Escritas de Si
Escritas de Si
Escritas de Si
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA
TRATO DESFEITO:
o revs autobiogrfico na literatura contempornea brasileira
BRASLIA
2011
UNIVERSIDADE DE BRASLIA
INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA E LITERATURAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LITERATURA
TRATO DESFEITO:
o revs autobiogrfico na literatura contempornea brasileira
Aprovado por:
____________________________________________________________
Profa. Dra. Regina Dalcastagn (TEL-UnB) Orientadora
Presidente da banca
____________________________________________________________
Anderson Lus Nunes da Mata (TEL-UnB)
Examinador Interno
____________________________________________________________
Profa. Dra. Luciene Almeida Azevedo (UFBA)
Examinadora Externa
____________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Cesar Thomaz
Suplente
AGRADECIMENTOS
Em primeiro lugar, ao Maior: sem Ele, o rumo ainda estaria sendo procurado.
Aos manos, que sopraram boas ideias, bem querenas, segredos e outros axs, fazendo o
percurso menos turbulento.
minha me, Flvia, por ter bancado a ideia primeira de estudar Literatura:
quem saber no que vai dar, Velha? Ao meu pai, Francisco, por estar presente e fazer-se
ainda mais importante, cantarolando carinhos. minha esposa, Fbia, pelo apoio e
pacincia, pelo incentivo irrestrito, por acreditar e bem dizer, pelo chamego, o dengo,
por driblar os desejos pelo amor, enfim. A minha irm, Romana, pela coragem de
ouvir, audaciosa e resignada, as tramias do trajeto. A Luciana, cujas conversas,
leituras, dvidas e inquietaes tambm minhas! sempre alimentaram o nimo e o
esprito. Ao Seu Z, que, entre rusgas e afagos, foi sempre o modelo torto que manteve
as ideias todas foras do lugar e amm! minha av Rosa que, de longe e de perto, nos
ensinou a inquietude. Ao meu av Z Galas, que, sem saber, plantou em muitos a
semente da leitura e, do Alto, ri dos netos que brigavam por biscoitos e hoje brincam,
todos, com livros.
E, em especial, a Regina Dalcastagn, que acreditou, comprou a ideia, ouviu, e,
pacientemente, esperou que o trem entrasse nos trilhos. Candeia na escurido, mostrou
caminhos, rasgou picadas, desentortou o rumo. Sua leitura carinhosa aturar tambm
carinho! foi o que permitiu que, entre tantas outras, esta brasa tambm vingasse.
SUMRIO
Resumo ............................................................................................................................ 5
Abstract ........................................................................................................................... 6
Introduo ......................................................................................................................... 8
1. A escrita de si: o eu no fio da navalha ........................................................................ 12
2. Intimidade encenada ................................................................................................... 29
3. A experincia impossvel............................................................................................ 43
4. O eu cnico: um show parte ..................................................................................... 59
5. Parnteses: glrias e afetaes .................................................................................... 70
6. A colnia das imagens ................................................................................................ 91
Resumo
Abstract
Introduo
Srgio SantAnna, por exemplo, usa, em vrios de seus contos, um narrador que
se apresenta com seu nome ou que se vale de termos que remetem ao autor o contista,
o escritor. No entanto, esses contos, marcados por um profundo tom nostlgico e
confessional, de rememorao e expiao de dramas e culpas, dizem tambm da
impossibilidade de apreenso total da memria, ressaltando a ambiguidade da
representao de si: tambm as lembranas, nem sempre plenamente acessveis, so
completadas pelo artifcio da criao, e nunca so inocentes ao narrar a si mesmo, as
escolhas do que deve ser dito eliminam e ofuscam outros pontos, de igual importncia,
mas nem sempre convenientes para o narrador.
Bernardo Carvalho, em Nove Noites, tambm apresenta um narrador que,
embora annimo, compartilha vrias caractersticas biogrficas com seu autor:
jornalista, escreve um romance, conheceu os ndios quando criana, etc. Porm, ao
construir seu romance como uma investigao jornalstica, calcada em fatos, e
mostrando para o leitor os procedimentos da apurao, Carvalho revela a ambiguidade
do discurso factual: o que tomamos como fato bem poderia, em outra situao, ser lido
como fico. Trata-se, de novo, de um modo de leitura, uma expectativa prvia ao
contato com o texto. Assim, o eu aparentemente autobiogrfico do romance no se
mostra completo, pleno, mas cheio de sombras e vazios, e sua busca pela resoluo do
mistrio sobre a morte do antroplogo resulta somente em frustrao: no possvel
transmitir plenamente a experincia vivida pelo indivduo este no modelo, no tem
conselhos nem adquiriu sabedoria, s o que lhe resta tentar fixar sua prpria vivncia
em meio ao turbilho de perguntas sem respostas que divide com o leitor.
Marcelo Mirisola outro que problematiza a referncia real ao autor. Mesclando
seu narrador annimo a diversos aspectos de sua biografia e reforando a ambiguidade e
a incoerncia em entrevistas e declaraes, Mirisola constri um texto em que o
narrador, embora no mais das vezes sem nome, parece ser o prprio autor, inclusive
porque concorda com ele em muitas de suas polmicas e preconceitos. Mas, por outro
lado, reitera constantemente a impossibilidade de associao entre um e outro, em uma
atitude performtica que orienta o leitor para o reconhecimento dos traos
autobiogrficos, mas, ao mesmo tempo, leva-o a questionar se, de fato, narrador e autor
so a mesma pessoa.
Neste trabalho, pretendemos discutir a escrita autobiogrfica como um tipo de
texto que, supostamente, garante a aferio da verdade sobre o eu que fala: tudo o que
dito pode (e deve) ser tomado como verdade. Como eixo de anlise, nos servir a
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alheio, que o sujeito moderno poderia retirar suas mscaras e revelar suas verdades
ntimas (Sibilia, 2008, p. 97). Entre 1765 e 1770, Rousseau escreve e publica As
confisses, onde avalia a complexidade singular do seu eu em contraste com o mundo
pblico, exterior.
Rousseau escreve sua obra para fixar sua experincia, mas tambm para purgar
certa culpa pelo passado. Diferentemente de Santo Agostinho, que se reportava a Deus,
a inteno de Rousseau o reconhecimento social, em que o leitor avalia a capacidade
do escritor de ser estritamente sincero sobre o relato:
Rousseau acreditava que sua voz interior era capaz de definir o que seria o
bem; estava, por isso, ainda atrelado a um reconhecimento do bem universal. Assim, se
em Santo Agostinho a introspeco e a auto-anlise tinham estreita relao com o
divino, com uma ordem providencial, em Rousseau encontra-se uma ordem natural.
Ainda havia, para o autor francs, a relao com uma ideia universal, transferindo,
porm, para a subjetividade, como conscincia, o papel principal (Damio, 2006, p.
26). Na verdade, a obra autobiogrfica do autor francs permite que se entrevejam
alguns pontos de controvrsia. Um deles diz respeito ao alcance da sinceridade:
Rousseau no pretendia alcanar a veracidade por meio de seu relato, mas aspirava
sinceridade sobre o ocorrido. A distino sutil: [a sinceridade] necessariamente
subjetiva e tem diante de si o valor de uma verdade objetiva, ao tornar-se aceita
publicamente; ao mesmo tempo, realiza a funo confessional de se reparar um erro
cometido (Damio, 2006, p. 89). Enquanto a verdade atendia a uma prescrio
universal, a sinceridade cumpria seu carter particular: a verdade teria um sentido
lgico estrito com carter de universalidade e objetividade que demarcaria a maior
diferena para com uma provvel definio de sinceridade, pois a subjetividade seria
sua principal caracterstica (Damio, 2006, p. 71). Assim, a sinceridade seria uma
forma de verdade, mas completamente turva pela transformao ocorrida pela
memria no momento da escrita (Damio, 2006, p. 90-1).
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aquele barulhento mundo das ruas, do teatro, das feiras e dos cafs
podia ser atraente, mas era preciso ter muito cuidado nessas arenas:
para se movimentar nesse universo de fora, era imprescindvel o uso
de mscaras protetoras, enquanto os reinos da autenticidade e da
verdade encontravam-se dentro de casa e dentro de si (Sibilia, 2008, p.
101).
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No sculo XVIII, ainda era possvel, conforme afirma Stuart Hall, imaginar os
grandes processos da vida moderna como estando centrados no indivduo sujeito-darazo (Hall, 2001, p. 29). O indivduo do sculo XVII era um sujeito habilitado para
falar com sinceridade sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo. Pois se trata
sempre de verdades gerais e abstratas, captadas racionalmente tanto do exterior como do
interior (Sibilia, 2008, p. 106). No entanto, as sociedades se tornaram mais complexas,
os direitos individuais cederam espao aos interesses coletivos e a estrutura dos Estados
teve de dar conta do influxo das grandes massas. Assim, surgiu o que Stuart Hall
denomina de concepo social do sujeito: o indivduo passou a ser visto como mais
localizado e definido no interior dessas grandes estruturas e formaes sustentadoras
da sociedade moderna (Hall, 2001, p. 30). Desse processo decorreu o entendimento de
que o sujeito no era to individualizado como se pensava, ele no estava ilhado, alheio
e isolado do cenrio social em que transitava. A crtica ao sujeito racional veio com a
concepo de que os indivduos so formados subjetivamente atravs de sua
participao em relaes sociais mais amplas; e, inversamente, do modo como os
processos e as estruturas so sustentados pelos papis que os indivduos neles
desempenham (Hall, 2001, p. 31).
Da decorre uma transio fundamental para a escrita de si: a passagem da
sinceridade para a autenticidade. Em A modernizao dos sentidos, Hans Urich
Gumbrecht localiza, no final do sculo XVIII, o nascimento do que chama de
observador de segunda ordem. Se antes o sujeito cartesiano percebia uma realidade
exterior a si mesmo, que podia ser explicada com a razo, e de onde decorria ser
possvel captar a verdade do mundo, no sculo XIX surge um papel de observador que
incapaz de deixar de se observar ao mesmo tempo em que observa o mundo
(Gumbrecht, 1998, p. 13).
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justamente a transio do sculo XVIII para o XIX que vai consolidar a escrita
de si como um gnero ntimo. A concepo de liberdade vai atestar que, antes do bem
comum e do interesse coletivo, o conceito reverbera na realizao pessoal de cada
sujeito: a singularidade individual o que mais se valoriza. Assim que o texto
autobiogrfico deixa de se constituir a partir da ideia de purificao dos pecados do eu
decado, ou do eu que insiste em dizer o que e como para se ver reconhecido pelo
outro mesmo em suas maiores fraquezas, para surgir em sua prtica a ideia de um
desenvolvimento: como algum se torna o que . O ato de escrever passa a ser a
fonte reveladora das condies histricas que possibilitaram a existncia do indivduo
que narra (Damio, 2006, p. 76).
At aqui, ento, a escrita autobiogrfica realizada por um sujeito que
idelogo de sua prpria vida, para usarmos a expresso de Pierre Bourdieu, j que
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uma histria sobre ns mesmos, uma confortadora narrativa do eu (Hall, 2001, p. 13).
Assim, o eu um narrador que se narra e (tambm) um outro (Sibilia, 2008, p. 32).
Dentro dessa perspectiva, o eu sempre algo que nos escapa. uma unidade
ilusria construda na linguagem, a partir do fluxo catico e mltiplo de cada
experincia individual (...) O eu uma fico gramatical, um centro de gravidade onde
convergem todos os relatos de si (Hall, 2001, p. 31). Em outras palavras, o eu uma
dimenso da experincia humana que s pode ser alcanado na medida em que , ao
mesmo tempo, construdo pela linguagem.
Nesse sentido, a escrita de si na contemporaneidade funciona como uma busca
para reconciliar os cacos da fragmentao decorridas dessa crise. A narrativa do eu
uma tentativa de recuperar e fixar a imagem, sempre dispersa, de um eu coeso, uno,
constante. No caos das sociedades contemporneas, a escrita de si sinaliza para uma
tentativa de organizao do eu ps-moderno, descentrado, fragmentado, cujas
identidades mltiplas giram ao redor de um ncleo catico e mutante. E, alm disso, ela
busca tambm registrar a experincia fugaz do cotidiano.
seja designado por um nome, como um substantivo comum, ou seja, a identidade entre
autor, narrador e personagem tambm pode ser estabelecida mediante o uso de eptetos:
o escritor, o autor, o contista etc. Segundo coloca Lejeune, o pacto autobiogrfico
confirma um compromisso do autor com o leitor: o narrado est relacionado com uma
referencialidade externa e pode ser comprovado (Lejeune, 2008, p. 36).
