As Hipoteses Teoricas de Sabina Spielrein Nas Suas

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Psicologia USP, 2019, volume 30, e180035 1-9

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Artigo
As hipóteses teóricas de Sabina Spielrein nas suas
cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
Fátima Caropreso*a
a
Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Psicologia. Juiz de Fora, MG, Brasil

Resumo: Tem havido um crescente reconhecimento da originalidade e do caráter pioneiro das propostas
teóricas e clínicas da psicanalista russa Sabina Spielrein. No entanto, ainda são poucos os estudos dedicados
especificamente à análise de sua teoria. Além de suas publicações, as cartas que Spielrein enviou a Jung entre
1917 e 1918 contêm ricas reflexões teóricas, que contribuem para uma melhor compreensão do seu pensamento
e das hipóteses que ela viria a formular nos anos seguintes. Este artigo tem como objetivo analisar os conceitos de
subconsciente e de simbolismo que Spielrein apresenta na correspondência com Jung do período mencionado.
Procuramos mostrar que, com esses conceitos, a autora dá continuidade à teoria que começara a formular em suas
primeiras publicações e tenta integrar suas próprias hipóteses a algumas ideias de Freud e Jung, o que tem como
consequência a elaboração de uma teoria original sobre o psiquismo.

Palavras-chave: história da psicanálise, Sabina Spielrein, funcionamento mental, simbolismo, subconsciente.

Apesar da originalidade das propostas teóricas esquizofrenia”, Spielrein (1911/2014) analisa o caso de
e clínicas da psiquiatra e psicanalista russa Sabina uma paciente que apresentava um quadro de demência
Nikolaevna Spielrein (1885-1942) e de seu pioneirismo paranoide e, a partir deste, formula algumas hipóteses
em várias áreas, durante um extenso período ela sobre a esquizofrenia e o funcionamento mental em
permaneceu no esquecimento. Com a publicação, em geral. As ideias aí elaboradas são desenvolvidas em sua
1974, da correspondência entre Freud e Jung, em que é segunda publicação, “A destruição como origem do devir”
várias vezes mencionada, ela começou a reemergir para (Spielrein, 1912/2014). Nas cartas que Spielrein envia a
a história da psicanálise (Ovcharenko, 1999). No entanto, Carl Gustav Jung entre 1917 e 1918, ela retoma e reformula
o interesse pela autora se intensificou principalmente após suas concepções sobre a dinâmica e a estrutura mental
a publicação do livro Diário de uma secreta simetria: elaboradas em seus dois textos iniciais. Encontramos, nas
Sabina Spielrein entre Jung e Freud (Carotenuto, cartas, ricas reflexões teóricas de Spielrein e Jung, as quais
1980/1984). O interesse por Spielrein despertado a partir contribuem para uma melhor compreensão do pensamento
da publicação de Carotenuto se concentrou especialmente, teórico da autora e da teoria que ela viria a formular nos
a princípio, em sua biografia, de forma que o seu papel anos seguintes. Este artigo tem como objetivo analisar
como clínica inovadora e criadora de conceitos inéditos as ideias sobre o funcionamento mental e o simbolismo
no campo psicanalítico permaneceu em segundo plano, que Spielrein formula na correspondência com Jung do
como comenta Cromberg (2012). Embora a situação esteja período mencionado e discutir de que maneira essas
sendo revertida nos últimos anos com a publicação de hipóteses se relacionam com aquelas apresentadas em seus
trabalhos que enfocam, principalmente, sua produção textos de 1911 e 1912. Busca-se também apontar alguns
teórica (Caropreso, 2016, 2017a, 2017b; Cooper-White, pontos de convergência e divergência com as concepções
2015; Covington & Wharton, 2003; Cromberg, 2014; de Freud, que permitem vislumbrar a originalidade das
Harris, 2015; Noth, 2015; Santiago-Delefosse & Delefosse, ideias de Spielrein. Iniciamos com uma exposição sucinta
2002; Skea, 2006; Vidal, 2001), ainda são poucos os de algumas das principais ideias desses seus dois textos
estudos especificamente dedicados à análise de seu e, em seguida, passamos ao comentário das cartas.
pensamento, que permitam compreender a complexa
teoria por ela elaborada e avaliar a sua importância para As formulações iniciais de Spielrein sobre
a história da psicanálise e da psicologia. Esse contexto a vida mental
justifica a realização de estudos voltados à análise de
suas propostas teóricas. No texto “Sobre o conteúdo psicológico de um
Em seu primeiro trabalho publicado, intitulado caso de esquizofrenia”, Spielrein (1911/2014) argumenta
“Sobre o conteúdo psicológico de um caso de que o ser humano possui uma vivência consciente e outra
inconsciente e que a última é a responsável pela criação
* Endereço para correspondência: [email protected] da tonalidade afetiva da primeira. Temos a impressão de

