A Teoria Da Sexualidade

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15.

A Teoria da Sexualidade

O acolhimento quase favorável concedido à Psicopatologia


da Vida Quotidiana parecia abrir à psicanálise uma nova era de divul-
gação pacífica; este esboço de reconciliação não teve, porém, segui-
no ano seguinte, os Trés Ensaios sobre a Teoria
mento, uma vez que,
da Sexualidade vieram comprometer por muito tempo as relações de
sido
Freud com o público. Enquanto a Interpretação dos Sonhos tinha
considerada como um tecido de quimeras ou de absurdos contos da
os Três Ensaios fizeram abertamente
escândalo e Freud
avózinha,
obsceno e perigoso. Indubitavel-
passou de pseudo-sábio a espírito
e tanto ódio.
mente, nenhum dos seus livros atraiu tanta tolice
**Os titulos dos Três Ensaios - "As Aberrações Sexuais", "A
bastam
Sexualidade Infantil", "As Transformações da Puberdade"
-

de outro
para fazer compreender o motivo da indignação geral, que
modo seria difícil de compreender. Fosse qual fosse a hipocrisia da
seguramente grande a sexualidade
-

época sobre este capítulo -

e era
não podia, apesar de tudo, ser totalmente afastada da ciência: quises-
Se-se ou não, a sexologia existia e obras como a Psychopathia sexualis
de Krafft-Ebing haviam-no provado sem grande alvoroço. Não era

poiS propriamente o fato de se falar do assunto que indignava,


mas

de perversões e
Sim o fato de Freud, rompendo com os catálogos entre o nor-
aberrações próprias da sexologia, abolir toda a fronteira
mal e o perverso e, sobretudo, entre a sexualidade do adulto e a pre
TOnsa inocência da criança. Por muito que descrevesse e classificasse
leitor
anomalias, a nada tinha de inquietante, uma vez que o
sexologia
normal encontrava nela a prova da sua saúde. Pelo contrário, os Três
Ensaios de Freud ofereciam uma imagem revoltante, onde o homem

recusava reconhecer-se a si próprio.


A REVOLUÇÃO PSICANALÍTICA
158
sexualidade surgindo, íntegra e cheia
***A idéia convencional da
momento da vida
humana -

a puberdade
de normas, em determinado
tendendo para
instinto sexual original
Freud opunha a noção de um
destinado a passar por
anos de vida e
a satisfação desde os primeiros
intermediários antes de se
orientar para a
toda a espécie de estádios
um considerável alarga
reprodução. Esta concepção pressupunha libertada da
sexualidade, que, em parte
mento do próprio conceito de
Sua estreita dependência dos órgãos genitais,
passava a ser uma fun-
do ser e suscetível, como ele, de
ção corpórea abrangendo o conjunto
fatos sexuais consi-
complicada evolução. Permitia também abranger
dizíam respeito às
derados até então anormais ou inexistentes o s que
classificar os fenômenos
crianças pretensos "perversos" e -

e aos
aberrantes, já não em função do modo mais ou menos chocante pelo
qual se afastam da norma, mas em função da evolução da libido, cuja
interrupção precisamente assinalm em cada caso.
* O objetivo de Freud nos Três Ensaios não é definir a sexuali-
dade, mas demonstrar, através do estudo das perversões e das neuro-
ses, que a definição usual só dá conta da realidade desde que recuse
existência aos numerosos casos aberrantes. Dizer que a sexualidade
tem por fim a união carnal de duas pessoas de sexo oposto, de acordo
com a definição corrente, é excluir o estudo de todos os desvios que
provam precisamente que, por natueza, o instinto sexual não está
obrigatoriamente ligado a um fim ou objeto amoroso definido como
norma. Freud propõe-se, pelo contrário, estudar a sexualidade normal
a partir desses desvios
freqüentes em que o instinto tão notavelmente
se liberta da sua pretensa finalidade.

