Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educao e Humanidades

Instituto de Letras







Danielle dos Santos da Silva




Crnicas: publicando segredos











Rio de Janeiro
2012

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CATALOGAO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB










Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta
dissertao desde que citada a fonte




__________________________ __________________
Assinatura Data



S586 Silva, Danielle dos Santos.
Crnicas: publicando segredos / Danielle dos Santos Silva.
2012.
86 f.

Orientadora:. Ana Cludia Viegas
Dissertao (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.

1. Crnicas brasileiras - Teses 2. Autobiografia na literatura -
Teses. 3. Espao pessoal - Teses. 4. Comunicao de massa e
literatura - Teses. 5. Medeiros, Marta, 1961- Crtica e interpretao
Teses. I. Viegas, Ana Cludia Coutinho. II. Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Ttulo.


CDU 869.0(81)-94
2

Danielle dos Santos da Silva

Crnicas: publicando segredos


Dissertao apresentada, como requisito
parcial, para obteno do ttulo de Mestre,
ao Programa de Ps-Graduao em Letras
da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. rea de concentrao: Literatura
Brasileira.

Aprovada em: 03 de abril de 2012.

Banca examinadora:

_______________________________________________
Prof. Dra. Ana Cludia Viegas (Orientadora)
Instituto de Letras da UERJ

_______________________________________________
Prof. Dra. Ana Lcia Oliveira
Instituto de Letras da UERJ

_______________________________________________
Prof
a
. Dra. Ana Cristina Viegas
Colgio Pedro II





Rio de Janeiro
2012
3

DEDICATRIA





















Aos amigos e a minha famlia, que me
apoiaram nas minhas invenes.





4

AGRADECIMENTOS:


Prof. Dr. Ana Cludia Viegas, pela orientao, pelos ensinamentos e,
especialmente, pelos conselhos que se transformaram em aprendizado;
Aos Profs. Drs. Ana Cludia Coutinho Viegas, Ana Cristina dos Santos, Ana Cristina
Rezende Chiara, Ana Lcia de Machado Oliveira, Carmem Lcia Negreiros de Figueiredo e
Claudia Maria Pereira Almeida, que enriqueceram meu caminho e me apresentaram novas e
fantsticas ideias;
Aos Profs. Drs. Ftima Cristina Dias Rocha, Ana Cludia Coutinho Viegas, Ana
Cristina Coutinho Viegas, Ana Cristina Rezende Chiara e Srgio da Silva Barcellos por darem
incio ao meu fascnio pelas escritas autobiogrficas e a revoluo miditica.
s Prof.s Dr.s Ana Lcia Machado de Oliveira e Ana Cristina Coutinho Viegas por
me acolherem em suas turmas, como estagiria.
Aos colegas de mestrado, especialmente Juliana Carvalho, pela torcida de sempre,
pelo apoio e pela troca de ideias;
Aos queridos amigos que partilharam anos de UERJ comigo, Luiz Alberto e Maria
Nilza;
A minha famlia, pelo apoio e pelas muitas horas de pacincia;
Aos companheiros de trabalho, pelo interesse e pela torcida, especialmente minha
chefa Ana Lcia;
Aos amigos que fazem parte da minha vida, pelo interesse em me ajudar e,
especialmente, pela compreenso com a minha ausncia e as muitas vezes em que sa eu, eles
e os meus livros.







5

curioso como no sei dizer quem sou. Quer
dizer, sei-o bem, mas no posso dizer. Sobretudo
tenho medo de dizer porque no momento em que
tento falar no s no exprimo o que sinto como o
que sinto se transforma lentamente no que eu
digo.
Clarice Lispector
6

RESUMO


SILVA, Danielle dos Santos da. Crnicas: publicando segredos. 2012. 86 f. Dissertao
(Mestrado em Literatura Brasileira) Instituto de Letras, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

As escritas ntimas passaram por diversas mudanas no decorrer da histria das
sociedades e tambm da literatura. Acompanhando as mudanas sofridas pelo sujeito e a
forma como o mesmo se relaciona com o mundo, as escritas ntimas se integraram e se
modificaram, associando-se, mais recentemente, s novas modalidades de comunicao e
atuao das variadas mdias, que colaboram com o delinear da conjuno entre os elementos
pblicos e os privados. Na literatura, essas alteraes foram percebidas e aproveitadas como
forma de produo. A crnica aparece como foco de anlise deste trabalho, pois ganha
destaque no cenrio atual por ser um formato capaz de atender ao dinamismo contemporneo
e se estruturar associando a fala pessoal ao coletivo, integrando os espaos ntimos aos
pblicos e construindo a relao de proximidade entre autor e leitor, comum na atualidade.
Como visualizao dessas caractersticas, surge aqui a anlise de crnicas da autora
contempornea Martha Medeiros.

Palavras-chave: Autobiografia. Espao biogrfico. Pblico. Privado. Crnicas. Mdias.

ABSTRACT


The writings about one's self have changed a lot throughout the history of societies and
literature. Following the changes which the subject has been through and the form like this
subject is related to the world, these writings got integrated and also changed. More recently
they got associated to new kinds of communication and to the performance of varied media.
This association defined the blending of public and private elements. There also have been
changes that were noticed in literature and that were thus, used as forms of production. The
focus of the analysis of this paper is the "short story", not only because of its special place in
literature, but also because of its form, which is capable of being adapted to the current
dynamism and structure putting together both personal and collective spoken language,
integrating personal ideas to public ones. This integration brings a relationship of proximity
between the author and the reader, something that is very common nowadays. Considering
these characteristics, here it is an analysis of the short stories written by Martha Medeiros,
who is a contemporary author.

Keywords: Autobiographic. Biographical Space. Public. Private. Short Stories. Media.

SUMRIO
INTRODUO ................................................................................................ 09
1 AUTOBIOGRAFIA: QUANDO A 1 PESSOA COMANDA O TALK SHOW 11
1.1
A histria da inveno ....................................................................................
11
1.2 Como voc se escreve? .................................................................................... 17
1.3
Hoje em dia... ....................................................................................................
28
2 UM UNIVERSO NO TO PARTICULAR................................................. 34
2.1 A iluso de uma contradio ........................................................................... 44
2.2 Entendendo o pblico e o privado hoje .......................................................... 46
3 CRNICAS: O ENCONTRO DO EU COM O MUNDO ....................... 55
3.1 Um pouco mais de histria ........................................................................... 55
3.2 A construo da crnica enquanto elemento autobiogrfico ....................... 58
3.3 A crnica na atualidade .................................................................................. 61
3.4 Lendo as crnicas de Martha Medeiros ......................................................... 64
4 CONCLUSES ................................................................................................ 75
REFERNCIAS.............................................................................................. 77
ANEXOS ........................................................................................................... 80

INTRODUO


As escritas ntimas constituem uma ferramenta eficaz para a configurao do sujeito
que escreve. Nas ltimas dcadas, a escrita autobiogrfica assumiu um papel de destaque nas
publicaes, tendo importante participao no universo literrio. A propagao dos diversos
gneros da escrita autobiogrfica colabora para a fluidez entre os espaos privado e pblico.
Alm disso, coopera com a renovao do desejo de compartilhar e do interesse pelo outro.
Surgem desafios relativos exposio do eu, intensificados com a revoluo miditica das
ltimas dcadas.
Como compreender o papel da escrita ntima no espao pblico? Esse um dos pontos
que este trabalho pretendeu discutir, considerando os diversos encaminhamentos do sujeito e
da vida coletiva, e refletindo sobre o cenrio contemporneo.
Atravs da anlise do papel das escritas ntimas na contemporaneidade, surge a
conscincia da impossibilidade de definir gneros rigidamente demarcados. Contempla-se, a
partir da leitura de Leonor Arfuch (2010), a existncia de um espao biogrfico, capaz de
comportar as relaes entre os diferentes gneros das escritas ntimas. Os mais variados
formatos de escritas ntimas no se desintegram, no perdem suas caractersticas, nem se
transformam em um gnero nico, mas j no se sustentam isoladamente e passam a existir
dentro de um conjunto integrado. A percepo desse espao possibilita, tambm, definir que
as produes atuais so capazes de, em uma mesma criao, envolver realidade e fico.
No primeiro captulo, o foco do assunto se concentrar nas reflexes em torno da
escrita autobiogrfica e de seus diversos formatos. Pensar em como a escrita ntima se
comporta hoje em dia e como vem acontecendo a formao desse espao biogrfico so
vertentes desenvolvidas nessa primeira parte da pesquisa.
Ao mesmo tempo, torna-se fundamental notar que as escritas ntimas j no se limitam
obscuridade do segredo e que a criao do espao biogrfico define, tambm, a atenuao
da postura privada da escrita de si. a diluio dos limites entre o pblico e o privado se
acomodando ao cenrio contemporneo.
O segundo captulo tratar, assim, da relao entre o pblico e o privado dentro das
novas percepes. Os segredos e a intimidade se mostram conceitos relativizados, pois, em
uma era dominada pela exposio miditica, como descobrir os limites para divulgar a si
mesmo e a prpria vida e suas particularidades? A escrita autobiogrfica contempornea se
10

situa na tenso entre a exposio e a preservao, em um cenrio onde os limites entre o

pblico e o privado j se mostram bem tnues.
A crnica se revela o objeto de estudo central, surgindo no terceiro e ltimo captulo.
Como um gnero adequado atualidade, por se mostrar capaz de integrar a escrita pessoal,
marcada pelo emprego da primeira pessoa, exposio, estendendo sua temtica ao coletivo,
a crnica desponta como foco das reflexes que atuam nesta construo.
Mesclando os espaos pblico e privado, o autor alcana o leitor, despertando no
mesmo o interesse pela obra e fazendo com que este interesse se estenda a sua figura tambm.
A intensificao desse processo colabora para proporcionar a identificao entre ambos. Por
se mostrar um gnero de valor mpar na atualidade, a crnica o foco principal deste trabalho,
enquanto objeto de anlise, para compreender melhor as relaes entre o pblico e o particular
na escrita contempornea.
Levando em considerao a necessidade de pensar na crnica como instrumento dessa
integrao entre o pblico e o privado no espao contemporneo, surgiu a escolha da autora
Martha Medeiros, cronista atuante em diversos meios e que consegue, atravs das suas
crnicas, publicar segredos em forma de literatura.















11

1 AUTOBIOGRAFIA: QUANDO A 1 PESSOA COMANDA O TALK SHOW

Pensar nas possibilidades de expresso pessoal, hoje em dia, parece uma tarefa
simples, j que, com o desenvolvimento da comunicao miditica, trocar ideias e se
expressar tornaram-se hbitos comuns, cotidianos, porm pensar como o sujeito se coloca
diante do mundo ainda um desafio.
Depois de longos perodos de mudanas e da perda da f e da credibilidade no prprio
sujeito, chegamos a uma poca em que parece vencida a descrena na capacidade da
subjetividade ser o centro das atenes. Nas ltimas dcadas, vimos a faceta pessoal
sobressair e assumir o comando das relaes, no necessariamente num ato egosta, mas com
a viso de uma subjetividade necessria e atuante no todo, parte integrante de algo maior e
que, mesmo se mantendo em sua atitude pessoal, no se desvincula do todo.
Vivemos um perodo de compreenso do processo de interdependncia entre o sujeito
e o mundo em que ele atua. Olhar e pensar sobre si mesmo, hoje em dia, pode ser visto como
um ato natural, e nem sempre vai ser uma postura criticvel, acusada de ser um ato de
desinteresse pela sociedade e pelos seus semelhantes. J possvel ser subjetivo dentro do
coletivo, sem, por isso, ser acusado de egosta ou marginal. O olhar contemporneo se
acostuma a ver o afloramento do pessoal como uma pea essencial atuao do sujeito dentro
de sua sociedade, de seu grupo. A subjetividade se centraliza, ganha espao e passa a
funcionar como a pea fundamental para que toda a engrenagem funcione. Esse novo olhar
sobre a subjetividade o que Beatriz Sarlo convencionou chamar de guinada subjetiva.
(SARLO, 2007).


1.1 A histria da inveno


A viso que centraliza o sujeito em um contexto maior tem sido gerada ao longo de
sculos e passou por muitas modificaes. costume considerarmos as Confisses de Jean-
Jacques Rousseau, obra que foi publicada em 1782, quatro anos aps a morte do autor, como
o incio do percurso da escrita ntima na histria literria, porm essa questo no se mostra
totalmente definida, j que a prtica da escrita pessoal acompanha a evoluo da escrita e j
12

podia ser vista anteriormente em outras produes literrias. interessante pensarmos nas
Confisses de Rousseau como o marco inicial para a escrita ntima na literatura, pois foi,
destacadamente, uma obra em que o sujeito reflete e trabalha sobre o que est sendo escrito
por ele. Rousseau j delimita uma espcie de modelo autobiogrfico e demonstra uma postura
do indivduo que capaz de se definir e se analisar, de relatar a si prprio com a conscincia
da construo que est fazendo. Seu texto apresenta o delinear do sujeito a partir de fatos e
impresses pessoais, oferecendo a quem l a possibilidade de construir uma imagem do ser
que se narra.
Michel Foucault, em seu clssico texto A escrita de si, cita que a escrita pessoal
existia desde pocas bem remotas. Foucault aponta a necessidade de se revelar, trazida pelo
Cristianismo e pela conscincia espiritual, e lembra que apareceram diversas formas de sanar
esta necessidade, como a meditao e a confisso, sendo a escrita apenas mais uma dessas
formas, com o intuito de possibilitar a reflexo e o adestramento do ser.
Ele destaca a importncia da escrita ntima para o sujeito, como se aquela fosse capaz
de complementar as necessidades do ser de se declarar, especialmente, acerca de seus delitos
e de seus sentimentos, ou seja, sobre os elementos mais obscuros e menos aceitos
socialmente. Ele assim declara:
A escrita de si mesmo aparece aqui claramente na sua
relao de complementariedade com a anacorese: atenua os
perigos da solido; d o que se viu ou pensou um olhar
possvel; o fato de se obrigar a escrever desempenha o
papel de um companheiro, ao suscitar o respeito humano e
a vergonha; podemos pois propor uma primeira analogia:
aquilo que os outros so para o asceta numa comunidade,
s-lo- o caderno de notas para o solitrio. (FOUCAULT,
1992, p.131)

No trecho citado acima, Foucault fala sobre a existncia dos cadernos de anotaes.
Segundo seus estudos sobre a subjetividade, modalidades como anotaes pessoais, carns
individuais e correspondncias serviam como exerccio pessoal, numa tentativa de
aprimoramento do eu. O caderno de anotaes descrito como uma prtica comum entre os
filsofos e demais homens que se dedicavam ao pensamento. Constitua uma espcie de
caderneta em que o sujeito se colocaria na posio de anotar o que via, ouvia e lia, exercendo,
sobre essas anotaes, no somente a ao de registro, mas tambm a de reflexo.
Os cadernos pessoais serviam como matria-prima para futuras anlises, como
aprendizado atravs do momento da escrita e da releitura e como uma forma de apoio para
atravessar momentos difceis. Eles no eram simples registros de memrias, eram uma
ferramenta destinada ao exerccio, servindo, assim, s aes de ler, reler, meditar, aprender e
13

aplicar. Um dos objetivos a que se destinaria a escrita pessoal, segundo Foucault, seria o de
melhorar a ao, a prtica, como uma espcie de aprendizado circular, atravs do qual o
sujeito capaz de aprender e refletir, desenvolvendo e acumulando mais conhecimentos sobre
si mesmo e sobre orientaes para o exerccio da vida.
Foucault exalta que as anotaes realizadas nos cadernos deveriam ser fruto de
fragmentos resultantes das leituras realizadas pelo indivduo, pelas coisas ouvidas por ele e
pelas experincias vividas, porm destaca que esses elementos s se configuram como
ferramentas para a reflexo e para a escrita quando so percebidos enquanto parte integrante
do ser. Muita leitura, sem absoro, no seria mais que informaes vazias, sem valor. Ele
declara que a leitura precisava se unir ao registro para formar um corpo nico e assim atuar no
ser. Era preciso que as interferncias externas se unissem s percepes pessoais e assim
formassem elementos constituintes do sujeito.
Com isso, Foucault percebe, em prticas anteriores Modernidade, a importncia da
insero dos fatores externos na construo do sujeito: a leitura e o que visto e ouvido
podem ser considerados interferncias externas na constituio do ser. Essas consideraes
podem ser relacionadas interveno miditica no mbito pessoal/privado; alis, essa vai ser
uma das principais questes do olhar contemporneo sobre a escrita ntima.
Sobre as consideraes de Foucault, Wander Melo Miranda, no captulo A iluso
autobiogrfica, do livro Corpos escritos (1992), resume que, ao se aproveitar da Vita
Antonii, de Atansio, Foucault busca mostrar que as anotaes pessoais so fundamentais no
processo de constituio do ser, pois, ao escrever sobre os movimentos da alma, o sujeito
passa a se conhecer e a estabelecer os limites necessrios a sua intercesso com o mundo. Ele
destaca ainda que esses carns desempenham a funo imediata de exerccio e
aprimoramento do eu, no interior de uma cultura fortemente marcada pela tradio e pelo
valor reconhecido do j-dito, ou seja, uma forma de escrita que comea a se destacar dentro
de um espao em que a oralidade e a fala alheia possuem grande valor e vo influenciar de
maneira imediata a escrita pessoal.
Ainda sobre as ideias de Foucault, Miranda traz uma importante afirmao sobre a
interveno externa na escrita ntima. Ele destaca que os carns individuais, nomeados,
segundo Foucault, de hypomnemata, eram constitudos por fragmentos e impresses pessoais
que teriam como funo:
(...) tornar individual uma verdade que de muitos,
mediante um processo de unificao que passa pelo corpo e
nele se concretiza, conforme indicam as metforas da
ingesto de alimentos e da fabricao do mel, utilizadas por
14

Sneca para especific-lo. Assim, por intermdio das

leituras escolhidas e da escrita assimilativa, o indivduo
pode formar uma imagem de si to adequada e acabada
quanto possvel, reveladora de uma identidade na qual se l
toda uma genealogia. (MIRANDA, 1992, p. 28)

Foucault trouxe, assim, com as suas consideraes, importantes informaes sobre o
exerccio da escrita ntima, numa poca anterior formao do indivduo moderno e
constituio do gnero autobiogrfico, o que comea a ser considerado somente a partir de
Rousseau. At temos, antes das Confisses, textos cristos escritos em primeira pessoa e
preocupados em relatar ideias e sentimentos do sujeito, porm so escritas preocupadas
apenas com a confisso religiosa e com o estornar dos pecados, ou seja, textos que no trazem
a conscincia do sujeito de se ver enquanto ser atuante e responsvel pela sua prpria
constituio e so essas as caractersticas que deram obra de Rousseau o patamar de marco
iniciador da autobiografia.
Apesar das diferenas, o que est em germe nas anotaes
monsticas, nas correspondncias e nos hypomnemata
abordados por Foucault a escrita do eu performadora da
noo de indivduo que se ver sedimentada, bem
posteriormente, na autobiografia tal como praticada e
entendida nos tempos modernos. (MIRANDA, 1992, p. 29)

Quase dois sculos depois das Confisses de Rousseau, Philippe Lejeune, registraria
os primeiros estudos significativos sobre a autobiografia enquanto gnero literrio e forma de
expresso relevante. Em 1975, o pesquisador lana Le pacte autobiographique, obra na qual
determina caractersticas bsicas da escrita autobiogrfica, sistematizando o reconhecimento e
o estudo do texto autobiogrfico. Ele define que autobiografia uma narrativa retrospectiva
em prosa que uma pessoa real faz de sua prpria existncia, quando focaliza especialmente
sua vida individual, sobretudo a histria de sua personalidade e estabelece o pacto
autobiogrfico atravs do qual afirma s ser uma obra autobiogrfica aquela em que o nome
impresso na capa o mesmo que protagoniza e narra os fatos presentes no interior da mesma.
Mas por que o interesse de Lejeune pela autobiografia? O contexto social havia
sofrido muitas modificaes, e, com isso, o sujeito tambm se alterou. Com eventos como a
Revoluo Industrial e o desenvolvimento dos meios de comunicao de massa, o sujeito
sofreu mudanas na percepo de si mesmo e do mundo.
Durante a ascenso da burguesia, perodo de profundas mudanas para o sujeito
ocidental e sua percepo de mundo, a autobiografia conquistou um espao que antes no
existia para ela. Wander Melo Miranda, em seu Corpos escritos (1992), lembra que a
autobiografia aparece como uma necessidade de configurao ideolgica do mundo
15

ocidental e ressalta ainda que tal transformao ocorreu principalmente, a partir da

formao plena do individualismo moderno, datada da poca das Luzes e de 1789, com a
Declarao dos Direitos dos Homens e Cidados. Diz ainda que:
H uma ntima e evidente correlao entre o afirmar-se da
literatura autobiogrfica, como comumente entendida, e a
ascenso da burguesia como classe dominante, cujo
individualismo e cuja concepo de pessoa encontram na
autobiografia um dos meios mais adequados de
manifestao. (MIRANDA, 1992, p. 26)