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tem uma coisa que est engasgada, que precisa ser dita para algum, e
a, muitas vezes, a gente, de puro engasgo, de necessidade mesmo,
apela para o diariozinho (Cesar, 1999, p. 259).
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que teria considerado, por si s, todas as crticas ao texto, no posterior Je est un autre,
de 1980:
Que iluso acreditar que se pode dizer a verdade e acreditar que temos
uma existncia individual e autnoma! [...] melhor reconhecer
minha culpa: sim, sou ingnuo. Creio ser possvel se comprometer a
dizer a verdade; creio na transparncia da linguagem e na existncia
de um sujeito pleno que se exprime atravs dela; creio que meu nome
prprio garante minha autonomia e minha singularidade (embora eu j
tenha cruzado pela vida com vrios Philippe Lejeune); creio que
quando digo eu, sou eu quem fala; creio no Esprito Santo da
primeira pessoa (Lejeune, 2008, p. 65).
Lejeune ainda diz que o paradoxo da autobiografia literria, seu jogo duplo
essencial, pretender ser ao mesmo tempo um discurso verdico e uma obra de arte
(Lejeune, 2008, p. 61). Assim, apesar de admitir certas lacunas em seu pacto, o autor
francs insiste, um pouco teimosamente, em conferir autobiografia literria status
confivel, referencial, verdico histrico, por assim dizer.
Luis Costa Lima refuta os argumentos de Philippe Lejeune justamente nesse
tpico, ao afirmar que a autobiografia se fundamenta no terreno da ambiguidade:
Porque vive das imagens [...] a autobiografia no pode ser um documento puro [...].
Porque no se pode entregar livre plena qumica do ficcional, o territrio deste lhe
interditado (Costa Lima, 1986, p. 306). O autor conclui, refutando o pacto
autobiogrfico de Lejeune: No mesmo por aquela impossibilidade de contrato
estvel com o leitor de que o autobiogrfico ora se inclina para a histria, ora para o
ficcional? (Costa Lima, 1986, p. 307). Assim,
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produzir uma histria de vida, tratar a vida como histria, isto , como
a narrativa coerente de uma sequncia significativa e coordenada de
eventos, talvez seja ceder a uma iluso retrica, a representao
comum da existncia que toda uma tradio literria no deixou e no
deixa de reforar (Bourdieu, 1996, p. 76).
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2. Intimidade encenada
Mais de uma vez, a obra de Srgio SantAnna foi exaltada, por crticos e
resenhistas, como uma narrativa de carter peculiar, muitas vezes experimental ou
conceitual, onde so colocadas em questo as possibilidades e limites da experincia
literria. A narrativa de SantAnna, no fundo, no faz outra coisa seno refletir (e muitas
vezes atacar) a prpria estrutura da literatura, ressaltando, em muitos momentos, que a
obra de arte literria no passa de uma construo em que os discursos sobre
determinado tema terminam por elaborar uma realidade, discursiva, verdade, mas que,
embora sabida como representao, muitas vezes tomada como a prpria realidade,
ou, no mnimo, como uma realidade alternativa, mas tambm ela experimentvel por
sua verossimilhana.
Igor Ximenes Graciano, em sua dissertao de Mestrado sobre a obra do autor,
fala em termos de uma insuficincia do gesto literrio: o carter ensastico das
narrativas de Srgio SantAnna revela, alm de uma crtica do momento, uma acurada
reflexo sobre o prprio fazer literrio, com suas nuances, possibilidades e limites:
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j que o narrador no se mostra confivel e sendo ela apenas mais uma (re)produtora de
discursos. Assim,
SantAnna desconfia, e leva o leitor a fazer o mesmo, da literatura. Por isso, sua
obra atravessada por questionamentos que incluem a problemtica do lugar de fala e,
tambm, por reflexes metalingusticas que ressaltam o carter artificial da literatura,
salientando, para o leitor, que nada no texto pode ser tomado como verdade, posto que
tudo fico.
No entanto, ainda que isso possa ser dito em termos da representao do outro,
ou do mundo, o que acontece quando Srgio SantAnna representa a si mesmo dentro
do texto? Mesmo a pode-se (ou deve-se) encarar sua literatura como um complexo jogo
onde a representao colocada prova? No se trataria, como se poderia presumir, de
textos onde o aspecto autobiogrfico carrega significados mais ntimos, ainda que
transformados em arte?
Em muitos contos de sua obra, SantAnna apresenta um narrador que identificase com o autor. Em alguns casos, isso acontece de modo explcito, como em O
concerto de Joo Gilberto no Rio de Janeiro, onde figura como narrador abertamente
nomeado como Srgio SantAnna. Em outros, como O submarino alemo, essa
identidade entre autor e narrador se d em um nvel menos claro, com o narrador se
assumindo como o eu que escreve aquele texto o autor, portanto, mas que, pelos
prprios meandros do fazer literrio descortinados ao longo do texto, permitem fazer a
associao entre esse eu e o prprio Srgio SantAnna.
Porm, h sempre um questionamento atravessando essa representao do eu,
pondo, de alguma forma, em xeque essa intimidade encenada, onde o autor detalha
pontos de sua vida e avalia os prprios sentimentos.
Em Um conto obscuro, por exemplo, extrado de O vo da madrugada, o
narrador no assume o nome do autor que estampa a capa do livro, mas se identifica
como o contista, e admite explicitamente, logo nas primeiras linhas, sua inteno de
buscar significar algumas coisas, embora s vezes das mais vagas e recnditas
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noites de viglia eram um palco propcio para o assdio das lembranas, que destilavam
valiosos materiais para sua recriao escrita no presente (Sibilia, 2008, p. 126).
Um conto obscuro parece trazer muitas das vivncias do autor. Ainda que ele
seja abertamente construdo entremeado de inveno (o fato de se chamar conto no
pode ser gratuito), muitas das cenas descritas, carregadas de melancolia, e em conjunto
com todas as descries de estado de esprito do contista (vazio, angstia, solido,
fantasmas, depresso), permitem, ao menos aparentemente, pressupor que se trata de um
texto autobiogrfico. Soma-se a isso o fato de o escritor Srgio SantAnna ter, ele
prprio, na poca de lanamento do livro, 61 anos, e morar no Rio de Janeiro e ter
vivido em Belo Horizonte fatos que, por um lado, so abordados tangencialmente no
texto, mas que no so, evidentemente, estritamente textuais. Alm disso, O vo da
madrugada foi escrito depois de Um crime delicado, novela de 1997. Em 2000, o
estudo de Luis Alberto Brando Santos sobre a narrativa de SantAnna incluiu uma
entrevista com o autor, em que ele afirma: Aos cinquenta e oito anos, sinto claramente
os meus limites de ser humano. Como vrias coisas que tinha de escrever j foram
realizadas, vivo no momento uma crise forte (apud Santos, 2000, p. 119). Essa
informao, embora extratextual, quando coligida com o tom soturno no s de Um
conto obscuro, mas do livro todo, refora o carter autobiogrfico da obra, mas,
especificamente, do conto.
Mas, considerando que a prpria narrativa que incita identificao entre
narrador e autor, no preciso que se busque outras fontes para reforar a possibilidade
da leitura autobiogrfica. O tom, por si s, bastaria, aliado presena do contista.
Um conto obscuro associa o registro da memria purgao de culpas, num relato
que destina-se admirao apresenta, portanto, os traos bsicos da escrita de si. um
texto que busca a compaixo do leitor: Voc est acabado, cara, ouve o contista, de
um algoz interno (SantAnna, 2003, p. 55), enquanto rev o prprio conto em meio a
pilhas de papis e lembra:
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Diante de uma afirmao como essa, como julgar que a veracidade de todo o
relato no passa de jogo de cena? Nesse teatro de marionetes, como diferenciar o
copular da estria com a Histria? (SantAnna, 1997, p. 308), ou os palcos de verdade
e a parte de no-fico (que a expresso esteja entre aspas parece ser significativo: o
que se toma por real imiscusse.da fico para ganhar sentido). Em que momentos da
narrativa o ator Srgio SantAnna encena, e em que momentos ele mesmo? De novo,
nos serve como contraponto a resposta de SantAnna entrevista de Luis Alberto
Brando, que inclua uma pergunta especfica sobre este conto:
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Como se decidir pela fico ou pelo real? , de fato, sua intimidade que se
vislumbra, ou um ensaio sobre o que se quer dizer? Em outra passagem, o narrador
afirma: Esse conto eu queria muito fazer, Lo, porque encaixa direitinho com o esprito
do livro. No quero um livro de histrias, mas um livro que discuta a linguagem, num
tom oscilando entre o rudo e o silncio. Tendendo, talvez, para um silncio final ou,
quem sabe, um ligeiro sussurro? (SantAnna, 1997, p. 319). uma equao que no se
resolve: a verdade, se assim se puder dizer, fica nessa distncia sutil entre o rudo e o
silncio.
Um concerto que no acontece, uma histria que no se desenrola, uma
representao de si mesmo repleta de rudos e dissonncias insondveis, cheia de
fissuras: nesse conto, o mundo da arte se imiscui do que h fora, tornando-se
indistinguvel. Igor Graciano, comentando o conto, afirma que
Inscrever-se, para existir ou para sentir-se vivo. o que se ver em A mulhercobra, conto do livro A Senhorita Simpson, de 1989. O narrador em primeira pessoa
conta sua passagem por Bruxelas, onde encontra um estranho espetculo com uma
mulher-cobra. O eu que narra no pode ser identificado com o autor at o momento em
que o narrador comenta: E eis que, nesses quatro cantos, amigos e amigas diversos
sairiam por alguns instantes do seu paradoxal egocentrismo para pensar em Srgio
SantAnna ou mesmo comentarem entre si: Srgio est l em Bruxelas e transou com
uma mulher-cobra (SantAnna, 1997, p. 376). Estabelecida a conexo, na continuao
do trecho, no entanto, l-se:
Isso faria de mim para eles e talvez at para mim prprio uma
pessoa existente, pelo menos enquanto durasse o assombro provocado.
E desconfio que no apenas eu, mas todos ns, nos sentimos
inexistentes. Por isso que paradoxal o egocentrismo, no que
Galileu estava certo, se que entendem a relao. Ento fabricamos
acontecimentos e histrias para podermos narr-los, uns aos outros,
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O recorte temporal indica que a existncia, neste caso, coincide com o ato de
leitura; o dilogo com o leitor estabelece, ento, a possibilidade da existncia. Assim,
ao publicar-se, lanando-se aos olhos do pblico, o escritor acaba por confessar que
escrever no um gesto to intransitivo quanto parece, afinal o gesto literrio se estende
ao outro sem o qual no h existncia a ser percebida, como se a voz e a perspectiva de
quem narra a despeito do leitor se esvassem como sonhos esquecidos (Graciano, 2008,
p. 75).
Esses pontos aproximam certos contos de Srgio SantAnna da escrita de si.
Todos os parmetros foram cumpridos: a identidade de nomes entre autor e narrador; a
correspondncia entre narrar e existir; o registro dos fatos; a conexo (afetiva) com o
leitor. Ainda assim, como se viu, embora o existir s seja possvel, s ganhe sentido
quando se converte em narrativa, em SantAnna os termos se invertem: a narrao, s
vezes, vem antes, e depois o que se vive, numa espcie de roteiro para o ator Srgio
SantAnna. As vivncias surgem em seu aspecto utilitrio: o que se presta fico, o
que serve ao autor como material para a escrita. Parei de viver espontaneamente, diz o
narrador de O concerto de Joo Gilberto no Rio de Janeiro. Fica, assim, suspensa a
crena de que narrador e autor so a mesma pessoa e de que a intimidade ali entrevista
de fato verdadeira.
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Se o sentido do sonho s pode ser completo com a fico operando, numa fabricao de
significado, com a memria no se dar o mesmo? O narrador reconhece que um dos
pontos essenciais desse texto
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Especial, sem dvida, porque habita, ainda hoje, a memria afetiva do narrador,
e por isso pode diferenci-lo dos demais animais. Mas o fato de ser esse um peru em
especial tambm denota outro sentido: a expiao, tpica da memria escrita, de
acontecimentos passados nem sempre bem resolvidos na lembrana do indivduo.