**Depois de ter classificado


perversões em dois grupos, as
conforme respeitam
companheiro designado como
ao

homossexualidade ou ao fim- e é o caso objeto


-

e éo caso da -
erótico
do fetichismo,
do exibicionismo e do voyeurisme, do sadismo e do
- Freud verifica que, até certo masoquismo etc.
ponto, todas elas existem
indivíduo normal. A
na atividade do
homossexualidade, diz, dificilmente merece a de-
signação de perversão, pois resulta de uma constituição bissexual
é comum a todos e não há que
neuropata em que a análise não permita
descobrir uma parte de inverso na escolha do
às outras objeto sexual. Quanto
perversões, às que mais contrárias parecem à natureza e
normalmente provocam averso, eis o
que diz Freud:
São talvez
perversões mais repugnantes que melhor atestam a
as
ção do psiquismo transformação da tendência
na participa-
o resultado, nelas se
verifica uma participação da sexual. Por horrível que seja
ponde a uma idealização da tendência atividade psíquica que
manifesta tão fortemente como nestas sexual. Nunca a onipotência do amor se
corres
existência das relações mais întümas entreperversões.
o
Constantemente se revela a
há na de
que mais elevado
sexualidade.. Do céu- passando pelo mundo e de mais baixo
-
até ao inferno...1
1. Trois essais la
sur théorie de la
1925, pp. 54 e 55. sexualité, trad. Dr. Reverchon, Gallimard,
A PSICOPATOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA 159

***A análise dos neuropatas põe normalmente a descoberto ten-


dências perversas relativas, quer ao fim sexual, quer à escolha do ob-
jeto amoroso. A única diferença entre o perverso e o neurótico é que
um satisfaz os seus
desejos na realidade, ao passo que o outro, domi-
nado pelo pudor, pelo
nojo, por um sentimento inconsciente de culpa,
os
recalca tal modo que só em pensamento os pode realizar. Assim
de
se justifica a célebre fórmula de Freud, segundo a qual a perversão éo
negativo da neurose. O destino sexual do indivíduo, que dele faz tão
depressa um perverso como um neurótico ou um homem normal e, na
maioria das vezes, uma personalidade mista onde coexistem estes três
tipos psicológicos, é determinado ao me smo tempo por disposições
constitucionais e pelas circunstâncias, de certo modo históricas, que
precocemente presidiam ao desenvolvimento da psique.
*
Oproblema da sexualidade infantil ocupa todo o segundo ca-
pítulo, que é de longe o mais original. Freud começa por indagar a ra-
zão pela qual o problema passa em geral desapercebido, quando não é
pura e simplesmente negado. E que a grande maioria dos homens es-
quece radicalmente os primeiros anos da sua existëncia e, com eles, as
violentas emoções da primeira infância, tão decisivas
para a formação
da personalidade. Esta amnésia geral explica o fato de a atividade se-
xual das crianças, apesar de facilmente observável, ter sido durante
tanto tempo ignorada pelos educadores e pelos pais.
**
A partir
do nascimento, a criança acha-sé
apta a experimen-
tar sensações voluptuosas; os seus instintos sexuais desenvolvem-se
progressivamente até os quatro anos de idade, conhecendo a seguir,
até, a puberdade, uma interrupção, um apaziguamento, um período de
estagnação, que vai dos cinco aos onze anos de idade. E aquilo a que
Freud chama perlodo de latência, retomando um termo
proposto por
Fliess. Tal interrupção, mais ou menos total em função dos indivíduos,
parece ser privilégio distintivo do pequeno animal humano. Está na
origem do notável processo a que se dá o nome de sublimação e pelo
qual os instintos sexuais sem exercício podem ser desviados do seu
fim e posto ao servigo de toda a espécie de atividades criadoras úteis à
sociedade. A sublimação é, com a realização sexual normal, a perver-
são e a neurose, uma das grandes soluções possíveis da evolução da li-
bido, por natureza sujeita a uma quantidade de riscos e dramatica-
mente complicada.
***A ligação entre as perversões e a sexualidade infantil é esta-
belecida pela concepção dos instintos, preferentemente designados
pelo termo pulsQes, equivalente à palavra alemá Trieb, que é insus-
cetível de tradução exata. As pusões distinguem-se entre si e ga-
nham caráter específico em função da sua fonte e fim. A
primeira
consiste sempre em uma excitação proveniente de uma parte do çor-
po. O fim é apaziguamento de tal excitação. O corpo compreende
"zonas erógenas" - assim chamadas por analogia com as "zonas his-
160 A REVOLUÇÃO PSICANALÍTICA

