Discursos
sobre o negro serviram à dominação e
à exclusão social
Uma
genealogia das imagens do racismo
MUNIZ SODRÉ
Especial para a Folha
Drácula,
bem o sabem os aficionados, não se reflete no espelho
logo, é sem imagem. O mito do vampiro tem sido
persistente no imaginário contemporâneo, talvez
porque indique, com alguma magia, a armação
da cultura em construção de uma identidade.
O conde Drácula é o inverso da identidade normalizada
pela cultura pequeno-burguesa. E, para coroar todas as suas
inversões antropológicas, não aparece
no espelho.
Mais uma razão, assim, para a atualidade desse mito.
Na sociedade da imagem (anagrama de magia) ou dos dispositivos
de visão, o sujeito só existe se aparece no
"espelho", isto é, se tem condições
socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível.
Passados 300 anos de Zumbi dos Palmares, os ecos brasileiros
dessas discussões primeiro-mundistas em torno de quociente
de inteligência, superioridade ou inferioridade de raças
parecem-me abrigar, na verdade, uma outra questão,
que pode ser anunciada da seguinte maneira: Qual o quociente
de "aceitabilidade" da imagem do homem de pele escura
numa ordem social que ilumina suas pretensões planetaristas
e hiper-racionalistas com tonalidades branco-européias?
Para responder a essa questão, é preciso remontar
historicamente a "fontes" de imagens coletivas do
homem negro no Brasil. Não qualquer fonte, certamente,
mas aquelas bem acolhidas pelas elites e pelos aparatos de
reprodução das idéias (escolas, manuais
escolares, academias, obras literárias etc) postos
sob a égide do Estado nacional.
Sabe-se que todo Estado nacional procura instituir uma "comunidade
nacional" na base de uma etnicidade fictícia e
se entende o "fictício" não como mera
ilusão, mas como a montagem de um efeito institucional
com sentido histórico preciso. A partir de critérios
linguísticos e biológicos, o Estado "etniciza"
a população, essencializando as suas representações
por meio de ideologias nacionalistas ou mitos de identidade
baseados em cultura, origem e projeto coletivo presumidamente
comuns.
A identidade assim obtida permite a idealização
das relações políticas que instituem
a cidadania. É o Estado que a garante como ficção
étnica, certo, mas como ficção única,
desenhada contra o pano de fundo da cultura universalista
européia, que classifica a diversidade humana por categorias
étnicas ("etnicidades") unas, únicas
e diferentes. Características linguísticas,
mas também somáticas e psicológicas funcionam
como operadores públicos dessa ficção.
Pouco importa que já desde o século passado
um pensador do porte de Max Weber tenha proposto em Economia
e Sociedade o abandono da etnia como conceito sociológico,
por considerá-lo cheio de ambiguidades e contradições.
Na prática, a etnicidade tem livre curso como dialética
de uma comunidade e uma história, desenhando as linhas
de uma identidade e uma diferença coletivas.
A nação resulta de jogo dialético entre
uma herança comunitária e uma história
onde se constrói uma entidade política. O imaginário,
o fictício entram no jogo quando se trata de forjar
uma identidade coletiva. Tomar essa identidade como "natural"
é esquecer ou recalcar a trama histórica de
sua montagem, abrindo caminho para estigmatizações
e racismos.
As teorias etnicistas alemãs, desde Fichte, incorporavam
a crença na naturalidade étnica. Talvez também
por isso os pensadores brasileiros que, a partir do declínio
do Império, se indagaram sobre a identidade nacional,
fossem bastante sensíveis à questão da
etnia. Silvio Romero, autor de uma famosa História
da Literatura Brasileira (1888), localizava a identidade étnica
do brasileiro na mestiçagem, física ou psicológica.
Para ele, a influência africana era maior que a européia
ou a indígena, o que faria a distinção
entre o elemento nacional brasileiro e o das outras nações
hispano-americanas.
Enquanto Romero encarava a ascendência africana mesmo
às vezes ambiguamente como um traço positivo,
escritores como Euclides da Cunha ( Os Sertões, 1902)
e Oliveira Vianna ( Populações Meridionais do
Brasil, 1910), embora também ambíguos em algumas
partes de suas obras, tendiam a ver no negro ou na miscigenação
fatores de instabilidade social e de enfraquecimento intelectual
frente a Portugal ou a nações "brancas".
A verdade é que, desde a Independência (1822),
as representações racistas, enquanto sistema
de pensamento institucional, tinham começado a exacerbar-se
no Brasil. Os negros foram deixados de fora do pacto social
instaurador da nova ordem, e os índios apenas simbolicamente
incluídos.