No parece ser o caso com o peru, mas o tema, da maneira que aparece em Um
conto obscuro, nos serve de contraponto: ao descrever a morte de uma barata,
ocasionada pela ao do prprio contista quando ainda era um menino mais novo
(SantAnna, 2003, p. 49), o narrador deixa entrever sua culpa por assassinar aquela
barata entre todas as baratas (SantAnna, 2003, p. 49). E emenda: Mas levaria algum
a srio a dor de um inseto to repelente quanto uma barata? Sim, algum levaria: o
futuro contista, a ponto de incluir o tormento dela, tantos anos depois, em seu conto
obscuro (SantAnna, 2003, p. 49).
No pargrafo seguinte, a constatao: As ratazanas eram diferentes; as
ratazanas eram inimigas de respeito (SantAnna, 2003, p. 49), de onde segue a
descrio da morte do animal, tambm praticada pelo contista quando mais novo, com
o olhar do bicho ferido e acuado, ciente de sua sina incontornvel: um olhar que at
hoje aquele que foi o menino guarda consigo e pensa: naquele dia, naquele momento do
mundo, existiu aquela determinada ratazana com dio sendo morta e aquele menino
matando-a, fascinado e com medo. E depois a ratazana apagou-se e no era mais nada
(SantAnna, 2003, p. 50).
O paralelo das duas passagens evidencia que os registros no so atos de
memria inocentes, pois tendem a persuadir, a moldar a memria dos outros (Burke,
1992, p. 240). Diante de quadros assim, percebe-se que quando lemos a escrita da
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memria, fcil esquecer que no estamos a ler a prpria memria, mas sim a sua
transformao atravs da escrita (Burke, 1992, p. 240). Mas nas palavras do prprio
SantAnna que entendemos a operao de seleo: o dizer uma coisa redime esta
coisa (SantAnna, 1997, p. 315). No justamente essa a inteno do contista ao
expor sua culpa pela morte da barata? Alis, no a busca pela admirao um apelo
tambm ao perdo desse contista obscuro? Assim, em contraponto, por que no agir do
mesmo modo com o peru, ou com a ratazana? Conforme afirma Carla Damio, lembrar
o passado significa fazer uma escolha, eleger determinados acontecimentos [...] H, no
entanto, uma inibio prpria autobiografia, em virtude de uma censura interior e da
rejeio de lembranas desagradveis (Damio, 2006, p. 71).
Assim, cabe a pergunta: Que relato da experincia tem condies de esquivar a
contradio entre a firmeza do discurso e a mobilidade do vivido? (Sarlo, 2005, p. 23).
Srgio SantAnna, em seus textos de cunho autobiogrfico, se assim pudermos chamlos, problematiza sua prpria presena, imbricando memria e fico, sem que se possa
distingui-los. Simula, com esse artifcio, sua histria de vida e seu passado, mostrando,
ao mesmo tempo, que, diferentemente do que coloca Paul de Man, nada ali pode ser
decidido entre fato e fico, entre mentira e verdade. No se trata, como queria de Man,
de ser todo texto autobiogrfico, ou, pelo contrrio, nenhum deles o ser: no se pode
dizer isso desses contos de Srgio SantAnna. A atitude intuitiva do leitor tom-los
como registro histrico de um indivduo, mas, ao longo do texto e diante das marcas que
instauram a dvida, j no mais possvel afirmar que, de fato, sejam autobiogrficos.
E, do mesmo modo, no se pode dizer que no o so: no possvel diferenciar nem
mesmo o que e o que no fico nessas narrativas.
Nesses contos, as selees do vivido expostas nos registros parciais da memria
mostram que o que as chamadas autobiografias produzem a iluso de uma vida
como referncia e, por conseguinte, a iluso de que existe algo como um sujeito
unificado no tempo (Sarlo, 2005, p. 31).
No fim, o que resta so apenas suposies e indcios, sempre meias-verdades,
indistintas de uma Verdade plena sobre o sujeito que narra a prpria vida: como na
fico em primeira pessoa, tudo o que uma autobiografia consegue mostrar a
estrutura especular em que algum, que se diz chamar eu, toma-se como objeto. Isso
quer dizer que esse eu textual pe em cena um eu ausente, e cobre seu rosto com essa
mscara (Sarlo, 2005, p. 31). O trato entre autor e leitor a prerrogativa do pacto
autobiogrfico desfaz-se em virtude dos bastidores que se revelam: o que acontece na
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3. A experincia impossvel
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caar, Aquele Que No Sabe Caar. Mesmo em famlia, para o av ele seria o neto,
para a me, o filho etc. Nesse contexto, o ndio aprendia que s existia por causa do
outro, que lhe nomeava. Na concluso da explicao, a antroploga rabisca em um
guardanapo um esquema, com o ndio I. ao centro, de onde saem vrias linhas ligando-o
a outras iniciais que designavam me, pai, primognito: ao fim, o que se tem um
grande borro de letras inidentificveis umas por cima das outras (Carvalho, 1999, p.
119).
A explicao da antroploga justifica, parte a lgica do pastiche do narrador
em relao obra de M., a designao dada aos outros personagens que figuram no
romance: a herdeira do imprio de laticnios, o administrador de grandes fortunas,
etc. Reduzidos sua funo, ao seu trabalho, ao seu status, esses personagens s
ganham sentido na medida em que atuam ao lado dos outros, j gravados com suas
respectivas iniciais; mas tambm estes s tm seu completo sentido em contraposio
aos demais.
Na segunda parte da narrativa, tal questo se torna ainda mais complexa, quando
o narrador ouve diferentes verses sobre D., o pintor em crise que o narrador julga ser
A. Depois de ouvir, da sobrinha da anfitri, que D., segundo verso oficial, havia
sofrido um crise psquica, pintando a prpria grama de verde, sendo, por isso, proibido
de pintar, o narrador escuta, da mesma interlocutora, a verso, contada por L., de que D.
seria na verdade um assassino em fuga. Teria sido contratado por um antigo amigo
advogado que, depois de administrar por anos a fortuna de um cliente desaparecido,
tinha resolvido financiar projetos mdicos e cientficos ao mesmo tempo em que,
inadvertidamente, as aplicaes antes seguras eram devastadas por uma crise financeira
mundial. Foi nessa situao que o cliente desaparecido ressurgiu, apenas para acusar o
advogado e acabar com sua reputao. Foi a que entrou D. ou o assassino, segundo L.,
segundo a sobrinha da anfitri, ou A., segundo eu mesmo, que ouvia tudo boquiaberto
(Carvalho, 1999, p. 102). A confuso instaura-se tambm porque o leitor identifica na
historieta a figura do administrador de grandes fortunas presente na primeira parte do
romance e, agora j to perplexo quanto o narrador, reinterpreta de uma s vez a
narrativa inteira, tentando juntar os cacos. Porm, a verso de D. como assassino revelase uma farsa, conforme o prprio L. revela: Inventei aquela histria s para
impressionar. Nunca tinha visto aquele sujeito antes daquele jantar (Carvalho, 1999, p.
104). Assim, maneira de M., de C. e do narrador, todos eles escritores, cada um dos
personagens transforma-se tambm em autor, ao inventar verses para os personagens
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sem nome verses que se tornam to reais que passam a ser emblemas, tarjas,
complementos ou explicaes desses personagens, mas que, no fundo, nunca os
explicam e sempre so transferidas para uns e outros.
O que esconde e revela um nome prprio? esta a pergunta que parece fazer
Bernardo Carvalho em meio s tantas outras que derivam dela. O anonimato literrio
no nos suportvel: apenas o aceitamos a ttulo de enigma, disse Foucault (2009, p.
50) a respeito do autor e de textos annimos, o que vale, porm, tambm para este
romance. Afinal, no ser toa que, aliado aos nomes e confuso entre as
personagens, com A. transformando-se em D., est o segredo que guardam as iniciais na
tampa da caixinha de madeira. Destitudos daquele que talvez seja o mais elementar dos
designadores da identidade, o nome prprio, essas personagens perdem seu lugar fixo
no mundo, metamorfoseando-se em outras, adotando identidades, abreviaes e signos
que pertencem a outras, como ocorre com os fictcios ndios I. Perdido nesse trnsito
entre lugares, culturas e tempos, o narrador tenta desesperadamente encontrar o sentido
para o enigma das iniciais grafadas na tampa da pequena caixa de madeira, mas essa sua
busca por significao tambm uma busca pelo nome, e por quem se esconde por trs
das letras: no ser por acaso que o mistrio em torno do objeto seja transferido tambm
para os personagens.
Sem nomes, as personagens no cessam de ganhar verses de si mesmas a todo
momento: juntamente com M., que mistificava a prpria vida; com C., por quem o
narrador se apaixonou ao confundir fato com fico, lendo um livro do companheiroescritor e tomando o narrador pelo autor; com o narrador, tambm ele escritor, que
recapitula sua vida enquanto tenta tornar coerente os eventos vividos; esto todos os
outros personagens, porque so eles, contando e recontando histrias, um desdizendo o
outro, que terminam por atribuir significados s histrias de vida de cada um. No fim, o
emaranhado de pessoas que s adquirem importncia mediante a relao com os outros
se equivale ao borro rabiscado pela antroploga no guardanapo: uma identidade
contnua, mutante, disponvel construo de verses.
Pierre Bourdieu entende o abandono da estrutura linear do romance como uma
consequncia do questionamento da vida como dotada de sentido, de significao e de
direo (Bourdieu, 1996, p. 76). Abordando o que chama de iluso biogrfica,
o autor francs reavalia a importncia do nome prprio enquanto elemento que
garante coerncia e permanncia ao sujeito. Retomando a expresso de Saul
Kripke, Bourdieu afirma que o nome prprio opera como um designador
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rgido, quer dizer, ele designa o mesmo objeto em qualquer universo possvel, ou
seja, concretamente, em estados diferentes do mesmo campo social (constncia
diacrnica) ou em campos diferentes no mesmo momento (unidade sincrnica, para
alm da multiplicidade das posies ocupadas) (Bourdieu, 1996, p. 77). Por outro
lado, essa aparente constncia mascara e configura a iluso biogrfica:
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lugar algum: toda a argumentao que tornaria plausvel a justificativa para o suicdio
do antroplogo sempre se frustra logo em seguida. Ento, que autoridade podem os
relatos histricos reivindicar como contribuies a um conhecimento seguro da
realidade em geral (White, 2001, p. 98)?
Mas h um outro ponto que o romance aborda, e que diz muito da
(im)possibilidade de repasse do conhecimento adquirido: a experincia que, hoje, j no
pode mais ser transmitida.
Em O narrador. Consideraes sobre a obra de Nikolai Leskov, Walter
Benjamin argumenta que a fonte do narrador oral a experincia, prpria ou relatada
por outros, um saber que vem de longe, de terras estranhas ou do passado, e a partir da
qual adquire sabedoria. Isso o capacita a ser um homem que sabe dar conselhos
(Benjamin, 1996, p. 200). No entanto, Benjamin argumenta que as aes da
experincia esto em baixa (Benjamin, 1996, p. 198): estamos privados da faculdade
de intercambiar experincias, porque a sabedoria o lado pico da verdade est em
extino (Benjamin, 1996, p. 201).
Isso se deve, em parte, primazia da informao. Segundo Benjamin, com a
consolidao da burguesia, a informao desempenhou influncia decisiva na forma
pica o que no tinha ocorrido at ento. E, diferentemente da narrativa, que garantia
alguma autoridade mediante o saber experiente do narrador, a informao requer uma
verificao imediata (Benjamin, 1996, p. 203): se a arte da narrao hoje rara, a
difuso da informao decisivamente responsvel por esse declnio (Benjamin, 1996,
p. 203).
Esses fatos, sintomas do perodo moderno e consequncias das guerras, vo
culminar na consolidao do romance para Benjamin, a morte da narrativa. A
natureza do romance e da tradio oral so fundamentalmente diversas: o narrador do
romance um sujeito isolado que j no pode falar de maneira exemplar sobre suas
preocupaes mais importantes e que no recebe conselhos nem sabe d-los
(Benjamin, 1996, p. 201). Segundo Diana Klinger, a matria narrativa do narrador do
romance provm no do saber proporcionado pela distncia espacial ou temporal (saber
transmitido de pessoa a pessoa), mas da introspeco (Klinger, 2007, p. 100).
O narrador de Nove noites no pode extrair de sua experincia nenhuma
sabedoria: apesar de seus esforos, no consegue esclarecer nem para si nem para o
leitor as razes que levaram Quain ao suicdio. sintomtico que procure a verdade na
informao coligida entre diversas fontes e que, supostamente, poderiam ser
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verificadas. Mas, no mais das vezes, o que se tem a invalidez dessa informao para
solucionar o mistrio: a prerrogativa das fontes confiveis se frustra. Em uma das cartas
do testamento de Manoel Perna, o narrador l: As histrias dependem antes de tudo da
confiana de quem as ouve, e da capacidade de interpret-las (Carvalho, 2002, p. 8).