http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e180035
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que os afetos relacionados às nossas vivências conscientes “vivências” anteriores de inúmeras gerações. A expressão
decorrem delas mesmas, no entanto, na verdade, seria “trecho tosco” do trabalho é extraída, por analogia, de
a vivência inconsciente, a ela ligada, a responsável pelo outro conteúdo representacional, o de aplainar madeiras.
tom afetivo experienciado, argumenta a autora. No consciente, o sentido da expressão é adequado ao
No texto “Psicanálise e o experimento de presente, sendo, portanto, diferenciada em relação a sua
associações”, Jung (1906/2011) apresenta a hipótese da origem. No entanto, o inconsciente volta a emprestar às
mente constituída por “complexos”, que seriam unidades palavras o seu significado original do pedaço áspero/
funcionais superiores formadas por várias moléculas, tosco de madeira que é aplainado. Dessa forma, o ato
as quais, por sua vez, seriam compostas por agregados presente de melhorar o trabalho é transformado no ato
de percepções sensoriais, componentes intelectuais e já realizado muitas vezes (pelos nossos ancestrais) de
tonalidades afetivas. A integração dessas moléculas nos aplainar madeira, explica a autora.
complexos ocorreria de acordo com determinada tonalidade Dessa forma, o consciente se diferenciaria do
afetiva, de forma que eles seriam agrupamentos de ideias inconsciente, ao passo que este último dissolveria e
inconscientes associadas a eventos ou temas carregados assimilaria a experiência consciente em vivências
afetivamente. Em seus textos de 1911 e 1912, Spielrein anteriores que transcenderiam o âmbito da experiência
adota a hipótese de Jung da mente composta por complexos. individual. Nesse processo, uma experiência pessoal seria
Segundo a autora, os complexos inconscientes transformada em uma experiência da espécie, de forma
constelados é que criariam a tonalidade afetiva de nossas que as características pessoais seriam eliminadas, ou seja,
experiências conscientes. No entanto, esse material o “eu” seria dissolvido no “nós” (Spielrein, 1912/2014).
inconsciente, em última instância, seria proveniente do Em “A destruição como origem do devir”,
passado da espécie. Ela mostra como as fantasias de sua Spielrein (1912/2014) propõe uma diferenciação entre
paciente esquizofrênica apresentavam um conteúdo mítico uma “psique da espécie” – que conteria registros de
e traziam à tona vivências de inúmeras gerações. A autora experiências de inúmeras gerações – e uma “psique do
sustenta, então, que “herdamos também a sedimentação eu” – que conteria os registros mnêmicos provenientes da
das vivências de nossos ancestrais” (Spielrein, 1911/2014, experiência individual. As duas psiques permaneceriam
p. 213. Dessa forma, o inconsciente diluiria nossas em conflito, uma vez que seriam movidas por tendências
vivências presentes passadas, que ultrapassariam a opostas. A psique da espécie possuiria uma “tendência
experiência individual. Esse processo de dissolução à dissolução e assimilação” do conteúdo individual no
estaria na base da produção dos sintomas esquizofrênicos. coletivo, a qual seria expressão psíquica das pulsões de
Spielrein (1911/2014) argumenta que sua conservação da espécie. Por outro lado, a psique do eu
contribuição para a compreensão da esquizofrenia é conteria uma “tendência à diferenciação”, que expressaria
essa “visão filogenética”. Segundo ela, embora Freud as pulsões de autoconservação.
e Jung já tivessem demonstrado a existência de um A tendência à dissolução e assimilação possuiria
paralelismo especial entre os fenômenos neuróticos componentes positivos (criativos) e negativos (destrutivos)
e oníricos e as manifestações da esquizofrenia, essa e, por isso, a psique da espécie seria transformadora. Para
perspectiva filogenética não estaria presente nas hipóteses Spielrein (1912/2014), a criação teria como condição a
formuladas pelos autores. destruição; o componente negativo seria condição para
As ideias elaboradas em “Sobre o conteúdo o surgimento de algo, de forma que não haveria criação
psicológico de um caso de esquizofrenia” (Spielrein, sem destruição e vice-versa. Nesse sentido, ela descreve
1911/2014) são desenvolvidas no texto que Spielrein escreve a tendência à dissolução e assimilação como dinâmica,
no ano seguinte, como dissemos. Em “A destruição como em oposição à tendência à diferenciação da psique do eu,
origem do devir” (Spielrein, 1912/2014), a autora sustenta que seria estática, pois visaria à inércia, a manutenção
que, embora o processo de dissolução seja evidente e do estado atual do eu. Como esta última tendência não
exacerbado nas fantasias esquizofrênicas, ele faz parte possuiria o componente negativo, destrutivo, ela não
do funcionamento mental em geral. A autora retoma a traria como consequência o novo; não seria criativa. De
hipótese de que o pensamento consciente é acompanhado acordo com as hipóteses da autora, o instinto de morte –
pelo mesmo conteúdo inconsciente, transformado de acordo um impulso destrutivo inerente ao instinto sexual, ou
com a linguagem deste último e, para ilustrar tal fenômeno, à pulsão de conservação da espécie – seria o motor da
usa exemplos de fenômenos hipnagógicos, descritos pelo tendência à dissolução da psique da espécie1.
psicanalista vienense Herbert Silberer (1909). Dessa maneira, Spielrein formula uma concepção
Um dos exemplos de Silberer mencionado é o sobre a dinâmica mental que coloca na base do psiquismo
pensamento consciente “eu quero melhorar um trecho as memórias provenientes da experiência do passado da
tosco”, o qual é acompanhado por um pensamento espécie e a tendência desta a se sobrepor às vivências atuais.
simbólico no qual o indivíduo se vê “aplainando um
pedaço de madeira”. Spielrein (1912/2014) comenta 1 Para uma compreensão mais pormenorizada do conceito de instinto de morte
que esse exemplo ilustra como a linha de pensamento de Spielrein e das suas diferenças em relação ao conceito freudiano de pulsão
adequada ao presente é adaptada, no inconsciente, às de morte, ver Cromberg (2014), Caropreso (2016) e Caropreso (2017b).