A relação social racista impôs-se com
mais força à consciência
pequeno-burguesa depois da abolição da escravatura,
no instante em que as antigas hierarquias sociais sentiram-se
ameaçadas. Era a época em que o negro despontava
como objeto de ciência para alguns setores da intelectualidade
nacional, ao mesmo tempo em que se expandia a "ideologia
do embranquecimento". Esta última alimentou os
dogmas da superioridade racial, do determinismo climático,
da geopolítica, da filosofia eugenista, que redundaram
em instituições como a Liga de Higiene Mental
ou em pensamentos como os de Oliveira Vianna e Euclides da
Cunha.
Oliveira Vianna, advogado, mulato, repetia muitas das opiniões
de Silvio Romero e Euclides da Cunha. Ele começa Populações
Meridionais do Brasil com loas à "genialidade"
de gente como Lapouge, Gobineau e outros pais do racismo doutrinário.
Mas seu real objetivo era refletir sobre como poderia uma
população racialmente miscigenada como a do
Brasil preservar a sua unidade nacional e desempenhar um papel
no mundo moderno. Em sua tentativa de resposta, os mestiços
apareciam como seres "inferiores", embora houvesse
aqueles que, por terem "aparência ariana"
(cabelo, cor da pele, moralidade dos sentimentos etc), faziam
exceção. Com esta ressalva, Vianna buscava certamente
livrar a própria cara.
A ideologia do embranquecimento, já presente na obra
de Oliveira Vianna, era no fundo uma tentativa de preservar
a discriminação contra eventuais efeitos colaterais
da abolição. Representava a passagem do racismo
de dominação ao racismo de exclusão.
Dessa ideologia excludente procedem as fontes de imagens racistas
circulantes na contemporaneidade. Suas premissas são
entretanto acadêmica e cientificamente irrelevantes.
Por quê?
1º) Em primeiro lugar, porque não existe a raça
negra. Se é sociologicamente ambíguo, como já
indicamos, o conceito de etnia, o de raça é
ainda mais problemático. Inexiste raça, a não
ser a humana. Montaigne já o havia dito: "Todo
homem carrega a forma inteira da humana condição".
Ou seja, "raça" não é mais
do que a "humana condição". Fora disso,
existem linhas morfológicas (formato craniano, tipo
de cabelo, cor da pele etc) que já permitiram à
antropologia física classificar os grandes grupos humanos
como "caucasóides", "mongolóides"
e "negróides".
Esses traços visíveis (ponto de partida para
qualquer imagem) não têm nenhuma coerência
genética com outros traços não imediatamente
visíveis, a exemplo da frequência de proteínas
séricas na gamaglobulina. É possível,
portanto, que um indivíduo de pele branca apresente
genes de origem negróide, como correu recentemente
em pesquisa feita na região de Porto Alegre (cf. Joel
Rufino em Atrás do Muro da Noite).
O que existe mesmo é a diversidade das linhas morfológicas
da "raça humana" em função
da adaptação territorial e a diversidade dos
modos pelos quais cada grupo humano relaciona-se com o seu
real, ou seja, a diversidade das culturas. A diferença
dita étnica resulta de uma combinação
de linhas morfológicas com singularidades linguísticas
e culturais. Mas essa diferença é simbolicamente,
culturalmente construída. Quanto à raça,
é tão só uma invenção de
quem nela crê, daquela consciência que sobrecarrega
a percepção de imagens fantasiosas.
2º) Um certo senso comum precisa continuar acreditando
na idéia de raça ou em algo equivalente. De
fato, com a desmoralização científica
do conceito de raça, o racismo ideológico ou
doutrinário o mesmo em que trafegaram Oliveira
Vianna, Euclides da Cunha e outros perdeu suas bases
biológicas e sobrevive apenas como aberração
de pensamento junto a grupos anacrônicos ou a pseudo-cientistas.
Resta para o senso comum (as representações
sociais, as opiniões, a antiga dóxa), um vazio
de classificação ou de saber em face da alteridade
humana. Como ajustar a consciência à percepção
daquele que, por ter cor e cabelo diferentes, sabe-se ser
"outro"?
Ou seja, como ajustar, num mundo regido por imagens tecnicamente
normalizadas, a imagem de um "outro" à minha
própria? A idéia de raça torna-se operativa
(ou mesmo a de etnia, que pode esconder a noção
de raça).
Embora não exista raça, o senso comum constrói
imaginariamente a relação racial. A discriminação
desse tipo vem a calhar, porque todo racismo implica um saber
automático (sem dúvidas, sem discussões)
sobre o outro. Vê-se a cor da pele e, como um passe
de mágica ou de imagem, tem-se a ilusão de um
saber-poder sobre o outro diferente. Rosenberg, teórico
do nazismo, bem o percebeu: "Os que sabem tudo não
têm medo de nada".