Em outro trecho, diz: preciso entender que cada um ver coisas que ningum mais
poder ver. E que nelas residem as suas razes. Cada um ver as suas miragens
(Carvalho, 2002, p. 48). Ou ainda, de modo mais explcito: a verdade depende apenas
da confiana de quem ouve (Carvalho, 2002, p. 25).
Diana Klinger argumenta que
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entanto, se recobre pelo tecido de uma relao, relao esta que se define pelo
olhar. Uma ponte, feita de palavras, envolve a experincia muda do olhar e
torna possvel a narrativa (Santiago, 1989, p. 45).
Assim, Nove noites mostra que a literatura ps-moderna existe para falar da
pobreza da experincia [...] mas tambm da pobreza da palavra escrita enquanto
processo de comunicao (Santiago, 1989, p. 50). O romance de Carvalho tanto uma
simulao da escrita de si, com seu narrador autobiogrfico que no consegue pr de
lado seus preconceitos na lida com o outro indgena, por conta do contato prvio que
teve com ele antes da investigao, quanto um relato que conjuga, em uma mesma
instncia, narrador e leitor na medida em que ambos procuram uma sabedoria que no
pode mais ser comunicada.
Ao tratar a literatura como meio de comunicao em A mdia literatura, Hans
Ulrich Gumbrecht aponta duas caractersticas elementares: primeiro, ela torna prximo
o que est temporal ou espacialmente distante; segundo, ela se fundamenta em uma
atitude voluntria, por parte do leitor, de suspenso da descrena (Gumbrecht, 1998).
Para o autor, nossa reao natural diante das referncias de qualquer texto relacionado
ao nosso cotidiano de ceticismo: procuramos saber se o que dito (e por quem dito)
pode ser considerado confivel ou no. Mas na literatura isso no acontece, porque ela
se fia na fico, um meio termo entre a verdade e a mentira. Da nosso crdito ou
nossa indiferena ao que relatado nas obras literrias, no que diz respeito sua
veracidade.
Por outro lado, a despeito dessa indiferena quanto confiabilidade do contedo
da obra, os leitores sempre orientam sua experincia literria para uma finalidade: ,
como afirma, Gumbrecht, uma mais valia que, no entanto, no pode ser avaliada em
termos prticos (Gumbrecht, 1998, p. 299). Sem dvida, os leitores, conscientemente ou
no, fazem isso incitados, em alguma medida, pelos discursos que se fazem a respeito
da literatura e da obra de arte em geral, includos a, principalmente, os da crtica
literria. No mais das vezes, estes so calcados em um humanismo liberal de fundo
elitista, que pressupem a obra literria como um veculo moralizante, embora
veladamente carregado de valores convenientes a algum grupo dominante como
ocorreu na Inglaterra dos sculos XVIII e XIX (Eagleton, 2006), ou no Brasil, a partir
dos primeiros romnticos, com a implantao de valores morais, polticos e religiosos
que reduziam a barbrie em benefcio da civilizao (Candido, 2006, p. 201). Em todo
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jornalstica, Nove Noites questiona as noes de referncia, dilui a fronteira que separa o
real da fico. E, no limite, pe em xeque a suposio de que a literatura, enquanto
narrativa, possa veicular qualquer verdade, inclusive sobre o eu que fala e que se narra,
posto que ela , sempre, um construto parcial, subjetivo, dependente de uma perspectiva
pessoal que, invariavelmente, seleciona temas e aspectos enquanto silencia outros
como o jornalismo e o discurso histrico. Se verdade que o eu se impe como barra
separadora entre a fico e a autobiografia (Costa Lima, 1986, p. 302), a presena
simulada de Bernardo Carvalho como personagem-narrador de seu romance faz com
que Nove noites mostre que a fico se apropria da forma da autobiografia, mas para
torn-la um discurso obsoleto: o texto falha em pr uma ordem na vivncia catica e
fragmentria da identidade (Klinger, 2007, p. 21).
Tal questo poder ser vista, mas de outra forma, tambm em Monglia,
romance publicado em 2003. A obra resultado de uma viagem do autor ao pas,
financiada por uma instituio literria. Novamente, a foto do autor na orelha do livro,
como ocorre em Nove noites, remete o leitor imediatamente ao tema abordado, com o
escritor fotografado ao lado de uma barraca em um terreno inspito, como os que o
narrador descreve ao longo do romance. Mais uma vez, a narrativa parte declaradamente
de um evento real, concreto, mas, agora, o narrador em primeira pessoa distingue-se
abertamente do autor: no h traos que permitam associ-los entre si, a no ser o fato
de que, novamente, o narrador em primeira pessoa tambm escritor.
Fundindo trs vozes, o complexo romance aborda a expedio de um diplomata
brasileiro Monglia em busca de um fotgrafo desaparecido no pas, filho de um
embaixador. Durante a busca, narraes e impresses dos trs se confundem: os dirios
do diplomata, o Ocidental, so coligidos com os do fotgrafo desaparecido, chamado
pelos mongis de buruu nomtom, o desajustado, sendo depois organizados e
interpretados pelo narrador.
Nessa imbricao de vozes h no apenas a incessante busca do Ocidental pelo
fotgrafo, com o mistrio acerca dos motivos que levaram o jovem a desistir de retornar
ao Brasil pairando sobre a narrativa, sempre a apontar como um norte, uma direo que
deve ser elucidada para explicar enigmas, mas, sobretudo, a explicitao sobre o
violento choque resultante do contato entre duas culturas to distintas. De fato, o
conflito entre mundos to diametralmente opostos leva o Ocidental e o buruu nomton a
tentaram, tateando, encontrar pontos de apoio que assegurem sua identidade, o que se d
principalmente pela negao do que lhes estranho. Os pontos de apoio reais a visita
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noo de autor como centro de unidade da escrita. Assim, uma instncia que baralha
a correspondncia entre o vivido e o inventado, confundindo o enredo ficcional com
informaes biogrficas (Azevedo, 2007, p. 138).
importante entender a concepo de performance utilizada por Luciene
Azevedo: para ela, trata-se de repetio estilizada, citao. nesse sentido que
compreende o texto de Mirisola como performtico, tendo em vista que
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Ricardo Lsias analisa a obra de Mirisola por um vis semelhante. Para o autor,
todas as crticas do narrador so capituladas ao longo da narrativa, isto , revertidas a
seu favor: tudo o que era objeto de desdm torna-se, na sequncia, alvo de um desejo
mal resolvido: depois de desdenhar e ridicularizar tudo, o narrador capitula e revela
que deseja (ou aceita) o que diminua (apud Mirisola, 2005, p. 107), diz Lsias no
posfcio de Notas da arrebentao, de 2005. Assim, o achincalhe, que parecia
demonstrao de fora ou rebeldia, se converte em iluso frustrada. Lsias chega a
afirmar que mesmo o preconceito do narrador no se completa: funciona apenas como
anncio, falatrio desmedido, porm sem estruturao ou ordenamento destitudo,
pois, de construo perniciosa de sentido.
A leitura de Ricardo Lsias se aproxima da de Luciene Azevedo, mas devem ser
resguardadas as particularidades de cada um. Enquanto Lsias v muitos mritos no
engenho literrio de Mirisola, Azevedo v o risco da obsolescncia: a repetio de
temas, motivos e, sobretudo, da forma, pode enviesar a leitura crtica da sociedade atual
que a narrativa de Mirisola eventualmente possa indicar. Afinal, o exagero do ato
performtico pressupe, por natureza, tanto uma recepo catrtica como o
reconhecimento da inteno disfarada (Azevedo, 2007, p. 140). O narrador de Trs
casos ordinrios, tambm de O heri devolvido, coloca a questo nos seguintes termos:
s vezes me acho inteligente. s vezes me acho insuportvel. Para mim tudo uma
questo de boa vontade (Mirisola, 2000, p. 94). Mas, se o leitor no capaz de
perceber a estratgia, a inteno se frustra, e a leitura que, antes, pareceria transgressora
quando deveria ser vista como crtica, transforma-se em mero divertimento. Conforme
diz Luciene Azevedo, no fim, quem decidir o leitor: a ambivalncia da postura
satrica atualizada reside na indefinio do seu gesto enquanto ruptura ou confirmao
dos valores estabelecidos. A deciso hermenutica fica nas mos de quem determina o
ato: entender a performance como a confirmao fetichista da realidade mimetizada ou
como postura crtico-reflexiva (Azevedo, 2007, p. 141). Tal colocao de Azevedo
coerente com o entendimento de Lehmann sobre a performance. Para o autor alemo,
diante do radicalismo do prprio ato performtico, torna-se difcil at mesmo conceituar
a performance. Como estabelecer o limite que marca o incio de um comportamento
meramente exibicionista e extravagante? O ltimo recurso no pode ser outro seno a
compreenso do prprio artista: a performance aquilo anunciado por aqueles que a
apresentam (Lehmann, 2007, p. 227). Fica a questo: quem decide o que
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performance quem a diz ou a performance aquilo entendido como tal pelo prprio
espectador/leitor.
Todos esses pontos se coadunam com a questo da escrita de si simulada de que
estamos tratando. Afinal, esses efeitos se aliceram todos na figurao ilusria do autor
real dentro da narrativa. Conforme foi dito, Mirisola investe radicalmente nessa
proposta: seus textos so assinados, seus livros incluem cartas abertas, o autor se vale de
referncias biogrficas reais e as insere, repetidas vezes e em diferentes momentos, em
sua estrutura ficcional, etc. Mas o que conjuga todos esses pontos e orienta a leitura
autobiogrfica a unidade do narrador: como se disse, ele se mantm praticamente
inalterado em todos os textos. Se muda sua posio de primeira pessoa, no muda o teor
do texto, nem os motivos ou a forma. Essa operao, em combinao com as
declaraes pblicas do autor, instaura permanentemente a equao que no se resolve:
ou no autobiogrfica a obra de Marcelo Mirisola? As leituras de Luciene Azevedo e
Ricardo Lsias, conforme se viu, pressupem tambm um reconhecimento e uma
ateno especiais por parte do leitor: ele quem deve visualizar, nas polmicas lanadas
pelo narrador, a encenao ali performada. O recurso diverso, mas o resultado
semelhante: a leitura orientada autobiogrfica, mas, ao mesmo tempo, no o .
Luciene Azevedo diz: Se nos textos a incidncia do foco narrativo em primeira pessoa
avassaladora, parecendo bvia a presena autoral [...], permanece a indecibilidade
entre um ego escriptor e um eu biogrfico, entre o vivido e o inventado (Azevedo,
2007, p. 152). Como decidir por uma ou outra leitura, se na mesma obra surgem trechos
como Isso aqui no uma tentativa de inventar uma mitologia pessoal (Mirisola,
2000, p. 113) e Um abrao e cordiais saudaes do Marcelo Mirisola (Mirisola, 2000,
p. 33)?
O engenho de Mirisola, que ultrapassa os limites do texto para instalar-se no
mundo real, to arriscado que bem pode causar-lhe constrangimentos: por sua
presena no texto ser to grande, Mirisola como que se submete a uma autoimolao, e
ao mesmo tempo est sujeito a ser execrado pelo pblico e pela crtica se no for
entendido (Voc soube reconhecer as traies e falcatruas que me obrigaram a
engendrar minha autoflagelao biogrfica chamada O azul do filho morto (Mirisola,
2005, p. 15). Em todo caso, a base que sustenta a artificialidade do gesto, isto , sua
presena real simulada, se mantm coerente com o entendimento do funcionamento da
performance. Afinal, o ponto de vista radical da performance o suicdio em pblico:
um ato que no seria mais perturbado por nenhum compromisso com qualquer
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comercial, uma certa curiosidade pelo autor de determinada obra. Paula Sibilia,
discutindo o assunto, chega a afirmar que nesta nova gerao de eventos literrios
globais que obedecem de maneira explcita lgica da exibio, os principais produtos
em exposio e venda no so as obras mas os prprios festivais e, inclusive, os
fulgurantes autores (Siblia, 2007, p. 159). A prpria obra passa, ento, para segundo
plano, ficando o autor, enquanto pessoa fsica, real, no centro da apreciao (esttica?).