terógenas", freqüentemente referidas a propósito da histeria que


constituem centros de sensação eróticas. No lactante, estas zonas co-
brem praticamente todo o corpo. Algumas há, porém, que são sempre
mais sensíveis do que as outras, por exemplo os orifícios alimentares e
os órgãos genitais.
*
Dado o seu insuficiente desenvolvimento, os órgos genitais
da criança desempenharam um papel relativamente fraco nas mani-
festações precoces da sexualidade infantil. Essa foi a origem do mal-
entendido entre Freud e os seus censores, que davam à palavra sexua-
o sentido que Freud reserva
lidade para o último estágio de desenvol-
vimento: o da genitalidade realizada. Antes de se orientar para a re
produção, a libido encontra o seu meio de expressáão e realização em
funções orgânicas não sexuais, mas essenciais à manutenção da vida.
Assim, o lactante tira prazer da absorço dos seus alimentos, que, se
por um lado suprime a tensão doloiosa da fome, por outro lado se. faz
acompanhar por uma sucção em si mesma voluptuosa. Seguindo neste
particular outros autores, Freud vê na sucção o primeiro prazer sexual
da criança..
Diremos que os lábios da criança desempenham o papel de zona erógena e
que a excitação provocada pelo afluxo de leite quente provoca prazer. Inicial-
mente, a satisfação da zona erógena encontra-se estreitamente ligada ao apazi-
guamento da fome. A atividade sexual começa por se apoiar em uma função que
visa a conservação da vida e só mais tarde se torna independente. Ao vermos a
criança satisfeita abandonar o seio, cair nos braços da me e depois, com as faces
vermelhas, adormecer com um sorriso feliz, não podemos impedir-nos de dizer
que esta imagem constitui o modelo e a expressão da satisfação sexual que virá a
conhecer mais tarde. Mas em breve a necessidade de
da necessidade de nutrição e a
satisfação sexual se separará
separação tornar-se-á inevitável a partir do perfo-
do da dentinção, durante o qual os alimentos
deixarão de ser exclusivamente
mamados para passarem a ser
mastigados. Neste momento, a criança suga um
objeto exterior ao seu corp0, mas uma parte da sua própria
sfvel, tormando-se assim independente do mundo exterior epiderme, mais aces-
que ainda não está
a dominar; além
disso, cria deste modo nova zona erógena, de menor valor apta
tudo que a primeira. A insuficiência desta con-

levará a criança a procurar uma segunda zona será uma das razões
que
parte de valor equivalente: os lábios de outra
pessoa. Como se dissesse: "Infelizmente, não
posso beijar-me"...
**A esta
fase de organização,
papel prepoderante nela desempenhadodenominada oral por causa do
boca, sucede, pelas mucosas dos e da lábios
sem todavia lhe pôr completamente fim,
fase onde a zona
erógena essencial é outro orifício alimentar: o ânus.
uma segunda
Esta segunda
fase, denominada "sádico-anal"
comportamento agressivo da criança apresenta porque ligada a um
características que a primeira: exatamente as mesmas
apóia-se
essencial, o seu fim é determinado
em uma
função fisiológica
e é
auto-erótica porque dispensa pela atividade de uma zona erógena
qualquer "objeto" sexual. O erotis-
2. ld., pp. 85 e ss.
A PSICOPATOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA 161