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As hipóteses teóricas de Sabina Spielrein nas suas cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
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Em “O interesse pela psicanálise”, Freud de forma que poderíamos dizer que haveria um domínio
(1913/1998a) comenta que, nos últimos anos, psicanalistas consciente e outro subconsciente e que, neste, seria
como Spielrein, Jung e Abraham haviam percebido que possível distinguir o subconsciente que corresponderia ao
a tese de que a ontogênese é uma repetição da filogênese que ela chama de “consciência lateral”, o pré-consciente
teria que ser aplicada também à vida anímica. No mesmo e o inconsciente. Em carta a Jung escrita dias antes, em
ano, em “Totem e tabu”, Freud (1913/1998b) aplica essa 15 de dezembro de 1917, ela dissera:
teoria ao complexo de Édipo, propondo que este seria
a recapitulação ontogenética de uma ocorrência real No meu escrito “Destruição, etc. . . . ” sempre
no desenvolvimento da civilização. No entanto, ele só substituí, ou quis substituir, a expressão inconsciente
integra essa visão filogenética de forma clara em suas por “subconsciente”, sem que naquele tempo
hipóteses metapsicológicas em sua segunda teoria do soubesse que Freud, por “inconsciente”, entende
aparelho psíquico. Em “O Ego e o Id” (Freud, 1923/1998), algo completamente diferente do que eu queria
é apresentada a hipótese de que o Id seria composto, em indicar com o termo “subconsciente”. Como aluna do
parte, por aquisições filogenéticas (Caropreso, 2017a). senhor, estava habituada a conceber o inconsciente
no sentido do que não é consciente; e só depois me
A proposta metapsicológica de Spielrein dei conta de que o senhor e Freud entendem duas
nas cartas a Jung coisas inteiramente diferentes. (Spielrein, 1980/1984,
p. 131-132)
Entre os anos 1908 e 1919, Spielrein e Jung trocaram
uma série de correspondências nas quais discutiram Nas cartas que se seguem, ela corrige o equívoco e
questões pessoais e hipóteses teóricas de ambos, assim elabora a hipótese de uma diferenciação entre subconsciente,
como algumas das concepções freudianas. Nas últimas inconsciente e pré-consciente. Na carta de 20 de dezembro
cartas, principalmente nas escritas a partir de 1917, é notável de 1917, Spielrein propõe a designação “inconsciente” para
o domínio que Spielrein demonstra sobre a teoria freudiana o domínio mental que seria alvo do recalque; que teria sido
e a tentativa que ela faz de aproximar os pensamentos dos barrado pela censura. O pré-consciente seria a agência
dois autores, mostrando pontos de convergência entre eles censuradora. Ela o caracteriza como uma força poderosa que
e chamando atenção ao valor de ambas as teorias. separa, em alguma parte do subconsciente, determinados
Nas cartas do período entre 1917 e 1918, Spielrein impulsos infantis, impedindo-os de penetrar na consciência.
propõe algumas concepções sobre a estrutura e a dinâmica Assim, pela ação da censura (pré-consciente), surgiria, no
da mente, as quais podem ser consideradas como um subconsciente, o inconsciente como uma área diferenciada
desenvolvimento de parte das teses que ela elaborara nos e inacessível à consciência.
textos de 1911 e 1912 comentados. Pode-se dizer que ela Seguindo as ideias de Freud, Spielrein pressupõe
faz uma tentativa de integrar suas concepções com as a existência de uma censura que atuaria sobre desejos
propostas metapsicológicas de Freud sobre o aparelho derivados de pulsões orgânicos intensas, que entrassem
psíquico, em particular, com a divisão estabelecida em contradição com nosso eu consciente. Tais desejos –
por ele entre as instâncias consciente, pré-consciente a cujo reconhecimento se oporia um fortíssimo instinto
e inconsciente. A autora propõe que as duas últimas de autoconservação e desenvolvimento – seriam
instâncias são partes de um domínio psíquico mais principalmente aqueles relacionados à sexualidade infantil
amplo, denominado “subconsciente” e, com isso, formula e ao complexo de Édipo. A autora argumenta que, nos
algumas ideias originais sobre o funcionamento mental. homens normais, esses desejos seriam sublimados, ou
Tendo em vista as elaborações teóricas de Spielrein seja, a energia dos desejos seria retirada e transferida
que acabamos de mencionar, a carta central é a que ela para áreas mais elevadas ou para uma atividade amorosa
escreve a Jung em 20 de dezembro de 1917, pois nela está normal. No entanto, existiria sempre um refluxo de
presente a exposição mais detalhada de suas concepções energia nessa velha direção, de forma que as marcas
sobre a tópica e dinâmica mental. No entanto, a ideias da instintualidade infantil em nós não desapareceriam
apresentadas nas cartas imediatamente anteriores e e dariam origem a sentimentos de prazer, cuja origem
posteriores complementam as hipóteses apresentadas não poderia penetrar no consciente.
na carta de 20 de dezembro e permitem uma melhor Também de acordo com o pensamento de Freud
compreensão delas. (1900/1998), na carta de 20 de dezembro, ela defende que
o plano visual da consciência seria extremamente restrito,
As instâncias mentais pois abarcaria uma pequena parte dos processos mentais.
Na consciência, estaria presente um tipo de pensamento
Na carta de 20 de dezembro de 1917, Spielrein “direcionado”, oposto ao pensamento “não-direcionado”,
propõe uma diferenciação na vida mental entre que caracterizaria o funcionamento subconsciente, o
“consciente”, “subconsciente”, “pré-consciente” e qual é chamado também de “pensamento subliminar”.
“inconsciente”. Mais precisamente, as duas últimas Como esclarece Vidal (2001), a noção de pensamento
instâncias seriam partes diferenciadas do subconsciente, “direcionado” e “não-direcionado” foi proposta inicialmente

