As Hipoteses Teoricas de Sabina Spielrein Nas Suas
As Hipoteses Teoricas de Sabina Spielrein Nas Suas
As Hipoteses Teoricas de Sabina Spielrein Nas Suas
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Artigo
As hipóteses teóricas de Sabina Spielrein nas suas
cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
Fátima Caropreso*a
a
Universidade Federal de Juiz de Fora, Departamento de Psicologia. Juiz de Fora, MG, Brasil
Resumo: Tem havido um crescente reconhecimento da originalidade e do caráter pioneiro das propostas
teóricas e clínicas da psicanalista russa Sabina Spielrein. No entanto, ainda são poucos os estudos dedicados
especificamente à análise de sua teoria. Além de suas publicações, as cartas que Spielrein enviou a Jung entre
1917 e 1918 contêm ricas reflexões teóricas, que contribuem para uma melhor compreensão do seu pensamento
e das hipóteses que ela viria a formular nos anos seguintes. Este artigo tem como objetivo analisar os conceitos de
subconsciente e de simbolismo que Spielrein apresenta na correspondência com Jung do período mencionado.
Procuramos mostrar que, com esses conceitos, a autora dá continuidade à teoria que começara a formular em suas
primeiras publicações e tenta integrar suas próprias hipóteses a algumas ideias de Freud e Jung, o que tem como
consequência a elaboração de uma teoria original sobre o psiquismo.
Apesar da originalidade das propostas teóricas esquizofrenia”, Spielrein (1911/2014) analisa o caso de
e clínicas da psiquiatra e psicanalista russa Sabina uma paciente que apresentava um quadro de demência
Nikolaevna Spielrein (1885-1942) e de seu pioneirismo paranoide e, a partir deste, formula algumas hipóteses
em várias áreas, durante um extenso período ela sobre a esquizofrenia e o funcionamento mental em
permaneceu no esquecimento. Com a publicação, em geral. As ideias aí elaboradas são desenvolvidas em sua
1974, da correspondência entre Freud e Jung, em que é segunda publicação, “A destruição como origem do devir”
várias vezes mencionada, ela começou a reemergir para (Spielrein, 1912/2014). Nas cartas que Spielrein envia a
a história da psicanálise (Ovcharenko, 1999). No entanto, Carl Gustav Jung entre 1917 e 1918, ela retoma e reformula
o interesse pela autora se intensificou principalmente após suas concepções sobre a dinâmica e a estrutura mental
a publicação do livro Diário de uma secreta simetria: elaboradas em seus dois textos iniciais. Encontramos, nas
Sabina Spielrein entre Jung e Freud (Carotenuto, cartas, ricas reflexões teóricas de Spielrein e Jung, as quais
1980/1984). O interesse por Spielrein despertado a partir contribuem para uma melhor compreensão do pensamento
da publicação de Carotenuto se concentrou especialmente, teórico da autora e da teoria que ela viria a formular nos
a princípio, em sua biografia, de forma que o seu papel anos seguintes. Este artigo tem como objetivo analisar
como clínica inovadora e criadora de conceitos inéditos as ideias sobre o funcionamento mental e o simbolismo
no campo psicanalítico permaneceu em segundo plano, que Spielrein formula na correspondência com Jung do
como comenta Cromberg (2012). Embora a situação esteja período mencionado e discutir de que maneira essas
sendo revertida nos últimos anos com a publicação de hipóteses se relacionam com aquelas apresentadas em seus
trabalhos que enfocam, principalmente, sua produção textos de 1911 e 1912. Busca-se também apontar alguns
teórica (Caropreso, 2016, 2017a, 2017b; Cooper-White, pontos de convergência e divergência com as concepções
2015; Covington & Wharton, 2003; Cromberg, 2014; de Freud, que permitem vislumbrar a originalidade das
Harris, 2015; Noth, 2015; Santiago-Delefosse & Delefosse, ideias de Spielrein. Iniciamos com uma exposição sucinta
2002; Skea, 2006; Vidal, 2001), ainda são poucos os de algumas das principais ideias desses seus dois textos
estudos especificamente dedicados à análise de seu e, em seguida, passamos ao comentário das cartas.
pensamento, que permitam compreender a complexa
teoria por ela elaborada e avaliar a sua importância para As formulações iniciais de Spielrein sobre
a história da psicanálise e da psicologia. Esse contexto a vida mental
justifica a realização de estudos voltados à análise de
suas propostas teóricas. No texto “Sobre o conteúdo psicológico de um
Em seu primeiro trabalho publicado, intitulado caso de esquizofrenia”, Spielrein (1911/2014) argumenta
“Sobre o conteúdo psicológico de um caso de que o ser humano possui uma vivência consciente e outra
inconsciente e que a última é a responsável pela criação
* Endereço para correspondência: [email protected] da tonalidade afetiva da primeira. Temos a impressão de
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e180035
Fátima Caropreso
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que os afetos relacionados às nossas vivências conscientes “vivências” anteriores de inúmeras gerações. A expressão
decorrem delas mesmas, no entanto, na verdade, seria “trecho tosco” do trabalho é extraída, por analogia, de
a vivência inconsciente, a ela ligada, a responsável pelo outro conteúdo representacional, o de aplainar madeiras.