mo anal, ligado principalmente à retenção das matérias fecais, que


provoca uma excitação aguda da mucosa, é chamado a desempenhar
um papel decisivo na formação ulterior do caráter.
***Dada a falta de maturidade dos órgâos correspondentes, a
atividade propriamente genital da criança só pode ter livre curso sob a
forma de onanismo infantil, cujo aparecimento e desaparecimento
correspondem a fases distintas. A primeira fase tem lugar no período
de aleitamento; a segunda durante o curto período em que, pelos qua-
tro anos de idade, a criança se desenvolve sexualmente; a terceira, fi-
nalmente, a única que desde sempre reteve a atenção dos observado-
res, no momento da puberdade. Entre os dois e os cinco anos, todavia,
não é raro que a criança experimente atração erótica por determinada
pessoa do seu meio. E o que faz deste período, apesar do caráter in-
certo da escolha do objeto, um dos mais importantes dos que prece-
dem a formação sexual definitiva.
*
Assim, durante os primeiros anos de vida, a criança encontra
em si mesma a fonte do seu prazer e a sua necessidadedesatisfação
não conhece leis nem freio. Desprovida no mais alto grau de pudor,
gosta de se ex+bir e descobrir o corpo dos outros,consegue tirar pra-
zer tanto do sofrimento que inflige como daquele queexperimenta, é,
como muitas vezes se disse já, cruel por natureza e sem piedade. Tudo
se passa, em suma, como se possuísse uma disposição inata para a per-
versão -e até para as formas de perversão que mais revoltam a estéti-
ca e a moral. A única diferença entre a criança e o adutlo pervertido é
que a primeiraestádisponfvel
para todas as espécies de satisfação que
se lhe oferecem, enquanto o segundo está efetivamente_fixado em
determinado desvio. E o que exprime a célebre fórmula de Freud que
define
acriança como um "perverso polimorfo".
**
Nenhuma das suas idéias provocou tanto alvoroço e levantou
tantos prolestos indignados como esta definição, no entanto clara-
mente isenta de qualquer juízo moral. Freud foi acusado de sujar a
sagrada pureza da criança e caluniar o homem, substituindo a bem-
aventurada inocência dos primeiros anos por uma história sombria te-
cida de inconcebíveis horrores. Procedendo assim, esquecia-se natu-
ralmente que, muito antes dele, escritores sinceros e
corajosos
3. Essa 6 a origem de todos os mal-entendidos relativos à
éica freudiana e
a filosofia inerente à
psicanálise. Freud não negava a moral nem as aspirações es-
pirituais do homem, apenas pretendia não se lhes referir, pensando que outros
disso se encarregavam e continuariam a
encarregar depois dele. A regra de Freud,
exclusivamente pedagógica, consistia em suspender o conceito moral e recusar
sínteses prematuras -

regra que muitos, até entre os seus, achavam dura.


Ludwig
Binswanger (op. cit., p. 98) conta que um dia ficou absolutamente estupefado ao
ouvi-lo dizer que '"O espírito 6 tudo...",
logo acrescentando que "A humanidade
soube desde sempre que tem um
tem instintos... Mas os
espírito. O meu papel é demonstrar
que tambén
homens, sempre insatisfeitos,
não sabem esperar e querem
todas as coisas sempre inteiras e
acabadas..".
A REVOLUÇÃO PSICANALÍTICA
162
- Schopenhauer e Rousseau, por exemplo - tinham, por seu lado, des.

coberto estranhas coisas nesse paraiso iniantl tao necessário à moral


burguesa e às convenções da poesia. Não se via também -- mas sem
dávida porque não se queria ver -que uma déia proposta como ins
trumento de trabalho, para uso de certo modo laboratorial, não impli-
ca necessariamente a moralidade do seu in ventor nem tem que con-
cordar com os seus próprios desejos e delicadeza de sentimentos.
Freud, que descreveu mais tarde a análise de um menino de cinco anos
- o célebre pequeno Hans com um amor, uma ternura e um respeito
que seriam de desejar a todos os seus críticos, viu-se condenado a
passar habitualmente por um monstro e renunciar a ser compreendido.

***Referindo-me às controvérsias da época, espanta-nos que


tantas pessoas se tenham sentido indignadas e tão poucas tenham sido
sensíveis à descriço freudiana deste grandioso combate pela maturi-
dade e pela saúde em que a criançase
vêforçosamente comprometida
desde o alvorecer da vida, Mais fraco e desarmado do
que o pequeno
animal a que ainda se assemelha, a criança tem de defrontar uma
quantidade de provas nas quais, dada a natureza inacabada da sua or-
ganização e a fraqueza dos seus meios, vê incessantemente
se
ameaça
da de falhar ou ter um éxito apenas parcial. Uma vez nascida, a vida
impõe-lhe tarefas difíceis e exige-lhe realizações e renúncias para as
quais nem o seu desenvolvimento físico nem a sua organização mental
he fornecem instrumentos
adequados.
Assim, cada vez que é preciso adaptar-se a
criança tem de
um novo estado, a
renunciar à felicidade do
que Ihe custa tanto mais abdicar
estado anterior, felicidade de
quanto mais completa era e
maior era o sentimento de quanto
segurança absoluta proporcionado pelo
prazer que dela resultava.
Depois de se ter desligado do seio materno,
por vezes não sem
sofrimento, 6-lhe necessário tornar-se
, renunciar às
satisfações intensas lhe
asseada, isto
dutos do
próprio corpo, substituindo a
que proporcionavam os pro-
a liberdade
pelo pudor e pelo primeira atração pelo nojo e
as suas
relações com os pais são constrangimento. Um pouco mais tarde,
que lhe faz viver o seu perturbadas pelo complexo de Edipo,
dade da primeiro amor e o seu primeiro ódio. A
grande parte do modo de solução felici-
sua vida
depende em
conflito primitivo em deste
Ihe e que é o único a lutar. E, do
possível amadurecer mesmo modo que
desligando-se so
que amou, também só pouco a pouco dos objetos
Viando a sua atinge o pleno desenvolvimento
para a fazer
curiosidade da
sexualidade, que era a sua
intelectual des-
nao
incindir nos múltiplos
objetos do mundo. A
primeira cau_a,
senão
custa de
a última
destas etapas, puberdadea
dolorosas
cente na esfera
superadas
renúncias. Começa por colocar intermitëncias
por
erótica de novo o
rar-se pela da infância, da
qual contudo é adoles
que proibição
deambula solitário
do incesto. Como o
a forçado sepa-
herói dos contos de fadas,
por uma floresta encantada, só galga a sua
ar
A PSICOPATOLOGLA DA VIDA QUOTIDIANA 163