A curiosidade do leitor, seu interesse, passa a residir no mais no que uma dada obra
apresente em seu contedo, mas na figura interessante do autor: a curiosidade se
alimenta em torno do nome, essa facilidade que se torna mais fascinante quanto mais
esquiva e extica (Sibilia, 2007, p. 161). Mirisola parece reconhecer isso. Tanto que se
vale do aparato miditico que potencializa essa tendncia, utilizando os nveis
disponveis (internet, jornais, revistas, televiso) para criar a confuso entre vida e obra,
de modo a torn-las no inseparveis, mas indiscernveis. E, tambm, investindo
radicalmente em uma estratgia de choque, de exotismo, por certo porque assim seu
narrador, diferente. O escritor extico, no por causa de sua obra, cujo valor, j se viu,
bastante relativo, mas fundamentalmente porque insiste em bater violentamente em
medalhes da cultura nacional: no s o narrador de seus textos, mas tambm Mirisola
no poupa ningum, seus ataques verbais se dirigem ao prmio Jabuti, a Caetano Veloso
e Gilberto Gil, s editoras socialmente reconhecidas (e que o ignoram em vultuosos e
ambiciosos projetos literrios), aos fundos de cultura, a seus pares escritores, que
considera menores, etc eventualmente, crticas bastantes similares s que seu narrador
faz.
Mas reitere-se: a confuso sobre o que de fato real nessas opinies farsescas,
performticas, parece no permitir uma leitura totalizante, bem definida. Mesmo a
figura pblica de Marcelo Mirisola bem pode ser uma farsa. Paula Sibilia aponta a
inclinao do sujeito contemporneo em dirigir-se ao olhar do outro, na medida em que
s existe quem visto. Com isso, instalam-se permanentemente, no processo de
construo da prpria subjetividade, estratgias de estilizao de si: o que se v no
mundo virtual e nos reality shows, por exemplo, onde personagens figuram como reais,
mas onde tambm ocorre o contrrio talvez ao mesmo tempo, inclusive , com figuras
reais atuando como personagens.
No ser isso que Mirisola intenta? No estaria ele realmente inserido em um
grande reality show sobre a vida do escritor? Marcelo Mirisola brinca com a
curiosidade, nem sempre legtima, do leitor, fazendo de si mesmo celebridade. Afinal,
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no notvel que seu narrador afirme ter adquirido um carter (Mirisola, 2003, p.
14)? Quanto a isso, vale uma diferenciao conceitual. No dizer de Paula Sibilia, a
transio de uma subjetividade, isto , o eixo em torno do qual se edifica o que se , de
dentro (intro-dirigida) para fora (alter-dirigida) marcada por um deslocamento do
carter a solidez interior do indivduo, sua estabilidade para a personalidade
focada nos efeitos que o sujeito capaz de provocar nos outros: da decorre uma
subjetividade que deseja ser amada a apreciada (Sibilia, 2007, p. 234-35). Mirisola,
por sua vez, parece querer ser detestado, num bvio resqucio de ideia do escritor que
vive margem.
Mirisola confunde, embaralha, mistura os dois termos. O carter de seu
narrador ainda o resqucio da necessidade (e vontade) de ser autntico, diferente,
nico, tpico da escrita de si. Mas, ao mesmo tempo, uma autenticidade que pressupe
o olhar alheio, que busca ser vista e admirada.
Sem dvida, Mirisola autntico. Parece ser. Mas ainda que essa impresso se
fortalea no conjunto de sua obra, os entraves da narrao, as pistas falsas e os falsos
dizeres relativizam a asseverao que se possa fazer quanto a essa leitura: trato de
buganvlias e escarpas, jardinagem e bonsais com a mesma desenvoltura (nunca carade-pau), distanciamento e cumplicidade com que s vezes tudo sob medida deixo
escapulir/sugiro uma confissozinha ertica (Mirisola, 2003, p. 14-15). Em certos
momentos, o narrador explicita mesmo seu intento:
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nova maneira de ser ver, de se descrever, de se narrar (Barbosa, 2008, p. 176). Nessa
perspectiva, o que inventado em um texto autoficcional somente uma
reconfigurao de sua existncia inscrita num texto, o que lhe possvel pelo primado
absoluto do texto e da escrita sobre o vivido (Barbosa, 2008, p. 177).
Os textos de Marcelo Mirisola correspondem, em certa medida, a essas
colocaes. Apesar das semelhanas biogrficas, reiteradas dentro e fora do texto, seu
narrador no tem correspondncia certeira com o autor: sua parecena situa-se num
terreno ambguo demais para ser aferida qualquer verdade. O aparato ficcional,
impossvel de ser comprovado, suplanta e borra o que pode ser tido como efetivamente
biogrfico. o caso das reiteradas vezes em que o narrador cita sua filha que no
nasceu, ou que est desaparecida, ou que morreu. a completude do ficcional, sua soma
junto ao biogrfico, que permite entrever algum trao do sujeito que se esconde por trs
do texto. E exatamente o que diz o narrador de Bangal, discorrendo sobre sua (e
tambm de Mirisola) auto-imolao e sujeio s crticas: meu big-bang cnico,
egosta vingativo e descomprometido com qualquer meleca que se pretenda
elevada, potica e/ou transcendente; cabe, a bem dizer, numa garrafa de Jack Daniels.
Mas ainda no a boa forca. O fato que eles me acharam aqui. E eu no estava
(Mirisola, 2003, p. 62). Afinal, conclui: J que um e outro vo me fuder e no tenho
opo diferente, o negcio dar respaldo presses caras e fingir na medida da
verossimilhana que fui eu mesmo quem escolhi ser o escolhido (Mirisola, 2003, p.
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A narrativa de Marcelo Mirisola, ao se aproximar da definio terica de
autofico, potencializa a confuso gerada pela presena aparente do autor no texto. Se
no possvel falar em graus, tendo em vista que as estratgias ficcionais so
particulares e, por isso mesmo, incomparveis, pode-se no mnimo confirmar que seu
narrador rompe definitivamente com o pacto autobiogrfico de Lejeune, de uma
maneira diferente das de Srgio SantAnna e Bernardo Carvalho. Se no primeiro ainda
h a constncia e a identidade de nomes, o que permite uma leitura orientada para a
questo biogrfica, ainda que problematizada pela limitao da memria e pela
constante reiterao do aspecto ficcional nesses textos; e no segundo, mesmo que no
exista um nome que permita a identificao positiva entre narrador e autor, seja possvel
conceber essa identificao com base em outras similitudes, ainda que questionadas
pelos dilemas da representao factual, diluda na indeciso entre fato e fico; em
Mirisola temos uma estratgia que apresenta o ficcional como complemento do
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De fato, a resposta do campo literrio nacional foi exitosa para o autor: O filho
eterno ganhou as principais premiaes brasileiras no ano de seu lanamento: o Prmio
Jabuti de melhor romance; o Prmio da Associao Paulista dos Crticos de Arte
(APCA) de melhor obra de fico; o Prmio Bravo! de livro do ano; o Prmio PortugalTelecom de Literatura em Lngua Portuguesa; o Prmio So Paulo de Literatura como
melhor livro do ano 2008. Com tantas glrias por seu incensado romance, Tezza,
respeitado nos crculos literrios, alcanou o sucesso comercial e teve, finalmente, a
acolhida do pblico.
Miguel Sanches Neto, por sua vez, a despeito das inmeras referncias em sua
obra que atestam tratar-se de uma narrativa autobiogrfica, prefere, como Tezza,
reafirmar o trabalho da linguagem sobre a memria. Em entrevista revista Agulha,
afirmou:
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Vale lembrar que Chove sobre minha infncia o primeiro romance de Sanches
Neto: foi a obra que o levou a tornar-se um destacado autor contemporneo, parte sua
importante atuao como crtico literrio. Sua hoje vasta produo literria, calcada em
polmicas e elogios, teve incio com essa obra, e sua iniciante carreira literria no foi
poupada de ataques virulentos ao romance, a par com os louvores que recebeu. poca
do lanamento, Miguel Sanches Neto concedeu entrevista ao Observatrio da
Imprensa, onde reafirmava a ambiguidade do romance, inclusive debatendo
abertamente a estrutura da obra, em particular a carta escrita pela irm e o texto de
apresentao da editora: A carta funciona dentro da estrutura do livro, que ficcionaliza
a prpria construo do autor/narrador e do romance/autobiografia. H a carta da irm
do narrador, totalmente fictcia, e h a carta da editora, que tem um sentido que no
meramente publicitrio (Sanches Neto, sem data).
Consciente do cenrio cultural em que se inseria, o autor afirmou que a
resistncia ao seu livro, que, nas suas palavras, decididamente no uma autobiografia
pura, embora seja altamente autobiogrfico, era decorrente do fato de que vivemos
numa sociedade de simulacros (inclusive os de identidade) e descrena no eu. Para mim,
no faz sentido reforar este mundo, busco um desvelamento do autor/narrador, uma
entrega (Sanches Neto, sem data).
As rusgas com o jornalista Jos Castello, quando do lanamento do livro,
evidenciam a confuso instaurada pelo romance e negada, depois, pelo prprio autor.
Castello afirmou, em resenha para a revista Bravo! reproduzida na revista Agulha, que
se o livro de Sanches Neto for um romance, no bom; como livro de memrias,
tambm no. Entrincheirado entre os dois gneros, a narrativa de difcil classificao
no recebe, do resenhista, honraria nenhuma: para ele, o livro repleto de defeitos, pois
no consegue tocar o extraordinrio que se esconde sob a vida comum que foi a do
menino Miguel. O grande questionamento de Castello , no entanto, a opo do crtico
Miguel Sanches Neto de se esconder sob memria em sua primeira obra de fico. A
resposta, hipottica, imediata: Talvez, podemos ainda imaginar, Sanches tenha se
atemorizado no momento de inverter as mscaras e se ver como ficcionista. Tentou
safar-se disso recuando no tempo, abrigando-se na memria remota, ali onde a
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Miguel Sanches Neto transita, na defesa de seu livro, entre a afirmao de que
procura um desvelamento do autor e a objeo de que no se trata, efetivamente, de
autobiografia. Como ocorreu com Cristvo Tezza, o que est em jogo no apenas a
exposio pblica, mas sua reputao no campo literrio nacional.
Exitosos, os romances dos dois autores receberam o reconhecimento da crtica e
do pblico justamente pela engenhosidade com que abordaram as histrias pessoais de
quem os escreveu; no exagero supor que seu mrito esteja encerrado tambm no fato
de que consigam oferecer histrias interessantes sobre situaes dolorosas. Tambm
possvel aventar que justamente a montagem dessas narrativas, com sua ambiguidade
entre real e fico, entre verdade e mentira, entre autor e personagem/narrador, o que
tornou essas obras importantes e destacou ainda mais seus autores: a despeito de sua
importncia no campo literrio, seria precisamente o jogo com o autobiogrfico, o que a
vida privada pode oferecer de interessante, o grande atrativo dessas obras. Por que,
ento, negar o que nelas evidentemente autobiogrfico?
Sem nos aprofundarmos na anlise minuciosa dos mritos ou falhas das
narrativas, que resultaria apenas em um juzo de valor, o que nos importa para esta
discusso a negativa dos autores em confirmar o registro do factual, como se tal
atitude diminusse suas obras.
Chove sobre minha infncia e O filho eterno so narrativas de forte apelo
popular, no porque ofeream, simplesmente, o que os leitores esperam em termos de
pressupostos e expectativas prvias, com bvias concluses moralizantes, mas porque
tratam de vidas, e porque fazem do biogrfico o material da fico. Na esteira do
sucesso de biografias e autobiografias, sua fora reside tambm na resposta que do aos
leitores de como se formaram esses escritores, e a associao direta com o real, com o
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verdico, traz, sim, as obras para o terreno do factual, apesar das negativas de seus
autores. O pacto que incita leitura dos romances como autobiogrficos se firma e se
funde, e mesmo os autores investem nessa direo ao divulgar suas obras, ao passo que,
para defend-las, para atestar sua qualidade literria, negam que as narrativas partam,
fundamentalmente, de suas biografias. A instabilidade dos romances, seu trnsito entre
fico e autobiografia esto colocados nos argumentos dos autores, que ora pendem
para um lado, ora para o outro.
Fica, no entanto, o questionamento acerca do porqu de Tezza e Sanches Neto,
reconhecidos pela crtica, por seus pares, relutarem em admitir que seus romances sejam
histrias reais irrelevante, nesse sentido, que sejam retrabalhadas com
engenhosidade romanesca ou no, na medida em que, embora sejam vendidos como
fico, os dois livros, enquanto projeto, se aproveitam da instabilidade na classificao
e, sobretudo, de sua filiao com a vida real dos autores (nesse sentido, a confuso de
Jos Castello a respeito de Chove sobre minha infncia reveladora: mesmo a crtica
indecisa sobre como abord-la). O que haveria de errado nisso?