tom afetivo experienciado, argumenta a autora. No consciente, o sentido da expressão é adequado ao
No texto “Psicanálise e o experimento de presente, sendo, portanto, diferenciada em relação a sua
associações”, Jung (1906/2011) apresenta a hipótese da origem. No entanto, o inconsciente volta a emprestar às
mente constituída por “complexos”, que seriam unidades palavras o seu significado original do pedaço áspero/
funcionais superiores formadas por várias moléculas, tosco de madeira que é aplainado. Dessa forma, o ato
as quais, por sua vez, seriam compostas por agregados presente de melhorar o trabalho é transformado no ato
de percepções sensoriais, componentes intelectuais e já realizado muitas vezes (pelos nossos ancestrais) de
tonalidades afetivas. A integração dessas moléculas nos aplainar madeira, explica a autora.
complexos ocorreria de acordo com determinada tonalidade Dessa forma, o consciente se diferenciaria do
afetiva, de forma que eles seriam agrupamentos de ideias inconsciente, ao passo que este último dissolveria e
inconscientes associadas a eventos ou temas carregados assimilaria a experiência consciente em vivências
afetivamente. Em seus textos de 1911 e 1912, Spielrein anteriores que transcenderiam o âmbito da experiência
adota a hipótese de Jung da mente composta por complexos. individual. Nesse processo, uma experiência pessoal seria
Segundo a autora, os complexos inconscientes transformada em uma experiência da espécie, de forma
constelados é que criariam a tonalidade afetiva de nossas que as características pessoais seriam eliminadas, ou seja,
experiências conscientes. No entanto, esse material o “eu” seria dissolvido no “nós” (Spielrein, 1912/2014).
inconsciente, em última instância, seria proveniente do Em “A destruição como origem do devir”,
passado da espécie. Ela mostra como as fantasias de sua Spielrein (1912/2014) propõe uma diferenciação entre
paciente esquizofrênica apresentavam um conteúdo mítico uma “psique da espécie” – que conteria registros de
e traziam à tona vivências de inúmeras gerações. A autora experiências de inúmeras gerações – e uma “psique do
sustenta, então, que “herdamos também a sedimentação eu” – que conteria os registros mnêmicos provenientes da
das vivências de nossos ancestrais” (Spielrein, 1911/2014, experiência individual. As duas psiques permaneceriam
p. 213. Dessa forma, o inconsciente diluiria nossas em conflito, uma vez que seriam movidas por tendências
vivências presentes passadas, que ultrapassariam a opostas. A psique da espécie possuiria uma “tendência
experiência individual. Esse processo de dissolução à dissolução e assimilação” do conteúdo individual no
estaria na base da produção dos sintomas esquizofrênicos. coletivo, a qual seria expressão psíquica das pulsões de
Spielrein (1911/2014) argumenta que sua conservação da espécie. Por outro lado, a psique do eu
contribuição para a compreensão da esquizofrenia é conteria uma “tendência à diferenciação”, que expressaria
essa “visão filogenética”. Segundo ela, embora Freud as pulsões de autoconservação.
e Jung já tivessem demonstrado a existência de um A tendência à dissolução e assimilação possuiria
paralelismo especial entre os fenômenos neuróticos componentes positivos (criativos) e negativos (destrutivos)
e oníricos e as manifestações da esquizofrenia, essa e, por isso, a psique da espécie seria transformadora. Para
perspectiva filogenética não estaria presente nas hipóteses Spielrein (1912/2014), a criação teria como condição a
formuladas pelos autores. destruição; o componente negativo seria condição para
As ideias elaboradas em “Sobre o conteúdo o surgimento de algo, de forma que não haveria criação
psicológico de um caso de esquizofrenia” (Spielrein, sem destruição e vice-versa. Nesse sentido, ela descreve
1911/2014) são desenvolvidas no texto que Spielrein escreve a tendência à dissolução e assimilação como dinâmica,
no ano seguinte, como dissemos. Em “A destruição como em oposição à tendência à diferenciação da psique do eu,
origem do devir” (Spielrein, 1912/2014), a autora sustenta que seria estática, pois visaria à inércia, a manutenção
que, embora o processo de dissolução seja evidente e do estado atual do eu. Como esta última tendência não
exacerbado nas fantasias esquizofrênicas, ele faz parte possuiria o componente negativo, destrutivo, ela não
do funcionamento mental em geral. A autora retoma a traria como consequência o novo; não seria criativa. De
hipótese de que o pensamento consciente é acompanhado acordo com as hipóteses da autora, o instinto de morte –
pelo mesmo conteúdo inconsciente, transformado de acordo um impulso destrutivo inerente ao instinto sexual, ou
com a linguagem deste último e, para ilustrar tal fenômeno, à pulsão de conservação da espécie – seria o motor da
usa exemplos de fenômenos hipnagógicos, descritos pelo tendência à dissolução da psique da espécie1.