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por Jung na segunda parte de “Metamorfoses e símbolos Podemos inferir que aí estaria a “psique do eu” descrita
da libido”, publicada em 1912. Para Jung, o pensamento por Spielrein em 1912. Todavia, como mencionamos,
direcionado seria consciente, adaptado à realidade, verbal o subconsciente conteria também um material que
e conteria relações lógicas. Seria governado por uma transcenderia a vida individual, de forma que podemos
capacidade representacional superior, o que daria origem inferir que nele também estaria contida a “psique da espécie”.
ao sentido de direção. Já o pensamento não-direcionado Na carta de 20 de dezembro de 1917, a autora
não seria consciente nem adaptado à realidade; seria afirma que a vida psíquica individual se estende para
subjetivo, simbólico, constituído por uma sucessão de psique coletiva e argumenta que “o subconsciente tem
imagens e sentimentos. Jung considera que, se tal tipo de uma elevada cultura moral já que é um depósito de toda
pensamento assume uma forma patológica, em especial a série histórica da evolução.” (Spielrein, 2014, p. 373).
esquizofrênica, ou se ele se manifesta como sonho, mito, Adiante, na mesma carta, ela diferencia claramente um
ou criação artística, revela um estado de mente infantil “subconsciente pessoal” e um “subconsciente coletivo”.
enraizado tanto na história individual como no passado Em suas palavras:
da humanidade (Vidal, 2001).
Segundo as ideias apresentadas na carta de 20 se estamos em áreas que o consciente tolera,
de dezembro de 1917, o pensamento não direcionado, entre coisas mais elevadas, estamos lidando com
ou subliminar, emergiria assim que o pensamento pensamentos mais elevados ou conflitos afetivos –
direcionado fosse enfraquecido pelo cansaço, narcose então nos encontramos no subconsciente pessoal ou
ou por outros fatores. Spielrein volta a se referir aos coletivo; se, no entanto, surgem coisas arrepiantes
fenômenos hipnagógicos, descritos por Silberer (1909), que fazem parte das formas pulsionais que
para exemplificar tal forma de pensamento. Tais sobreviveram, ou algo que, devido a falsas ligações,
fenômenos constituiriam o primeiro grau do pensamento também pareça arrepiante – então estamos no
subliminar e permitiriam compreender algumas de suas verdadeiro inconsciente. (Spielrein, 2014, p. 374)
características. Segundo ela:
Assim, na parte do subconsciente correspondente
A observação dos fenômenos hipnagógicos nos à consciência lateral, seria possível diferenciar entre
ensina que o curso de pensamentos subliminares um subconsciente pessoal – constituído pelo conteúdo
representa o curso de pensamentos conscientes excluído do pensamento direcionado – e um subconsciente
com símbolos, e não apenas com símbolos visuais, coletivo – constituído pelo “depósito de toda a série
mas também “símbolos de pensamento” acústicos e histórica da evolução” (Spielrein, 2014, p. 373) e formado,
dinâmicos etc. Os símbolos subliminares são mais portanto, por hereditariedade, como diz Spielrein na carta
gerais e arcaicos que os equivalentes do pensamento de 6 de janeiro de 1918. No entanto, podemos inferir que
consciente. (Spielrein, 2014, p. 369, grifo da autora) também o inconsciente seria de origem pessoal, de forma
que, se tentamos relacionar a “psique do eu”, descrita em
O restante do subconsciente – que não consistisse 1912, com a proposta teórica da carta a Jung de 20 de
no recalcado ou no pré-consciente – é denominado dezembro, somos conduzidos à conclusão de que, tanto a
“consciente lateral”. Esta parte seria composta por parte pessoal da consciência lateral, quanto o inconsciente
conteúdos relacionados à vida pessoal e por conteúdos (recalcado), corresponderiam à psique do eu.
pertencentes à espécie. Spielrein (2014, p. 370) argumenta
que “precisamos empurrar muitos de nossos ‘complexos’ O caráter prospectivo do subconsciente
para o subconsciente, não apenas por falta de tempo, mas
também por intolerância, por desconfiança etc. – em resumo, Nas cartas trocadas entre Jung e Spielrein, algumas
por motivos afetivo pessoais”. Dessa maneira, alguns vezes é discutida a hipótese defendida por Jung de que o
complexos seriam excluídos do pensamento direcionado inconsciente teria um caráter prospectivo. Esse é um dos
por razões afetivas. Eles, no entanto, ao contrário das principais pontos de discordância de Jung em relação à
representações “inconscientes”, permaneceriam “capazes hipótese freudiana do inconsciente. Na carta de 15 de
de consciência”, diz ela, uma vez que não teriam sido dezembro de 1917, Spielrein argumenta que, seguramente,
separados do consciente por meio da censura. Como no nosso subconsciente, conservamos conselhos, sinais e
explica Cromberg (2014), Spielrein faz uma diferenciação indicações de direções para a nossa vida futura. No entanto,
entre Uterdrückung (repressão) e Verdrängung (recalque). segundo ela, esse caráter prospectivo poderia estar presente
O primeiro mecanismo operaria entre o consciente e o no subconsciente, mas não no inconsciente freudiano2.
subconsciente (consciência lateral), enquanto o segundo Essa questão volta a ser discutida na carta de
atuaria entre o subconsciente e o inconsciente. Spielrein de 6 de janeiro de 1918. Nela, a autora reconhece
Tanto a parte subconsciente excluída do pensamento
direcionado (alvo da Uterdrückung) como a sua parte 2 A maior parte das vezes em que Spielrein usa a palavra “subconsciente”
composta por derivados de instintos censurados (alvo da sem especificação é possível inferir, a partir do contexto, que ela está se
Verdrängung) estariam ligadas à experiência individual. referindo à consciência lateral.