Queiram ou no, seus livros foram consumidos tambm como entretenimento.
Afinal, a vida privada de cada indivduo se tornou espetculo e produto a ser
consumido. Em Vida, o filme (1999), Neal Gabler discute como a indstria do
entretenimento nos Estados Unidos instaurou de modo permanente a ideia de que a vida
de cada um de interesse pblico. O movimento artstico mais importante do sculo
XX foi a celebridade, diz, provocador (Gabler, 1999, p. 131). Os filmes
hollywoodianos, com seus astros e estrelas, e a imprensa, com seus tablides
sensacionalistas que convertiam a notcia em espetculo e as pessoas em personagens,
levaram criao dos lifies: o filme-vida que cada um construa para si a partir das
frmulas consagradas do cinema. Vidas passaram a ser consumidas como produtos
culturais, do noticirio ao cinema, do jornalismo literatura: seu interesse no estava
mais circunscrito atuao em determinado filme ou ao mrito de um dado livro. A
vida de pessoas comuns ou extraordinrias passou a ser de interesse pblico. O mercado
cultural se expandia e, atento, cada vez mais procurava oferecer o real autntico, em
detrimento do que parecesse demasiado artificial. Esse real autntico poderia ser visto
nas histrias de vida das pessoas comuns ou das celebridades: A realidade nua e crua
at mesmo a aparncia de realidade nua e crua um entretenimento melhor (Gabler,
1999, p. 86) do que atores interpretando emoes falsas. A febre dos reality shows,
hoje, apenas confirmou o diagnstico.
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arte, h uma vontade de saber tudo acerca daquela outra realidade mais rasteira e
supostamente mais real (Sibilia, 2008, p. 202). Talvez no seja o que h de
extraordinrio no fundo da vida comum, para repetir as palavras de Jos Castello, o
que se espera ou se procura. Assim, reconhecer que contaram a prpria vida , no fim,
de certa forma, deixar de reafirmar seu valor como ficcionistas da a necessidade de
ressaltar o trabalho com a linguagem sobre a memria. Mas, tambm, admitir que
produziram memrias, autobiografia, confisso, nestes tempos em que se busca a
visibilidade total, em que parece haver mrito em exibir-se, em expor-se ao escrutnio
do pblico, colocar-se lado a lado com o que se critica to abertamente um Mirisola,
por exemplo, ou uma Clarah Averbuck, cujas epopias repetitivas de sexo, bebedeiras e
subverses so consideradas subliteratura.
A distino que tenta ser marcada reflexo da busca por um lugar ao sol, um
espao consagrado no cnone nacional que deve ser resguardado, protegido, j que foi
conquistado, como se v pelos dois romances, a duras penas. Ambos tm em comum o
fato de, apesar de tratarem de trajetrias diferentes com O filho eterno focando a
ateno sobre a relao do pai com o filho , abordarem a formao desses escritores.
Eles narram sua gnese como homens das letras. Como tais, preciso que sejam
valorizados, reconhecidos por seu esforo de galgar sua posio no cenrio literrio
nacional. No fundo, tanto Chove sobre minha infncia quanto O filho eterno so
narrativas construdas ainda sob a antiga gide da autenticidade. A grandeza da obra
de Sanches Neto (alardeada j na orelha do livro, com a editora referindo-se ao texto
como uma obra-prima, um romance de formao de primeirssima) est em
justamente mostrar o esforo quase sobrehumano para escapar das agruras da vida em
famlia, onde a literatura foi escape e redeno, uma via alternativa de sucesso em
relao ao trabalho rural, o contraponto obrigatrio que forou pai e filho a se
confrontarem. O romance de Tezza, por sua vez, esconde, sob a capa da crtica
impiedosa do narrador ao pai, a busca obstinada do personagem para fazer-se escritor
uma tarefa que, ao mesmo tempo que ridicularizada em virtude da difcil situao
familiar, , no fim, elogiada por ser a tentativa de desviar-se de um padro de
normalidade, num desejo ardente de ser reconhecido e admirado pelos outros (Tezza,
2007, p. 40).
O narrador Miguel, de Chove sobre minha infncia, precisa fazer as vezes das
fotos, desenferrujar a mquina da memria e trazer de volta alguns paisagens (Sanches
Neto, 2000, p. 10), recapitulando, nessa obra que no de memrias, mas apenas de
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retalhos, alguns falsificados pela recordao e pela fantasia (Sanches Neto, 2000, p.
17), sua corajosa trajetria em que a vida ligada literatura foi a vlvula de escape para
a opresso do padrasto. As letras foram uma rota alternativa quela traada desde cedo
pelo padrasto, um prtico, trabalhador rural que, arbitrariamente e de modo violento,
aoitava os filhos a seguirem seus desgnios.
A identidade de Miguel se constri entre dois plos: de um lado, o pai, morto
precocemente, bomio, galanteador, pouco afeito ao trabalho; de outro, o padrasto
mais tarde chamado de pai , esforado, incansvel, rude. Entre a idealizao do
primeiro e a realidade acachapante do segundo, Miguel constri a prpria vida, aos
tropeos, tendendo ora para um, ora para o outro lado. nesse trnsito que irrompe a
literatura como uma via alternativa, uma outra opo de vida: Todo o meu desafio era
inventar um caminho paralelo, porque, no caminho em que estava meu pai, eu sempre
seria vencido. Tenho conscincia disso apenas agora, quando olho para o passado. S
pude venc-lo por ter conquistado outras armas, que ele no sabia manejar (Sanches
Neto, 2000, p. 94). A distino entre os dois mundos, avessos, contrrios, desde cedo
marcada e o mundo de Miguel, o do estudo, o do indivduo letrado, constri-se, ao
mesmo tempo, como reconhecimento de um dom natural e como um esforo medido
para diferenar-se: Cada vez que me v subindo no caminho, depois do almoo, a me
fica triste. Eu no reclamo, mas ela sabe que no fui feito para esta vida (Sanches Neto,
2000, p. 88).
A literatura ser o espao destinado e essa a palavra, com sua carga de sina e
desgnio a Miguel. a maneira que tem para encontrar-se, mas tambm para marcar o
que o diferencia: No me reconheo na famlia, nem no colgio e nem na cidade. Isso
me empurra, cada vez mais, a buscar meu domnio, o meu territrio, que no sei ainda
bem qual . Leio para tentar descobrir meu lugar nisso tudo, nesse troo estranho que
chamam de vida (Sanches Neto, 2000, p. 160-1). No trecho, ainda que desconhea o
prprio territrio, a leitura que lhe serve de guia, numa jornada de autodescoberta
que mais e mais o afastar em definitivo da lide agrria. Pria, renegado pela famlia,
tido por vagabundo, por mais que tente se integrar realidade local, adaptar-se s
contingncias, esquecer as aptides, no consegue efetivamente desprender-se do
conhecimento literrio adquirido. Naturalmente talhado para outro servio que
no o braal, Miguel cresce sabedor de seu destino brilhante. O romance
engenhosamente acompanha o amadurecimento do narrador, com os captulos
infundindo uma linguagem que vai da ingenuidade infantil revolta desmedida do
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para jornais. Ser no captulo Mos pequenas, uma espcie de carta de intenes do
romance, que o propsito de Miguel ser, por fim, revelado e consumado: o livro para
dar um fundo de verdade ao que minha me fala (Sanches Neto, 2000, p. 240). O
crculo se fecha, o escritor se realiza. Embora modesto, reconhecendo-se um
escritorzinho como tantos outros, Miguel no deixa de dar sua obra uma magnitude
poltica:
Antes a busca por uma marca que o distinguisse dos demais, procurando uma
alternativa a uma vida para a qual no tinha talento na verdade, seu destino era
outro , a literatura agora ganha os contornos de uma misso gloriosa, a despeito do
fecho do captulo, entre parnteses: (A vantagem de ter mos pequenas o fato de
serem imprprias para tarefas e gestos grandiosos) (Sanches Neto, 2000, p. 241).
Herdeiro das runas, captulo que antecede o Eplogo, apresenta a carta da
irm Carmem, que apresenta uma viso discrepante em relao ao padrasto
centralizador. Argutamente, Miguel Sanches Neto resolve, com a carta inventada, o
problema que o personagem apresentava, consequncia da viso estreita e parcial do
narrador: Ficou faltando a pr-histria dele, o perodo anterior ao casamento com a
me, e assim mais fcil incrimin-lo, coloc-lo na pele apertada do vilo, diz a irm
na carta (Sanches Neto, 2000, p. 247).
Com engenho, o romancista Sanches Neto equaciona o impasse da
representao, e a carta da irm apresenta uma outra verso do padrasto. Mas ao mesmo
tempo dignifica o prprio romance: o elogio do xito faz parte da prpria obra.
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O projeto poltico do livro ser o porta-voz dos que vivem no silncio, iletrados
alcanado com sucesso, e o reconhecimento quem faz o prprio autor afinal, a
carta no foi inventada, conforme admitiu? No fim, a realizao plena do escritor,
talhado para esse destino glorioso: foi para isso que resistiu s tantas agruras e
violncia do padrasto e, por isso, seu livro tem ainda mais mrito, porque corrige,
quase acidentalmente, a viso distorcida que o leitor poderia ter do padrasto.
Antecipando-se falsa interpretao, o romance de Miguel Sanches Neto termina sem
viles, mas com um heri redimido.
O filho eterno, de Tezza, tambm narra, entremeada dura aceitao, por parte
do pai, em lidar com situao de ter um filho deficiente, a ascenso do escritor ao
reconhecimento artstico. De fato, o contraste entre os sonhos de grandeza do pai, com
sua ambio literria, e a realidade familiar o grande mote do romance, sendo esse
mais um dos artifcios do narrador para mostrar o quo ridculo esse pai, que no
consegue, nem por um instante, esquecer o grande plano. Assim, se O filho eterno
aborda os conflitos familiares advindos da nova situao da famlia, o livro no deixa de
tratar tambm da inclinao do pai para tornar-se escritor e fugir da normalidade.
A ironia do narrador diante de inpcia do pai em integrar-se a uma vida regular
est exposta j na segunda pgina do romance:
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pode ter por essa via, que um lugar no mundo; cada livro um libi, um atestado de
substituio (Tezza, 2007, p. 144-5).
Passeando com Felipe, o pai incapaz, ainda, de reconhecer as limitaes do
filho , crtico consigo mesmo, pensa que talvez no tenha feito o bastante durante os
primeiros anos, quando o filho foi submetido a tratamentos e mtodos estranhos,
supostamente promissores. A reflexo revela, no entanto, seu egosmo (do filho, o foco
recai bruscamente sobre o pai) e, de novo, filho e obra so igualados, e a literatura,
como maldio, como incmodo e angstia, transparece:
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Ainda que arredio, renitente, o pai, escritor e artista, sabe-se ingresso no den
libertrio. E no foi isso que sempre almejou? A vida prosaica decididamente deixada
de lado, mesmo que reconhea, por fim, que quem carecia verdadeiramente de
normalidade era ele mesmo, e no o filho. Mas a normalidade alcanada de outra
ordem, pois foi possvel amealhar, em meio s vicissitudes da vida, o sonho pessoal.
Finalmente, o reconhecimento, a Vitria Final: sagrar-se escritor. O final, conciliador,
resolve a equao desigual ao longo de todo o romance: vida e obra devidamente
ajustadas, e os filhos, livros e Felipe, podem conviver pacificamente.
O pai um vencedor, porque fez-se escritor mesmo diante das adversidades, e o
filho deficiente, que sempre funcionou como um grilho impeditivo, uma pedra
silenciosa no meio do caminho (Tezza, 2007, p. 112), converte-se na maior das
barreiras transpostas. Embora o achincalhe do pai pelo narrador revele uma vontade de
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ser sincero, ou de, pelo menos, purgar parte da culpa que sentiu diante do filho
deficiente e da fuga tantas vezes planejada do problema, o romance ao mesmo
tempo um pedido de desculpas em pblico e uma busca pela admirao. Como diz
Michel Leiris, na base de toda introspeco h o gosto de contemplar-se, (...) no fundo
de toda confisso h o desejo de ser absolvido (Leiris, 2003, p. 18).