Ao falarmos de construo j possvel comear a pensar que a identidade no
comporta uma definio que a dite como um elemento linear e acabado, mas sim algo que
precisa ser moldado e est sujeito a constantes modificaes. O sujeito se encontra
fragmentado, com a identidade em construo e se envolve na busca por uma segurana que,
talvez, no seja mais possvel, pois, a partir das transformaes impostas, sobretudo, na
segunda metade do sculo XX, torna-se impossvel retomar a imagem de completude comum
at ento.
Essas modificaes impostas ao sujeito moderno provocam o aumento do interesse
pela escrita autobiogrfica e surge, com Lejeune e seu pacto autobiogrfico, a formalizao
e sistematizao da autobiografia como gnero literrio. Lejeune busca, com esse texto e
outros que o sucederam seguindo a mesma temtica como o Le pacte autobiographique
(bis) , aprimorar o reconhecimento do que seria um texto autobiogrfico. Sendo assim, ele
impe uma espcie de lista das caractersticas de um texto autobiogrfico.
Segundo Lejeune, o texto autobiogrfico se caracteriza pela existncia do pacto
autobiogrfico, ou seja, quando o personagem-narrador possui o mesmo nome que aparece
na capa do livro como referncia ao autor. Porm essa definio foi inicial e a ela juntaram-se
novas consideraes, como o uso do pseudnimo, comum para alguns escritores, e a
existncia de informaes falsas (ficcionais) dentro do texto autobiogrfico. Com essas novas
consideraes, Lejeune se viu obrigado a ampliar os conceitos estabelecidos previamente e
admitir novos formatos para a autobiografia.
Com as mudanas mais recentes em relao ao ideal de verdade e o abandono da
certeza em torno da existncia de uma verdade absoluta, fico e autobiografia passaram a
demonstrar, na maior parte do tempo, uma relao estreita e at mesmo indissocivel.
Deste novo panorama, em que fico e verdade se confundem e se associam, surge a
impossibilidade da qual trata Elizabeth Muylaert Duque-Estrada, em seu texto
Im/Possibilidades da autobiografia, na obra Devires autobiogrficos: a atualidade da
escrita de si (2009). Ela frisa a inteno de apresentar a verdade como um trao predominante
16

na escrita autobiogrfica, porm ressalta que esta uma inteno cercada pela impossibilidade
de concretizao plena. Para comprovar esta inteno presente na escrita ntima, ela retoma as
Confisses de Rousseau, citando um trecho em que Rousseau exalta a sua inteno de
explorar e transmitir a verdade:
No parece ter sido outro o desejo de Rousseau, que declara
no, incio do Livro VII de suas Confisses: o objeto
prprio das minhas confisses revelar com exatido o
meu ntimo em todas as situaes da minha vida. Foi a
histria da minha alma que prometi contar, e para escrev-
la fielmente no tenho necessidade de outras memrias:
basta-me, como fiz at aqui, voltar-me para dentro de mim.
(DUQUE-ESTRADA, 2009, p. 17)

A partir dessa citao, Duque-Estrada coloca em xeque essa apresentao de uma
verdade proveniente da alma na produo de Rousseau e busca desfazer a ideia de que a
verdade, para ele, residiria na simples exposio dos segredos da alma. Ela afirma que a
verdade envolvida na escrita de Rousseau no estaria propriamente na narrao dos fatos, mas
sim no contato consigo mesmo, funcionando como uma forma de autoconhecimento. Dessa
maneira, possvel perceber que, mesmo quando a escrita autobiogrfica comea a ser feita
com conscincia e comea a fazer parte do universo literrio, ela continua a executar a funo
de realizar mudanas e reflexes no sujeito que a realiza, como foi relatado por Foucault, ou
seja, ela segue sendo construda muito mais pelo desejo de realizao pessoal do que pelo
desejo de uma construo literria. Essa uma questo que vai ser muito discutida no final do
perodo moderno e na contemporaneidade.
Citando Maurice Blanchot, Duque-Estrada discute qual tipo de verdade era a inteno
de Rousseau e qual a verdade que ele conseguiu apresentar. Para tal discusso, relembra os
textos de Santo Agostinho, considerados por alguns como iniciadores da escrita ntima, mas
que apresentam apenas a confisso e a culpa de um homem diante de uma verdade
indiscutvel, a de Deus. Rousseau j trabalha com uma verdade passvel de discusso, parcial,
resultado das impresses de um homem sobre o que viu e sobre o que viveu, como eram os
cadernos pessoais descritos por Foucault, sendo que estes no tinham ainda a inteno
literria e assumiam por completo a funo de registro e aprimoramento do ser.
Duque-Estrada, analisando os comentrios de Blanchot sobre a obra de Rousseau,
expe alguns pontos interessantes sobre as tentativas de apresentao da verdade pelo mesmo.
Ela aponta que Blanchot percebe o xito das confisses de Rousseau no momento em que este
perde o rumo e abandona a busca pela verdade, deixando esmorecer o desejo de alcan-la.
17

Segundo Blanchot, este seria um ponto alto de sua obra, j que esta postura confirma o que
Blanchot considera a impossibilidade da exposio de uma verdade ntima:
E neste silncio, neste fracasso de Rousseau, que
Blanchot percebe o xito maior de suas confisses, pois,
como diz, s pode haver verdade na confisso que se
dirige ao silncio, que mantm desconhecido o que exige
assim permanecer. Arrastada para fora de si, a escrita de si
habita ento a regio do impossvel, do indizvel (...) na
autobiografia diz, h alguma coisa a ser dita que no se
pode dizer: no necessariamente um escndalo, pode ser
algo bastante banal uma lacuna, um vazio, uma rea que
se esquiva da luz porque a sua natureza a impossibilidade
de ser trazida luz, um segredo sem segredamento cujo
selo quebrado a prpria mudez. (DUQUE-ESTRADA,
2009, p. 21)

Esta dita impossibilidade da verdade se mostrar na escrita autobiogrfica fica mais
evidente na contemporaneidade, ainda mais a partir da diversidade de formatos admitidos pela
escrita ntima e tambm devido aos novos pontos de vista incutidos pelos sujeitos moderno e
contemporneo na ao de escrever sobre si prprios.
Nas dcadas que se seguiram s consideraes de Lejeune sobre a autobiografia, a
escrita ntima sofreu diversos desdobramentos, inovando e se reinventando. Assumiu espao
considervel nas discusses literrias e tornou-se objeto de estudo, at culminar na ideia
defendida por Leonor Arfuch (2010), pesquisadora argentina que define a existncia de um
espao biogrfico, do qual seriam parte integrante no s os textos formalmente
considerados autobiogrficos, mas todo aquele que contivesse o interesse no perfil pessoal e a
palavra do sujeito acompanhada da inteno e da revelao de sua parcela ntima.


1.2 Como voc se escreve?


A autobiografia no a nica maneira de falar de si. H outras modalidades como os
dirios ntimos, o autorretrato, as memrias, a autofico, as cartas e quantas outras formas e
modelos de escrita somos capazes de imaginar e produzir. Todos os formatos citados so
capazes de demarcar a escrita ntima, no entanto, nem todos so marcados pelo pacto
autobiogrfico esse contrato que Lejeune determinou como o diferencial da autobiografia
dentro do universo literrio.
Esse desdobramento da escrita ntima em diversos formatos no facilmente
classificveis culminou no que Leonor Arfuch convencionou chamar, no momento
18

contemporneo, de espao biogrfico. A pesquisadora segue a tendncia de localizar

vestgios de escrita ntima nas mais diversas modalidades de escrita e nos variados gneros e
formatos dos quais a literatura costuma se apossar.
Dentre os formatos que suscitaram a curiosidade em torno da escrita ntima,
encontramos o dirio ntimo. O dirio pode ser considerado um formato que sofreu muitas
mudanas no decorrer da histria, inclusive no que se refere importncia e funo social.
Formato escrito em primeira pessoa e, inicialmente, com o intuito de funcionar como uma
escrita sem destinatrio, funcionando apenas para ser lido e relido pelo seu prprio autor, o
dirio assumiu uma postura autobiogrfica, estreitamente relacionada ao seu tom confessional
e ao seu compromisso com a verdade.
Os dirios se caracterizam por uma aparente forma livre, pelo compromisso com o
registro do que parecer interessante aos olhos de seu autor, especialmente os acontecimentos
cotidianos, e por um contrato com o calendrio contrato este que lhe torna nico no universo
autobiogrfico. Sobre este formato, Maurice Blanchot destaca que:
O dirio ntimo, que parece to livre na forma, to dcil aos
movimentos da vida e capaz de todas as liberdades, j que
pensamentos, sonhos, fices, comentrios de si mesmo,
acontecimentos importantes, insignificantes, tudo que lhe
convm, na ordem e na desordem que se quiser,
submetido a uma clusula aparentemente leve, mas
perigoso: deve respeitar o calendrio. Esse o pacto que ele
assina. O calendrio seu demnio, o inspirador, o
compositor, o provocador e o vigilante. (BLANCHOT,
2005, p. 270)

A escrita diarstica, apesar de ser, hoje em dia, amplamente utilizada no campo
literrio, inclusive na constituio de dirios ficcionais, no uma novidade. Os dirios foram
sendo propagados ao longo da histria, com diferentes aplicaes e funes, mas sempre
despertando o interesse. Serviram, ainda no comeo, como meio de registro de atividades de
grupos. No perodo de enftica atuao da Igreja, formavam um meio de expurgar os pecados
to severamente repreendidos. Depois se propagaram no universo feminino, dentro do qual
serviam mais como uma forma de controlar as mulheres, j que eles acabavam sendo lidos
pelo pai ou pelo marido. Os dirios ganharam espao tambm na vida de pessoas importantes
da histria, servindo como fonte de registro de vidas, acontecimentos e da prpria sociedade
de cada poca.
Blanchot destaca, como funo do dirio, a possibilidade de diminuir a solido a uma
situao irrisria e tambm a inteno de, com a escrita, salvar os dias, resguard-los de
possveis esquecimentos e da prpria memria, que costuma ser seletiva e degradante.
19

Destaca, ainda, que o diarista tem a ambio de eternizar os belos momentos e mesmo de
fazer da vida toda um bloco slido que se pode abraar com firmeza. A certeza de ser uma
impossibilidade essa transformao da vida em uma bancada slida, j que a vida, assim
como o sujeito, so peas em construo, vulnerveis a modificaes, regresses e progressos,
vem com a Modernidade. A aceitao da incompletude, marca do perodo moderno, nos d a
certeza de que o dirio no capaz de realizar um registro to fiel e completo quanto
almejavam os diaristas dos perodos que antecederam Modernidade.
Algumas caractersticas so comuns aos dirios, como a escrita fragmentria e
descontnua, e a existncia de lacunas e redundncias. Essas caractersticas, que acometem a
maioria dos dirios, acabam por exigir que o texto sofra adaptaes e modificaes para ser
publicado, mas difcil sintetizar quais seriam os limites dessas alteraes, resolver o que
pode ser alterado sem que haja prejuzos para o dirio, sem que haja uma descaracterizao.
H publicaes que se esforam tanto para se aproximarem do dirio original que reproduzem
folhas rasgadas, frases rabiscadas e at mesmo mnimos detalhes como alguma mera
pontuao proposital.
Segundo Blanchot, essa relao do dirio com a verdade complexa e paradoxal, j que
a sinceridade representa, para o dirio, a exigncia que ele deve atingir, mas no ultrapassar
(BLANCHOT, 2005, p. 270). O dirio precisa conter a verdade, pois isso que se espera dele,
mas, para que essa verdade possa ser alcanada ao menos, hipottica, atingindo o olhar de
quem l o dirio , o diarista deve ser o menos profundo possvel, visualizando que, quanto
mais superficial, mais fcil torna-se se aproximar da transparncia.
A compilao da verdade umas das caractersticas que diferencia o dirio da
autobiografia. Como o dirio mantm um elo muito estreito com o calendrio e sua estrutura
se mantm marcada por um curto perodo de tempo entre o fato acontecido e o registro do
mesmo, a verdade se constri de uma forma diferente da que costuma acontecer na escrita de
uma autobiografia. Com a presena desse curto espao de tempo, o momento de reflexo
sobre o que aconteceu e sobre o que vai ser escrito como vai ser registrado o fato menor,
possibilitando menores alteraes na escrita. Essa caracterstica tambm influi fortemente em
um dos elementos presentes na escrita autobiogrfica: a memria. Como o registro no dirio
quase imediato, ele possibilita uma ao mais contida da memria, o que no vai ser comum
na autobiografia, quando o registro acontece, geralmente, bem posterior aos acontecimentos,
aumentando a possibilidade de atuao da memria, que pode selecionar, modificar ou at
mesmo excluir elementos do que est sendo registrado.
20

Porm, no essa conteno da memria que faz do dirio mais ou menos verdadeiro
que uma autobiografia, no sentido clssico exposto por Lejeune. Blanchot expe a questo do
nvel de sinceridade presente no dirio e parece acreditar que o dirio seja capaz de declarar a
verdade. Beatriz Resende, ao mencion-lo em seus estudos sobre o teor autobiogrfico na
obra de Lima Barreto, repete suas palavras em ningum mais sincero que o diarista
(BLANCHOT apud RESENDE, 1993, p. 171), para, logo depois, levantar a dvida sobre a
existncia dessa sinceridade que Blanchot coloca como presente.
Resende coloca em dvida a presena de uma sinceridade absoluta, j que, ao ler as
linhas de um dirio, a dvida no abandona a leitura, impossibilitando a percepo de uma
verdade absoluta. Dessa forma, a sinceridade presente no dirio no seria exatamente
correspondente a uma verdade, mas estaria eternamente ligada dvida e parcialidade
diante dos fatos narrados. Pensar que um dirio escrito para no ser lido alimenta a ideia da
possibilidade da escrita ser sincera, porm a realidade que o diarista, mesmo que sem a
inteno de publicar ou de compartilhar sua escrita, no totalmente transparente.
Mas por que falta honestidade dentro de um dirio? Primeiro, por conta da ao da
memria. Mesmo que esta tenha um curto espao de tempo para agir, ela age e acaba por
definir o que vai para o papel, j que, mesmo transcorrido um curto perodo de tempo, ela
acaba auxiliando o diarista a escolher os detalhes que sero narrados ou no. Em segundo
lugar, h a prpria postura do diarista, que, como destaca Roland Barthes, em sua obra O
rumor da lngua, faz pose, ou seja, faz do papel de escritor sincero uma encenao. O diarista,
mesmo sem a inteno de compartilhar seu dirio, acometido pelo temor da exposio,
buscando desenhar em seu dirio a imagem que gostaria que as outras pessoas tivessem sobre
ele e sobre o que narra.
Inessencial, pouco seguro, o Dirio , alm do mais,
inautntico. No pretendo dizer com isso que quem nele se
exprime no sincero. Quero dizer que a sua prpria forma
s pode ser tirada de uma Forma antecedente e imvel
(precisamente a do Dirio ntimo), que no se pode
subverter. Ao escrever o meu Dirio, estou, por estatuto,
condenado simulao. (BARTHES, 1988, p. 370)

Com o comentrio exposto, fica clara a posio de Barthes em relao ao dirio
ntimo: uma postura de desconfiana e de pouca credibilidade. De maneira geral, Barthes
busca, ao contrrio de Blanchot, levantar suspeitas e questionamentos que levem reflexo
sobre a funo e a importncia dos dirios, assim como da criao dos mesmos. Ele afirma
no duvidar da sinceridade do autor, mas alega que o dirio por si s j se configura em um
21

formato merecedor de pouca credibilidade, pois, sendo seguidor do calendrio, ou seja, escrito
s pressas, e fragmentado, no capaz de alinhar a verdade.
Barthes questiona o valor do que se escreve nas pginas de um dirio, qual seria a
importncia de fragmentos do cotidiano, ao mesmo tempo em que demonstra uma sutil
admirao por este formato de escrita. Barthes defende que, para o diarista e para o leitor, o
dirio exerce sensaes diferentes e que, quando o diarista se transforma em leitor da sua
prpria narrao, o dirio passa a ocupar um lugar diferente. Desse deslocamento de efeito
que o dirio capaz de causar no diarista, Barthes prolonga a ideia da ausncia de
sinceridade. Segundo sua concepo, o dirio construdo por uma escrita realizada ainda sob
os efeitos do ocorrido, e quando o autor se prope a fazer a leitura posterior desta escrita, a
mesma causa estranhamento e at mesmo a rejeio do que est sendo lido. Ele declara que o
diarista escreve com pouca ou nenhuma reflexo e que isso facilita o caminho para o
arrependimento do relato e a negao do mesmo. No se reconhecer na prpria escrita
imprime ao relato o status de falha e de falta de verdade.
Creio poder diagnosticar essa doena do dirio: uma
dvida indissolvel sobre o valor daquilo que se escreve.
Essa dvida insidiosa: uma dvida-atraso. Num
primeiro tempo, quando escrevo a anotao (diria),
experimento certo prazer: simples, fcil. No preciso
sofrer para encontrar o que dizer: o material est ali,
imediatamente; (...) Num segundo tempo, prximo do
primeiro (por exemplo, se ler hoje o que escrevi ontem), a
impresso m: a coisa no aguenta, como um alimento
frgil que azeda, se corrompe, torna-se inapetitoso de um
dia para outro; percebo com desnimo o artifcio da
sinceridade, a mediocridade artstica do espontneo;
pior ainda: desgosto-me e irrito-me ao verificar uma pose
que de maneira alguma quis (...) eu um fazedor de pose
(BARTHES, 1988, p. 359)

Barthes assim delimita que o eu do diarista no pode ser completamente honesto em
suas narrativas, pois, mesmo de maneira inconsciente, est encenando de acordo com o quer
que seja visto. Essa desconfiana em torno do dirio aumentou quando se tornou comum a
publicao de dirios ntimos, e tambm a criao de obras ficcionais, estruturadas no formato
de dirio. Pensar que o dirio est sendo escrito para ser publicado/divulgado j diminui
bastante a credibilidade da honestidade da escrita depositada no mesmo.
Este fator o compartilhamento com outros j no abala significativamente a
posio das correspondncias dentro do crculo das escritas ntimas. A carta um formato
pensado para ser lido por outra pessoa que no o seu autor; logo, sabido que ela
confeccionada levando em considerao a expectativa do outro e no somente os anseios de
quem a escreve.
22

Foucault destaca que a escrita de si, no formato dos cadernos pessoais, era capaz de
servir como um primeiro momento de aperfeioamento para a troca de correspondncias. Ele
exalta ainda a importncia da ao da escrita em formato de cartas, a qual seria um momento
de revelao ao outro, mas que tambm facilitaria a reflexo do autor sobre seus prprios atos
e ideias.
A carta enviada actua, em virtude do prprio gesto da
escrita, sobre aquele que a envia, assim como actua, pela
leitura e releitura, sobre aquele que a recebe. Esta dupla
funo faz com que a correspondncia muito se aproxime
dos hypomnemata e com que a sua forma frequentemente
lhes seja muito vizinha. (FOUCAULT, 1992, p. 145)

Mantendo essa ideia, Foucault relata alguns exemplos da relao entre mestres e
discpulos, e suas respectivas trocas de correspondncias, destacando que quem ensina,
instrui-se, citando Seneca e suas cartas a Luclio. Ele menciona ainda que:
A carta enviada para auxiliar o seu correspondente
aconselh-lo, exort-lo, admoest-lo, consol-lo constitui,
para o escritor, uma maneira de se treinar: tal como os
soldados se exercitam no manejo das armas em tempo de
paz, tambm os conselhos que so dados aos outros na
medida da urgncia da situao constituem uma maneira de
se preparar a si prprio para eventualidade semelhante.
(FOUCAULT, 1992, p. 147)

Foucault defende ainda que a troca de cartas capaz de estabelecer uma relao de
interdependncia entre dois sujeitos a partir do momento em que o aprimoramento de um
serve de exemplo ao outro. Dessa forma, a carta uma forma de escrita ntima que extrapola o
universo particular e se v em comunho com o entorno de seu autor e responsvel.
importante destacar tambm que a carta, alm de oferecer o aprimoramento do
indivduo, como acontecia com os cadernos pessoais e tambm com os dirios, torna seu
remetente uma figura presente, ou seja, lhe d uma forma diante do outro, torna-se a
responsvel por uma espcie de marca que vai alm do espao contido dentro do prprio eu.
Ela consegue ser ntima ao mesmo tempo em que instrumento de manifestao.
A carta acaba, assim, por inaugurar uma relao que vai ser bem comum no espao
contemporneo: a exposio do momento de introspeco. Desde que a carta escrita, o autor
a aceita como um documento de revelao de algo prprio e provavelmente ntimo. Essa
aceitao torna-se recorrente no momento atual, diante da atuao de uma diviso quase ou
j diluda entre o espao pblico e o privado. Nesse aspecto, podemos considerar a carta
ou novos formatos de correspondncia como, por exemplo, o e-mail uma experimentao da
exposio da escrita ntima, pois, mesmo quando ela pertence a um nico destinatrio, j est,
a partir da, sob a tenso do olhar do outro.
23

Leonor Arfuch prefere entender que a carta capaz de traduzir o paradoxo

fundamental que ronda a escrita autobiogrfica: apesar de seu teor intimista, precisa ser
publicvel para ganhar contornos de um elemento real, existente. No espao contemporneo, a
correspondncia capaz de funcionar como o voyeurismo consentido, um permitir olhar
que faz nascer uma ligao entre o autor e seu leitor. Essa a tendncia atual que no pode
mais ser negligenciada. J no mais possvel ver o espao ntimo, assim como a escrita
ntima, como elementos eternamente protegidos dos olhares alheios.
A carta realiza, assim, um discreto alinhamento entre o dirio e seu possvel substituto,
o blog. Ao deixar que a primeira pessoa fale, narre e reflita, compreendendo-se enquanto um
ser em construo, a carta se aproxima do dirio, mas, ao assumir o seu carter pblico, ela se
alinha ao blog, formato no qual a invaso do olhar alheio permitida e, inclusive, incentivada.
Sobre esta relao, Ana Claudia Viegas, em seu texto De que cor so estas flores?,
menciona que embora seja comum o paralelo entre blogs e dirios, tendo em vista a escrita
fragmentria e datada, aqueles se aproximam das cartas por serem explicitamente destinados a
outros (2009, p. 10).
A carta, assim como o blog, oferece ao leitor a sensao de transgresso, de invaso do
espao alheio. Silviano Santiago, ao tratar da troca de correspondncias entre Carlos
Drummond de Andrade e Mario de Andrade, no texto Suas cartas, nossas cartas, diz que
ao invadir a intimidade da letra epistolar, estamos sendo, antes de tudo, transgressores
(2006, p. 61). Com esta meno, Santiago tem a inteno de ressaltar a violao da
correspondncia, quando o sujeito se prope a ler uma carta que no lhe foi endereada,
porm o poder de ler o ntimo do outro pode gerar, muitas vezes, a sensao de transgresso,
mesmo no sujeito cujo nome se encontra no campo do destinatrio.
No processo de autoconstruo, o sujeito moderno anseia por observar o outro no
intuito de se orientar. A busca por modelos alimenta o desejo pelo voyeurismo, por ver o outro
em seu real comportamento, sem encenaes ou montagens de uma postura social. A carta
uma das portas para esta observao.
Cumprindo seu papel tradicional de escrita autobiogrfica, a carta oferece a reflexo
sobre os prprios atos e pensamentos. No exatamente da mesma forma que o dirio, pois h,
na escrita da carta, a expectativa do compartilhamento do texto. Essa diferenciao atribui
carta a posio de elo entre o eu e o mundo externo.
Ao se entregar ao amigo, o missivista nunca se distancia de
si mesmo. O texto da carta semelhante ao alter ego do
escritor em busca de dilogo consigo e com o outro.
Exerccio de introspeco? Sim. Desde que se defina
24

introspeco como aconselha Michel Foucault antes de

ser uma decifrao do sujeito por ele prprio, a
introspeco uma abertura que o sujeito oferece ao outro
sobre si mesmo. (SANTIAGO, 2006, p. 64)