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As hipóteses teóricas de Sabina Spielrein nas suas cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
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a possibilidade de que o subconsciente seja prospectivo, que talvez esse caráter prospectivo e profético não fosse
porém, demarca o seu diferencial em relação a Jung, igualmente desenvolvido em todas as pessoas.
argumentando que, embora provavelmente o subconsciente
de toda pessoa seja, até certo ponto, preditivo, não devemos A concepção de simbolismo
considerá-lo sempre profético. O subconsciente elabora
diversas tendências existentes em nós e nos mostra Na carta de 20 de dezembro de 1917, Spielrein
possibilidades e probabilidades que estão suspensas no ar, argumenta que o material recalcado, que constitui o
ou seja, que se acham próximas da realização. No entanto, inconsciente, também se expressa no subconsciente
ele também pode errar; pode ser vítima de sugestão, ou seja, (consciência lateral) a partir dos símbolos subliminares,
pode ser induzido a buscar a solução de um problema em os quais representariam formações de compromisso entre
uma “forma mais elevada” ou “mais baixa”, argumenta a os desejos inconscientes recalcados e as tendências mais
autora. Essa possibilidade de erro e de ser influenciado pela elevadas. No entanto, como mencionamos anteriormente,
sugestão impediria, portanto, que lhe fosse atribuído sempre eles não expressariam apenas o conteúdo inconsciente,
um caráter profético, embora pudéssemos considerá-lo, até mas também conteúdos arcaicos, pertencentes à psicologia
certo ponto, preditivo. coletiva, representações propriamente subconscientes
Nessa mesma carta Spielrein usa sua própria (pertencentes ao que ela chama de “consciência lateral”),
fantasia do Sigfrido – o filho que ela desejava ter assim como sensações corporais. Nesta passagem, da
com Jung – para exemplificar a possibilidade de erro carta de 6 de janeiro de 1918, ela afirma o seguinte sobre
do pensamento subconsciente. Segundo ela, por um o simbolismo:
período, seu subconsciente teria intuído a possibilidade
de realização “real” dessa fantasia e a aconselhado a Até certo nível, ele tem um caráter individual;
não opor resistência a isso. No entanto, tal realização depois, indo-se mais a fundo, torna-se sempre mais
foi impedida pelas circunstâncias da realidade e, então, arcaico, os conteúdos da consciência individual
seu subconsciente posicionou-se contra a solução “real” se transformam nos da consciência da espécie,
do problema e a favor de um caminho sublimatório os problemas individuais se transformam em
para solucioná-lo. Dessa forma, diz ela: “Se bem que o problemas arcaicos, etc., dos quais se cristalizam
subconsciente não nos indique uma meta fixa, mas somente os novos problemas individuais e as suas soluções;
resolva os problemas segundo as circunstâncias, indique e pode-se seguir o seu curso até a consciência.
um caminho, tenha efeito prevenidor ou encorajador, etc. – (Spielrein, 1980/1984, p. 143, grifos da autora)
a observação metódica desses fenômenos é de enorme
interesse.” (Spielrein, 1980/1984, p. 148). Na carta que Jung (2001) escreve em 18 de
A discussão continua na carta de Spielrein com dezembro de 1917, ele se manifesta a respeito da
data provável de 27-28 de janeiro de 1918. Nesta, ela diferenciação que Spielrein defende entre as instâncias
reafirma sua crença no significado prospectivo e profético psíquicas. Diz ele: “Sua concepção do inconsciente
do subconsciente. No entanto, diz considerar necessário me parece arbitrária. Não está claro como você pode
levantar as seguintes questões: distinguir, praticamente, entre uma consciência lateral,
um pré-consciente, um subconsciente e um inconsciente.
O subconsciente é prospectivo em todo homem? De onde vêm os sonhos?” (p. 190, tradução nossa)3.
Provavelmente, sim. Mas o é, em cada um, na Na carta de 20 de dezembro de 1917, Spielrein
mesma medida? Ou seja: é, por assim dizer, como responde essa questão levantada por Jung e expõe sua
uma fórmula divina, que cada um possa ler em si concepção sobre a formulação simbólica nos sonhos, a qual
mesmo, contanto que o queira? Ou se trata de uma não se diferenciaria da formação simbólica subliminar em
capacidade, como, por exemplo, a inteligência, a geral. Ela esclarece que sentimentos corporais também
qual está desenvolvida nos homens em diferente se expressariam na simbólica subliminar e propõe então
medida? (Spielrein, 1980/1984, p. 157) que, na formação simbólica dos sonhos, colaborariam:
conteúdos psíquicos conscientes e subconscientes,
Spielrein não formula uma resposta direta a sentimentos corporais e desejos recalcados. Uma análise
essas indagações. O que podemos perceber é que ela completa do simbolismo, diz ela, deveria revelar, pelo
defende que a parte não recalcada do subconsciente menos, essas quatro instâncias.
poderia ter um caráter prospectivo, o qual, contudo,
seria influenciado pelas circunstâncias e seria passível de
erro, de forma que apesar de prospectivo, o subconsciente 3 Na carta de Sabina para Jung de 15 de dezembro de 1917, ela apresenta
não seria necessariamente profético. Apesar de capaz de de forma sucinta sua hipótese da divisão da vida mental entre consciente,
formular predições com base nas circunstâncias atuais, subconsciente, pré-consciente e inconsciente. Na carta que Jung escreve
o subconsciente não seria necessariamente profético, ou para ela em 18 de dezembro do mesmo ano, ele faz a crítica que acabamos
de expor. A carta de Spielrein de 20 de dezembro parece consistir em
seja, não teria necessariamente a capacidade de antecipar uma resposta à crítica de Jung; uma tentativa de explicar melhor as suas
algo que, de fato, viesse a acontecer. Ela sugere também hipóteses e responder à questão que ele levanta sobre os sonhos.