Assim, tanto Chove sobre minha infncia quanto O filho eterno, so obras que
narram a formao desses escritores. Em meio guerra particular de cada um deles para
firmar-se como autores, em situaes que em tudo conspiraram para o contrrio, ganha
destaque sua persistncia em insistir em tal projeto. Apesar de lidarem, obviamente,
com a trajetria de vida desses autores, que estejam ancorados em aporte to rasteiro,
por assim dizer, como o real, como a memria e a experincia individuais, parece depor
contra sua atuao no campo, como se o que tivessem feito fosse testemunho, e no
literatura da a necessidade de reafirmar o carter ficcional da obra. Afinal, foi para
isso que tanto brigaram.
Tal relutncia no limitada a Tezza e Sanches Neto. Bernardo Carvalho, em
entrevistas a respeito de livros posteriores a Nove noites e Monglia, mostrou-se
profundamente aborrecido com o fato de os leitores terem tomado as histrias dos dois
livros como reais uma forma de negar o estatuto privilegiado, para ele, da criao e da
imaginao. Em entrevista a Beatriz Resende quando do lanamento de O sol se pe em
So Paulo, disse:
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reduzido a um relato da realidade por causa da atitude dos leitores diante da obra,
uma maneira de tentar dar visibilidade ao aspecto criativo de todo o processo literrio
para ele, esquecido na recepo dessas obras.
Mas justamente por no se aferrarem criao, ao que h de ficcional, por
conseguirem esquecer que esto lendo fico, que os leitores fazem tais romances
funcionarem: a armadilha se fecha, somos todos enredados na trama. Traioeiramente,
seus romances nos atropelam com seus fundos falsos de verdade, e a discusso, que era
claramente uma preocupao para o autor, se consuma. Se os livros funcionam como
o esperado, fazendo-nos transitar entre a verdade e a mentira, entre o fato e a fico,
fazendo-nos tomar por real o que inventado, o problema deve estar em outro lugar: no
interesse e na atrao dos leitores pelo efeito de realidade um interesse claramente
menor, se comparado ao que realmente importaria, o gosto pela fico.
Porque a biografia um verdadeiro romance, conforme coloca Franois Dosse,
ela continua sendo vista com desconfiana. Alis, justamente por mesclar histria e
fico, pelo inevitvel escopo particular de quem redige a biografia, pela recorrncia
imaginao para preencher as lacunas incompletas dos fatos e documentos, pela empatia
que integra biografista e biografado, que a biografia recebe descrdito entre os
historiadores, sendo um parente pobre, de um gnero menor, desdenhado e relegado a
alguns polgrafos sem prestgio intelectual (Dosse, 2009, p. 171).
A autobiografia parece receber tambm um sinal negativo em virtude de suas
semelhanas com a biografia, j que ela compartilha das falhas do projeto biogrfico,
sobretudo em sua ambio totalizante; mas esse demrito ocorre tambm porque o falar
de si oculta e revela, no fundo, uma vaidade sempre coagulada. A despeito do bvio
interesse que provoque, ela sempre uma chaga que enaltece o ego de quem a escreveu.
Aliada prevalncia do vivido sobre a criao, a autobiografia, gnero hbrido, parece
sempre ser menor, como se o esforo criativo para torn-la possvel no a irmanasse, de
certa forma, ao gnero romanesco.
Se ponto pacfico que nenhum sujeito pode falar plenamente de si mesmo, se o
eu sempre escapa s amarras da linguagem, se qualquer relato tende a estampar a vida
que lhe serve de matria-prima, essa valorao negativa deve estar atrelada a outros
aspectos, alm desses. A distino, est claro, entre a vida, menor, e a arte, que deve
tratar da Vida em maiscula. Reverberando ecos romnticos, a pressuposio de tais
autores de que, presunosamente, pode-se dissociar por completo arte e vida em
narrativas que abertamente se compem de material biogrfico. uma reverncia
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literatura como valor, e criao como mrito. Ainda que reconheam (e tambm ns,
no fim) que tais livros possam ser lidos como romances muito por causa dos recursos
empregados, e no apenas porque seus autores afirmem isso Tezza e Sanches Neto
precisam ainda repisar o terreno de sua criao, ressaltando a fico. A vida dos dois, se
estiver l, poder ser apenas entrevista nas dobras do artifcio romanesco.
O resultado desse imbrglio interessante: apesar de se esconderem sob a capa
do narrador, insistindo em distinguir-se dele, tais autores reafirmam sua prpria posio
como uma instncia importante de elucidao no jogo literrio. Afinal, o hibridismo dos
dois romances parece tender a ser resolvido apenas pelas declaraes dos autores acerca
de seus livros: trata-se ou no de autobiografia? Esse impasse somente poder ser
solucionado mediante a afirmao autorizada de quem o escreveu, a despeito de como
se leia as obras. Novamente, quem entra em cena o autor, magnnimo e soberano, e o
narrador se dobra ao papel de mero recurso esttico.
No ensaio O autor como narrador, Jos Saramago discute essa dissociao
entre narrador e autor realizada pela crtica. Incomodado com o fato de que, em
comparao com outras artes, como a pintura, a crtica literria privilegia uma instncia
mediadora que separa autor e obra, Saramago, preocupado, questiona se tal distino
no estar a contribuir para a reduo do autor e do seu pensamento a um papel de
perigosa secundaridade na compreenso complexiva da obra. Mais ainda, enxergar
narrador e autor como entidades diferentes renegar as responsabilidades inerentes ao
ofcio de escritor:
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autor; e, ainda que considere a possibilidade de que o leitor leia uma obra na secreta
esperana de descobrir no interior do livro mais do que a histria que lhe ser narrada a
pessoa invisvel mas omnipresente do seu autor (Saramago, 1998, p. 27), no cabe a ele a
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podem elucidar o mistrio. A chave das obras reside, portanto, na explicao de seus
autores, e o fato de a crtica se voltar questo no deixa de ser, por si s, revelador. Da
mesma forma, a postura de Bernardo Carvalho, querendo o primado da fico sobre o
real, resistente em dar entrevistas sobre Nove noites, apesar de sugerir que a obra deva
falar por si s, lhe preserva, por outro lado, na segurana respeitosa de criador.
Tezza e Sanches Neto se esquivam porque o que est em jogo , no fim, sua
reputao como criadores; Bernardo Carvalho parece incomodado com o fato de que, j
sendo um criador de respeito, seu livro de maior prestgio seja justamente aquele que
imbrica a sua histria com a do narrador. Afinal, que outra alternativa supor em relao
resistncia dos autores em confirmar, no caso de Cristvo Tezza e Miguel Sanches
Neto, que seus romances partem do que viveram que contam, fundamentalmente, suas
histrias de vida? Naturalmente, o valor da obra e do autor o que est posto prova: a
vida, em minscula, se recolhe para a apario da grande arte.
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91
chave da casa (2007), romance que lhe serviu como tese de doutorado em que a autora
explora o conceito de autofico; e Paloma Vidal, que se utiliza largamente da
experincia pessoal como imigrante para compor seus enredos, em livros como Mais ao
sul (2008).
Ento, voltando pergunta: por que agora essa tendncia? Que fatores a levaram
a se estabelecer como uma preocupao reinante, ou, pelo menos, importante dentro do
cenrio da literatura atual?
Nossa suposio, como j se argumentou aqui, que trata-se de uma resposta
instabilidade do eu: com a identidade em frangalhos, fraturada, em colapso, esse sujeito,
ao fazer referncia a si mesmo a todo momento, procura reafirmar-se, definir-se, tornarse coeso novamente ainda que essa unidade seja passageira ou ilusria.
Esse eu que se narra, e que se constri enquanto se narra, no pode esquecer por
um momento que seja de sua limitao, de sua parcialidade. Ele no pode, como dizia
Adorno, deixar de reconhecer sua inevitvel perspectiva (Adorno, 2003, p. 60). O
mundo no est a, disponvel, espera da representao. Por isso, a funo do narrador,
consciente de sua prpria dificuldade de narrar em um mundo onde a experincia est
dilacerada, onde o prprio ato de narrar se torna ideolgico e presunoso porque
estabelece uma ordem em uma realidade onde a ordem no est clara , dever ser
sempre uma tomada de partido contra a mentira da representao (Adorno, 2003, p.
60). Logo, antes de se conformarem a um modelo de narrador tradicional, que via o
mundo como um processo de individuao, como se o indivduo, com suas emoes e
sentimentos, ainda fosse capaz de se aproximar da fatalidade, como se em seu ntimo
ainda pudesse alcanar algo por si mesmo (Adorno, 2003, p. 57), esses narradores
promovem, de fato, um passeio pela casa de mquinas de seus romances, dando ao
leitor a possibilidade de vislumbrar a engenhosidade da narrativa, seu funcionamento,
seus bastidores a mentira da representao em que se funda essa narrativa do eu.
A escrita de si encontra seu apogeu com a ascenso da classe burguesa, quando o
inchao e a consequente formatao das metrpoles acabam por definir um mundo
pblico artificial e ameaador, onde o indivduo no poderia ser quem realmente . Da
que, na segurana do lar, estabelea para si a tarefa de colocar no papel sua real
identidade, conjurando medos e sonhos sinceros que no podem ser expostos na vida
pblica. Esse processo ser, depois, arrevesado pela questo da sinceridade: em que
medida a simples enunciao de que digo a verdade para e sobre mim mesmo garante
que trata-se, realmente, da verdade? Em oposio, mas tambm em substituio a esse
92
estatuto, entra em cena a autenticidade: no tendo a certeza de que aquilo que digo sobre
mim verdade, o que posso registrar que me diferencie dos outros? O que me separa da
amorfa e prosaica vida pblica?
Tais questes continuam se fazendo presentes, mas em menor escala. Nos
romances e contos analisados, a questo da sinceridade ainda paira e, em Mirisola, a
autenticidade que impera. Mas, hoje, esses aspectos parecem ter perdido sua fora no
que toca a essa escrita de si que aqui abordamos, pois trata-se no de uma escrita ntima,
mas de uma narrativa declaradamente ficcional. O pressuposto de que seja
autobiogrfica est sempre encerrado no fato de que veiculada como fico, e no
como memria ou autobiografia. Mas, ento, e essa a nossa indagao, o que leva a
fico a se valer de uma modalidade de leitura, digamos, obsoleta, em virtude de suas
reconhecidas falhas ao arvorar-se em ser totalizante no que diz respeito experincia e
identidade individuais?
Susan Sontag, ao abordar as consequncias da fotografia na cultura
contempornea, afirma que seu surgimento obliterou as outras artes que visavam uma
representao da realidade, porque sua capacidade de realizar essa mesma tarefa era
maior: o figurativo tornou-se, cada vez mais, propriedade da cmera fotogrfica e de sua
extenso, o cinema, sendo eles os responsveis por reproduzir e criar realidades no
mundo atual. Ainda que seja questionvel seu status de documento, a imagem
fotogrfica fez com que a literatura perdesse fora como representao fidedigna do
mundo; ao contrrio da fotografia, cada vez mais reafirmava-se a artificialidade da obra
literria. Da que, hoje,
a nica prosa que parece confivel para um nmero cada vez maior de
leitores [] o registro cru fala, editada ou no, registrada em fitas de
gravador; fragmentos ou textos integrais de documentos subliterrios
(atas de tribunal, cartas, dirios, relatos de casos psiquitricos etc.);
relatos desleixados, autodepreciativos, no raro paranicos, feitos em
primeira pessoa (Sontag, 2004, p. 89).
Em suma, tem-se hoje o gosto por uma literatura que, cada vez mais, nega o
ornamento para concentrar-se no real tal como o imaginamos ou o concebemos. De
outro lado, tem-se tambm a atrao por atvicos mundos de fantasia, numa busca pelo
reecantamento da realidade prosaica marca que merece maior estudo e ateno, no
sendo, porm, o foco desta discusso.
93
94
procurando, cada vez mais, o real em si, a coisa autntica, preferindo, assim, sempre
algo que no parea encenado (Sibilia, 2008, p. 195).
Paula Sibilia argumenta que, no incipiente sculo XXI, as personalidades so
convocadas a se mostrarem (Sibilia, 2008, p. 23): ao contrrio do que se via no sculo
XIX, pice da escrita ntima como fenmeno cultural, em que dirios e memrias eram
uma maneira de, por meio da introspeco, entender a si mesmo e resguardar-se do
mundo, hoje a escrita de si, em sintonia com a cultura da visibilidade de nosso tempo,
opera mais como uma forma de se fazer ver, de ser notado. Se antes a escrita de si tinha
por objeto tambm a confisso dos pecados ntimos, a fim de purg-los da alma, hoje,
com a profuso de inovaes tecnolgicas e miditicas, como blogues, vlogues e afins,
essa confisso torna-se tanto melhor quanto mais visvel for: o expurgo dos erros
pessoais torna-se midiatizado, e quer se fazer ver. As identidades tornam-se, cada vez
mais, alterdirigidas, exteriorizadas. Trata-se de uma subjetividade que busca a
aprovao do outro, que deseja ser amada, compreendida, vista. Ser visto uma forma
de sentir-se existindo: uma maneira de permanecer em um mundo onde o presente
saturado de flashes e instantneos, o que torna o tempo fluido e fraturado, descontnuo
deixa obscura e nebulosa a possibilidade de um futuro seguro.