Um formato autobiogrfico que tambm poderia ser aproximado do dirio o
autorretrato. O autorretrato constitui-se de forma fragmentria e funciona como uma espcie
de tentativa de apreender a histria e a personalidade do sujeito. Apesar de ter essa
proximidade com o dirio, especialmente o carter fragmentrio e o envolvimento com
elementos e declaraes banais, cotidianas, o autorretrato afasta-se daquele por funcionar no
como uma narrao de fragmentos, mas sim como uma colagem deles. O autorretrato assume
uma liberdade que o dirio no possui at mesmo pelo fato de este ser regrado pelo
calendrio e atua a partir do discurso livre que pode, caso deseje, assumir um lado ficcional
ou imaginativo.
Diferentemente do dirio e da autobiografia, o autorretrato
no tem nada a esconder ou confessar, puro discurso
livre, escrita desprovida de utilidade pblica. No h
nesse tipo de texto, um relato cronolgico de experincias.
noo temporalizante de sujeito como autoconstruo a
partir de uma interioridade, se sobrepe uma noo
espacializante: subjetividade formada por exterioridades,
citaes, apropriaes. (VIEGAS, 2006, p. 12-13)

Batrice Didier (apud MIRANDA, 1992, p. 35), ao falar sobre o autorretrato, o
aproxima tanto da autobiografia quanto do dirio, porm o aproxima mais da autobiografia,
justificando a forma organizada a partir da qual ele se constitui, o que, tecnicamente, o
afastaria do dirio, que se constri de modo mais solto, entre fragmentos sobre tudo que o
autor desejar escrever. A autobiografia, para acontecer, precisa dar conta de narrar a histria
de vida passada do sujeito segundo o conceito de Lejeune e, por isso mesmo, precisa
seguir uma forma mais organizada e se preocupar em relatar as memrias e os fatos com uma
certa ordem. Para Didier, essa ordem e essa preocupao perduram no autorretrato. Porm,
Miranda, que a cita, discorda dessa colocao. Ele alega que, sendo fragmentado, o
autorretrato definitivamente no assume essa organizao expressa por Didier.
Nesse aspecto, coerente concordar com Viegas e Miranda, no que diz respeito a essa
liberdade assumida pelo autorretrato. Sua expectativa no a de retomar uma vida inteira,
nem mesmo registrar, como forma de memria, os pequenos acontecimentos do dia-a-dia.
Com a autobiografia, a proximidade fica apenas na possibilidade de contribuir para a
autorreflexo, sendo o eu falando e refletindo sobre si mesmo, enquanto, em relao ao dirio,
mantm-se essa semelhana e mais a ideia de, ao final, ser uma reunio de fragmentos, porm
o autorretrato tem uma vida prpria e seus prprios limites.
25

Ao contrrio da autobiografia clssica, cuja unidade j est

implcita na escolha de um determinado curriculum vitae,
ao autorretrato podem se juntar sempre elementos
homlogos ao paradigma, j que prescinde de uma unidade.
Assim sendo, o autorretratista no conta o que fez, mas
tenta dizer quem , embora sua busca no o conduza
certeza do eu, mas ao seu deslocamento atravs da
experimentao da linguagem. (MIRANDA, 1992, p. 36)

No caso da escrita autobiogrfica, especialmente na atualidade, possvel observar
nveis de abertura e a tentativa de regularizar a exposio da escrita ntima. Dentro desses
nveis, podemos alocar o dirio como um formato com pouca ou nenhuma vontade de se
mostrar, o que influi bastante na liberdade aplicada na sua construo. J a carta, mesmo
sendo esperado que ela seja vista por um outro j que possui, normalmente, um destinatrio
declarado , ainda construda sob um nvel de abertura menos crtico, pois o habitual que
esta seja endereada a uma pessoa conhecida e que compe o crculo de contatos do
remetente. O autorretrato j poderia ser localizado em um nvel de abertura mais intenso, at
por se mostrar menos compromissado com a verdade e a declarao de fatos.
possvel sinalizar uma contradio na relao do nvel de abertura em relao ao
nvel de veracidade ou de possibilidade da mesma. Podemos esperar que, quanto mais
aberta seja uma obra, menos o autor ir expor suas verdades ou o que acredita que seja
denunciador de comportamentos pouco apreciveis. Porm interessante pensar que a
introduo da fico na escrita autobiogrfica colabora para um possvel aumento da
liberdade do autor. Se o mesmo imagina que sua obra ser recebida no exatamente como
uma construo autobiogrfica, sente-se mais vontade para declarar fatos e ideias que no
seriam bem vistos ou ajudariam a montar uma imagem pouco favorvel do sujeito. Com a
proteo da fico, o autor se mantm menos alerta com o que declara, pois, caso no v
bem, pode afirmar sua fala enquanto ficcional e o seu eu enquanto um personagem do que
narra. O autorretrato, admitindo a existncia do ficcional, vai vivenciar essa liberdade
condicionada presena da fico.
Um processo parecido acontece com a autofico. A autofico foi um dos formatos
que gerou impasses para a teoria inicial de Lejeune sobre a autobiografia. Na autofico, o
pacto autobiogrfico no se cumpre. Mesmo que haja a identificao do nome da capa com o
nome do personagem narrador da histria que se encontra dentro do livro, no h a
expectativa por uma verdade. A partir da constatao da existncia da possibilidade de haver
uma escrita com dados autobiogrficos, mas que viria sob o disfarce da fico, sem
compromisso com a verdade, Lejeune ento, assume que sua definio inicial no era capaz
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de comportar todas as possibilidades das escritas autobiogrficas. Assim surge uma nova
ideia, a do pacto fantasmtico.
O pacto fantasmtico acontece quando a relao entre autor e personagem/narrador
no se mostra explcita, ou seja, o autor no assume sua obra enquanto autobiogrfica, porm
a inunda de dados biogrficos. Sobre o pacto fantasmtico, Miranda diz que
(...) ao realar o desdobramento do autor em figuras e
personagens diversos, [o pacto fantasmtico] permite
entrever, j em processo, a noo do autor como um ser de
papel, e a da autobiografia no como a representao
verdica e fiel de uma individualidade, mas como uma
forma de encenao ilusria de um eu exclusivo
(MIRANDA, 1992, p. 38)

Essa modalidade em que fico e dados biogrficos se misturam, representada
principalmente pela autofico, surgiu em meio s mudanas culturais e sociais iniciadas na
dcada de 70. O prprio termo autofico se mostra contraditrio, j que auto se refere a si
mesmo e fico ao imaginrio criado a partir de e voltado para o externo e, dessa forma, um
termo invalida o outro. comum a autofico suscitar a dvida se o que temos uma fico
com elementos reais ou um texto autobiogrfico invadido pela fico, porm a natureza da
autofico justamente a da dvida. Seu caminho natural o de no permitir certezas sobre a
sua definio se pensarmos que existem apenas dois campos fechados o da fico e o
autobiogrfico.
O jogo entre a revelao e o despistamento da identidade de
quem escreve se configura nas autofices contemporneas,
que sustentam a ambiguidade entre o espao da fico e as
referncias extratextuais. Autor e narrador categorias
pertencentes, respectivamente, ao fora e ao dentro do texto
se confundem e se excluem simultaneamente, pois, se h
elementos que as aproximam e identificam, os textos
tambm exibem suas contrapistas, impedindo o leitor de
sustentar uma iluso autobiogrfica. (VIEGAS, 2009, p. 15)

O autor da autofico fabula com a sua prpria vida. E o leitor, ao se deparar com a
autofico, no capaz de dizer se a mesma uma autobiografia ou uma fico. Nesse
contexto, comum escritores assumirem que em seus romances h muito mais de suas vidas
do que em suas autobiografias, at porque, no romance, h a proteo oferecida pela fico. O
texto autoficcional no responde ao pacto novelesco, aquele em que o leitor no consegue
fazer ligao entre o autor e os personagens da trama, como tambm no responde ao pacto
autobiogrfico, situado por Lejeune. Sua arte est nessa ambiguidade, em ocupar um espao
intermedirio entre a fico e o real.
27

Ainda hoje h a resistncia em aceitar esse formato intermedirio, que se alimenta da

dvida, que ocupa um espao no meio do caminho, sendo assim, h quem prefira enquadrar o
texto autoficcional em uma das categorias j existentes. Com isso, acaba por estender as
possibilidades dentro das categorias, pois, se o texto com caractersticas autobiogrficas, mas
predominncia da fico, for enquadrado como fico, ele acaba por alimentar possibilidades
diferentes dentro desse gnero. Normalmente, essa distino busca por nveis diferentes de
presena do real ou do ficcional, levando anlise de quanto h de verdade em uma fico e o
quanto h de ficcional em uma autobiografia.
A autofico capaz de camuflar o autor e dar-lhe, assim, a possibilidade de falar de si
sem assumir os seus fatos e dados reais diante do olhar alheio, deixando de se expor ao
julgamento externo. Manuel Alberca, comenta que no en vano el autor se exhibe/oculta por
miedo a ser reprobado moralmente o tildado de autocomplaciente y narcisista
1
( ALBERCA,
2007, p. 131), afirmando que a fico pode ser uma forma de revelar a intimidade e se
proteger das possveis recepes negativas que podem surgir do olhar do outro.
A partir desse vis, podemos pensar que a autofico pode ser encarada como uma
escrita dotada de transparncia, mesmo que esse pensamento possa parecer contraditrio, j
que a presena da fico intimaria justamente o contrrio da transparncia. Segundo Alberca,
com a juno entre o ficcional e o biogrfico em um objeto nico, possvel passar del
disimulo y del ocultamiento de la novela autobiogrfica a la simulacin y a la transparncia o,
mejor, a la apariencia de transparncia.
2
(ALBERCA, 2007, p. 131). Segundo ele, a
autofico realiza uma espcie de fingimento, utilizando a fico para ocultar uma histria
autobiogrfica. Aplica nesta tanta transparncia que gera a dvida no leitor, que comea a
desconfiar se o que l , na verdade, uma autobiografia.
Com a possibilidade de no ser real, o autor da autofico assume no s uma postura
de narrador ou o simples papel de reunir dados sobre si. Ele se permite uma postura crtica,
abre a possibilidade de poder opinar e interferir. Afinal de contas, sendo uma fico, ele pode
criar e acrescentar o que lhe convm. No h a explcita preocupao em revelar sua vida, ao
contrrio, h a conscincia e a vivncia da impossibilidade de ser honesto em seus relatos

1
No toa que o autor exibe / esconde: por medo de ser rejeitado ou descartado como moralmente
autoindulgente e narcisista.

2
passar da dissimulao e do ocultamento do romance autobiogrfico simulao e transparncia, ou melhor,
aparncia de transparncia.
28

autobiogrficos. Ele, ento, concretiza a tenso que alimenta o autoficcional, o espectro da

dvida de at onde algo pode ser real ou fictcio.


1.3 Hoje em dia...


A autofico serve como exemplo de como a escrita autobiogrfica pode se comportar
nos tempos atuais. Mesclar-se, permitir invases, digresses, novos conceitos, novas junes,
ou simplesmente perceber novos ngulos que j existiam fazem parte do panorama atual da
escrita de si.
As escritas de si, em suas diversas modalidades, passaram por vrias fases, ocupando
funes e valores diferentes na histria da humanidade. Dentre suas diversas funes, a escrita
autobiogrfica assume ser, em algumas passagens, objeto de construo da imagem do sujeito,
em um primeiro momento para si mesmo e, num segundo momento, para o mundo. Nesse
mbito, ela tratada como um espelho onde o autor pode se ver na inteireza do olhar,
permitindo julgamentos, observaes e construes. Em outros momentos, a autobiografia
pode servir como captao de ideias e aes, soltas, fragmentadas, sem a inteno de atingir
um corpo completo, uma imagem do sujeito, apenas traos lanados na expectativa do
julgamento que lhe aprimore as aes futuras. Ela pode ainda servir apenas como uma forma
de registro, do que passou e da prpria figura do sujeito que no quer permitir que o mundo
lhe esquea.
Mas, no panorama atual, no h a necessidade de se preocupar em definir essas
funes, porque hoje em dia elas no se excluem, ao contrrio, se complementam, atuam
juntas, dividem espaos ainda com o desejo narcisista, com o anseio de se mostrar e tambm
com a fissura de observar o outro, de vivenciar o voyeurismo em sua plenitude. Geramos,
assim, um espao biogrfico, de forma que j no mais possvel atuar com divises rgidas
e fechadas. Vivemos, hoje, a dvida da classificao, a interpenetrao dos conceitos e um
momento de aceitao em relao a essas mudanas.
Os novos contornos destinados s escritas de si comearam quando, a partir de
mudanas sociais e polticas, por volta do sculo XVIII, o sujeito passa a ocupar o centro do
pensamento ocidental. Sobre essa mudana, Luiz Costa Lima declara que a partir pelo menos
do sculo XVIII, tamanho o prestgio da categoria individualidade que ela parece
29

compreensvel por si mesma e, assim, que se tornaria desnecessrio refletir sobre o que
caracterizaria um gnero definvel como o relato da vida de um eu (1986, p. 245). Com esta
informao, Costa Lima explana a formao da autobiografia moderna, quando o sujeito
torna-se to importante que falar sobre si mesmo ocupa um patamar indubitvel.
A posio que o texto autobiogrfico ocupa na sociedade e na cultura em determinado
perodo varia de acordo com a postura do sujeito e de sua relao com algumas outras
categorias, como afirma Viegas, ao apontar que a caracterizao do gnero autobiogrfico
depende, por um lado, da constituio do indivduo moderno, dotado de livre arbtrio, e, por
outro, da distino entre fico e no fico. (2006, p. 11)
Com o sujeito moderno, as escritas de si transformaram-se em uma forma de discutir a
individualidade e a subjetividade, ou simplesmente, de relat-las, colocando-as como o centro
das atenes. O sujeito moderno acometido pelas incertezas, o que, de alguma forma, lhe
atribui fragilidade. Ele percebe que no h verdades absolutas, que o seu ser no completo,
mas que se encontra em construo. Diante dessas novas percepes, a escrita surge, de
maneira consciente, como um meio do sujeito se compreender e se construir. Sem a
possibilidade de uma escrita plenamente verdadeira, acrescenta-se a fico, que acaba por
servir de ferramenta para ocupar os espaos vazios dos relatos autobiogrficos. Alberca
ressalta la fragilidad identitaria del sujeto moderno, necesitado de un suplemento de ficcin
sin el cual su existencia carecera de entidade suficiente
3
. A fico comea a fazer parte da
escrita autobiogrfica, no como um elemento destruidor, mas como um elemento
complementar. Dessa maneira, comeam a ser observados a autofico e os demais gneros
hbridos.
A centralizao e a preocupao com a primeira pessoa foi uma das vias atravs das
quais as mudanas se estabeleceram. Mas como chegamos a esse destaque no eu? Passado um
primeiro momento, em que a pessoa que escreve assume o papel de detentora de seu
contedo, podendo fazer transmitir com ele a ideia que desejasse, surge a descrena no autor,
no sujeito que se dispunha a usar a lngua para comunicar uma ideia ao outro. Durante algum
tempo, surgiu a desconfiana em relao existncia de um autor por trs de um texto,
enquanto criatura responsvel. Barthes afirma que a escrita a destruio de toda voz, de
toda a origem. A escritura neutra, esse composto, esse oblquo onde foge o nosso sujeito, o
branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a comear pela do corpo que escreve
(1988, p. 65)

3
a fragilidade da identidade do sujeito moderno, necessitado de uma carga de fico, sem a qual careceria de
existncia suficiente.
30

A ideia de anular o sujeito por trs do texto atinge fortemente as escritas de si. A ideia
que Barthes defende envolve pensar que escrever deve ser um ato impessoal, pois a lngua
no lhe pertence, logo, no se devem depositar nela suas expectativas pessoais. Sendo a
linguagem um bem pblico, para uso de todos, o autor no existe enquanto tal, ele no deve
ser responsabilizado pelo que a escrita transmite. a linguagem que age, ela a responsvel
pelo que o leitor est recebendo, no o autor. Obviamente h algum que escreve, mas esse
algum no est criando ou usando algo pessoal: a linguagem pertence a todos.
Este pensamento problematiza a escrita ntima, pois, se a linguagem age por si mesma
e o autor enquanto pessoa criadora do que o leitor recebe no existe, quem esse eu que
fala de si mesmo? Enquanto h a ascenso do sujeito e da individualidade, durante o perodo
que convencionamos chamar de a morte do Autor, esse sujeito deixa de existir enquanto
autor e passa a existir somente em funo da sua criao, do seu texto. Barthes acusa o autor
de ser um personagem moderno, ou seja, um encenador, que s se concretiza atravs do
texto, no tendo autonomia fora dele. Se o autor no existe antes do texto, sendo criado pela
linguagem, no h interesse na pessoa que escreve. Segundo Barthes, tanto o sujeito quanto
sua vida so construdos pela linguagem. Por isso, se refere ao autor como um ser de papel.
Quando Barthes retira do autor a propriedade do texto, ele menciona que, se no h
um autor, um algum provedor com quem se preocupar, no h uma vida real por trs do texto
para ser investigada, porm Barthes cita um valor importante em torno do texto: o prazer de
ler. Sendo esse o ponto central para a existncia de um texto proporcionar o prazer e
considerando as necessidades trazidas pela ascenso da individualidade, olhar por trs do
texto, para quem escreve, tornou-se um elemento indissocivel do prazer do leitor. O leitor
contemporneo no se conforma com o romance, ele quer saber sobre a vida real que h por
trs daquela fico que se apresenta na sua frente e busca por informaes que saciem essa
vontade de saber o que est alm da fico.
Com a incluso da presena do autor dentre os itens de desejo do leitor, ignorar a
existncia do autor torna-se bem mais difcil. O leitor l as fices querendo entender o
porqu de seus detalhes, de sua trama e, entendendo que a linguagem pode ser pblica, mas a
ideia que ela transmite no, ele quer olhar para este criador da ideia, quer entend-lo, dissec-
lo. Inicia-se, assim, o retorno do autor, o foco na figura daquele que escreve. Esse retorno,
combinado ao individualismo que se torna central na cultura ocidental, transforma a literatura
contempornea em uma exploso de escritas de si que j no cabem mais em definies
fechadas e sem transgresses.
31

O interesse do leitor pela biografia do autor cria novas relaes. E a internet colabora
com essa transformao. Com a internet, surge uma nova forma de interagir com a literatura.
Perde-se a ideia de um escritor isolado com sua mquina de escrever enquanto produz seus
livros. O que se encontra hoje na rede so escritores que mantm, alm de pginas pessoais,
blogs, atravs dos quais compartilham suas obras com os leitores, at mesmo enquanto as
mesmas ainda esto sendo produzidas e, tambm, se propem, em alguns casos, compartilhar
suas vidas ficcionalizando, propositalmente, ou mantendo a postura de um diarista, em
busca da inatingvel transparncia.
A interferncia do leitor pode ser mais bem aceita, encontrando maior facilidade em
assumir uma posio positiva, podendo ser bem recebida e ponderada pelo escritor. Com a
internet e suas ferramentas tambm se criou um novo canal de divulgao e comercializao
das obras, expandindo o espao literrio e tornando-o mais democrtico e diversificado, j que
o acesso foi facilitado. Com a facilidade e a grande importncia que a exposio conquistou,
torna-se cada vez mais comum a manipulao da criao e dos dados pessoais do autor em
busca da ateno do leitor. No depoimento abaixo, retirado da revista eletrnica E-blog.com,
fica clara essa nova maneira de lidar com a literatura:
J tive duas editoras e atualmente publico meus trabalhos
por conta prpria. Alm de meus livros publicados, meus
leitores me lem atravs de meu blog pessoal, o Blog do
Kelmer, e nos textos que escrevo pra jornais e revistas. No
ano de 2008, pro meu novo livro (Vocs Terrqueas -
Sedues e perdies do Feminino, uma coletnea de
contos e crnicas sobre a mulher), criei uma promoo de
pr-lanamento, na qual o leitor adquire seu exemplar
antecipadamente, pagando adiantado e recebendo quando o
livro sair da grfica. A vantagem: o nome do leitor constar
na obra, na seo Galeria de Leitores Especiais. E antes de
depositar o valor em minha conta, o leitor pode conhecer
um pouco do livro na internet, acessando a verso livro-
blog.
(...) Quarenta muito ou pouco? No sei. O importante
que isso mostra que atualmente possvel e vivel aos
autores construir suas carreiras de modo independente, fora
do mbito das editoras. A internet pode significar pros
escritores o fim da dependncia do tradicional esquema de
distribuio e vendas representado pelas editoras e livrarias
- e o leitor tem papel fundamental nisso. A funcionalidade
dos blogs e os crescentes recursos da rede podem nos
ajudar a viabilizar nossas carreiras, tornando-nos mais
autnomos, alm de aproximar o autor de seu pblico-
leitor. (KELMER, fevereiro de 2009, disponvel em
http://blogdokelmer.wordpress.com)