psicanalista vienense Herbert Silberer (1909). Dessa maneira, Spielrein formula uma concepção
Um dos exemplos de Silberer mencionado é o sobre a dinâmica mental que coloca na base do psiquismo
pensamento consciente “eu quero melhorar um trecho as memórias provenientes da experiência do passado da
tosco”, o qual é acompanhado por um pensamento espécie e a tendência desta a se sobrepor às vivências atuais.
simbólico no qual o indivíduo se vê “aplainando um
pedaço de madeira”. Spielrein (1912/2014) comenta 1 Para uma compreensão mais pormenorizada do conceito de instinto de morte
que esse exemplo ilustra como a linha de pensamento de Spielrein e das suas diferenças em relação ao conceito freudiano de pulsão
adequada ao presente é adaptada, no inconsciente, às de morte, ver Cromberg (2014), Caropreso (2016) e Caropreso (2017b).
Sabina Spielrein’s theoretical views in her letter to Carl Gustav Jung (1917-1918)
Abstract: There has been recently an increasing acknowledgement of the originality and pioneering character of the theoretical
and clinical views proposed by the Russian psychoanalyst Sabina Spielrein. However, few studies were so far specifically
dedicated to the analysis of her theories. Besides her published work, the letters Spielrein exchanged with Jung between 1917
and 1918 contain rich theoretical reflections that allow for a better understanding of her thought and the hypotheses she
was about to formulate in the following years. This article aims at analyzing the concepts of symbolism and subconscious that
Spielrein presents in her letters to Jung from the period mentioned above. It is argued that, with these concepts, Spielrein
further develops the theory she had begun to formulate in her early publications and attempts to integrate her own hypotheses
with some ideas of Freud and Jung. This integration, in turn, results in the elaboration of an original theory of the psyche.
Les hypothèses théoriques de Sabina Spielrein dans ses lettres à Carl Gustav Jung (1917-1918)
Résumé: Il y a une reconnaissance croissante de l’originalité et du caractère pionnier des propositions théoriques et cliniques
de la psychanalyste russe Sabina Spielrein. Cependant, il y a encore peu d’études consacrées spécifiquement à l’analyse de
sa théorie. En plus de ses publications, les lettres de Spielrein à Jung entre les années 1917 et 1918 contiennent des riches
réflexions théoriques qui contribuent à une meilleure compréhension de sa pensée et des hypothèses qu’elle formulera dans
les années suivantes. Cet article vise à analyser les idées sur le subconscient et le symbolisme que Spielrein présente dans sa
correspondance avec Jung dans la période mentionnée. Nous cherchons à monter qu’avec ces concepts, Spielrein poursuit
la théorie qu’il avait commencé à formuler dans ses premières publications et essaie d’intégrer ses propres hypothèses à
certaines idées de Freud et de Jung, ce qui aboutit à l’élaboration d’une théorie originale de la psyché.
Las hipótesis teóricas de Sabina Spielrein en sus cartas a Carl Gustav Jung (1917-1918)
Resumen: Recientemente, ha ocurrido un creciente reconocimiento de la originalidad y del carácter pionero de las
propuestas teóricas y clínicas de la psicoanalista rusa Sabina Spielrein. Sin embargo, todavía son pocos los estudios dedicados
específicamente al análisis de su teoría. Además de sus publicaciones, las cartas que había enviado a Jung entre los años 1917 y
1918 contienen ricas reflexiones teóricas, que contribuyen a una mejor comprensión de su pensamiento y de las hipótesis que
iba a formular en los años siguientes. Este artículo tiene como objetivo analizar las ideas sobre el subconsciente y el simbolismo
que Spielrein presenta en la correspondencia con Jung en el período mencionado. Se busca demostrar que con estos conceptos
la psicoanalista continúa la teoría que había comenzado a formular em sus primeras publicaciones e intenta agregar sus propias
hipótesis con algunas ideas de Freud y Jung, lo que resulta en la elaboración de una teoría original de la psique.
Palabras clave: historia del psicoanálisis, Sabina Spielrein, funcionamiento mental, simbolismo, subconsciente.
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