Pisando em falso, tateando o porvir e o presente, instveis demais, somos, cada
vez mais, convocados a nos mostrarmos, o que gera, como consequncia, uma vontade
no apenas de nos fazermos ver, mas tambm de vermos o outro: o consumo das vidas
alheias, sempre nossa disposio, aumenta, com os reality shows sendo o ponto
mximo dessa tendncia. No ser por outro motivo que a grade de programas na
televiso esteja cada vez mais abarrotada de atraes sobre a rotina das celebridades ou
o dia-a-dia das pessoas comuns. Cada vez mais, ser visto uma maneira de sentir-se
existindo em uma sociedade em que a imagem firma o estatuto da realidade: se
ningum v alguma coisa bem provvel que essa coisa no exista (SIBILIA, 2008, p.
112). E o curioso que, sendo vidas reais, ns tendemos a consumi-las como fico.
Conforme diz Paula Sibilia,
95
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verses de Salinger: Dalton Trevisan e Rubem Fonseca, com sua recluso alimentando a
curiosidade no s de leitores, mas da crtica e da imprensa.
Paula Sibilia argumenta que, nesse quadro, o arsenal miditico, ao fabricar
celebridades, transfere a aura de uma obra, tal como conceituada por Walter Benjamin,
para a personalidade do autor. O que haveria de nico, de insubstituvel em uma obra,
residiria agora na figura do artista. Dessa maneira, a escrita de si guarda dois aspectos:
de um lado, a identidade de nomes entre autor e narrador uma estratgia radical de
verossimilhana que intensifica a aluso ao real em um mundo em que o real
disputado, em que busca-se, cada vez mais, o autntico, em oposio ao encenado; de
outro, ela sintoma de um tempo de culto personalidade, em que a figura pblica
merece destaque na medida em que ser visto existir, reflexo de um tempo em que a
qualidade da obra resvala para o autor em si.
A escrita de si oferece, portanto, uma viso do real e sacia a curiosidade de um
leitor vido por bisbilhotar a vida do autor. Mas a estratgia encerra uma crtica: afinal,
ao sugerir ao leitor que trata-se, enfim, de uma histria real, pessoal do autor, o jogo de
nomes, questionado no mesmo instante em que se estabelece, critica essa mesma
curiosidade, porque no a mitiga de vez. O que resta, sempre, como se viu, a
impossibilidade de aferio de que se trata da verdade, porque a dvida permanece
sempre entre o e o no .
Esse eu que narra sua prpria vida no pode ser tomado, portanto, apenas como
um sujeito que recompe sua iluso biogrfica, conforme nos fala Pierre Bourdieu:
no se trata somente de estruturar a prpria vida em termos de causa e efeito,
construindo para si uma identidade coerente que, na verdade, sobretudo dispersa. De
fato, essa estratgia literria responde ao anseio ps-moderno em torno dessa
subjetividade lacerada, e est de acordo com essa inconstncia identitria, na medida em
que, ao mesmo tempo em que se afirma, questiona-se a todo momento. Mas ela ,
tambm, o reflexo de uma cultura para a qual o real importa, porque parece distante,
frente s inmeras possibilidades de realidades discrepantes e contraditrias veiculadas
no meio cultural; ela o reverso da medalha de uma subjetividade que, para construirse, para sentir-se coerente, busca a todo instante ficcionalizar-se, atribuindo a si prpria
modelos, caracteres e estilos consagrados pelo cinema, pela literatura, pela televiso,
mas que, ao mesmo tempo, nega, de certa forma, esse real ensaiado, mascarado pela
fico. O eu que irrompe nesses textos replica esse desejo pelo real em si: como se o
fantasioso, o mgico, o imaginado no bastasse; o que se procura a realidade, mesmo
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que seja tomada como entretenimento, satisfazendo, no fim, uma curiosidade pelo autorcelebridade tornada mais e mais legtima como etapa do jogo literrio.
Mas esse eu surge nas narrativas como uma apario em nada palpvel, ilusria,
fantasmtica: posto em questo, o sinal de que a identidade ainda est em disputa, de
modo algum consolidada. Pelo contrrio, ela ainda um elemento a ser buscado, porque
esse eu no pode mais dizer sobre si mesmo com garantia ou segurana. , por isso, a
crtica desses autores ao mesmo quadro em que esto encerrados, e que compem: o
real no o bastante, mesmo falar de si nunca ser suficiente e dado como certo, porque
o eu fugidio, errante. , tambm, uma espcie de fazer-de-conta: pressupe-se que,
ali, nas narrativas, esto presentes no alter egos, mas os autores em si. Problematizada
a identidade de nomes, a estratgia que traga o leitor para dentro do jogo abastece e
nega a curiosidade pelo autor enquanto arrasta o leitor para dentro do certame,
iludindo-o com uma alegada tentativa de autobiografia, os autores aqui discutidos
deixam esse mesmo leitor prpria sorte, permanentemente indeciso sobre como
abordar a narrativa.
No fim, ser mais uma vez o real sendo disputado, na medida em que,
novamente, ele questionado. Quando apelam, dentro dos textos, para os indcios que
incluem sua vida pessoal, Srgio SantAnna, Bernardo Carvalho e Marcelo Mirisola
dizem tambm da insuficincia da representao, e investem nessa problemtica
partindo daquele que seria, justamente, o ponto mais seguro, o nico a estar alm de
qualquer discusso: a identidade prpria. Pois se correto que ela cambiante, sempre
tensionada, vacilante, tambm, por outro lado, vivida como plena: a confortadora
narrativa do eu, conforme diz Stuart Hall (2001, p. 13), ou a iluso biogrfica de
Bourdieu no so, a todo instante, questionadas por ns, enquanto vivenciamos o
cotidiano muito embora, eventualmente, a dvida irrompa, sem que, no entanto,
fiquemos estticos na indeciso da identidade.
A casa de mquinas deixa-se ser vista para que o leitor perceba, justamente,
que apesar de dizerem sobre o mais elementar dos reais o eu , esses autores
procuram indicar que, no fundo, a realidade, assim como a identidade prpria, estaro
sempre alm ou aqum: a literatura no ser seu reduto; nela no se encontrar o real em
si, sem encenao, autntico; nela no se ver o autor real, e dele no se saber nada.
interessante que esses autores se valham dos cdigos do realismo esttico, que
sempre esteve autorizado a nos dizer sobre como a realidade legitimando, por vezes,
esteretipos e preconceitos para, justamente, question-lo. Afinal, o real como dado e
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sua representao pelo realismo esttico fizeram parte, por muito tempo, de nossa
experincia cotidiana. Partindo da representao pictrica nas artes plsticas e na
literatura, ele hoje pode ser visto como fundamento dos noticirios, do cinema, das
novelas, dos documentrios. Se hoje ele algo a ser discutido, tal fato deve-se
sobrecarga de informaes sobre esse mesmo real, veiculadas e difundidas a todo
momento pelas variadas mdias, que oferecem sempre verses de uma realidade que
mostra-se distante, insondvel. A profuso de imagens que tornam um evento mais real,
conforme nos diz Susan Sontag, leva a esse questionamento. A manipulao da
fotografia, o espelho do real, pe em pauta essa realidade verificvel, confirmada. As
narrativas do eu que discutem esse mesmo eu confirmam e desconfirmam o autor como
um elemento literrio e cultural a ser investigado.
No fim, o que nos resta a sensao angustiante de que, se impossvel falar de
si, na medida em que a identidade pessoal um problema, sendo, ento, tambm a sua
representao algo a ser debatido, torna-se ainda mais complicado representar o mundo.
Com seu jogo, SantAnna, Carvalho e Mirisola questionam a legitimidade do realismo
esttico em atribuir sentidos ao nosso cotidiano: como possvel falar do mundo, se
nem sobre si mesmo pode-se afirmar qualquer coisa? Como possvel dizer do real, se
o eu e a inevitvel perspectiva nos dizem que o real um ponto de vista?
a angstia do observador de segunda ordem de Gumbrecht: o mundo e o real
dependem de minha observao sobre ele para fazerem sentido. Ele no um dado,
mas uma interpretao. A negao do pacto autobiogrfico por parte desses autores
revela sua aguda conscincia em relao quilo que podem dizer: a literatura jamais ser
o bastante.
Em Da literatura como tauromaquia, texto que abre A idade viril, Michel
Leiris (2003) recupera sua inteno inicial quando deu incio redao de sua
autobiografia: tratava-se, na poca (a primeira edio da obra de 1946), de encontrar
uma maneira de colocar-se nu diante dos outros, dispondo-se, inclusive, a enfrentar
sanes e perigos em virtude daquilo que revelava, segundo o autor, objetivamente
sobre si. Revelar-se era, para Leiris, uma maneira talvez a nica de fazer a literatura
tornar-se anloga atividade do torero: era mostrando-se por inteiro, sem fabulaes,
sem censuras, concentrando-se nos fatos, que o escritor poderia inserir em sua obra
aquilo que para o toureiro representa o perigo maior o chifre acerado do touro
(Leiris, 2003, p. 16). A autobiografia de Leiris visava, ento, um risco real: sem a
possibilidade desse perigo, dessa ameaa material, que representa a realidade
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cenrio: suas figuras pblicas tornam-se indissociveis daquilo que foi veiculado, nas
obras, como semelhante a suas prprias vidas.
O que esses autores sugerem em suas narrativas o reflexo da cultura de nosso
tempo: brincam fazer alarde sobre uma identidade que precisa ser vista, que precisa
exibir-se para saber-se existindo, redimindo pecados, organizando vivncias,
oferecendo-se curiosidade alheia; fingem transparecer uma espontaneidade e uma
verdade expressiva em uma poca em que escritores e artistas se transformaram em
celebridades, objeto mximo de apreciao e popularidade que destronou, em certa
medida, a obra de seu lugar, tomando-lhe o posto em termos de importncia; jogam com
a possibilidade do real, ao imbricar indcios que no garantem apenas a
verossimilhana, mas que parecem apontar diretamente para o real isso em uma
sociedade que busca a experincia autntica, verdica, concreta, e no a falsificada,
produzida, fabricada. No fim, os recursos empregados fazer ser visto na narrativa,
para, em seguida, esvanecer instauram uma outra realidade, se pudermos cham-la
assim, to real, palpvel e verdadeira quanto a primeira: exibindo-se, os autores se
escondem, e garantem relativa proteo nessa segunda realidade criada pela escrita.
O conto Uma visita, domingo tarde, ao museu, de Srgio SantAnna,
presente no livro Notas de Manfredo Rangel, reprter (a respeito de Kramer) (1973),
narra o passeio de um grupo de visitantes a diversas galerias de um museu, onde veem
inmeras obras, das mais variadas escolas. Proliferam-se nomes de autores e obras. Ao
final do passeio, o grupo, cansado, faz uma pausa numa varanda. Do outro lado, h uma
amurada idntica, onde outro grupo de visitantes, idntico ao do narrador, com a mesma
composio de estrangeiros, vestidos da mesma maneira, tambm descansa. SantAnna,
sagaz, e antecipando em muitos anos a tendncia que se confirmou sintoma, conclui seu
conto com um final que explicita a questo aqui abordada: a curiosidade tornada
legtima e consagrada na apreciao da arte, e a exposio de si tornada, enfim,
espetculo e pea de museu: Ns estvamos ali, na varanda quadrada. Ns estvamos
ali, olhando para eles, a olhar-nos, olhando para eles, a olhar-nos, olhando para eles, a
olhar-nos, olhando para eles, a olhar-nos, olhando para eles, a olhar-nos, olhando para
eles, a olhar-nos, olhando para eles, a olhar-nos... (SantAnna, 1997, p. 137). Ver o
outro e ser visto com curiosidade faz parte, agora, do jogo de fruio da arte. Mas,
no caso de Srgio SantAnna, Bernardo Carvalho e Marcelo Mirisola, esse eu que
acena, que se revela, que se exibe, encena o ato de forma cnica: uma piscadela para o
leitor de que tambm eles, autores, esto observando quem os observa.
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