consciência refletida — imanência —
interioridade
Plano refletido Ego intuitivo — transcendência —
intimidade
(domínio do psíquico)

Eu-conceito (facultativo) — vazio


transcendente — sem
“intimidade”
Plano irrefletido
Corpo como preenchimento ilusório
do Eu-conceito
(domínio do psicofísico)

Parece que agora a “Egologia” de que falava Sartre (cujo ponto de


partida deveria situar-se no ato de reflexão) se completa. O Eu não é nunca
unidade direta das consciências. Na verdade, trata-se de uma unidade
transcendente de unidades transcendentes. O Cogito é uma consciência pura,
sem constituição de estado nem de ação. Em última análise, salienta Sartre,
o Eu não é necessário no Cogito. “Pode mesmo supor-se uma consciência
executando um ato reflexivo puro que a daria a ela mesma como uma

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espontaneidade não-pessoal” (SARTRE, 1994: 75). A redução


fenomenológica nunca é perfeita, sempre intervêm inúmeras motivações
psicológicas. Descartes, ao executar o Cogito, o faz em ligação com a
dúvida metódica. Por isso, o método e a dúvida cartesianas se dão como
empreendimentos de um Eu. O Eu que surge no Cogito é uma forma de
ligação ideal, pois Cogito e dúvida são tomados na mesma forma. Numa
palavra, o Cogito cartesiano é o resultado lógico da dúvida e o que lhe põe
fim. Para Sartre, é de direito possível apreender reflexivamente a
consciência espontânea como uma espontaneidade não-pessoal e sem
nenhuma motivação anterior, mas, devido a nossa condição de seres
humanos, ela permanece extremamente rara. “De todo modo, como
dissemos mais acima, o Eu que aparece no horizonte do ‘Eu Penso’ não se
dá como produtor da espontaneidade consciente. A consciência produz-se
em face dele e vai para ele, vai juntar-se-lhe. É tudo o que se pode dizer”
(SARTRE, 1994: 76). Afirmar mais do que isso é afirmar demais, aliás,
esse excesso de afirmação do Cogito já foi apontado por Sartre. Em outras
palavras, o Eu e o Penso não estão no mesmo plano.
Sartre se ocupou, no decorrer de seu ensaio, de refutar uma
concepção a seu ver bastante nefasta para a filosofia: a que considerava o
Ego como um habitante da consciência. Sua tarefa foi empreendida através
da utilização e, sobretudo, da reelaboração de todo o arsenal teórico de que
lhe oferecia a fenomenologia. Tal procedimento se faz, ao mesmo tempo, a
partir de Husserl e contra ele. De modo que, muito embora o acerto de
contas definitivo com o fenomenólogo alemão só se dê nas páginas de O ser
e o nada, o distanciamento já se operava desde o princípio.
Por fim, Sartre retira três conclusões a partir de suas considerações:
1- libertação e purificação do Campo transcendental;
2- a concepção de Ego apresentada é a única capaz de refutar o
solipsismo;
3- afirmação do realismo da fenomenologia, através da recusa da
acusação de idealismo empreendida pela extrema-esquerda.
A primeira conclusão nos aponta para a concepção do campo
transcendental como um nada, pois todos os objetos estão fora dele. No
entanto, esse nada é tudo, uma vez que é consciência de todos esses objetos.
Não se trata, salienta Sartre, da “vida interior” de Brunschvicg. Não há nada
que possa ser objeto e pertencer à intimidade da consciência ao mesmo
tempo, nem mesmo o Eu. A purificação do Campo transcendental faz com
que não possamos mais continuar a opor o objetivo e o subjetivo de forma
clássica, isto é, já não podemos considerar os objetos espaço-temporais
como passíveis de um juízo objetivo enquanto os sentimentos psíquicos
estariam no campo do subjetivo (inacessível a outrem). A apreensão, por
exemplo, da dor de Pedro por Pedro não é mais verdadeira/plena/intuitiva
que a apreensão da dor de Pedro por Paulo; eles falam da mesma coisa —
apreendidas de forma diferente —, mas a apreensão pode ser nos dois casos