Schittine, em seu livro Blog: comunicao e escrita ntima na internet, destaca essa
nova relao entre o autor e o leitor, como a escrita nos blogs vem minimizando o
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distanciamento que costumava ser caracterstico dessa relao em outras pocas, e ressalta o
quanto essa aproximao pode tornar a criao literria algo mais interativo colaborando
para a saciedade do desejo de ambas as partes. Schittine resume assim a relao entre o
escritor blogueiro e seu leitor:
(...) uma relao de troca. O diarista virtual no quer um pblico
apenas para ler suas confisses, como num livro. Ele quer um
pblico com o qual possa estabelecer um dilogo. (SCHITTINE,
2004, p.221)

Uma dificuldade que vem sendo ampliada com a publicao de textos literrios na
internet o controle em relao autoria e ao plgio. Martha Medeiros, em palestra realizada
no dia 17/09/2009, na XIV Bienal Internacional do Livro (Rio de Janeiro), relata a
insatisfao causada pelo aumento da dificuldade em manter preservada a autoria de seus
textos. Ela diz que no difcil encontrar meus textos ou parte deles em pginas pessoais
ou mesmo em campanhas publicitrias, sem conter a autoria, ou pior, sendo assinados por
qualquer outra pessoa. Segundo a autora, a internet elevou a literatura a um objeto de fcil
acesso, mas tambm gerou problemas ao intensificar o processo que leva desvalorizao da
autoria e banalizao do plgio. Afinal de contas, na internet bem simples ser quem voc
quiser e isso engloba assumir como suas produes alheias. As identidades se mostram
flexveis e o que deveria ser particular como, por exemplo, a assinatura ao fim de um texto
torna-se pblico.
Este o cenrio que encontramos em tempos atuais, no s na literatura, como na
cultura como um todo e na sociedade, em suas prticas de vivncia. A interatividade e o
interesse pelo outro, com um olhar que se lana e volta para si mesmo As mudanas impostas
pela diversidade, pelo interesse no outro, simultneo ao foco no prprio eu, que, s vezes,
exagerado, configura o umbiguismo, so fatores que, juntos, ajudam a traar o panorama
atual. O interesse em se conhecer, em se compreender, a certeza da falta de verdades
absolutas, a compreenso de que somos sujeitos em construo, todos esses fatores juntos,
resultantes das mudanas que foram ocorrendo ao longo do sculo passado, desembocam em
um cenrio em que o sujeito olha para si mesmo, ao mesmo tempo em que olha para o outro,
em busca de modelos e explicaes. Entra em jogo o desejo de ser aceito, de ser visto, e no
cabe mais a conteno de um espao completamente privado.
Surge um campo autobiogrfico mltiplo, hbrido, dentro do qual se torna difcil a
tarefa de perceber e separar os gneros, mais ainda quando tentamos gerar classificaes
rgidas. Leonor Arfuch, mesmo que no ignore as especificidades dos vrios gneros da
escrita de si, pesquisa o cenrio das produes autobiogrficas na atualidade, buscando expor
33

e compreender a convivncia desses gneros, que se complementam e se integram, criando

um espao biogrfico.
A pluralizao das vozes domina o ambiente contemporneo. A subjetividade se soma
multiplicidade de vozes, gerando registros, modelos e troca de informaes. A presena, a
voz do eu, o testemunho, a busca pela verdade do outro, todos esses elementos se juntam e
oferecem, dentro de um campo miditico, o preenchimento dos espaos vazios. Arfuch
destaca que ganham espao, nessa nova dinmica, os microrrelatos, capazes de acompanhar a
dinmica atual, vivenciada atravs da era virtual e dos meios miditicos, e tambm os
testemunhos presenciais, como entrevistas em variados formatos, especialmente as
televisionadas capazes de oferecerem ao leitor/espectador o conforto da possibilidade de se
aproximar da verdade, do real.
Arfuch menciona alguns dos pontos que fizeram com que inaugurssemos o cenrio
que se mostra hoje, miditico, hbrido e, principalmente, capaz de combinar o privado ao
pblico, transformando o subjetivo em plural.
Uma nova inscrio discursiva, e aparentemente,
superadora, a ps-modernidade vinha sintetizar o estado
de coisas: a crise dos grandes relatos legitimadores, a perda
das certezas e fundamentos (da cincia, da filosofia, da arte,
da poltica), o decisivo descentramento do sujeito e,
coextensivamente, a valorizao dos microrrelatos, o
deslocamento do ponto de mira onisciente e ordenador em
beneficio da pluralidade de vozes, da hibridizao, da
mistura irreverente de cnones, retricas, paradigmas e
estilos. (ARFUCH, 2010, p. 17)

Com essas colocaes, Arfuch aponta, de maneira sinttica, o emaranhado de
elementos que ajudaram a formar este entremeamento que se desvenda diante do nosso olhar
contemporneo. Dentro desta nova realidade, o autobiogrfico no mais restrito ao espao
privado, ganha o pblico e dele se apropria e o pblico responde fazendo do espao ntimo
um de seus componentes. Desta nova amizade, nascem os compartilhamentos, os desejos
por saber mais do outro, a subjetividade que se torna plural, o individualismo que consente
precisar do coletivo.

34

2 UM UNIVERSO NO TO PARTICULAR

A autobiografia, capaz de relatar a vida ou parte de uma vida de uma pessoa pode
ser vista como a forma de extravasar a intimidade, de expor ao mundo um universo particular.
comum essa escrita ser considerada uma escrita feita para si mesmo, sem expectativa de se
expor, como se fosse uma espcie de ensaio para o exerccio da vida, uma forma de (auto)
reflexo. Mas at que ponto interessa escrever apenas para si mesmo?
Essa uma pergunta que comea a configurar o panorama contemporneo. Nas
ltimas dcadas assistimos a um aumento perceptvel das atividades ntimas sendo expostas
em pblico, especialmente atravs do uso da internet em larga escala. Os dirios ntimos,
antes concentrados apenas no papel e, normalmente, resguardados da curiosidade alheia,
tornaram-se temas de publicaes e ganharam as telas do computador, primeiro em um
formato mais restrito, sem o compartilhamento atravs da rede virtual, depois, podendo ser
vistos por diversas pessoas atravs da internet.
Mas essa mudana da preservao do escrito para a publicao do mesmo no
aconteceu repentinamente. Ela faz parte de diversas mudanas sociais e de um processo
gradual que teve como marco inicial as mudanas vivenciadas pela ascenso da burguesia, a
partir da segunda metade do sculo XVIII.
O indivduo moderno lutou para preservar sua intimidade e seu espao privado,
realizando uma firme separao entre seu universo particular e sua vida social. Essa separao
designava como privado o espao da famlia, do lar e como pblico o espao poltico, social.
Essa diviso era marcada, vivenciada e idealizada pelos indivduos, e qualquer postura fora do
esperado causava estranhamento e deveria ser condenada.
O individualismo e o narcisismo, elementos comuns sociedade burguesa, fizeram
com que o indivduo buscasse incessantemente a preservao do seu espao privado e mesmo
a criao de um ambiente somente seu, do qual, em algum momento, nem a famlia
participasse.
Controlava-se o contato com estranhos e mantinha-se a vigilncia constante sobre a
comunicao e a postura que se tinha em pblico. A reteno de informaes pessoais e de
sentimentos era constante, permitindo que o indivduo exercesse seu lado ntimo com
tranquilidade apenas nos limites de sua casa. Com os ideais de liberdade e a valorizao do
indivduo, advindos do ganho de espao realizado pela classe burguesa, cresceu, na verdade,
uma postura um tanto contraditria porm explicvel diante da sociedade: a pessoa se
35

fechava, se preservava. Apesar de ser aplicada a ideia de liberdade, a valorizao do pessoal

fez com que esse lado precisasse de mais segurana e, ao invs de vivenciar a liberdade
proposta, passasse a se manter fechado dentro do ambiente familiar. O indivduo passou a
abrigar em si duas posturas bsicas, a individual e a de homem social.
Nessa poca, o indivduo sofria mais a vigilncia familiar do que a social. A mulher,
matriarca da famlia, era responsvel por manter a ordem da casa e observar as relaes e
posturas de todos. A preocupao com o estudo dos filhos e com a conduo dos servios e
das visitas na casa ganha imensa importncia na expectativa de controle da vida pessoal e da
imagem que seria lanada para fora da casa.
Os espaos fsicos construam o ambiente necessrio manuteno dessa diviso entre
o pblico e o privado. A arquitetura aplicada pela burguesia, na poca de sua ascenso, ,
inclusive, uma forma clara de notar essa diviso. Denise Schittine, pesquisadora e escritora,
aborda essa questo em seu livro Blog: comunicao e escrita ntima na internet. Ela descreve
o ambiente domstico estipulado na poca e as mudanas sofridas pelo mesmo, destacando a
influncia dessas mudanas na diviso marcada entre o espao social e o pessoal. Ela descreve
as residncias burguesas, destacando a distribuio de cmodos, que favorecia a preservao
da intimidade.
Nas casas burguesas, essas mudanas se fizeram sentir
rapidamente. Quase todas eram divididas em vrios
aposentos principalmente com as dependncias de
empregados separadas pelos vestbulos e pelos corredores,
como acontece at hoje. O aposento reservado aos
visitantes corpos estanhos na vida privada familiar era
a sala de estar ou de visitas. nesse lugar, longe da sala de
jantar onde se rene a famlia todos os dias para fazer as
refeies em comum, que os estranhos so recebidos. Ali
esto os objetos e comportamentos que a famlia julga de
bom-tom vir tona em pblico. (SCHITTINE, 2004, p. 51)

interessante notar que, j nessa poca, era forte a preocupao com a construo de
uma imagem que pudesse colaborar para o exerccio do papel social do indivduo. O eu
vivenciado dentro do espao familiar e mesmo nos momentos sozinhos no , ou no deveria
ser, pelo menos, o mesmo eu apresentado em pblico. E boa parte da estruturao social da
poca girava em torno dessa temtica. Nas ruas vivia-se um personagem, uma personalidade
montada para ser exposta, a sinceridade ficava para o meio familiar. Uma das motivaes para
essa forte ciso foi o crescimento das cidades e o intenso convvio com legies de
desconhecidos. Lidando com tantas pessoas estranhas a sua rotina, o sujeito comea a expor
menos de si mesmo e de suas ideias e pensamentos, no intuito de proteger a sua privacidade.
36

Torna-se importante lembrar tambm que, j no perodo da ascenso da burguesia, a

diviso entre os espaos pblico e privado no era to clara nas classes baixas. Nas casas das
famlias de baixa renda, a diviso em cmodos, muitas vezes, no se aplicava, deixando com
que os muitos integrantes de uma famlia dividissem um mesmo espao, inclusive, para
realizar aes de higiene pessoal. Mas fica o destaque para a influncia da distribuio
arquitetnica valorizada pelas famlias burguesas e para o comportamento dos integrantes
dessa classe, por ser esta a classe que geria o universo poltico e econmico da poca e que,
de fato, causou influncia nos direcionamentos sociais histricos que respondem, em parte,
pela realidade contempornea.
Apesar de hoje ainda mantermos o espao da casa com divises, visando
privacidade, j comum a existncia de apartamentos sem divises entre os cmodos ou, pelo
menos, mantendo a sala de jantar como apenas uma extenso da sala de estar, sem qualquer
diviso, sendo, algumas vezes, ligadas com a cozinha por paredes construdas pela metade.
comum tambm a casa estar decorada com fotos de momentos ntimos e familiares da pessoa,
sem a preocupao em preservar da curiosidade alheia o que feito em famlia.
Os ambientes de trabalho atuais tambm denunciam as mudanas e a atenuao da
linha divisria entre o espao pblico e o privado. As pessoas admitem relaes pessoais em
seus ambientes de trabalho, o que favorecido, muitas vezes, pela estruturao fsica proposta
pelos mesmos. Salas sem diviso ou com divises de vidro estimulam a troca e o
compartilhamento de todos os momentos, sem distino.
Com essa nova realidade, na qual nem a prpria casa um ambiente totalmente
privado, o cuidado com a seleo do que deve ser mostrado foi potencializado e a criao de
uma imagem social saiu do mbito social e passou a ser exercida tambm no espao familiar,
onde antes funcionava um exerccio do eu mais livre, com menores preocupaes sobre a
construo de um papel a ser exposto.
Mas no foi apenas a arquitetura que denunciou as mudanas da convivncia entre o
privado e o pblico. Um dos elementos que teve evidente participao nessa confluncia de
caminhos foi a expanso da comunicao. Com a criao de aparelhos como a televiso, o
rdio e, posteriormente, o computador, a relao entre as pessoas e o espao social sofreu
significativas mudanas.
A televiso e o rdio configuraram-se, no incio, como elementos que pareciam
favorecer o convvio familiar. Ambos eram utilizados, normalmente, em famlia e
colaboravam para a convivncia do grupo familiar, pois proporcionavam momentos coletivos
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dentro da casa e estimulavam o aumento das horas compartilhadas somente com a famlia.
Porm, essa funo de reunir a famlia logo se perdeu com o barateamento dos equipamentos.
As casas, dentro de algumas dcadas, comearam a ter mais de um aparelho de televiso, que
era colocado no quarto, cooperando para o isolamento dos integrantes da famlia. Gerou-se o
hbito de fazer uso desses aparelhos em seus quartos, sozinhos, aumentando o tempo de
privacidade que no envolvia a famlia.
Com o computador aconteceu algo parecido, porm ele comeou sua trajetria no
ambiente de trabalho. Inicialmente, ferramenta de trabalho, o computador se concentrava fora
do espao privado de seu usurio e recebia a funo de agregar informaes impessoais. Aos
poucos, com as modificaes sofridas pelo aparelho e a diminuio do custo, o computador
pde comear a entrar nas residncias e se tornar mais um elemento de uso familiar. Como
aconteceu com a televiso e o rdio, a princpio, o computador em casa era de uso familiar,
sendo colocado, normalmente, na sala da casa e estando disponvel a todos os integrantes da
famlia, ou seja, dificultando o uso personalizado.
Na Brasil, o computador comeou a ser de uso domstico, com um maior alcance, a
partir da dcada de 90. Antes j era conhecido pelos brasileiros, mas ainda se mantinha
concentrado no local de trabalho. Aos poucos, ele foi para dentro de casa e, com o custo do
aparelho se tornando cada vez menor, comeou a ser possvel, para uma parcela da populao,
possuir mais de um aparelho, o que iniciou a transformao do uso do computador em um
aparelho pessoal. A popularizao dos notebooks, formato de computador porttil pensado
para o uso pessoal, vem colaborando para essa transformao que continua a acontecer nos
dias atuais.
O notebook criou tambm uma nova relao entre o espao de casa e o espao do
trabalho. Se tratando de um formato porttil, o notebook recebe um uso pessoal em casa, mas
pode ser transportado ao trabalho, levando para o local pblico dados pessoais de seu usurio.
Fotos, vdeos familiares e informaes pessoais ficam facilmente expostos e so, inclusive,
compartilhados pelo prprio usurio em seu local de trabalho. O contrrio tambm acontece.
Tornou-se comum levar material de trabalho para casa e tornar o que seria prprio de seu
ambiente pblico, parte do seu momento privado, diluindo o que seria uma clssica diviso
entre o pblico e o privado.
O que vivenciamos at o sculo XIX foi a marcada separao entre o sujeito individual
e o sujeito social, o que era acompanhado por essa ntida diviso entre o privado e o pblico
estampada nos comportamentos, hbitos e espaos fsicos. A existncia da sociedade e do
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sujeito depende, em grande parte, da articulao entre esses elementos, entre o individual e o
social, entre o pblico e o privado, portanto, temos mudanas histricas fundamentais na
entrada no sculo XX, quando se tornam menos presentes as linhas divisrias entre essas
aparentes dicotomias.
O espao privado e o espao pblico so duas coisas distintas, porm completamente
interdependentes, por isso a meno do termo aparente associado dicotomia, pois, apesar
de duas partes, s funcionam estando interligadas e dessa ligao que surge o produto: a
sociedade. Apesar de, historicamente, os espaos do pblico e do privado serem vistos como
opostos, no exatamente assim que eles funcionam. O individual e o social so
indissociveis; para que um exista, necessrio que o outro esteja presente, ento, ao invs de
uma dicotomia, eles se inter-relacionam. A existncia e permanncia de ambos dependem do
funcionamento dessa inter-relao.
Para trabalhar melhor esses elementos em seu livro O espao biogrfico, Leonor
Arfuch aborda o social como o poltico, as discusses coletivas e o que seria relevante
socialmente, designando para o privado o que seria ntimo, secreto. Dessa maneira, Arfuch se
aproxima da descrio trabalhada por Schittine, marcando a separao burguesa entre o
pblico e o privado, porm Arfuch se estende no assunto ao trazer os paradigmas de alguns
cientistas sociais envolvidos com os questionamentos sobre esses dois espaos o pblico e o
privado e tambm situando melhor a convivncia desses espaos no cenrio contemporneo.
Arfuch destaca, assim como Schittine, o perodo de ascenso da burguesia como um
momento chave para a relao entre o espao social e o espao privado. Ela ressalta que o
universo burgus exigia uma administrao familiar regrada, o que fazia com que mesmo o
espao familiar necessitasse de regras e posies definidas, como acontecia com o espao
pblico, a sociedade. Dessa maneira, segundo Arfuch, por mais que a burguesia marcasse a
separao entro o pblico e o privado, foi ainda no perodo de ascenso da mesma que
comearam a se desfazer os severos limites estre o espao pblico e o privado, j que a
estrutura de um comea a servir ao outro e isso gera uma relativa proximidade e a
identificao de um espao com o outro.
Na percepo de Schittine, no h essa proximidade. Ela enfatiza apenas que a
sociedade burguesa serviu para delimitar melhor os espaos; no h ainda, em sua viso sobre
o perodo de ascenso burguesa, a ideia da diluio dos limites. Arfuch trabalha com a
afirmao desses limites e tambm com o incio da diluio dos mesmos ainda dentro do
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modelo da sociedade burguesa. E foi o perodo burgus um momento de convivncia entre a

delimitao desses espaos e a proximidade entre eles.
Desde ento, desde que o pblico e o privado comearam a ser vistos como elementos
importantes para a compreenso da sociedade e se tornaram objetos de estudo, as mudanas
foram muitas. Segundo Hannah Arendt (apud Arfuch, 2010), filsofa alem influente no
sculo XX, na civilizao grega j era possvel notar a diviso entre os espaos pblico e
privado. Ela aponta que o universo pblico estava centrado apenas no poltico e havia a severa
preocupao com a postura e a participao no espao pblico.
Arendt aborda a atuao predominante da burguesia como o momento em que o
privado se mistura ao pblico, entendendo essa mistura como o ntimo se apropriando do
social e se deixando apropriar pelo mesmo. Ela menciona o pblico como um devorador do
ntimo, porm aponta essa deglutio como algo inevitvel, pois h a lembrana que o
privado, naquele momento, passa a existir somente em face do pblico, ou seja, o social
precisava legitimar o espao ntimo para que este pudesse se mostrar presente.
Para Arendt, o pblico comea a se deteriorar quando as posturas que deveriam estar
atreladas apenas ao espao privado comeam a invadi-lo e influenci-lo. Segundo suas ideias,
o enfraquecimento do contedo ideolgico pela invaso das posturas antes destinadas ao
ambiente privado desmaterializam as discusses e resolues polticas e sociais necessrias ao
bom desenvolvimento do grupo e isto se mostraria um ponto negativo para a sociedade.
Porm, ela aponta o direcionamento tambm de um ponto positivo em relao a essa
interpenetrao dos espaos. Segundo sua concepo, a diluio entre o pblico e o privado
responsvel por uma afirmao da individualidade do sujeito, o que se coloca como positivo
na participao do mesmo no que se destina constituio das relaes sociais. Esse aspecto
apontado como positivo por Arendt vai ser amplamente importante nas relaes sociais
contemporneas, conforme se define o afrouxamento da diviso entre o pblico e o privado. A
afirmao da individualidade do sujeito do sculo XXI vai guiar de maneira prioritria as
relaes e as posturas sociais esperadas e vivenciadas no universo contemporneo.
Arfuch trabalha as ideias de Arendt junto s de Jurgen Habermas, socilogo alemo
tambm do sculo XX, confrontando e equiparando as mesmas. Habermas vai partir de um
ponto diferente de Arendt, no buscando referncias nas estruturas sociais mais tradicionais,
como a sociedade grega. Mas, como Arendt, ele vai destacar o entrelaamento do domnio
pblico com o privado no perodo burgus, dando destaque para a mudana sofrida pela
postura do indivduo, que no mais se continha com a imparcialidade das discusses polticas,
40

antes prevalecentes no espao social, e que passava ento a incluir a opinio pessoal e as
impresses surgidas dentro do mbito familiar no domnio social. Essa troca entre o espao
familiar e o social, entre o sujeito e o mundo seria a responsvel pela construo de uma nova
rede de relaes e um novo formato de sociedade. Arfuch assim discorre sobre esse momento
vivido pela burguesia e to bem colocado por Habermas: A paixo pela relao entre
pessoas, a descoberta intersubjetiva de uma nova afetividade, unia-se assim ao hbito da
polmica e da discusso poltica, prenunciando os espaos futuros de representao (...)
(ARFUCH, 2010, p. 88). O destaque para essa nova associao, que se torna evidente, aponta
justamente para uma ao futura, um novo desenho para as relaes e para o que veramos,
ento, na contemporaneidade: uma eliminao quase que completa dos limites entre o
universo particular e o pblico.
Em nota, Arfuch destaca trecho da obra de Habermas que se mostra bem esclarecedor
sobre a posio que ele assume a respeito da diluio dos limites entre o privado e pblico, j
que ela trata com naturalidade essa mistura e busca passar uma imagem de equilbrio e apoio
entre os espaos, lembrando o posicionamento de Arendt, ao considerar a interdependncia
entre os domnios pblico e privado fundamental para a existncia dos mesmos:
A esfera do pblico se origina nas camadas mais amplas
da burguesia (...) como aplicao e, ao mesmo tempo,
consumao da esfera da intimidade pequeno-familiar (...) a
subjetividade do indivduo privado est inserida desde o
comeo na publicidade (...) as pessoas privadas
transformadas em pblico raciocinam tambm
publicamente sobre o lido e o introduzem no processo
comumente impulsionado da ilustrao. (HABERMAS,
apud ARFUCH, 2010, p. 88)