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Para ilustrar o simbolismo do pensamento depende de qual capacidade queremos esclarecer por meio
subliminar, Spielrein retoma, na carta de 20 de dezembro, da análise do simbolismo, uma vez que as mais variadas
um exemplo de Silberer que já havia sido comentado em seu capacidades contribuem para a formação e escolha do
texto sobre a destruição, de 1912. Neste último texto, para símbolo. Na carta de Jung de 28 de dezembro de 1917,
exemplificar a hipótese de que cada pensamento consciente ele diz que a interpretação correta de um símbolo é a que
possui um curso de pensamento paralelo inconsciente, o traz o maior valor para a nossa vida, o que é caracterizado
qual transforma o primeiro em uma linguagem própria, como uma visão pragmática.
ela cita o seguinte exemplo de estado hipnagógico descrito Spielrein (1980/1984) sintetiza sua concepção de
por Silberer: “Eu penso no avanço do espírito humano simbolismo na carta de 21 de dezembro de 1917 dizendo:
para dentro da complexa e sombria região do problema “O símbolo é uma formação de compromisso; é como uma
da mãe (Fausto 2ª parte)” (Spielrein, 1912/2014, p. 233). constelação formada por processos que se desenvolvem
Emerge, então, o seguinte pensamento simbólico: “Estou no subconsciente e no inconsciente, os quais, por sua
em uma tribuna de pedra solitária colocada bem no centro vez, recebem elementos do resto da vida consciente e das
de um mar sombrio. A água do mar quase se funde no ‘sensações orgânicas’ subconscientes” (p. 139).
horizonte com o ar também profundamente matizado e Na carta de 27-28 de janeiro de 1918, ela expõe a
misteriosamente negro” (Spielrein, 1912/2014, p. 233). Jung sua visão sobre a diferença entre as concepções de
Spielrein (1912/2014) explica que ser levado para simbolismo dele e de Freud. Diz ela:
dentro do mar sombrio corresponde à penetração no
problema sombrio. A fusão do ar com a água, o amálgama O senhor dedica toda a sua atenção à “finalidade”
da parte superior com a inferior, pode simbolizar que, do indivíduo, tal como é expressa nos símbolos
nas mães (como descreve Mefistófeles), todos os tempos subliminares. (E os chama sinais semióticos; o que
e todos os lugares se fundem. Ela aponta que, neste quer dizer isso?) Freud não se ocupa disto porque
exemplo, como no pensamento dos povos antigos, o considera suficiente esclarecer ao doente as suas
mar é visto como a mãe – a água maternal criadora, da fixações patológicas do instinto, e submetê-las a uma
qual tudo surgiu. O mar (a “mãe”) no qual se penetra é elaboração consciente, a fim de suscitar nele uma
o problema sombrio; o estado no qual não existe tempo, reação sadia que lhe permita encontrar, de modo
lugar, nem opostos (em cima e embaixo), pois ele é ainda consciente, o objetivo da sua vida. Portanto, para
o não-diferenciado. A imagem do mar (mãe) é, ao mesmo Freud, o simbolismo subliminar tem valor apenas
tempo, a imagem das profundezas do inconsciente, o qual enquanto expressão dos desejos instintivos. . . .
vive concomitantemente no presente, passado e futuro, (Spielrein, 1980/1984, p. 156, grifos da autora)
ou seja, fora do tempo, para o qual todos os lugares se
fundem e para o qual os opostos têm o mesmo significado, Para Spielrein, o simbolismo subliminar
explica a autora. possuiria uma origem composta: orgânica, inconsciente,
Essa análise, apresentada no texto de 1912, ilustra a subconsciente e consciente. Sua ênfase recai na
hipótese de que o pensamento consciente seria acompanhado sobredeterminação e na reversibilidade dos símbolos.
por um pensamento simbólico que expressaria conteúdos Com sua concepção, ela parece buscar ressaltar o caráter
arcaicos, pertencentes ao psiquismo da espécie. Na carta polivalente dos símbolos subliminares, sem colocar a
de 20 de dezembro de 1917, ela retoma esse exemplo e ênfase em um dos aspectos como o fazem Freud e Jung,
acrescenta uma possível significação de tal pensamento segundo sua interpretação. Embora não negue o caráter
simbólico relacionada ao inconsciente e ao corporal. prospectivo do subconsciente, ela coloca ressalvas à
Do ponto de vista dos desejos inconscientes, a imagem concepção de Jung. Da mesma forma, embora não negue
seria o símbolo do desejo de regressar ao ventre materno. que o simbolismo subliminar seja também expressão
Do ponto de vista do subconsciente não recalcado do inconsciente recalcado e reconheça a validade de
(consciência lateral), o mar sombrio seria um símbolo do interpretá-lo enquanto tal, ela não coloca esse nível de
problema difícil tornado subconsciente e, ao mesmo tempo, significação em um nível superior aos demais.
símbolo de muitos outros pensamentos ligados a ele. Do
ponto de vista das sensações orgânicas, seria possível dizer A relação entre a tópica de Spielrein e
que a imagem do mar escuro, assim como a dificuldade a de Freud
da tarefa consciente, seria somente uma expressão e um
símbolo da atividade respiratória que se tornou mais difícil. Nas carta de 20 de dezembro de 1917, Spielrein
Segundo Spielrein, esse exemplo ilustra também como os afirma que o seu diferencial em relação a Freud é a sua
símbolos são intercambiáveis, isto é, como o subconsciente concepção de subconsciente, pois ele não considera
simboliza o consciente e vice-versa. o subconsciente em si, mas o une ao consciente. Na
Na carta de 20 de dezembro de 1917, após expor época, Freud tinha acabado de publicar os “Artigos
essa interpretação dos vários níveis de significação do metapsicológicos” (1915-1917), nos quais ele repensa e
simbolismo subliminar, Spielrein levanta a questão sobre sistematiza suas concepções sobre o que foi chamado de
qual seria a interpretação correta. Ela responde que isso primeira teoria do aparelho psíquico.