Sartre e a tese da transcendência do ego – Renato dos Santos Belo

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intuitiva. O sentimento de Pedro apreendido por Pedro não é, assim, mais


certo que esse mesmo sentimento apreendido por Paulo, pois em ambos os
casos não há domínio da certeza reflexiva (o sentimento pode ser posto em
dúvida), ou melhor, “pertence (...) à categoria dos objetos que se pode pôr
em dúvida” (SARTRE, 1994: 77).
Essa conclusão que, muito provavelmente, parece estranha: trata-se
de elevar o Ego à categoria de instância objetiva; não é senão consequência
da expulsão deste do domínio da consciência. Vale sempre lembrar que o
Ego não pode ser uma estrutura essencial da consciência, sob pena de se
perderem todos os resultados da fenomenologia.
Tornou-se visível para nós, pelo contrário, que o Eu [Moi] era
um objeto transcendente, como o estado, e que, por esse fato,
era acessível a dois tipos de intuição: uma apreensão intuitiva
pela consciência de que ele é o Eu [Moi], uma apreensão,
menos clara mas não menos intuitiva, por outras consciências
(SARTRE, 1994: 77).

Notemos que o Ego de outrem não é impenetrável, apenas o é, e de


forma radical, a consciência. Só há possibilidade de conceber a consciência
de outrem tornando-a objeto. Conhecer verdadeiramente uma consciência
seria pensá-la ao mesmo tempo como interioridade pura e transcendência, o
que é impossível. Dessa forma, Sartre distingue duas esferas: “uma esfera
acessível à psicologia, na qual o método de observação externa e o método
introspectivo têm os mesmos direitos e podem ajudar-se mutuamente, e uma
esfera transcendental pura, acessível apenas à fenomenologia” (SARTRE,
1994: 78). Observemos que Sartre não estabelece uma relação hierárquica
entre o método introspectivo e o método de observação externa, já que isso
significaria, de certa maneira, tender a reintroduzir o Ego na consciência,
dando privilégios ou condições de acessibilidade apenas à consciência que o
abrigaria. Aqui cabe reiterar que as relações entre o Eu e a consciência são
existenciais. O que significa afastar a ideia de que essa acessibilidade do
Ego às outras consciências significaria uma legitimação do método
terapêutico em psicologia. As relações são existenciais, isto é, insuperáveis.
Pensamos que apenas a primeira conclusão extraída por Sartre de seu
ensaio é efetivamente desenvolvida. Tanto a hipótese de refutação do
solipsismo quanto o realismo (no aspecto político) que se alcançaria com a
fenomenologia necessitarão de maiores desenvolvimentos ao longo da
trajetória intelectual de Sartre. Neste momento eles estão anunciados e
demonstram as expectativas do filósofo com a fenomenologia e seu alcance
filosófico.
A longa exposição de Sartre para demonstrar a transcendência do
Ego deve ser entendida em seu duplo aspecto: o psicológico e o filosófico.
Do ponto de vista da psicologia, Sartre desenvolverá um conjunto de
pequenos textos de modo a aproximar psicologia e fenomenologia, trata-se

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do projeto inacabado de uma psicologia fenomenológica. Do ponto


filosófico desse pequeno ensaio ganhará as páginas de O ser e o nada.
Nesse momento, a fenomenologia será a possibilidade mesma de uma
ontologia. Em qualquer dos casos, seja no projeto abortado de uma
psicologia fenomenológica seja no desenrolar da filosofia de Sartre, a noção
de consciência aqui desenvolvida e o minucioso trabalho de “limpeza” do
campo transcendental figurarão como heranças indeléveis.

Referências bibliográficas

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 7ª Edição. Lisboa: Fundação


Calouste Gulbenkian, 2010.
MOUTINHO, Luiz Damon. Sartre: psicologia e fenomenologia. São Paulo:
Brasiliense, 1995.
SARTRE, Jean-Paul. A transcendência do Ego. Lisboa: Colibri, 1994.

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