Habermas trata ainda da trajetria que essa, a princpio, equilibrada mistura traa,
desenvolvendo uma exacerbao da subjetividade do indivduo. Como Arendt, Habermas
aponta para a afirmao da identidade e para uma consequente predominncia da
subjetividade, porm, enquanto Arendt frisa esse aprofundamento como uma caracterstica
positiva, capaz de estabilizar o sujeito em sua atuao social, Habermas abre o campo de
viso para as consequncias tanto positivas quanto negativas do desequilbrio que acaba,
por fim, a dirigir a trajetria dessa diluio dos limites.
Segundo Habermas, a dissoluo do poltico em seus termos argumentativos
(ARFUCH, 2010, p. 89) ocorre por conta dessa presena invasora da subjetividade excessiva,
est relacionada aqui ascenso do mbito privado e tendncia ao encaixe de ambas as
esferas, com uma marcada derivao para o ntimo (idem). Com isso, o fator poltico se torna
pessoal e perde a qualidade argumentativa que lhe deveria ser fator fundamental. Para
41

Habermas, ento, h um nvel de perda qualitativa quando a diluio da diviso entre o

pblico e privado se define em um excesso de subjetividade, tomando os espaos pblicos.
Arendt ainda v uma conformidade na presena da subjetividade no social, mesmo quando
tambm aponta para a perda de qualidade das discusses sociais e da atuao pblica, porm
Habermas enxerga mais o teor negativo da questo, lembrando que a mesma se torna uma
motivao ao desequilbrio.
interessante frisar que ambos assim como Arfuch e Schittine incluem no perodo
de formao da sociedade burguesa a constituio dos domnios do privado e do pblico.
Arfuch, entretanto, diferentemente de Schittine, assinala o perodo burgus tambm como o
incio da perda desse limite evento que se estende at os dias atuais. Mesmo sendo vises
aparentemente antagnicas, ambas as autoras tomam como ponto de partida a sociedade
burguesa e suas vivncias. Cito o antagonismo como aparente, pois tanto Schittine quanto
Arfuch iro desembocar na mesma concluso de que a linha divisria entre o social e o espao
domstico s vem se desfazendo mais e mais, sem um previsvel retorno.
Entre Arendt e Habermas o ponto de encontro fica pela concluso de que essa mistura
entre o pblico e o privado resulta na perda de qualidade mantida pelo modelo anterior, com a
diviso estabilizada. A diferena habita na trajetria que cada um realiza para concluir a
existncia desse ponto negativo proveniente das mudanas trazidas pela sociedade burguesa.
Arendt no culpa a presena da subjetividade como faz Habermas. Ela v o social como o
aspecto que engole e destri a privacidade do ntimo, no deixando que esse se mantenha
somente em seu espao, e aponta essa prevalncia do social como a responsvel pela perda de
qualidade das posturas e das ideologias que deveriam estruturar a sociedade. Habermas faz o
caminho contrrio, apostando que o ntimo que invade o espao pblico, condenando este ao
excesso de pessoalidade. interessante notar como ambos destinam ao excesso de invaso
dos limites a responsabilidade pelas aes negativas.
De maneira ampla, a viso negativa advm da sobreposio da vida particular em
detrimento das atividades sociais. H a crtica de que olhar para si mesmo e pensar em suas
prprias necessidades tornou-se o foco mesmo no universo social, o que desestruturou as
relaes e as estruturas sociais. Nesse ponto, Arfuch cita Sennett, pois o mesmo aponta, na
dcada de 1970, que este excesso de foco no individual veio compor um declnio
generalizado do homem e da cultura pblicos (ARFUCH, 2010, p. 90). Sennett afirmou que
o eu de cada pessoa se transformou em sua carga principal; conhecer-se a si mesmo constitui
42

um fim em vez de ser um meio para conhecer o mundo. (SENNETT, apud ARFUCH, 2010,
p. 90). Arfuch fala ainda, com base na linha de pensamento de Sennett, que:
O narcisismo como obsesso da autorreferncia, como
compromisso exacerbado com as histrias vitais singulares
e emoes particulares, era para o autor mais uma
armadilha do que uma liberao: o fim da cultura pblica
valores universais, sentido de civilidade, comunidade,
solidariedade tinha como outra face uma tirania da
intimidade, sustentada numa nova crena, a da
proximidade entre as pessoas como um bem moral.
(ARFUCH, 2010, p. 90)

Essa a crtica elucidada por Sennett, a mesma que j tinha sido iniciada, com menor
severidade, por Arendt e Habermas, dcadas antes. Arfuch, que apresenta as ideias de Arendt
e de Habermas, no discorda do peso negativo dessa exacerbao do ntimo, porm ela
destaca a importncia da adaptao a essa nova realidade implantada nas relaes e como a
acomodao desse excesso vem a fundar a realidade do panorama contemporneo, deslocando
o foco do teor negativo, brindado amplamente por Sennett.
Schittine aborda mais diretamente a chegada da internet s casas e o incio de uma
revoluo inaugurada a partir do uso domstico da rede, entendendo a propagao do ntimo
nos domnios pblicos como parte do processo de mudana dos modelos sociais. Assim,
Schittine demonstra a inicial surpresa com a exposio do ntimo para, logo em seguida,
atestar o espao que essa exposio tomou com a passagem dos dirios ntimos para a rede
virtual, sendo, inclusive, essa exposio ntima uma ao voluntria, fruto do desejo do
prprio sujeito:
impressionante que o movimento tipicamente burgus de
conquista da esfera ntima, que levara sculos para se
firmar, agora estivesse mudando. O espao privado,
conquistado a duras penas, se abria para o pblico. essa
curva que ascende e depois declina que ser analisada aqui:
como os valores do individualismo e do narcisismo
contriburam para que o indivduo conseguisse proteger seu
espao privado de um pblico cada vez mais invasor e,
mais recentemente, como esse mesmo indivduo encontrou
novas formas de abrir para o pblico seu espao privado.
(SCHITTINE, 2004, p. 33)

Chegando a mostrar a invaso do espao privado pelo pblico ou ainda a invaso do
pblico pelas manifestaes pessoais como um desejo do prprio sujeito, aportamos ento
na fase em que os limites entre o pblico e o privado se diluem numa ao consciente e
integrante da existncia dos indivduos e dos grupos. O olhar sobre o enfraquecimento dessa
diviso j no mais o olhar do espanto, mas o da curiosidade, especialmente sobre os
possveis desfechos para esta ao de mescla entre o pblico e o privado.
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A concluso mais sensata sobre as mudanas vivenciadas pela burguesia e as novas

trajetrias percorridas pelo sujeito desde ento se colocam dentro de uma certeza: a essncia
do sujeito est no seu ser privado, mas este precisa se mostrar atuante na sociedade, gerando o
eu social, um indivduo capaz de ver a si mesmo, se perceber e se construir dentro do
coletivo, sem deixar de imprimir nesse a sua marca pessoal que deve vir a ser uma pea para o
todo.
Norbert Elias, socilogo alemo a cujas ideias tambm recorre Arfuch, se posiciona de
maneira interessante sobre a questo, afirmando a interdependncia entre sujeito e sociedade.
dele a centralizao da ideia de interdependncia entre o sujeito e a sociedade:
Para Elias no possvel pensar num indivduo primignio,
livre de inteno e vontade, cuja somatria conformaria o
social, nem, pelo contrrio numa maquinaria prvia de
cujas engrenagens se desprenderia o individual, mas antes
numa interao dialgica que o ttulo de um de seus livros
expressa com uma economia feliz: A sociedade dos
indivduos. So as redes de interao que constituem os
sujeitos, urdiduras que preexistem ao indivduo, marcada
por uma necessria historicidade. (ARFUCH, 2010, p. 92)

Elias exemplifica, em seu livro A sociedade dos indivduos, essa ligao de
interdependncia atravs da parbola das esttuas, mencionada por Arfuch, em nota. Nessa
parbola h a imagem de esttuas que podem ver tudo o que acontece frente delas, e so
capazes tambm de pensar e processar as imagens que se apresentam, mas que, por no
poderem se mover, deixam de olhar para as outras esttuas e interagir com as mesmas, no
conseguindo construir nenhum tipo de comunicao e, consequentemente deixando
desabitado um possvel espao social. Com a falta de troca, no pode haver o conjunto que
convencionamos chamar de sociedade. Essa parbola importante para ilustrar a ideia aqui
abordada e defendida, pois a mesma prevalece atuante na contemporaneidade.
H, na verdade, um movimento duplo, que, incialmente contraditrio, acaba por se
mostrar um duo de complementao. Quanto maior a interdependncia entre sujeito e
sociedade, maior ser a necessidade da estabilizao do senso de autonomia dos indivduos. O
sujeito precisa construir suas ideias, suas percepes, sua individualidade, porm, sem a
interao dessas construes com os outros sujeitos, de nada valem as mesmas, pois elas em
nada resultam.




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2.1 A iluso de uma contradio

A relao defendida por Elias, da atuao de uma associao indissolvel e necessria
entre os espaos privados e os pblicos, instaura uma contradio que norteia o papel do
sujeito, tanto enquanto ser privado, quanto na sua atuao como ser pblico/social. A
contradio qual me refiro trata de uma das consequncias que se iniciou com o
afrouxamento dos limites ente ntimo e social: a profundidade da subjetividade e a ampliao
dos domnios da mesma.
A contradio no se situa na concluso de que a mistura dos espaos tem sua
colaborao para uma supremacia da subjetividade, que passa a atuar em todos os espaos,
nem nos aspectos negativos apontados como consequncias desse alastramento da
subjetividade. A contradio est no cenrio que se forma a partir da supremacia do ntimo
nos espaos pblicos.
Ao mesmo tempo em que a exposio do privado supervaloriza o indivduo, dando ao
interior e ao pessoal uma grande importncia, essa mesma exposio cria a abertura para a
modelizao, gerando a necessidade da criao de modelos a serem seguidos no domnio
social. Assim, ao mesmo tempo em que o sujeito tem agora o incentivo para viver a sua
individualidade, ele tambm tem a orientao para se manter comedido e formatar o seu
pessoal a um molde adequado para a exposio em pblico. Acontece, ento, que se ganha a
liberdade, enquanto se perde a liberdade. Uma contradio que faz funcionar a grande
engrenagem social.
A linguagem acaba sendo uma das ferramentas que convive com esta contradio, em
um estado de quase harmonia. Embora a lngua seja um bem privado, j que um dos traos
que possibilita a manifestao pessoal, tambm o meio de comunicao que mantm a
unidade do grupo social. A lngua passa, portanto, pela mesma experincia contraditria
qual o sujeito est exposto.
Essa condio de ser ao mesmo tempo pessoal e coletiva faz da linguagem um timo
exemplo para a posio onde queremos alocar o sujeito: no status de elemento que serve a
dois princpios vistos como, basicamente, contraditrios e, ao mesmo tempo,
complementares. Andr Martinet, em seu artigo A linguagem, instituio humana, frisa essa
posio da linguagem em que esta se presta ao espao ntimo e ao pblico sem perder a
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qualidade de sua atuao. Pelo contrrio, assim, e somente assim, servindo a dois espaos
muitas vezes vistos como opostos, ela realmente exerce a sua funcionalidade: a comunicao.
Em primeiro lugar, a linguagem serve, por assim dizer, de
suporte ao pensamento, na medida em que se pode
perguntar se uma atividade mental sem o enquadramento de
uma lngua mereceria o nome de pensamento. (...) Por outro
lado, o homem frequentemente emprega sua lngua para se
exprimir, isto , para analisar o que ele sente, sem se
preocupar demais com as reaes dos eventuais ouvintes.
Ele encontra a, na mesma ocasio, o meio de se afirmar a
seus olhos e aos de outros, sem o desejo real de comunicar
algo. (...) Em ltima anlise, a comunicao, isto a
compreenso mtua, que necessrio reter como sendo a
funo central desse instrumento que a linguagem.
(MARTINET, 1966., p. 39-40)

Com esta exposio, Martinet demonstra a linha na qual se situa a linguagem, agindo
como expresso ntima, pblica e como a ligao entre esses dois pontos. Assim fica tambm
o sujeito, mediado por uma linha contnua que leva a dois pontos visivelmente opostos,
representados pelo privado e pelo pblico. Mas como compreender a presena do indivduo e
a atuao dele na contradio formada?
Primeiro, preciso ressaltar que a relao entre pblico e privado, vista,
historicamente, como antagnica, no forma, na verdade, um antagonismo. Logo, quando
imaginamos uma oposio entre esses domnios, essa diviso fica mais na imaginao do
contexto que se desenhou ao longo dos desfechos sociais, pois esses so espaos que, em
maior ou menor escala, sempre coexistiram com alguma gradao de harmonia. Segundo,
preciso visualizar o panorama contemporneo, revestido por uma teia de flexibilidade e
diversidade, no encarando as contradies como elementos de existncia complexa, mas sim
como artefato natural do cenrio que se apresenta nas ltimas dcadas.
Sobre a primeira questo, Arfuch defende (...) a ideia de que o antagonismo entre a
esfera ntima e a pblica/social no nada alm de um efeito de discursos (...) (2010, p. 93),
ou seja, o antagonismo aplicado no caso da relao entre o pblico e privado se mantm
ideologicamente, no se efetivando de maneira concreta na relao real entre esses espaos,
pois o que h entre eles, na verdade, , como foi dito, uma relao de interdependncia, seja
esta mais intensa em algumas pocas e culturas ou mais discreta em outras.
A relao entre o pblico e o privado, e a unio desses elementos no perdem sua
importncia no decorrer do tempo, mesmo com as constantes mudanas e com a quase total
dissoluo das linhas divisrias, pois so temas j inseridos no contexto histrico e no se
pode cogitar que algum dia possam perder importncia.
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Sobre a segunda questo destacada, podemos ressaltar que uma caracterstica cada
vez mais presente no cenrio contemporneo a tendncia aceitao da diversidade e a
relativizao das dicotomias. O tempo presente inaugura uma poca de limites desfeitos, na
qual a diversidade cultural se estabelece e busca acomodao. A internet e sua forma de
interligar as pessoas colaborou para esse estado de maior flexibilidade que encaramos hoje.
Nessa nova dinmica, pessoas se tornam pblicas e cenas coletivas se tornam privadas
sem que isso cause um total estranhamento. No se pode mais classificar um evento dentro
dos padres de pblico ou privado, pois esses padres, regras e alinhamentos se mostram
flexveis, afrouxados, quase que permissivos, j no mantendo a posio de separao, mas
aceitando a permuta e a mistura. O que em um momento pblico, pode, em instantes, se
apresentar como privado, e o contrrio tambm acontece.
Diante desse novo quadro de relaes, possvel afirmar que no mais adequado
pensar em uma perda de espao do pblico para o privado, nem o contrrio disso, ou seja,
uma perda de espao do privado para o pblico. Essa ideia, abordada no sculo passado, j
no tem tanta validade no panorama atual. H, atualmente, um entremeamento saudvel e que,
apesar de no ser algo novo, s vezes, ainda visto como uma novidade, talvez, por ser
recente a percepo da dissoluo da hipottica distncia antes estabelecida entre esses
espaos.
importante eliminar esse pensamento dicotmico em relao ao pblico e ao privado
pois a atualidade parece no suport-lo mais , como importante tambm que, com essa
eliminao, se afaste a marcao entre razo e afetividade, status facilmente associados aos
termos aqui relacionados. A intensa marcao entre a afetividade, que seria a matriz do
universo privado, e a razo, comandante primeira do pblico, tambm j no encontra o
mesmo espao de antes. A compreenso acerca da existncia de uma realidade que no
apresenta um extenso suporte para o estabelecimento de dicotomias passa a ser fundamental
para a percepo das novas relaes estabelecidas.

2.2 Entendendo o pblico e o privado hoje


A flexibilizao presente na atualidade ajuda muito a desenhar as novas relaes entre
os espaos pblicos e privados, porm no ela a nica fonte de modificao da relao entre
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esses dois domnios. Entra tambm em cena um elemento fundamental para a ao conjunta
desses espaos a que assistimos atualmente: a mdia.
Arfuch, em uma breve meno em relao s ideias de Habermas quanto
midiatizao e seu papel junto s mudanas na posio do privado em relao ao pblico, cita
que o papel da privacidade na poltica, de mos dadas com a midiatizao e a revoluo
tecnolgica, foi se tornando inquietante e at mesmo desestabilizador. (2010, p. 91).
Habermas avalia de forma negativa a atuao da mdia nos processos pblicos, lembrando que
ela serviu e serve de veculo fundamental para a entrada do privado no pblico, o que,
segundo ele, seria uma forma desestabilizadora de movimentar o domnio social. Ao longo de
seu texto, entretanto, Arfuch busca deixar claro que a sua viso contrasta com a de Habermas,
pois, para ela, a midiatizao do privado no tem apenas esse teor negativo.
Com a insero da mdia no contexto social, a realidade alterada, ficcionalizada, e
novos contextos so delimitados. A realidade pessoal, afetiva e a existncia privada dentro do
lar j no cabem mais em um possvel espao restrito e reservado. A mdia vem ento para
ampliar esse espao, auxiliar na criao da ponte de troca entre o privado e o pblico.
Abertura que, dependendo da forma como conduzida, pode se mostrar positiva ou negativa
o que varia tambm de acordo com as expectativas geradas em cada poca e em cada
cultura.
Dessa perspectiva, poderamos pensar ento a acentuao
contempornea do ntimo/privado/biogrfico, que
transcende cada vez mais o refgio para se instituir em
obsessiva tematizao miditica, no como uma perverso
do modelo do equilbrio ou como uma desnaturalizao
das funes e dos sentidos primignios de uma ou outra
esfera da modernidade, mas antes como o produto mesmo,
historicamente determinado, da interao entre ambas.
(ARFUCH, 2010, p. 94)
Arfuch aponta, assim, para essa diluio do privado no pblico, ocorrida com o apoio
inquestionvel da midiatizao, como uma resposta expectativa de interao entre ambos os
espaos. J aqui, a conotao negativa dessa diluio se desfaz e a autora expe a mesma com
a naturalidade que pede um acontecimento inevitvel. Mas, como pensar a relevncia da
participao das tecnologias e, em particular, da mdia, nesse processo de interao?
necessrio primeiro situar o papel das tecnologias e da mdia nas evolues e
involues estampadas pela sociedade mais recentemente. Ao longo do sculo XX, as
mdias e tecnologias se instalam de maneira decisiva na sociedade, o rdio durante o perodo
entre guerras e a televiso no perodo ps-guerra, ambos os perodos fases de muitas
mudanas polticas e da presena de sentimentos pessimistas. Com tantas mudanas e perdas,
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os sujeitos abrigavam uma sensao de vazio e era comum sentir-se sem identidade, perdido.
nesse cenrio que se instala a comunicao em massa. Forma de modelizar e monitorar os
sujeitos, a televiso e o rdio surgem pregando modelos, padres e servindo como meios
coletivos de comunicao. Atravs deles, modelos eram oferecidos e o desejo pela
padronizao era estimulado. A era da insero da cultura de massa foi determinante para o
comportamento individual e social da poca e os reflexos so vistos at hoje.
O tempo transcorrido e, sobretudo, as transformaes
polticas das ltimas dcadas, o novo traado do mapa
mundial e o desdobramento incessante das tecnologias, que
foi alm de qualquer previso, transtornaram
definitivamente o sentido clssico do pblico e do privado
na modernidade a ponto de essa distino se tornar
frequentemente indecidvel. (ARFUCH, 2010, p. 95)

Algumas dcadas depois, o advento da insero da internet domstica foi, com
certeza, um dos notveis fatores de mudana na forma como as pessoas se relacionam entre si
e com o mundo. Schittine dedica parte da sua pesquisa preocupao a respeito de como a
rede virtual altera as relaes, e as consequncias dessas alteraes para a vida em sociedade e
paras as percepes do sujeito.
Schittine aborda a passagem do dirio, convencional forma de escrita autobiogrfica
inicialmente secreta, para a publicao na rede virtual. Nesse trajeto ela acaba por contemplar
justamente a intromisso do ntimo no pblico e levanta um importante ponto de tenso: o
desejo. O desejo de se mostrar e o desejo de ver o outro. Nas ltimas dcadas, o desejo tem
sido o fator carro-chefe na conduo de muitas mudanas, inclusive na relao entre o privado
e o pblico, e o de ambos com a mdia.
Assim Schittine comenta sobre as primeiras aparies do dirio ntimo na internet, no
formato de blog:
A escrita ntima era uma maneira de se conhecer um pouco
mais, de dizer coisas que no podiam ser ditas em pblico.
No entanto, eram coisas que alguns autores desejavam que
fossem divididas com algum. Como diz-las sem sofrer as
consequncias de se expor? A tela do computador surge
como um vidro opaco atravs do qual as pessoas podem
trocar ideias e opinies sem serem vistas. Do outro lado
dela, existe um pblico que pode ouvir o que o autor tem
a dizer e dar sua opinio (contrria ou no). Tudo isso sem
o constrangimento das relaes face a face. (SCHITTINE,
2005, p. 31)