riscada passagem quando consegue abandonar a casa paterna sem nela


deixar seu coração nem olhar para trás.
**Ao considerar esta lenta evolugão que tantos obstáculos
ameaçam desviar, sentir-nos-emos tentados a admirar os indivíduos
que conseguem realizá-la até o fm sem muitos incidentes, tornan
do-se seres equilibrados, capazes de amor e de livre disposição das
suas possibilidades de ação e de pensamento. Aos olhos do psicanalis-
ta, tais indivíduos são evidentemente raros; são aqueles que conse-
guiram fundir em um conjunto harmonioso as tendéncias indestrutd-
veis da sexualidade infantil e pô-las a serviço da totalidade dasua vida
afetiva. Quanto aos outros, cujo desenvolvimento parou ou retroagiu
em conseqüência de predisposições constitucionais, acidentes fami-
liares e todo o g¿nero de causas complexas, constituem casos patolð-
gicos mais ou menos graves a menos que dotados para transformar a
sua dificuldade de existir em uma obra, ação ou pensamento gerador
de belezae de cultura.
**Os Trés Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade não são senão
a primeira pedra do edifício cm que Freud rabalhou toda a vida. A
edição de 1905 foi, aliás, constantemente aumentada através dos anos
e Freud veio a retomar as idéias ncla contidas em obras ulteriores, por
exemplo nas primeiras conferéncias e na sua autobiografia. Certos
problemas formulados nos Três Ensaios só muito mais tarde foram
resolvidos e idéias que Freud ncles havia rejeitado sem as aprofundar
constituíram o ponto de partida de numerosos trabalhos dos seus alu-
nos, mas o livro permaneceu o que sempre tinha sido: o fundamento
inabalável da teoria. O tempo não só não o afetou como também con-
firmou, até nos mais pequenos pormenores, a exatidão das opiniões
nele expressas.
* Efetivamente, há mais de cinqüenta anos que inumeráveis
observações diretamente praticadas nas crianças, especialmente nos
lactantes, vêm confirmando regularmente os surpreendentes resulta-
dos a que Freud inha chegado através da simples análise de doentes
adultos. O que em 1905 passava por resultado de uma imaginação
pouco s, é hoje admitido pelos especialistas e até por grande parte da
opinião pública como uma incontestável verdade científica. Estes Trés
Ensaios tão desacreditados são uma das causas diretas da transforma-
çãoirreversiel produzida,no decurso do úlimo meio século, tanto na
educação da criança como nos métodos da pedagogia. Os detratores
de Freud não podiam ter melhor desmentido.
**As anáises de crianças começaram por volta de 1908. O
pastor suíço Oskar Pfister, que foi o primeiro a praticá-las, concebeu
uma pedagogia inspirada nas teorias freudianas, a que deu o nome de

