Um mestre francês reflete sobre a civilização em branco e preto

FERNANDA PEIXOTO
Especial para a Folha

Não é possível comentar a obra de Roger Bastide (1898-1974) sem fazer referências ao Brasil e aos temas relacionados à problemática negra, em seus variados aspectos; a presença do elemento negro se impunha a qualquer tentativa de compreensão do país. Desde o momento em que desembarca em solo brasileiro, o professor francês volta-se imediatamente para o exame da contribuição africana na formação de nossa cultura mestiça.

O foco inicial escolhido pelo sociólogo para o estudo do sincretismo e da herança africana recairá, não por acaso, sobre as manifestações artísticas. Durante as décadas de 20 e 30, parte significativa da produção ensaística de Bastide diz respeito à reflexão sobre arte, sobretudo em sua interface com a experiência místico-religiosa, e sobre sociologia da religião.

Munido de um instrumental analítico afiado em questões desse naipe, o sociólogo dividirá sua primeira fase da estada em São Paulo entre cursos de estética sociológica ministrados na universidade e pesquisas sobre arte brasileira.

Nos ensaios sobre o barroco reunidos em "Psicanálise do Cafuné - Estudos de Sociologia Estética Brasileira" (1941), as preocupações de Bastide ficam claras: trata-se de avaliar a especificidade dos produtos estéticos aqui produzidos em relação aos modelos europeus. Assim, ele coloca-se, precocemente, contra a idéia da mera cópia ou da simples importação de modelos. A tarefa primordial do crítico diante da realidade brasileira seria examinar o material cultural originário —e singular— da mescla de modelos europeus e raízes africanas. Daí o seu interesse pelo barroco brasileiro, capaz de fornecer plasticamente —seja nas fachadas da igrejas ou na figura do Aleijadinho—, o mapa desse país cindido, de raízes coloniais e escravistas.

Nas pesquisas sobre a poesia afro-brasileira, Bastide explicita mais uma vez preocupações que irão atravessar toda a sua obra sobre o Brasil. O estudo, publicado em 1943, trata das dificuldades de constituição de uma poesia afro-brasileira original, em um contexto onde os conflitos raciais encontram-se atenuados. Diante desse quadro, o intérprete vai tentar localizar os ecos africanos na poesia realizada pelos negros e mulatos no Brasil, abafados, desde o período colonial, por grossas camadas de verniz europeu.

As reflexões de Bastide sobre a presença do negro e do mulato na arte brasileira vão se desenvolver paralelamente às primeiras viagens que ele realiza pelo Brasil na década de 40, relatadas no livro "Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto" (1945).

Datam desse momento seus primeiros escritos sobre as religiões
afro-brasileiras, objeto dos grandes trabalhos publicados na década de 60: "Religiões Africanas no Brasil", onde encontra-se construída uma verdadeira sociologia das manifestações religiosas de origem africana no Brasil e "O Candomblé: Rito Nagô", estudo de caráter antropológico onde o candomblé é analisado como universo autônomo.

Os debates e críticas suscitadas pela obra de Bastide acerca dos cultos afro-brasileiros (uma das objeções diz respeito à idealização das raízes africanas, ao culto da pureza "nagô", que marcaria a visão do estudioso) só confirmam a importância de seus trabalhos. Não é possível discutir umbanda e candomblé no Brasil sem tomá-lo como referência primeira. Assim como qualquer estudo sobre sincretismo religioso não pode ignorar as noções de "princípio de corte" e de "interpenetração de civilizações" por ele elaboradas, que complexificaram a visão da heterogeneidade cultural brasileira.

Os escritos de Bastide mostram que no Brasil acervos culturais distintos se reuniram sem perderem suas características originais (daí a substituição gradativa do termo sincretismo pelo de "interpenetração"). Tal fato pode ser observado nos cultos religiosos onde os afro-brasileiros participam, simultaneamente, de dois universos culturais —o católico e o africano— que não se misturam completamente devido ao "princípio de corte".

Roger Bastide fez escola entre nós, formou sucessivas gerações na USP como as de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Maria Isaura P. de Queiroz, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, entre outras. Seus antigos alunos são unânimes em afirmar que foi pelas mãos do mestre francês que conheceram o Brasil e a cultura afro-brasileira. Seus colegas de ofício também são enfáticos nesse ponto. Diz Pierre Verger: "Foi Bastide que me revelou a África no Brasil!".

Além de seu papel docente e do impacto de sua obra entre nós, Bastide formou diversos pesquisadores através do projeto que coordenou na década de 50 com Florestan Fernandes sobre as relações raciais entre brancos e negros em São Paulo, patrocinado pela Unesco, e que deu origem a uma série de trabalhos sobre o negro e o preconceito de cor no Brasil.

Mas tal literatura, bem como as distintas orientações dos escritos de Bastide e Florestan no contexto desse projeto, dariam início a um outro texto.

FERNANDA PEIXOTO é professora do Departamento de Antropologia da Unesp (Universidade Estadual Paulista)/Araraquara, colaboradora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e doutoranda na USP

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