O desejo de dividir pensamentos, ideias e vivncias com o outro e com o mundo foi
fator fundamental para que o ntimo comeasse a aparecer nos domnios do pblico. Precisar
o surgimento desse desejo no tarefa fcil, porm possvel dizer que a presena da
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tecnologia e as mudanas culturais sofridas pelo indivduo desde o sculo anterior ao atual so
as provveis principais causas para o surgimento desse desejo. Como exemplo de tais
mudanas que sugestionavam uma abertura para a exposio do privado, o desejo de
transcendncia e a nsia por transparncia nas relaes sociais podem aparecer como alguns
dos motivos, segundo Schittine.
Com mudanas polticas e sociais, o indivduo passa a ter novas percepes sobre si
mesmo e sobre seu papel no grupo. Essas novas percepes desembocam em uma maneira
diferente de se relacionar consigo mesmo e com a sociedade. O desejo de compartilhar
informaes e fatos pessoais surge, ento, como um diferencial das ltimas dcadas. Aliado a
esse desejo, surge naturalmente o voyeurismo, ou seja, a vontade de observar o outro.
Os meios de comunicao inclusive a internet vo ser
os principais instrumentos que estimulam a espreita da vida
privada. Manter a privacidade na internet difcil. (...) At
para construir seu prprio blog o diarista virtual precisa
abrir mo da privacidade fornecendo vrias informaes.
Quem tem necessidade de olhar a vida alheia alm do
buraco da fechadura dificilmente se sentir intimidado por
essas exigncias. Quando se est na internet, longe das
relaes face a face, o que mais estimula o usurio o fato
de saber que o seu ato de voyeurismo no est sendo
avaliado, observado. Pode-se ficar numa posio covarde
de observar os outros sem se expor ou, ao contrrio, travar
contato, mesmo que virtual, com aqueles que so
observados. (SCHITTINE, 2005, p. 43)
As novas disposies sociais criadas por essa rede de desejos acabam por se
harmonizar com as ideias defendidas por Elias e expostas por Arfuch em seu livro O espao
biogrfico. A contradio defendida por Elias a exposio do privado no pblico acarreta a
modelizao, ao mesmo tempo em que consolida a individualizao se encaixa nessa
abertura que os sujeitos comeam a demonstrar de maneira mais intensa com o uso da
internet.
Mesmo diante do desejo de se expor, mantm-se o receio sobre o que mostrar, at que
ponto ir, o que e como revelar esse receio existe mesmo que nem sempre seja consciente.
Tantas dvidas levam, muitas vezes, a um processo de exposio no natural, ou seja,
comum o sujeito contemporneo se mostrar movido pela preocupao do que estar expondo
e que imagem de si estar construindo para o mundo o que tambm influencia a imagem que
tem de si mesmo.
Enquanto o sujeito se desenha para se apresentar em pblico, ele est investindo em
sua individualizao, criando e refletindo sobre quem ele , sobre o que gosta, quais so suas
vontades, ou seja, ele est se individualizando, construindo suas bases e sua personalidade, se
montando enquanto indivduo. Porm, nessa mesma inteno de se preparar para se mostrar,
50

habita o tom de realidade e sinceridade com o qual deve pensar sobre si. O conflito est
quando pensamos que, para ter uma imagem vlida diante do grupo, ou seja, uma imagem que
possa ser bem aceita, preciso seguir as hipotticas modelizaes geradas para o social,
criando assim uma individualizao no to sincera quanto se espera.
Schittine cita o panptico criado por Jeremy Bentham, estrutura circular utilizada na
construo de escolas, prises, hospitais, em que era possvel observar e vigiar vrias pessoas
simultaneamente. Ela menciona que, estudando esse modelo, Michel Foucault comea a
desenvolver, em Vigiar e punir, a ideia de vigilncia constante, caracterstica da sociedade
moderna e que ganhar grande validade nos tempos atuais. Atravs dessa citao, a autora
alerta para uma constante da atualidade: a sensao contnua de exposio. Vivemos em uma
realidade onde no mais possvel preservar o privado como antes. Cmeras de segurana,
internet, redes sociais, facilidade de acesso ao vdeo e fotografia criam uma atmosfera de
tenso, na qual dificilmente possvel sabermos se estamos ou no sendo observados. Limitar
e distanciar o ntimo do pblico tornou-se uma tarefa prxima do impossvel.
Essa sensao de constante exposio observao alheia, ao mesmo tempo em que
faz com que atentemos mais para nossas individualidades e tenhamos maiores preocupaes
com o que somos e o que apresentamos de ns ao mundo, faz com que no sejamos to
honestos ao construirmos a nossa imagem mesmo que seja a imagem que mantemos para
ns mesmos. A preocupao em seguir os modelos e apresentar um indivduo social adequado
que sustente o desejo de ser bem aceito leva o sujeito a criar uma imagem que nem sempre
abarca realmente quem ele . Nos dias de hoje, essa confuso entre o real e o ficcionalizado
pode ser considerada um ponto comum entre os sujeitos e no chega a ser uma ao
consciente. Ela decorre da atenuao da diviso entre os espaos privados e os espaos
pblicos.
No cenrio contemporneo, com a diminuio das marcas capazes de classificar o que
seria privado e o que seria pblico, torna-se complexo fazer essa classificao. O que
podemos observar que a flexibilidade domina o cenrio e os estados no so permanentes,
mantendo a ideia de que o privado no prevalece sempre, assim como o pblico tambm no.
Arfuch no considera a atual flutuao desses domnios um desequilbrio, como defendia
Habermas, nem uma mutilao dos espaos, como apontava Arendt, mas sim uma associao
historicamente natural, que resulta em um ambiente social regido pela flexibilizao dos
comportamentos estranhamente em consonncia com a modelizao.
A aceitao dessa ambiguidade constitutiva ou, pelo
menos, dessa indecidibilidade a priori no supe o
51

cancelamento dos espaos pblico ou privado como tais,

nem a renncia critica sobre seus funcionamentos
efetivos. Antes contribui para deslocar o eixo da questo, de
uma hipottica (in)adequao a limites e competncias
cannicos a uma reflexo mais atenta sobre a atualidade,
sobre os modos cambiantes de expresso, manifestao e
construo de sentidos; modos que tornam pblicas certas
pessoas e privadas cenas coletivas. (ARFUCH, 2010, p. 96)

importante destacar que essa diviso que nunca chegou a ser uma oposio de fato,
mas sim apenas uma classificao de espaos entre o privado e o pblico no hoje
inexistente. Ela no deixou de existir, nem se anulou por completo. Com as mudanas sociais,
polticas e culturais, a relao entre o pblico e o privado se modificou e se adaptou s
alteraes que foi encontrando, servindo, assim, a diferentes propsitos, entre eles esse latente
desejo pela exposio e pelo voyeurismo, presente nas sociedades contemporneas.
A chamada gerao 00, constituda de adolescentes e jovens que nasceram com acesso
a diversas tecnologias e em um panorama onde a exposio j alcana o patamar de ser
abraada com naturalidade, causando menos surpresa e rejeio do que algumas dcadas
antes, inaugura uma nova era de contato com o privado e o pblico.
Em reportagem do jornal O Globo, publicada no Caderno Especial de 20 de dezembro
de 2007, possvel observar como se dispe a nova forma de relao com o pblico. Na
matria intitulada Gerao olhe pra mim, os entrevistados, todos jovens, expem o quanto
desejam ser vistos, notados e relatam que estar no foco das atenes alheias funciona, hoje em
dia, como uma denotao de importncia, no importando muito o que os leva a estar no foco.
Bernardo, jovem de 18 anos que sonha em ser jogador do Flamengo, relata: Meu maior
sonho jogar no Maracan lotado e ouvir a torcida gritar o meu nome. Ser famoso mostra que
voc bom. (O Globo, 20 dez. 2007, Caderno Especial, p. 3).
De maneira geral, a exposio, para essa gerao, no uma novidade. J se trata de
um comportamento incorporado, comum, e deixou de ser visto como algo complexo. Paula
Sibilia, em seu livro O Show do Eu: a intimidade como espetculo, aborda esse recente
fenmeno do gosto pelo exibicionismo da prpria intimidade, que impulsiona a proliferao
da escrita ntima na internet. Ela cita o filsofo Nietzsche, que, no sculo XIX, comeou a ser
visto como louco por considerar a exposio do eu algo natural e interessante para o convvio
social. Questionando o que teria mudado de l para c, do sculo XIX para o atual, a autora
afirma que hoje em dia vivemos na contramo das ideias oitocentistas e apoiamos mais do
que isso, desejamos a exposio da nossa intimidade. E esse apreo pelo exibicionismo se
confirma na internet e nas vrias formas de exposio que ela oferece.
52

Para depreender melhor esse fenmeno, Paula Sibilia cita a revista internacional Time
e a sua eleio da Celebridade do Ano, que a cada ano escolhe uma personalidade pblica
que tenha feito diferena no mundo, seja positiva ou negativamente, atraindo para si os
olhares da mdia e do mundo. Entre nomes j citados pela revista, aparece o nazista Adolph
Hitler, eleito o Homem do Ano em 1938, e George W. Bush, o escolhido de 2004; j em
2006 a revista surpreende ao ter como celebridade escolhida o prprio leitor. A edio de
2006 trazia na capa a imagem de um espelho, alegando que a personalidade mais importante
do ano havia sido o leitor, ou seja, a pessoa comum.
Esse exemplo dado pela autora do livro O Show do Eu: a intimidade como espetculo,
vem s confirmar as mudanas sofridas pela sociedade nas ltimas dcadas. O foco na pessoa
comum desperta o interesse pelo outro prximo, o que alimenta o crculo da exposio. E a
exposio desse eu que vai gerar os modelos, propiciando a modelizao aqui discutida, ou
seja, a modelizao que surge do aumento da individualizao e, numa ao circular, a
influencia.
Schittine, mesmo compreendendo e expondo a importncia de falar sobre esse fato
da exposio voluntria e suas consequncias , ainda o trata com um certo tom de
distanciamento, como uma novidade. Sua fala incorpora o espanto de quando a internet
comeou, em larga escala, a conectar as pessoas e popularizar a exposio do universo
privado. J Arfuch traz uma preciosa contribuio ao tema ao coloc-lo com naturalidade e
buscar afirm-lo como uma fase participativa do trajeto social do indivduo.
Compreender a naturalidade com que, hoje em dia, o privado e o pblico interagem e
como no surpreende mais perceber essa interao fundamental para tratar do tema, e
analisar suas consequncias e o panorama desenhado por ele na atualidade. H uma
articulao indissocivel entre o eu e o ns, sendo o eu um produto do coletivo,
determinado pelo desejo de aceitao e de popularidade. H novos valores comunitrios e a
pessoa se recria a partir do que observa no outro. A autorrealizao depende do outro e do
espao onde voc se encontra, do coletivo, o quem eu sou no se desvincula do onde
estou. A ideia de um espao s do eu, hoje em dia, no nada alm de um mito.
A internet, com suas infinitas possibilidades, norteia essa nova conjuno de relaes
sociais. Estamos vivendo um perodo em que possvel abrir uma pgina na internet e se
perguntar o que o mundo tem a me dizer hoje?. Informaes do mundo e pessoais, todas
disponveis, para serem vistas e comentadas. Uma das sensaes da ltima dcada so as
chamadas redes sociais, pginas atravs das quais a pessoa pode criar um perfil e se
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relacionar, expondo quase tudo que quiser. Informaes pessoais, profissionais, sobre
amizades e relaes amorosas; fotos; vdeos; preferncias, entre outros, so compartilhados e
se encontram disponveis s avaliaes alheias.
A primeira rede social a ficar mundialmente conhecida foi criada em janeiro de 2004 e
denominada Orkut, em homenagem a um de seus projetistas. Sua ambio maior era conectar
as pessoas, facilitar o contato e permitir que as pessoas se conhecessem e encontrassem outras
com as quais pudessem trocar informaes sobre as mesmas preferncias. Aos perfis eram
agregadas comunidades escolhidas de acordo com os gostos, as preferncias e os locais
frequentados. As pessoas se conectavam a um universo de informaes, ao mesmo tempo em
que elas prprias se transformavam em informao aos olhares alheios. A criao da rede foi
um passo definitivo para o deslocamento de valores do status privado/ntimo.
Ainda em 2004 surgiu tambm a rede que encerraria a primeira dcada do sculo XXI
como a grande responsvel pela exposio de informaes pessoais: o Facebook. Diante dela
e de suas muitas possibilidades dentre elas, o aumento do poder de vigilncia sobre a vida
alheia , o Orkut perdeu espao e pblico. Idealizada para o universo universitrio norte-
americano, a rede tem sua projeo e criao relacionada ao nome do jovem Mark
Zuckerberg, na poca um universitrio, e de alguns amigos seus. Entre 2004 e 2006, o
Facebook continuou sendo uma rede interna de perfis para os estudantes de algumas
faculdades dos Estados Unidos, vindo a se abrir completamente e ganhar conotao mundial a
partir do final de 2006. Ao final de 2011, o Facebook contava com 800 milhes de usurios,
que, segundo a matria O que quer o senhor das redes, da revista Veja de 5 de outubro de
2011, se reunidos em um nico territrio, formariam o terceiro pas mais populoso do mundo.
O Facebook vem substituir as conversas na calada, comuns at algumas dcadas
atrs. Em uma sociedade que apresenta um crescimento incessante de pessoas que moram
sozinhas ou mantm relaes instveis, a rede social virou o meio de manter contato com as
pessoas prximas ou apenas conhecidas. Ele tem, porm, ambies maiores do que ser
apenas um meio de conectar pessoas. Ele quer crescer e para isso objetiva justamente a
tematizao dos desejos atuais do sujeito social, dentre eles compartilhar informao,
influenciar semelhantes e manter-se informado (ainda que, ou especialmente acerca de
trivialidades) (PAVO & SBARAI, 5 out. 2011, p. 95)
Mas, por que interessa s redes sociais conectar pessoas? Quem no entende por que
to importante para o site conectar pessoas pode matar a charada com um adgio que circula
pela internet: Se voc no est pagando por um servio na rede, ento voc o produto.
54

(PAVO & SBARAI, 5 out. 2011, p. 95). A partir dessa constatao, se torna mais fcil
compreender o processo de abertura do privado ao pblico e a aceitao que a mesma causa
como um esquema circular.
Desde a expanso da cultura de massa, difundiu-se o consumismo e, nas sociedades
capitalistas, costuma ser ele a mola propulsora das relaes. A exposio do ambiente privado
foi, para o sujeito, uma maneira de compartilhar, de buscar segurana tateando o novo, mas,
para a sociedade, foi um meio de invadir o espao ao qual antes ela no tinha acesso. Essa
chave de acesso lhe permite preparar o sujeito para o que se quer dele tarefa facilitada pelos
meios de comunicao em massa. Voc o foco ao mesmo tempo em que o produto. Essa
a dinmica na qual est inserido o sujeito contemporneo.























55

3 CRNICAS: O ENCONTRO DO EU COM O MUNDO

A crnica um gnero literrio familiar para muitos leitores, pois costuma ser
facilmente encontrada em jornais, revistas, livros e, mais recentemente, em blogs e pginas
diversas da internet. E, como Antonio Candido diz , no Brasil ela tem uma boa histria, e at
se poderia dizer que sob vrios aspectos um gnero brasileiro, pela naturalidade com que se
aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu. (CANDIDO, 1992, p. 14)
um gnero que abriga uma escrita curta, mas com estrutura completa. Sua inteno,
que era inicialmente mais voltada para o ato de informar, atualmente mantm uma ligao
mais estreita com a fico, da qual se aproveita para criar sobre o que deveria ser verdade.
Sua temtica variada, mas de maneira geral busca por assuntos aparentemente
simples e cotidianos. Para a crnica, at mesmo a falta de assunto vira tema para a escrita. A
escrita tambm alvo do cronista, que a usa como tema para seus textos nas mais variadas
situaes. Candido assim fala sobre o que serviria de assunto para a crnica: Tudo vida,
tudo motivo de experincia e reflexo, ou simplesmente de divertimento, de esquecimento
momentneo de ns mesmos a troco do sonho ou da piada que nos transporta ao mundo da
imaginao. Para voltarmos mais maduros vida. (CANDIDO, 1992, p. 20).
Desta ideia expressa por Candido, podemos destacar a forma como age a crnica sobre
o seu leitor. Se tudo vida e a vida matria para a escrita, nessa escrita que o leitor
mergulha e retorna vida, mais maduro, diferente. E esse um dos encantamentos da crnica:
trazer na simplicidade o poder de transformao, no pela imposio, mas pelo fascnio, o
fascnio de ver ali, naquelas linhas, o outro exposto o autor e poder se ver tambm, na
efmera compreenso do reflexo em que voc assiste ao outro em seu aspecto mais ntimo e
nesse aspecto que voc levado a se perceber tambm. A crnica, como todo texto, no acaba
na fala nica de um autor; ela comea nessa fala e acaba no leitor.


3.1 Um pouco mais de histria

H um mito na cultura clssica que conta a histria do rei Cronos. Esse rei visto
como a personificao do tempo, pois a palavra grega chronos significa tempo. Nesse mito,
Cronos engolia todos os seus filhos recm-nascidos para que uma profecia de que um filho
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seu tomaria seu trono no se concretizasse. Sua mulher, que era tambm sua irm, cansada
dessa situao, conseguiu burl-la e deixar que um de seus filhos com Cronos crescesse. Esse
filho, Zeus, ento, cumpriu a profecia que tanto amedrontava Cronos, tomando o trono do pai
com o exrcito que formou junto aos seus irmos depois que fez com que o rei vomitasse
todos os filhos que havia engolido. A figura de Cronos o tempo mostrada no mito como
aquele que tudo engole.
A palavra crnica traz o radical do grego krnos, relacionado ao tempo, e
complementada com o termo do latim annu(m), que significa ano, ou seja, sua origem
etimolgica est relacionada ao tempo, compreenso do tempo e de seu poder enquanto
elemento ativo na vida e nos acontecimentos. Ela est intimamente ligada a esse ser que
tudo engole.
Em um primeiro momento, a crnica era vista, no exatamente como um gnero
literrio, mas como um texto com a funo de relatar, de registrar acontecimentos histricos e
fatos cotidianos. Assim, a crnica poderia servir ao objetivo de registrar o tempo presente
ou passado e cristalizar fatos comuns, porm, importantes. Pensando na crnica nesse
sentido, a carta de Pero Vaz de Caminha, primeiro documento sobre o Brasil, pode ser vista
como uma crnica, pois cumpre o papel de registrar o que o escrivo e seus companheiros
viram na nova terra, porm, no friamente como seriam os textos histricos, mas com lirismo
e repleta da viso pessoal do escrivo. A Carta , na verdade, o relato de uma viso e das
consequncias dessa sobre seu autor. Um relato que leva em conta os detalhes, que percebe a
relevncia das informaes mais banais, que monta um registro a partir, no somente do que
seria grandioso, mas do equilbrio entre os pormenores e as grandes surpresas. Assim a
crnica.
Com a insero da imprensa e do jornal na vida do nosso pas, por volta da metade do
sculo XIX, a crnica comea a se fundamentar como linguagem jornalstica, atuando,
inicialmente, como folhetim. Folhetins eram textos, relativamente curtos, publicados,
normalmente, no rodap dos jornais. Esses textos podiam ser fices com histria nica,
publicada em captulos os romances , ou poderiam ser um texto independente, com um
tema central, que trazia comentrios e impresses de seu autor a crnica. Os folhetins
ocupavam parte do jornal e eram responsveis pelo entretenimento do leitor, o que, com o
tempo, fez dele uma motivao para a compra diria de jornais.
Com a popularizao dos folhetins, o romance ganhou seu espao na literatura e
conquistou os livros, enquanto a crnica adquiriu mais espao nos jornais, assumindo, para si,
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o espao de representao literria dentro da linguagem jornalstica. Desenvolveu-se nesse

espao e nele se popularizou, atravs de nomes como Jos de Alencar e Machado de Assis,
ainda no sculo XIX, e Joo do Rio e Rubem Braga, j no sculo XX.
O estilo do escritor e os temas escolhidos por esse eram, na maioria das vezes, os
elementos responsveis pelo sucesso de sua coluna no jornal. A crnica, colocada assim, fora
da literatura e dentro do jornal, para se manter e no perder espao, precisava conquistar o
leitor dirio/semanal do jornal. No devia, ento, ser um texto com contedo de plena
seriedade, nem ser escrita com uma linguagem de difcil compreenso, muito rebuscada. Ela
tinha seu lugar garantido por tratar de temas cotidianos, do interesse do leitor, e por dar a
esses temas nuances leves e at mesmo cmicas.
Era comum, na escolha dos temas a serem abordados, o escritor optar por relatar
acontecimentos da rotina do leitor, alguma notcia relevante, ou falar sobre a prpria escrita,
j que esta era seu elo de ligao com o leitor e, portanto, instrumento importante para ele e
para quem o lia. Na crnica, importante a temtica ser um assunto comum ao escritor e ao
leitor, pois ela vai partir da viso pessoal do escritor e se estender at o leitor, sensibilizando e
envolvendo o mesmo. Logo, tratar sobre algo que o escritor no domine pode dar origem a
um texto com pouca naturalidade, contrariando o estilo da crnica, assim como falar sobre
algo que no abranja o leitor, algo com o qual ele no se identifique, no o aproximar e far
com que ele d pouca ou nenhuma ateno ao texto, no se interessando em ler um novo texto
daquele autor, no jornal do dia seguinte. A crnica deve ser o ponto de encontro entre o
escritor e o leitor, mantendo a fluncia de uma conversa informal.
Determinado tema, escolhido com aparente aleatoriedade, pode ser mais ntimo, ou
mais social, mais prximo da 1 pessoa, ou mais prximo do coletivo, porm esse tema
carregar sempre o eu do autor, mesmo que, algumas vezes, implcito. Essa presena, ainda
que flutuante, do eu, registrada atravs da presena de suas ideias e sentimentos, uma
marca da crnica.
Temos a crnica esportiva, a social, a policial, a poltica, a
econmica. Elas se diferenciam do artigo porque
basicamente centrada num eixo permanente: o eu do
autor. Da que o gnero romntico por definio e
necessidade. (CONY, Folha de So Paulo, 1998)

Dessa forma, a crnica no pode ser ignorada enquanto escrita autobiogrfica. Mas ela
tem a capacidade de ser, ao mesmo tempo, uma construo destinada publicao. Ela ,
ento, a juno de duas formas que, por muito tempo, foram vistas como elementos que no
poderiam se combinar. Se, em um primeiro momento, a escrita ntima era para se manter
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apenas no domnio do seu autor ou de um destinatrio de confiana no caso da

correspondncia , atravs da crnica, ela se realiza enquanto veculo de comunicao.