4. Introduction à la Psychanalyse, trad. Jankélévitch, Payot, 1922, cf. caps.


XX, XXI, XXII.
A REVOLUÇÃO PSICANALÍTICA
164
entusiasmno toda a sua vida.
dedicou com fé e
"pedanálise" que e a
homem a quem chamava seu
Falamos já da amizade
de Freud por este
das circunstâncias, esti-
embora, por força
"bom homem de Deus", Pfister era teólogo e fi-
todas as suas idéias.
vesse longe de partilhar
conservou-se ardente
e verdadeirae nunca
lósofo; a sua fé religiosa
com as suas convicções freudianas, as quais, no
entrou em conflito
tarde a graves atritos com os seus superio-
entanto, deram lugar mais à vida, a
o seu amor
res eclesiásticos.
Freud admirava infinitamente
Dedicou imediatamente interesse muito um
sua o seu vigor.
alegria,
embora fosse ainda bastante cé-
vivo aos seus trabalhos pedagógicos,
teoria. A partir de 1908, tendo
tico quanto às aplicações práticas da
Delirantes e o Suicidio
Pfister publicado um artigo sobre as "Idéias
vez sobre o as-
dos Estudantes", Freud escreveu-lhe pela primeira
sunto:

as nossas investi-
Quero falar-lhe também da minha satisfação por ver que
gaçoes psiquiátricas encontraram acolhimento em um pastor com possibilidade
de acesso a tantas almas jovens e incólumes. Costumamos censurar à nossa psica-
nálise, meio a brincar mas também muito a sério, o fato de o seu emprego pressuu
por um estado normal e encontrar limite nas anomalias organizadas da vida psí-
quica, de tal modo que o 6Ñtimo das suas condiçóes de aplicação se verifica, pre-
cisamente, onde ela é inútil - no homem são. Ora, ser-me-ia grato acreditar que
esse otimo encontrará realização nas condições em que você trabalhas.

***Freud criticava por vezes Pfister pelo fato de se mostrar até


certo ponto pusilânime, pelo menos em palavras, nas questões relati-
vas à sexualidade. Pfister tinha a maior consideração pelas suas críti-
cas, mas, por seu lado, reprovava Freud por menosprezar a importân-
a da sublimação, mercé da qual o tratamento psicanalítico poderia
adquirir um alto valor educativo. Talvez por temperamento ou, como
ele próprio disse, em resultado das experiências decepcionantes que
fizera com os seus próprios doentes, Freud mantinha-se muito
mista quanto
pessi-
a este ponto:
E certo queo êzito duradouro da
psicanálise depende das duas
possfvel oferecer: uma é a via da satisfação libidinal; a outra, soluções
Ihe é que
o domínio e
sublimação da pulsão recalcitrante. Se temos mais sorte com a
ve-se em grande primeira, isso de-
parte ao nosso material de trabalho, que é muitas vezes
dade inferior: os
doentes são pessoas que sofrem muito e há muito
nossos
de quali-
não esperam obter do
médico unma elevaço moral. Ora você tempo e
jovens que, vítimas de conflitos encontra-se perant
recentes e em si fixados, se acham
mação, nOmeadamente, sua forma
na aptos à subll
blimação religiosa. Creio que não mais cômoda, de que 6 perceptível- a su-
pÑe em dúvida que os seus êxitos são' funda-
mentalmente
de vocè
alcançados pelo mesmo processo dos nosos:
a transferência
que é objeto. Você erótica
tem
at Deus e assim possibilidade
a
reconstituir esses tempos
e encaminhar esta
transferencla
pecto- em que a fé felizes, felizes pelo menos neste as
religiosa abafava a neurose. Para nós, a saída não existe, vIsto

5.
P.,Fr-Pf. Briefe, 18-1-1909, p. 11.
A PSICOPATOLOGIA DA VIDA QUOTIDIANA 165

que a nossa clientela, venha de onde vier, é irreligiosa; nós próprios, na maioria,
o somos radicalmente e, como as outras vias de sublimação que para nós substi
tuem a religião não so acesslveis à maioria dos doentes, o nosso tratamento de-
senvolve-se a maior parte das vezes no sentido da solução pela satisfaço. Por
outro lado, não vemos nada de mal ou de interdito na satisfação sexual em si, que,
pelo contrário, reconhecemos como parte preciosa da atividade vital. Como sabe,
aquilo a que chamamos erotismo inclui o que vocês, diretores de consciência,
chamam amor e que não é de forma alguma limitada ao grosseiro gozo sensual.
lIhes não
Assim, os nossos doentes devem procurar junto dos outros homens o que
lhes devemos recusar na nossa
podemos prometer em uma esfera mais elevada e
própria pessoa. Eis a razão pela qual a nossa tarefa 6, naturalmente, muito mais
pesada e pela qual também no momento de ruptura da transferência muitas vezes

o êxito nos foges.