Há, assim, na consciência racista ou na neo-racista,
uma busca de exorcismo do vampiro, do medo do outro. Há
a secreta esperança de estabelecer "relações
de verdade" com concidadãos familiares. Isso importa
no momento da cultura ocidental em que a questão da
verdade universal se enfraquece juntamente com o esvaziamento
dos sistemas metafísicos religião, ciências
humanas, doutrinas morais e filosóficas.
Afirmando-se uno, idêntico a si mesmo e a um grupo determinado
pelos traços visíveis da cor, o sujeito da consciência
discriminante acredita entrar numa relação de
verdade com membros de uma comunidade imaginariamente semelhante
em tudo da cor aos genes. Uma falsa verdade estatui:
somos radicalmente idênticos, os que não se parecem
conosco são radicalmente diferentes, logo discrimináveis,
já que não nos comunicamos com eles em termos
de "verdade".
O ocaso do racismo doutrinário ou ideológico
não acaba com a discriminação, precisamente
porque esta não é mais questão de razões
de Estado colonialista nem de evolucionismo teórico.
A discriminação foi assimilada pelo senso comum
e difrata-se no mundo das práticas cotidianas, porque
é uma espécie de saber-poder.
Na microfísica das relações humanas,
esse suposto saber automático sobre o diferente gera
poder. É preciso não esquecer que o nazi-fascismo
não estava só no Estado nazi-fascista, mas também
na multiplicidade dos atos cotidianos de um vizinho ou de
um colega de trabalho. O saber discriminante tem estreita
analogia com a caracterologia histérica e obsessiva.
Ao contrário do que possam pensar os otimistas das
chamadas tecno-democracias ocidentais, apologistas do mundo
neoliberal, a globalização cultural só
tem exacerbado a discriminação étnica.
Com o aumento da mobilidade migratória das populações
e com a acelerada circulação das imagens públicas
das variadas espécies humanas, cada um vê-se
compelido, muito mais do que no passado, à troca com
a alteridade. O Ocidente culto estava preparado para reconhecer
o direito à diferença. Mas descobre a duras
penas que a questão não é apenas intelectual,
ou seja, que não se resolve por reconhecimento nem
por direito.
Há aí uma verdadeira questão simbólica,
mais difícil do que a socioeconômica e mesmo
a psicológica. A questão simbólica não
passa por reconhecer ou desconhecer, mas por dar e receber
ou hospedar e ser hospedado. Implica reversibilidade das trocas.
Ora, abrigar o outro (o migrante, o estrangeiro, o diferente)
sem a mediação de uma ética do acolhimento
parece ameaçar a consciência viciada no individualismo
moderno. O "outro" representa a ameaça fantasmática
de dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos.
É essa a ameaça (arcaica, primitiva) que espreita
a consciência discriminante: o medo de perder o espaço
próprio. Medo primitivo, análogo ao terror noturno
das crianças. O "outro" acaba virando Drácula,
sem imagem legítima.
Voltar a falar hoje da tradição de pensamento
racista no Brasil faz sentido, porque é fundamental
rever o posicionamento das elites logotécnicas (articulistas,
editorialistas, jornalistas de destaque, publicitários,
programadores culturais, professores etc) no que diz respeito
à questão étnica. Não tem sido
uma questão prioritária para as elites e no
entanto vem sendo um problema crescente na ordem global contemporânea.
A formação de uma imagem total, diz Paul Virilio,
é tributária de uma iluminação.
O que tem "iluminado" no espaço público/mediático
do Brasil a imagem dos descendentes de Zumbi?
As tonalidades ainda sombrias da consciência discriminante.
Pode-se até aceitar o fato de que a imagem do negro
tenha melhorado aqui e ali, mas a sua real condição
é desastrosa, quando se pensa em termos de distribuição
de renda, de emprego e de oportunidades educacionais. Diferentemente
do que ocorre nos EUA, não se pode citar uma só
"família tradicional" negra.
É que aqui são fundas as raízes da discriminação.
Nelas tropeçam até mesmo as consciências
ditas iluministas, por deliberação (caso vergonhoso
de figuras públicas ou jornalistas que são abertamente
racistas no vídeo, sem que ninguém proteste)
ou por ato falho quando alguém diz, por exemplo,
que tem pé na cozinha por ser mulato. A nação
real é uma metonímia dos Palmares. Mas suas
elites estamentárias leitoras de Oliveira Vianna
e quejandos nas escolas olham no espelho europeu para
se verem como moços de fino trato ou, como canta Caetano
Veloso em seu último disco, "caballeros de fina
estampa". É preciso reeducar as elites com a lição
de Zumbi dos Palmares.
MUNIZ
SODRÉ é professor titular da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e escritor
Leia
mais: Assimilação
marginal ao mundo de trabalho livre
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