3.2 A construo da crnica enquanto elemento autobiogrfico


Quem o autor da crnica? a figura apagada, cultivada e descrita por Barthes, ou o
escritor miditico que est nos blogs e nos livros, na televiso e por toda parte? Apesar de
Barthes afirmar que o ato de escrever destri a figura do autor, ele mesmo assume que esta
figura no pde ser completamente ignorada e que o autor, de alguma forma, aparece marcado
pela escrita.
Apesar do desejo foucaultiano de ver essas indagaes
substitudas pelo rumor da indiferena: Que importa
quem fala, a figura do autor nunca deixou de rondar a
noo de obra. Pelo menos no campo literrio, permanece
em ns leitores, a vontade de encontrar do outro lado da
pgina um ser que nos abrace; (...). O prprio Barthes, ao
mesmo tempo em que assinala a morte do autor,
reconhece sua permanncia nos manuais de histria
literria, nas biografias de escritores, nas entrevistas dos
peridicos e na prpria conscincia dos literatos, ciosos por
juntar, graas aos seus dirios ntimos, a pessoa e a obra.
(VIEGAS, 2007, p. 15)

O autor da crnica no se apaga, pelo contrrio, ele se constri atravs da sua escrita.
O espao biogrfico contemporneo (ARFUCH, 2010) trouxe a figura do autor novamente
ao seu lugar de importncia. O autor volta a ter um lugar de destaque, mas no como o
detentor da linguagem, no sentido de ser o responsvel pela origem e explicao do que o
leitor tem em mos, mas como figura social. Com as transformaes miditicas, o autor passa
a ser tambm um personagem social, uma espcie de cone dentro do espao literrio, uma
referncia que vai alm do que foi escrito: ele torna-se um personagem social.
Quando pensamos no espao biogrfico contemporneo como foi apresentado aqui,
como uma confluncia de mdias e a coexistncia de modelos necessrios, fica mais fcil
observarmos o autor inserido como uma espcie de modelo e sendo, naturalmente, alvo da
curiosidade alheia ou seja, a curiosidade do leitor. A proliferao da publicao de dirios e
de (auto)biografias de escritores pode ser usada como exemplo para visualizar esse foco de
interesse no autor. Leonor Arfuch destaca tambm a entrevista como um meio de chegar ao
autor e sua vida.
59

Arfuch destaca que a entrevista, na maioria das vezes, traz o beneficio da veracidade
em uma poca em que as verdades nem sempre marcam presena. Como a entrevista,
normalmente, conta com a presena do entrevistado o que engloba a sua fala e sua imagem
fsica , ela est passvel de se tornar, aos olhos do leitor, mais digna de confiana.
Efetivamente, desde seu nascimento incerto, provavelmente
na segunda metade do sculo XIX, como maneira de
resguardar e autenticar palavras ditas na imprensa, a
entrevista se revelou como um meio inestimvel para o
conhecimento das pessoas, personalidades e histrias de
vidas ilustres e comuns. (ARFUCH, 2010, p. 151)

A entrevista e o valor que ela vem conquistando nos confirma o aumento do interesse
pelo autor. A crnica passa hoje em dia, assim como o universo literrio como um todo, pelo
fascnio em torno do autor. Dessa maneira, ela no precisa mais se esconder atrs do estigma
de uma atividade propriamente jornalstica, mas se assumir como literatura construda por um
eu presente e dentro de um espao que Arfuch considerou chamar biogrfico.
Durante algum tempo a crnica enfrentou o preconceito dentro do campo literrio por
abrigar o tom jornalstico de uma escrita rpida e centrada em algum fato real o que a
aproximaria de uma simples narrativa jornalstica , porm ela sempre apresentou uma
maneira prpria de narrar que a aproxima e a faz literatura. Ela tem a liberdade para ser
ficcional e construda exatamente sobre o pilar dessa liberdade.
A crnica se dispe a apresentar algo que pode ser real, mas que, unido fico,
transforma-se em literatura. Seu compromisso com a verdade efmero e atual: encaminha-se
pela incerteza em torno de uma verdade que seja absolutamente real. Ao contrrio da
linguagem jornalstica, a crnica no intenciona ser aceita como uma verdade inquestionvel,
mas sim busca seduzir o leitor e coloc-lo numa posio de curioso, despertando o
pensamento de que, por trs de uma verdade ou um fato, pode haver vrias possibilidades
ainda a questo do olhar, em que diferentes olhares produzem verdades diferentes.
Antonio Candido consegue, em poucas palavras, destacar esta mudana na viso
sobre a crnica, quando afirma, em seu texto A vida ao rs-do-cho, que a crnica foi,
gradativamente, sendo colocada sob um novo ponto de vista e pde, finalmente, ser vista de
forma plena como um instrumento literrio.
Ao longo deste percurso, (a crnica) foi largando cada vez
mais a inteno de informar e comentar (deixada a outros
tipos de jornalismo), para ficar sobretudo com a de divertir.
A linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada
e (fato decisivo) se afastou da lgica argumentativa ou da
crtica poltica, para adentrar poesia adentro. Creio que a
frmula moderna, onde entra um fato mido e um toque
humorstico, com o seu quantum satis de poesia, representa
60

o amadurecimento e o encontro mais puro da crnica com

ela mesma. (CANDIDO, 1992, p. 15)

No que ela tenha substancialmente modificado o seu modo de ser construda, o que
mudou, de fato, foi a forma de recepo a qual ela foi e submetida. A crnica sempre teve o
seu alicerce baseado na fala pessoal, na opinio de seu autor ou na coleo de reflexes desse.
Se sua publicao no jornal parecia apontar para a preocupao com a notcia, essa era
realmente apenas aparente, pois a notcia era, na maioria das vezes, utilizada para iniciar o
assunto, mas no se configurava como o tema central que o autor pretendia tratar.
Comumente, o fato jornalstico que detona o texto mero
pretexto, pois no daquela guerra que o cronista quer
falar, mas da guerra enquanto no-paz. E nem da princesa
da Inglaterra, e sim de como todos gostam de reis e rainhas.
E menos ainda do carnaval que vimos ontem pela tev, de
madrugada, mas sim de como os antigos carnavais eram
mais verdadeiros, mais puros, mais alegres do que hoje.
(BENDER e LAURITO, 1993, p. 44)

E, se antes ponderava mais o seu valor jornalstico at por ela estar marcadamente
ligada ao espao do jornal , atualmente o peso maior recai sobre seu valor literrio, ainda
mais por se adequar com excelncia ao espao biogrfico (ARFUCH, 2010) e por atender
demanda atual em torno da figura do autor.
O autor da crnica pode se assumir como progenitor das ideias ali expressas e parte,
normalmente, de fatos e/ou opinies pessoais para, em seguida, expandir-se ao coletivo. No
caso da crnica, no h histria sem haver a voz do autor. E ela pode, assim, ser includa sem
dificuldades no retorno do autor trazido pela contemporaneidade.
Se na atualidade vemos um espao em que os limites se mostram desfeitos e o
ficcional nem sempre capaz de se desvencilhar do autobiogrfico, assim como este tambm
no dispensa o ficcional, a crnica corresponde exatamente a esse espao, pois construda a
partir da percepo de um eu/autor, carregando a sua carga de escrita ntima, e associada ao
ficcional, que se constri e se estende ao coletivo a partir da.
Segundo Arfuch, a configurao do espao biogrfico contemporneo se relaciona a
mudanas sociais e culturais ocorridas no Ocidente, como a crise dos grandes relatos e suas
verdades absolutas, a consequente valorizao dos microrrelatos, o descentramento do
sujeito, a pluralizao das vozes, a hibridizao de gneros e estilos.
possvel considerarmos entre os valorizados microrrelatos a crnica. Mas no s
nesse aspecto ela aparece como destaque. Ela , dentro da sua simplicidade, uma estrutura
complexa em que o autobiogrfico se sustenta pela proximidade entre autor e leitor,
proximidade essa intencional, que busca a identificao de um com o outro. Esse anseio pela
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identificao tambm um ponto de aproximao entre a crnica e o retorno do autor

contemporneo.
Mas no s o cumprimento desse papel de saciedade do desejo do leitor pela escrita
intimista que coloca a crnica dentro do espao biogrfico delineado por Arfuch. A
presena do eu marcada no como um eu solitrio, mas como um eu que se entende e se
percebe como parte do coletivo, fundamental para que pensemos a crnica como elemento
atuante deste espao.
A pessoa que fala na crnica, que toma para si a palavra, compreende a crnica como
um veculo de comunicao essa parte pode ser vista como herana de sua veia jornalstica
e faz de uma fala, inicialmente pessoal, o alarde para algo mais extensivo. Essa conscincia
de que a linguagem, mesmo que intimista, no parte do privado, at porque os limites deste
no se fazem mais presentes como outrora, colabora para que a crnica no possa ser ignorada
como componente do espao biogrfico contemporneo.
Na crnica, o teor autobiogrfico no gratuito. Ele funciona como ingrediente ativo
para a estabilidade e a integrao que a crnica realiza entre o autor, o leitor e o mundo. um
uso consciente que integra a estrutura deste formato textual na expectativa de construir, dentro
dele, a ligao entre o individual e o coletivo, lembrando-se de atenuar e mesmo abstrair os
limites entre o pblico e o privado. O biogrfico se definiria, assim, justamente como um
espao intermedirio, de mediao ou indecibilidade entre o pblico e o privado. (VIEGAS,
2007, p. 16).


3.3 A crnica na atualidade


Relembrando a origem da crnica moderna, basicamente nascida no jornal, como
pensar no caminho que ela fez at atingir o patamar de construo literria afinada com o
panorama contemporneo? Primeiro pensar que a aparncia de simplicidade, portanto, no
quer dizer desconhecimento das artimanhas artsticas (S, 1985, p. 10), ou seja, a crnica
sempre esteve consciente do seu papel artstico, no se vendo como mera linguagem
jornalstica. Segundo, herdou dessa mesma linguagem jornalstica ferramentas importantes
que a adequam no cenrio da atualidade. Uma dessas ferramentas a efemeridade. Leitura
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dinmica, texto curto, mas que nem por isso deixa de cumprir o seu papel enquanto veculo de
informao e literatura.
A crnica, com a sua linguagem simples, a sua estrutura curta e integrando diversos
elementos, se completa em uma produo final que atende ao dinamismo e efemeridade dos
tempos atuais.
O dialogismo, assim, equilibra o coloquial e o literrio,
permitindo que o lado espontneo e sensvel permanea
como o elemento provocador de outras vises do tema e
subtemas que esto sendo tratados numa determinada
crnica, tal como acontece em nossas conversas dirias e
em todas as nossas reflexes (...). (S, 1985, p. 11)

A crnica abre a possibilidade da diversidade do olhar, atendendo necessidade de se
manter a variada gama de verdades possveis a partir da mudana de foco. Mesmo com a
temtica, na maioria das vezes, aparentemente simples, assim como a estrutura, que segue a
mesma linha, a crnica no perde em qualidade nem se permite manter uma imagem de ainda
ser mero veculo de informao.
Ela consegue fazer o paradoxal papel de unir o autobiogrfico ao ficcional, dosando os
nveis de exposio, de acordo com a tendncia contempornea que abriga a diluio dos
limites entre o pblico e o privado. Dessa exposio surge a oportunidade para servir
modelizao, despertando o interesse do leitor voyeur. Flora Bender declara, sobre este
aspecto, que a crnica geralmente no fico pura, j que a realidade est palpvel nela, o
corao de cada leitor est batendo forte, ao identificar-se com as ideias do cronista.
(BENDER, 1993, p.43)
Dessa maneira, a crnica se enquadra nas diversas imposies do cenrio atual, o que
vai da exigncia do dinamismo convivncia com a justaposio dos espaos pblico e
privado, que se unem e se integram, passando pela presena da escrita pessoal em um veculo
destinado publicao.
A autora Martha Medeiros, enraizada em Porto Alegre e conhecida por suas diversas
publicaes, uma das escritoras que se mostra capaz de trabalhar a crnica com os atributos
que lhe do a posio de escrita contempornea que estamos discutindo aqui. Martha
cronista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, alm
de ter lanado diversos livros, no s de crnicas, como tambm de contos, cartas e romances.
Martha Medeiros consegue, em suas crnicas, expressar com propriedade a presena
do eu que destaco aqui como sendo uma referncia na boa aceitao da crnica entre os
leitores contemporneos. Com a sensibilidade que poucos escritores alcanam, a autora
escreve suas crnicas nos jornais citados e mantinha tambm um blog, que, por ora, se
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encontra inativo, mas no qual ainda possvel ler alguns de seus posts. Tem, dentre suas
obras, diversas coletneas de crnicas, boa parte delas pertencentes as suas publicaes nos
jornais.
Em entrevista concedida ao espao Mulher e Ponto, da XV Bienal Internacional do
Livro, realizada em setembro de 2011, no Rio de Janeiro, Martha Medeiros discute alguns
pontos interessantes sobre a sua forma de produzir e tambm sobre suas ideias em torno da
escrita das crnicas. Combinando com o estilo da cronista, a entrevista aconteceu em tom de
bate papo e teve a participao da atriz Cissa Guimares, responsvel por interpretar, no
teatro, uma personagem baseada em um dos livros de crnicas escrito por Martha Medeiros,
intitulado Doidas e santas, nome que tambm se aplicou ao texto teatral.
Arfuch trata a entrevista como um dos momentos propcios ao conhecimento do autor
enquanto figura social, proporcionando um encontro do leitor com o seu objeto de desejo, um
encontro onde o leitor espera encontrar mais veracidade e segurana para compreender as
linhas criadas pelo autor. E a fala de Martha Medeiros na XV Bienal do Livro funciona
exatamente como esse veculo capaz de levar o leitor aos bastidores da escrita e proporcionar
o algo a mais que este espera.
Quando a autora declara: Eu me coloco muito no que escrevo., procura garantir o
teor autobiogrfico de suas crnicas. Ela aponta ainda que escrev-las um meio de deixar a
vida menos repetitiva, renovar as ideias, j que as crnicas lhe permitem a experimentao
das possibilidades sobre o que j viveu. Assume que escreve para si mesma, para se entender.
Ou seja, a crnica , como Candido ressaltou, uma forma de trazer tona o sujeito, disposto
sob um novo olhar, mais maduro, acredita-se. Uma forma de refletir sobre si mesmo e se
reconstruir, funo que compete a vrios outros formatos de escrita autobiogrfica, como o
dirio e as memrias.
Quando perguntada sobre um perodo em que suas crnicas pareciam mais densas e
ouvir a qual perodo a leitora se referia, a autora no demora a responder que a fase teve a ver
com o perodo do seu divrcio, para logo depois afirmar levo tudo para as minhas
publicaes.
Martha Medeiros diz ser ela mesmo escrevendo e que, por esse motivo, o pessoal
aparece nas suas crnicas. No est preocupada com o quanto de ntimo estar publicando,
que esses limites no so pensados, mas sim vivenciados, mas que, s vezes, inventa
personagens para ter um pouco mais de liberdade na escrita de fatos pessoais, um personagem
que sirva de enfeite para aquela histria que pretende expor para o pblico. Assume que a
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crnica uma construo pessoal, pois a ideia que consta nela dela, da prpria autora, como
uma espcie de propriedade privada que ela decide dividir com os leitores.
Ela coloca a escrita do cronista como uma forma de tratar das relaes humanas, uma
forma de expor as angstias e refletir sobre a matria da vida com um pouco de humor. O ato
de escrever se concretiza na ao de no se acomodar, sair da sua zona de conforto e se expor,
buscar outros pontos de vista, questionar.
A autora faz questo de destacar que essa fatia de teor pessoal aplicada na escrita da
crnica a grande responsvel pela aproximao com o leitor, pois essa escrita concentrada
no prprio que se torna o ponto de contato entre o escritor e o leitor, gerando a identificao.
Para o cronista, esse o elo para que a crnica acontea.


3.4 Lendo as crnicas de Martha Medeiros


Em um de seus livros mais recentes, Doidas e santas, Martha Medeiros reuniu
crnicas publicadas nos jornais para os quais escreve. O livro foi lanado pela primeira vez
em 2008 e traz crnicas que foram publicadas entre outubro de 2005 e julho de 2008, todas
datadas, o que nos d a oportunidade de perceber os temas tratados em consonncia com o
perodo em que os textos foram escritos.
Tratando de temas cotidianos que fluem do seu crculo particular ao coletivo, a autora
aborda sentimentos, fatos e ideias com a naturalidade que, talvez, somente a crnica seja
capaz de dispor aos assuntos. Na crnica que abre o livro, Veneno antimonotonia (anexo
A), j aparece a 1 pessoa logo na segunda frase: Eu colocaria mais uma coisinha nessa lista
de pequenas tragdias com que somos brindados diariamente: o tdio. (MEDEIROS, 2011,
p. 9). Nessa crnica, a autora defende que o dia-a-dia precisa de um pouco mais de novidades,
que precisamos ela e ns sermos retirados desse comodismo com o qual, muitas vezes, a
rotina nos presenteia. Ao usar a 1 pessoa, promete que encontraremos, naquelas linhas, algo
particular, e no decepciona. Coloca, em uma pgina e meia, a ateno em um tema que ela
acha justo comentar, expe suas opinies sobre o mesmo e vai alm, sugerindo solues para
o tdio, que considera um mal da atualidade. Mas fcil perceber que, no meio de tanta
particularidade, a 1 pessoa do singular vai sumindo, ou melhor, ela continua ali, mas no to
marcada e preocupada em impor sua condio de geradora das ideias, ela vai deixando um
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espao que serve como uma espcie de lugar reservado para o leitor. Esse lugar formado
pela pertinncia do tema e pelas situaes e sugestes narradas, to pessoais e, ao mesmo
tempo, to comuns a todos, coletiva. Temos, ento, a crnica que recepciona os leitores em
Doidas e santas.
Na crnica A mulher invisvel (anexo B), a primeira palavra j eu. Aparece
novamente a marca da escrita pessoal, imponente, preparando o leitor para ouvir confisses de
um universo ntimo. E essas confisses vm narradas em uma situao banal, que poderia ter
acontecido a qualquer um. A autora estava em um salo de embarque de um aeroporto quando
um distrado passageiro simplesmente ignora a presena dela no banco e senta-se bem em
cima da escritora. O mesmo se desculpa e procura outro assento, porm a narrao do
acontecimento desencadeia uma srie de reflexes sobre quantas vezes ela se sentiu invisvel
quando no queria se sentir assim e sobre as vezes nas quais quis e esteve mais visvel do que
nunca. Mas a reflexo deixa de ser somente sobre si prpria quando ela menciona: Porque
foi assim que me senti: invisvel. O sonho de muita gente. E o terror de tantas outras.
(MEDEIROS, 2011, p. 36). Este o engate para que, agora, o texto no seja mais somente
sobre ela, mas sobre o leitor, sobre a sociedade e suas peculiaridades. E, alm de incluir a
figura do leitor estendendo sua reflexo ao coletivo, a autora finaliza com um recado para ele:
Moral da histria: preste ateno. Mesmo onde voc enxerga um vazio, pode ter gente
dentro. (MEDEIROS, 2011, p. 36).
Nessa mesma crnica, h ainda uma passagem interessante, em que a escritora se
dirige diretamente ao leitor, com o objetivo de ganhar sua confiana e confirmar a veracidade
do que est narrando. Diz assim: Voc pode no acreditar, mas isso aconteceu de verdade,
tenho vrias testemunhas. Alis, que gente educada: ningum riu. (MEDEIROS, 2011, p.36).
Caracterstica marcante da escrita autobiogrfica, a busca por comprovar a veracidade do que
contado, passa suave pela crnica. No h documentos ou registros que comprovem coisa
alguma, apenas a palavra da escritora, que, nesse caso, deve valer muito, j que no cenrio
contemporneo o escritor no apenas uma sombra por trs do texto, mas um ser pblico, que
o leitor busca conhecer, sentir-se prximo e, com isso, desenvolver uma relao de
identificao.
Em Os bastidores da crnica (anexo C), Martha Medeiros defende um aspecto tpico
da formao do indivduo moderno: a busca pela individualidade dentro do grupo. O sujeito
no quer ser somente uma pea igual dentro do todo. Ele quer encontrar o seu diferencial, a
66

sua individualidade, se perceber nico, mas no um nico destacado, e sim o singular que faz
parte e atua no todo, aceito e integra a totalidade.
A crnica comea: Uma sociedade plural muito melhor do que uma sociedade em
que todos pensam igual. Sem divergncias, nada evolui nem o pensamento, nem o pas.
(MEDEIROS, 2011, p. 39). Mais uma vez, o individual em relao com o todo, o pensamento
equiparado ao pas, que, neste caso, representa o todo.
Alegando ser impossvel agradar a todos, a escritora discute brevemente sobre o foco
da crnica e, com bom humor, alega no saber se na crnica deve falar sobre si mesma ou
sobre os outros, se explora essa vaidade na qual Schittine (2004) se apoia para elaborar suas
pesquisas sobre a escrita dos blogs, ou se deve lanar mo de uma dominadora terceira
pessoa. Ou ainda, se deve apenas inventar. Afinal de contas, escrever crnicas lhe d essa
liberdade.
Se cita um caso que aconteceu com voc, porque est
focada no prprio umbigo. Se cita um caso que aconteceu
com algum, no tem originalidade suficiente. Se inventa
um caso que no aconteceu mas poderia, est fazendo
fico onde no devia (MEDEIROS, 2011, p. 40).