* O pessimismo de Freud quanto às possibilidades de educar os


doentes manifesta-se também no seu ceticismo perante a educação. A
frase que lhe é atribuda a este respeito não 6 talvez aut¿ntica, mas
contém um indubitável fundo de verdade. Tendo- Ihe uma mãe per-
guntado o que era necessário fazer para educar racionalmente os fi-
lhos, em conformidade com as idéias da ciéncia psicanalítica, consta
ter respondido: "Faça como quiser de qualquer modo, será mal". Em
1907, contudo, defendia asperamente em um artigo a necessidade de
uma educação sexual esclarecida, proporcionada à curiosidadee inte-
ligência da criança. E então que cita pela primeira vez o pequeno Hans
- aí chamado Herbert -, cujo caso viria a publicar pouco depois. Com
três anos de idade, o pequeno Hans, menino extremamente evoluído,
tinha descoberto sozinho o segredo do nascimento da irmá e, deste
modo, confirmado as idéias de Freud sobre a curiosidade sexual das
crianças.
**O pequeno Hans foi a primeira criança tratada e curada por
meio da análise. Com cinco anos de idade foi atingido por uma grave
fobia, que tinha como principal objeto os cavalos e o evou pouco a
pouco a mal sair de casa. Os pais da criança contavam-se há vários
anos entre os primeiros adeptos de Freud, que tratara a jovem mae
antes de ela se casar. O pai assistia assiduamente às suas conferências
e foi ele, e não Freud, quem tomou a direção da análise. Freud só teve
com o pequeno Hans uma entrevista, tendo porém tido numerosas
conversas com o pai, que consentiu na publicação do caso. Trata-se
do célebre texto intitulado Análise de uma Fobia em un Menino de
Cinco Anos, uma das cinco exposições de casos que formam a parte
puramente clínica da obra de Freud. Freud seguira com atenção apai-
xonada o trabalho inteligente, mas necessariamente pouco ortodoxo,
do pai. Com grande surpresa sua, a análise alcançou completo sucesso
e, catorze anos mais tarde, experimentava por certo um dos maiores
prazeres que jamais sentiu ao receber a visita do pequeno Hans, en-
tão um belo e robusto rapaz em vésperas de se casar. Fato notável;

6. ld.,9-2-1909, pp. 1 e ss.


A REVOLUÇÃO PSICANALÍTICA
166
Hans lembrava-se de Freud, mas todos os vestígios da análise tinham-

se apagado de sua memória.


é x i t o desta primeira análise infantil não modificou em nada
as dúvidas de Freud sobre as possibilidades técnicas do processo,
Afirma-o logo nas primeiras linhas da sua exposição:

Creio que nenhuma outra pessoa além do pai teria conseguido obter da
criança tais confissQes. Os conhecimentos técnicos, que permitiram ao pai inter-
pretar as palavras do filho de cinco anos, eram indispensáveis; sem eles, as difi-
culdades técnicas da psicanálise em tão tenra idade teriam sido insuperáveis. Só a
conjugação da autoridade paternal e da autoridade médica na mesma pessoa e,
conseqüentemente, de um interesse ditado pela ternura e de um interesse de or-
dem cientffica permitira, neste caso, fazer uma aplicação do médico que, de ou-
tro modo, não teria sido possível...

*O extraordinário desenvolvimento da análise infantil e de to-


das as técnicas da
psicoterapia que nela se inspiram demonstrou que,
pelo menos uma vez, a perspicácia habitual de Freud falhou em um
ponto importante. Será lícito pensar que, depois de ter levado a ex-
ploragão do psiquismo infantil a um grau até então desconhecido,
houve razões interiores, vestígios de escrúpulos ou inibições que o
impediram de ir mais longe? O fato é que Freud deu durante toda a
vida provas de singular reserva em face deste
domífnio de investigação
em que se celebrizaram mulheres notáveis como
e Melanie Klein. Fosse por Helga Hug-Hellmuth
prudência ou
estudo dos fenômenos mais ocultos do por desconfiança perante o
Freud nunca renunciou processo psíquico precoce,
completamente
relacionava também com a sua
a esta atitude
cética, que se
reza. Dificilmente
exigência clássica de certeza e de cla-
lhe permitiram atenuá-la.
a
vocação e a brilhante carreira de sua filha Anna

7.
"Análise de uma
nayses, trad. Marie Fobia em um
Bonaparte Menino de Cinco
e Dr.
Loewensteins, Anos", Cing ps a-
Denöel & Steele t i .

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