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As hipóteses teóricas de Sabina Spielrein nas suas cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
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Em seus artigos metapsicológicos, Freud (1915- Como vimos, para ela, esta última instância se limitaria
1917/1998) propõe que o aparelho psíquico é composto a exercer a censura, de maneira que sua concepção
pelas instâncias “inconsciente”, “pré-consciente” e de pré-consciente é bastante limitada, tendo em
“consciente”. Assim como defendera em “A interpretação vista aquela de Freud. No restante do subconsciente
dos sonhos” (Freud, 1900/1998), a primeira dessas estaria presente o pensamento não direcionado, cujas
instâncias corresponderia ao processo primário e características se aproximam daquelas do processo
a segunda ao processo secundário. O primário é primário descrito por Freud. Parte das representações
caracterizado pelo livre fluxo da excitação, o que teria aí presentes teriam sido deslocadas do pensamento
como consequência a ausência de relações lógicas, a direcionado por razões afetivas. Estas, no entanto,
atemporalidade e a substituição da realidade externa pela permaneceriam suscetíveis de consciência. Podemos
realidade psíquica. O secundário, em contrapartida, seria relacionar essas representações àquelas que Freud
um processo inibido, temporal, que conteria relações considera como pré-conscientes, mas barradas pela
lógicas e seria governado pelo princípio de realidade censura entre o consciente e a pré-consciência. No
(Freud, 1915/1998b). As representações integrantes do entanto, elas apresentariam características que seriam
inconsciente, ou do processo primário, seriam aquelas mais próximas do processo primário freudiano, de forma
que teriam sido alvo de dois tipos de recalque: o “recalque que a autora parece propor existência de um processo
primordial” e o “recalque propriamente dito”. primário suscetível de consciência, ou seja, que não
Segundo as hipóteses apresentadas no artigo teria sido alvo do recalque. Assim, de certa maneira,
metapsicológico “O recalque” (Freud, 1915/1998a), ela amplia a concepção freudiana de processo primário.
o recalque primordial consistiria na não inclusão de certas Para Freud, a suscetibilidade de consciência
representações no pré-consciente, de forma que elas seria uma característica do pré-consciente, no entanto,
permaneceriam inconscientes e, portanto, insuscetíveis tal característica dependeria da ligação com palavras.
de consciência, desde sua origem. Essas representações Assim, Spielrein parece propor a existência de
não seriam integradas ao pré-consciente porque não processos suscetíveis de consciência, mas não ligados
chegariam a ser associadas às representações de palavras. a palavras, uma vez que o pensamento não direcionado
Nessa etapa de sua teoria, Freud considera que apenas do subconsciente (consciência lateral) não seria verbal,
as representações ligadas a palavras estariam acessíveis embora fosse suscetível de consciência. Essa é uma
à consciência, no funcionamento de vigília normal, e hipótese que Freud (1923/1998) incorpora em sua teoria
que o pré-consciente emerge a partir da constituição da alguns anos mais tarde, em “O Ego e o Id”.
linguagem. O recalque propriamente dito, por sua vez, Outra parte da consciência lateral integraria o
seria um processo que excluiria do pré-consciente – que Spielrein chama de subconsciente coletivo, ou seja,
e, portanto, do acesso à consciência – representações seria composta por memórias provenientes do passado da
que, por entrarem em contradição com os valores morais, espécie. Este subconsciente formado por hereditariedade
tivessem se tornado conflituosas e fontes de desprazer. parece ser o principal diferencial de Spielrein em relação
Tendo isso em vista, pode-se dizer que o inconsciente a Freud. Na teoria metapsicológica sobre o aparelho
seria composto pelas representações reprimidas (desde a psíquico que Freud apresenta, não parece haver nada
origem ou a posteriori) e que, portanto, permaneceriam correspondente a isso, embora, como mencionamos
“insuscetíveis de consciência” no funcionamento mental anteriormente, Freud (1923/1998) de certa maneira inclua
normal de vigília. Já o pré-consciente seria composto por esse segmento hereditário em sua segunda teoria do
representações ligadas a palavras e que, portanto, estariam aparelho psíquico desenvolvida em “O Ego e o Id”.
acessíveis à consciência, embora tivessem que superar uma O inconsciente descrito por Spielrein é identificado
censura existente entre a consciência e o pré-consciente para ao recalcado, ao barrado pela censura, devido à oposição
se tornarem efetivamente conscientes (Freud, 1917/1998). exercida pelas pulsões de autoconservação. Ela esclarece
Assim, pode-se dizer que no pré-consciente haveria dois que o que chama de inconsciente é o mesmo que Freud
tipos de representações: aquelas barradas pela última designa com tal termo, embora, em nenhum momento
censura e aquelas não barradas, que poderiam alcançar mencione a hipótese freudiana de um recalque primordial
a consciência. O pré-consciente, entre outras funções, e se refira ao recalque como um processo semelhante ao
seria responsável pela outra censura, que estaria na base que Freud denominou recalque propriamente dito.
do processo do recalque propriamente dito4. A concepção de Spielrein sobre a relação
As características do pensamento direcionado, intercambiável entre o consciente e o subconsciente,
que Spielrein atribui à consciência, se aproximam das uma vez que a consciência simbolizaria o subconsciente
características do processo secundário descrito por e vice-versa, não parece ter paralelo na teoria freudiana.
Freud, de forma que a autora confere à consciência uma De acordo com esta, podemos dizer que o pré-consciente
característica que, para Freud, seria do pré-consciente. e o consciente simbolizariam o inconsciente, mas não
que o inconsciente simbolizaria a consciência e o pré-
4 Uma análise detalhada das concepções freudianas sobre o aparelho consciente. Encontramos aí também uma concepção
psíquico pode ser encontrada em Caropreso (2010). original da autora.

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Fátima Caropreso
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Considerações finais à sua teoria sobre o simbolismo. Apesar da tentativa de
integração das hipóteses de Freud e Jung, a teoria elaborada
Nas cartas a Jung que analisamos, Spielrein tenta por Spielrein apresenta uma originalidade, que justifica
integrar algumas das ideias elaboradas em seus textos maior destaque na história da psicanálise.
iniciais com as hipóteses que Freud defendia na época Como comenta Cromberg (2014), a formulação
sobre o aparelho psíquico, assim como com alguns conceitos teórica que Spielrein elabora nas cartas, em especial a
de Jung. Entre os últimos, destacam-se os conceitos de introdução da concepção de subconsciente e subliminar,
pensamento direcionado e não direcionado, da existência de marca seu pensamento próprio como psicanalista em relação
material psíquico que transcende às experiências pessoais à tópica e à dinâmica do aparelho psíquico freudiano. Tais
e a questão do caráter prospectivo do psiquismo.. A autora hipóteses constituíram a alavanca que lhe permitiu formular,
dialoga com as teorias desses autores e procura mostrar nos anos subsequentes, uma conceitualização pioneira e
que, em muitos pontos, elas não são inconciliáveis. Com o original sobre o surgimento e a função da linguagem,
conceito de subconsciente, a autora desenvolve as concepções além de uma teoria própria sobre a formação do símbolo
de psique do eu e a psique da espécie, formulados em seu e sobre o pensamento, a qual viria a ser desenvolvida nos
texto sobre a destruição, e, a partir disso, dá continuidade anos seguintes, com a colaboração de Jean Piaget.

Sabina Spielrein’s theoretical views in her letter to Carl Gustav Jung (1917-1918)

Abstract: There has been recently an increasing acknowledgement of the originality and pioneering character of the theoretical
and clinical views proposed by the Russian psychoanalyst Sabina Spielrein. However, few studies were so far specifically
dedicated to the analysis of her theories. Besides her published work, the letters Spielrein exchanged with Jung between 1917
and 1918 contain rich theoretical reflections that allow for a better understanding of her thought and the hypotheses she
was about to formulate in the following years. This article aims at analyzing the concepts of symbolism and subconscious that
Spielrein presents in her letters to Jung from the period mentioned above. It is argued that, with these concepts, Spielrein
further develops the theory she had begun to formulate in her early publications and attempts to integrate her own hypotheses
with some ideas of Freud and Jung. This integration, in turn, results in the elaboration of an original theory of the psyche.

Keywords: history of psychoanalysis, Sabina Spielrein, mental functioning, symbolism, subconscious.

Les hypothèses théoriques de Sabina Spielrein dans ses lettres à Carl Gustav Jung (1917-1918)

Résumé: Il y a une reconnaissance croissante de l’originalité et du caractère pionnier des propositions théoriques et cliniques
de la psychanalyste russe Sabina Spielrein. Cependant, il y a encore peu d’études consacrées spécifiquement à l’analyse de
sa théorie. En plus de ses publications, les lettres de Spielrein à Jung entre les années 1917 et 1918 contiennent des riches
réflexions théoriques qui contribuent à une meilleure compréhension de sa pensée et des hypothèses qu’elle formulera dans
les années suivantes. Cet article vise à analyser les idées sur le subconscient et le symbolisme que Spielrein présente dans sa
correspondance avec Jung dans la période mentionnée. Nous cherchons à monter qu’avec ces concepts, Spielrein poursuit
la théorie qu’il avait commencé à formuler dans ses premières publications et essaie d’intégrer ses propres hypothèses à
certaines idées de Freud et de Jung, ce qui aboutit à l’élaboration d’une théorie originale de la psyché.

Mots-clés: histoire de la psychanalyse, Sabina Spielrein, fonctionnement mental, symbolisme, subconscient.

Las hipótesis teóricas de Sabina Spielrein en sus cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)

Resumen: Recientemente, ha ocurrido un creciente reconocimiento de la originalidad y del carácter pionero de las
propuestas teóricas y clínicas de la psicoanalista rusa Sabina Spielrein. Sin embargo, todavía son pocos los estudios dedicados
específicamente al análisis de su teoría. Además de sus publicaciones, las cartas que había enviado a Jung entre los años 1917 y
1918 contienen ricas reflexiones teóricas, que contribuyen a una mejor comprensión de su pensamiento y de las hipótesis que
iba a formular en los años siguientes. Este artículo tiene como objetivo analizar las ideas sobre el subconsciente y el simbolismo
que Spielrein presenta en la correspondencia con Jung en el período mencionado. Se busca demostrar que con estos conceptos
la psicoanalista continúa la teoría que había comenzado a formular em sus primeras publicaciones e intenta agregar sus propias
hipótesis con algunas ideas de Freud y Jung, lo que resulta en la elaboración de una teoría original de la psique.

Palabras clave: historia del psicoanálisis, Sabina Spielrein, funcionamiento mental, simbolismo, subconsciente.

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As hipóteses teóricas de Sabina Spielrein nas suas cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
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