A escritora segue citando as muitas diferenas de opinies e personalidades que,
segundo ela, quem escreve para jornal conhece bem. At que finaliza um pargrafo dizendo
que h tantas verdades quanto seres humanos na terra (MEDEIROS, 2011, p. 39). A
impossibilidade da existncia de uma nica verdade uma das marcas do pensamento
contemporneo, que afeta tambm a noo de identidade, pensada no como uma construo
fechada e absoluta no interior do sujeito, mas sim uma composio de elementos mutantes,
elaborados na relao com o outro.
Ao abordar a dificuldade de optar entre falar de si mesma ou sobre tudo, quando se
escreve para o pblico leitor de um jornal, Martha encara os questionamentos sobre o que o
sujeito contemporneo quer ler, quais as necessidades dele. Enquanto alguns podem achar que
falar sobre si mesma seria estar focada no prprio umbigo (MEDEIROS, 2011, p. 39-40), se
escolher falar sobre os outros, porque no tem originalidade suficiente (MEDEIROS,
2011, p. 40).
Diante desses questionamentos, surge o espao da crnica na ps-modernidade, onde
cabe o eu e o outro, registrando as novas nuances da construo autobiogrfica, na qual j no
cabe apenas o eu, nem cabe somente o todo, mas sim uma combinao entre esses dois, entre
o sujeito que busca se conhecer e, ao mesmo tempo, interage com o exterior, retirando desse
67

informaes para a percepo de sua identidade e devolvendo uma imagem que determina sua
atuao no espao social.
Ainda em Doidas e santas, h o jogo da escrita atravs de uma informao, banal
inicialmente, mas que logo vira fonte de reflexes para a autora. Na crnica 100 coisas
(anexo D), ela cita a apario de livros que falam sobre as 100 coisas que voc deve fazer
antes de morrer, para, logo em seguida, discordar desse tipo de lista, alegando que o ideal
seria deixar de lado, ao menos momentaneamente, a possibilidade da morte e se preocupar
apenas em viver. Fala um pouco sobre algumas das tais 100 coisas que j fez, mas conclui
pensando sobre como arrumaria tempo, dinheiro e condies para realizar as outras. Afinal de
contas, quem fica com as crianas? Conseguirei cinco frias por ano? E quem patrocina essa
brincadeira? (MEDEIROS, 2011, p. 122-123).
Pronto. O texto no mais sobre ela apenas, mas sobre milhes de pessoas comuns
que adorariam fazer as coisas da tal lista, mas tm uma famlia para cuidar, um emprego para
ir e precisam ganhar dinheiro. Para solucionar os problemas, a autora sugere apostar na
Mega-Sena j que com dinheiro fica mais fcil , ou fazer como ela, que, ao invs de seguir
a lista das 100 coisas para fazer antes de morrer, preferiu criar a lista das cem coisas a
evitar antes de morrer. divertido tambm, e bem mais fcil de realizar, nem precisa de
dinheiro. (MEDEIROS, 2011, p. 123).
Nessa crnica possvel identificar o valor dado pessoa comum. essa a pessoa que
existe, que vive, a que tem a vida comum, rotineira, de trabalho, famlia, filhos, frias,
dinheiro curto. Com esse discurso, evocando as coisas cotidianas, a crnica logo gera a
aproximao com o leitor, que resulta no anseio que normalmente se completa, ainda que
momentaneamente pela identificao. A necessidade de sentir-se parte, de perceber que o
outro pode ser como voc, proporciona a sensao de pertencimento, to perseguida em
tempos contemporneos. E a crnica capaz de fornecer isso enquanto finge no ter maiores
objetivos ao tratar das trivialidades do dia-a-dia.
Mas quem esse ser comum mostrado na crnica e que tanto fascina o leitor? o
indivduo annimo que a revista Time colocou em evidncia? O sujeito que se esconde atrs
da tela de um computador para assim poder falar o que realmente pensa, sem correr os riscos
da rejeio to na moda em tempos atuais? Ou o ltimo sucesso instantneo fabricado pela
mdia?
Embora o heri e a herona cotidianos no encontrem to
frequentemente um papel per se na entrevista, sua figura
insiste e seus atributos no cessam de ser procurados em
cada qual: a bondade familiar, as rotinas, as debilidades,
68

a felicidade perdida ou encontrada faro parte inseparvel

de toda narrativa pessoal (ARFUCH, 2010, p. 196).

A crnica, enquanto uma narrativa pessoal, vai trazer para o centro esse ser comum, o
annimo e seus atributos de sujeito comum. Se hoje em dia a insegurana e a falta de certezas
leva o sujeito a buscar por modelos, ele vai encontrar esse modelo justamente no outro, no
sujeito comum como ele, aquele que ele pode seguir, pode ser igual. o tatear por uma zona
de conforto, na qual possa se sentir aceito, capaz de se relacionar e atender, ao mesmo tempo,
ao seu desejo e s expectativas da sociedade em relao a sua atuao no grupo. E se a crnica
pode lhe oferecer a oportunidade de olhar esse outro, ela vai ser um objeto de desejo.
O anseio por ver que o outro, assim como voc, tambm no vai cumprir a lista,
tambm tem impedimentos como famlia e falta de dinheiro, e convive com esses fatores. a
relao paradoxal entre o esperar ser diferente querendo ser igual. Olha-se para o outro
buscando formar uma identidade prpria, mas essa identidade no passa de um reflexo do que
se v e do que a sociedade espera do sujeito. um produto que carrega a iluso de ser
diferente, prprio, mas segue sendo uma cpia que integra a engrenagem do todo.
Fecha-se assim de novo o crculo, em que a figura heroica
a posio destacada ou de autoridade , embora admirvel
justamente por sua diferena suas faanhas , talvez o
seja em maior medida por aquilo que a torna, em algum
sentido, nosso semelhante (ARFUCH, 2010, p. 197).

Na crnica Far Away (anexo E), do livro Montanha russa, de Martha Medeiros, a 1
pessoa do singular permanece, se esticando nas brechas do coletivo. A escritora comea por
falar de um disco e um show de Robert Cray, para destacar uma de suas canes que lhe
chama a ateno at a, apesar do tom de conversa da crnica, existe apenas ela, a cronista, e
suas impresses. Quando finalmente comea a falar sobre o que diz a cano, o texto vai
deixando de ser s dela, pois, propositalmente, ela o estende s mulheres que podem estar
lendo suas reflexes. A cano fala sobre um homem que resolve abandonar o lar, a esposa e
as crianas para sair em busca de autoconhecimento, encontrar a si mesmo, e ento a autora
destaca que Mulher tambm tem vontade de se descobrir, fazer sua trouxa e deixar as chaves
na estante. Mas imagine a cena. Crianas adoradas, mame precisa se descobrir. Papai, que
um sujeito bacansimo, vai ficar cuidando de vocs, ok? Tchauzinho. (MEDEIROS, 2010,
p. 61). Agora o texto tambm das outras mulheres, no mais apenas da autora, e essas
mulheres cairo na tentao de concordar ou, ao menos, pensar sobre a questo.
Seguindo suas reflexes, Martha Medeiros destaca que Mulheres tm que se
descobrir durante o trajeto do nibus, tm que se conhecer melhor enquanto escolhem o
69

tomate menos murcho na feira, tm que experimentar novas vivncias ali no bairro mesmo.
(MEDEIROS, 2010, p. 61). Mas destaco que no so s as mulheres. Nos tempos atuais, o
engarrafamento e a fila do banco so os momentos que o sujeito tem para tentar se descobrir.
a leitura leve e rpida que a crnica oferece, algum assunto que fale sobre o outro e sobre si
mesmo, a furtividade de alguns instantes de reflexo o que lhe ser servido. A crnica Far
Away foi produto desse tempo contemporneo, pois, mais uma vez falando sobre o que faz
se denunciando , a autora confessa que a reflexo exposta nessa crnica Foi s um
pensamento que me ocorreu enquanto ouvia Robert Cray no carro, presa num
congestionamento, indo buscar minhas filhas no colgio como fao todos os dias.
(MEDEIROS, 2010, p. 61).
A crnica atende, assim, efemeridade das informaes na ps-modernidade, unindo
literatura informao, estimulando reflexes na correria do dia-a-dia. Deixa que a 1 pessoa
do singular fale 1 pessoa do plural, tratando de uma relao necessria
contemporaneidade, na qual o eu busca construir sua singularidade, mas em equilbrio com o
mundo externo, se relacionando com esse. Algumas vezes, traz a interveno construo
identitria do seu leitor, apresentando reflexes, permitindo a identificao, sugerindo
posturas. Assim como os espaos para comentrios nos blogs, fotologs, assim como o sujeito
que se expe na rede espera uma interveno do outro, a crnica chega, analisa, sugere,
comenta, s que com a diferena de que faz isso com fluidez e poesia fantstica vantagem
que talvez somente ela tenha sobre a construo da identidade do sujeito ps-moderno.
Na crnica Direito ao sumio (anexo F), tambm do livro Doidas e santas, Martha
Medeiros trabalha a temtica desse confronto entre o pblico e o privado, questionando at
que ponto temos, hoje em dia, a capacidade de inserir um limite entre esses dois espaos.
Direito ao sumio fala exatamente sobre o direito que temos de no aparecer, no sermos,
pelo menos por algum momento, publicveis. O desejo inverso da atualidade, que, diante de
tanta exposio, s vezes, gera um movimento inesperado, fazendo com que o sujeito sinta a
necessidade de fazer justamente o caminho contrrio, o de no aparecer, de construir um
momento s seu, um momento que no seja pblico, que no esteja ao alcance de quem quiser
ver.
verdade que Denise Schittine (2004) fala sobre a vaidade que envolve, por exemplo,
a atividade do diarista, e que essa vaidade , em parte, responsvel pelo desejo de se publicar,
a largada para o anseio de ser lido, conhecido e ovacionado. Como foi mostrado aqui, esse
um desejo comum, especialmente entre os jovens, nascidos numa poca em que os limites
70

entre o pblico e o privado j no se mostram rgidos como outrora. Incentivados por uma
cultura Big Brother, mostrar-se faz parte e uma forma de transformar-se em cone,
especialmente quando o que est sendo exposto a prpria intimidade a ousadia de expor o
ntimo uma das ferramentas para o estrelato. Se as casas mostram para as visitas, na sala de
estar, o estilo e a intimidade das pessoas que moram nela, a internet ajuda a mostrar essa
intimidade para o mundo, em um rompimento de fronteiras talvez nunca visto antes.
complexo questionar se esse rompimento e essa invaso consentida ou no
positiva, mas Martha Medeiros consegue, com sua crnica, levantar uma questo importante
sobre esse quadro. Em Direito ao sumio, a autora, comparando pocas anteriores, ou seja,
baseada num acesso autobiogrfico e resgatando a sua poca de adolescncia, traz tona uma
ao talvez esquecida ou deixada de lado no cenrio atual: o exerccio do convvio somente
consigo mesmo, sem exposies ou interferncias invasivas. Comparando a vida dos jovens
atuais com os da poca, relata como difcil, em tempos contemporneos, esconder-se do
mundo, encontrar-se incomunicvel, relacionar-se apenas consigo mesmo e guardar segredos
em relao ao mundo.
So poucos os adolescentes que no sonham, um dia, em
passar uma temporada fora do pas. Eu tive essa
oportunidade aos vinte e poucos anos. Poupei dinheiro,
acumulei frias no vencidas na empresa onde trabalhava e
sa para o mundo sozinha, interessada em conhecer vrios
lugares mas, principalmente, interessada em entender esse
sozinha. (MEDEIROS, 2011, p. 196)

Relacionando a sua experincia, a autora afirma que esse anseio pelo sair mundo
afora, sozinho, ainda um desejo atual, mas, sem contrariar sua afirmao, possvel
complementar que, na atualidade, esse desejo no produzido da mesma maneira que em
outras pocas. Se antes o desejo era mais por uma liberdade do ambiente e das restries
familiares, hoje em dia, a liberdade buscada outra.
A vigilncia no se resume mais ao controle familiar, mas s cmeras, s casas de
vidros e ao panptico que se tornou o espao pblico. Todos esses elementos foram citados
por Schittine (2004) na tentativa de desenhar o cenrio no qual nos encontramos. Os mesmos
dominam o panorama e remodelam, inclusive, o desejo de liberdade. Se, antes, os
adolescentes sentiam a necessidade de se libertar do reduto familiar, hoje em dia o desejo de
liberdade gira em torno da submisso da intimidade aos olhares alheios e vigilncia
constante, em parte, instauradas pela internet e seus aparatos tecnolgicos.
A veio a tecnologia, com seus mil olhos, e acabou com
essa histria de sozinha da silva. Hoje ningum mais
consegue tirar frias da famlia, dos amigos e da vida que
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conhece to bem. Antigamente era uma aventura fazer um

autoexlio, sumir por uns tempos. Mas isso foi antes do
Skype. Do MSN. Do e-mail. Hoje, nem que voc v para
outro planeta voc consegue desaparecer. (MEDEIROS,
2011, p. 196)

A tecnologia com seus mil olhos a verdadeira vil nessa histria da perda da
privacidade. Ou no. Pois essa perda no nem deve ser vista como um monstro que vem
engolindo o resqucio de intimidade que nos restou de tempos modernos. A perda dos limites
entre o pblico e o privado no foi repentina. Arfuch (2010) defende, inclusive, que essa
separao sempre foi mais hipottica do que real, que era, quando parecia bem delineada,
mais ideia do que linha concreta.
A confluncia desses limites foi crescendo e se impondo na medida em que a
sociedade foi assim se permitindo e desejando. E, ao mesmo tempo em que Medeiros exalta a
beleza de sua poca, sem os mil olhos da tecnologia, finaliza a crnica ressaltando que no
possvel lutar contra e que vivel, com algum bom senso, encontrar o equilbrio entre o
mostrar-se e o esconder-se, assumindo ainda que estamos to entregues a esses mil olhos
que j no fcil imaginar a atuao em sociedades sem eles.
Entender que esse afrouxamento entre os limites do pblico com o privado foi
resultado de uma gama de transformaes e que , hoje em dia, parte integrante da realidade
social, ainda o caminho mais seguro. Arfuch lembra que:
No horizonte da cultura em sua concepo antropolgico-
semitica , essas tendncias de subjetivao e
autorreferncia, essas tecnologias do eu e do si mesmo,
como diria Foucault ([1988] 1990), impregnavam tanto os
hbitos, costumes e consumos quanto produo miditica,
artstica e literria. Consequentemente, com a consolidao
da democracia brotava o democratismo das narrativas, essa
pluralidade de vozes, identidades, sujeitos e subjetividades
que pareciam confirmar as inquietudes de algumas teorias:
a dissoluo do coletivo, da ideia mesma de comunidade,
na mirade narcisista do individual. (ARFUCH, 2010, p.
19)

Com esta passagem, Arfuch comenta sobre essa transformao da ideia de uma
diviso clssica entre o pblico e o privado, entre o individual e o coletivo, para a percepo
da dissoluo e at mesmo da impossibilidade de existir essa diviso. A autora ressalta esta
transio atrelando-a aos acontecimentos sociais, deixando transparecer que esta
movimentao da certeza de uma diviso percepo da dissoluo da mesma no aconteceu
isolada nem repentinamente, mas sim acompanhando as mudanas do sujeito e do convvio
social. Construindo essa percepo, Arfuch sugere que, para a atualidade, resta aceitar e
conviver com esta diluio. E Martha Medeiros, em Direito ao sumio, endossa essa viso,
72

quando, ao finalizar a crnica, assume que j no possvel lutar contra os mil olhos da
tecnologia e o que nos resta aprender a assumir os benefcios dessas invases.
Tanto Martha, na crnica, como Arfuch, em suas reflexes tericas, demonstram o
esforo em lidar com esse ponto de contato entre o pblico e o privado que pode ser a escrita,
especialmente a escrita autobiogrfica contempornea. Ainda que, em alguns momentos,
prevalea a surpresa com a pergunta como chegamos a esse ponto?, Arfuch ressalta a ideia
de visualizar um espao biogrfico, no apenas como um compartimento onde se encaixem as
escritas hbridas contemporneas, mas sim como uma aceitao da impossibilidade de se
manter uma diviso entre o real e o fictcio, uma forma de se adaptar a essa nova realidade do
sujeito em que o ntimo se confunde com o pblico , que se traduz em sua atuao no
grupo e em suas produes, inclusive na sua escrita e nos seus interesses.
Alm de expressar a necessidade da naturalidade em lidar com esse panorama
contemporneo, Martha traduz, nesta crnica, a importncia do equilbrio para conviver com a
invaso dos olhares alheios. Se briga pelo direito ao sumio, destaca tambm a validade
dessas ferramentas de invaso para se conectar com o mundo e com aqueles que se interessam
em saber sobre voc. Ao mesmo tempo em que afirma no ser possvel lutar contra o uso dos
aparatos tecnolgicos e a transformao do mundo em um grande panptico, no desiste da
ideia de manter um mnimo de estado privado.
Com este desenho da situao, a autora toca em um ponto fundamental da atualidade:
o pblico interpenetrou o espao privado a um tal ponto, que j possvel perceber, no
sujeito, o desejo por algum nvel de retrocesso da situao, ou seja, recuperar o direito
privacidade, ao segredo, no exposio contnua.
Em No sorria, voc est sendo filmado (anexo G), crnica publicada tambm em
Doidas e santas, Martha Medeiros relata uma situao limite dessa invaso de privacidade,
neste caso, motivada pela necessidade de vigilncia constante. Nesta crnica, no h o
sentimento de tolerncia com a invaso, pois esta no se mostra permitida, como no caso da
crnica anterior, em que o sujeito, por necessidade de fazer parte do grupo e atender s
expectativas do seu crculo, se submete exposio. Em No sorria, voc est sendo
filmado o espao privado invadido pela sociedade condicionada tenso dos dias atuais,
sensao permanente de insegurana, que leva aos mecanismos de controle, sociedade
entregue ao modelo Big Brother citado por Schittine (2004).
Antes de pegar o elevador, preciso passar por uma
catraca. E, antes da catraca h os recepcionistas que, no
bastasse pedirem nossos documentos (at a, ok), pedem
para nos fotografar e tambm para que a gente aplique
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nossa digital num sensor para que a visita fique registrada

para a posteridade. No deve ser muito diferente de entrar
em um presdio, s que no estou visitando nenhuma cadeia
de segurana mxima, quero apenas consultar um dentista.
(MEDEIROS, 2011, p. 217)

H, na viso da autora, uma gradao aceitvel de invaso de um espao que seria o
mbito privado do sujeito. A aluso ao Big Brother, feita por Schittine (2004), refere-se
figura de um grande gestor que tudo v e controla, e que no permite que haja espao privado
para os membros do grupo tudo deve ser vigiado e submetido interveno, caso esteja em
desacordo com o que estabelecido pelo comando. A insegurana trazida pela violncia e,
especialmente, pela perda do controle sobre a vizinhana fato que se desenvolveu a partir do
crescimento urbano gerou uma sociedade movida pela desconfiana, que enxerga a invaso
da privacidade, no com um ato abusivo, mas sim preventivo. Juntando-se a isso o fato de
que, nas ltimas dcadas, os prprios sujeitos buscaram a exposio, essa invaso vista, na
maioria das vezes, como um ato consentido.
Nesta crnica, Martha Medeiros d destaque para uma situao cotidiana e at bem
comum na sociedade contempornea, mas que, ao olhar dela, se configura uma situao limite
no que se refere invaso do espao privado. Ela descreve a entrada em um prdio e as
verificaes comuns dos tempos atuais, como conferir documentos e registrar foto e
impresso digital. Porm, diante de um problema tcnico, a impresso digital no registrada
e a recepcionista deseja passar um creme na mo da autora. Um abuso, segundo ela, uma
violao ao seu direito de escolher o creme que usar na prpria pele e quando vai usar.
em situaes assim que a autora aponta o desequilbrio que, em alguns momentos,
domina a nova situao em que se assumem o pblico e o privado como espaos
indissociveis. Se permissiva a exposio e aceitvel a intromisso alheia muitas vezes,
at mesmo desejada e conquistada , como pensar at que ponto podemos invadir o espao do
outro ou at que ponto o outro quer esta invaso ou capaz de suport-la? Est nessa pergunta
a dvida que ainda no possvel solucionar. Se em alguns momentos a sociedade parece
cansar-se de tanta exposio e busca o sentido oposto, invivel pensar no retorno de uma
vida privada depois do surgimento de tantas ferramentas cujo objetivo, muitas vezes, a
simples autorreferncia, a conquista dos olhares alheios, o sucesso, mesmo que efmero, de se
estar em uma casa de vidro pelo puro prazer de ter a intimidade observada e comentada.
Se a escrita capaz de expor, ela tambm capaz de camuflar. Funcionando como o
ponto de contato entre o universo pblico e o privado, a escrita a ferramenta capaz de
representar justamente o que Arfuch, Schittine e Medeiros, em seus diferentes gneros,
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buscam compreender e alar a objeto de desejo da atualidade: o equilbrio em meio ao

hibridismo contemporneo.
Ao mesmo tempo em que atende ao anseio autobiogrfico, a crnica tambm capaz
de, atravs de sua liberdade literria, esconder e deformar o que vem como confisso, melhor
dizendo, ficcionalizar. Assim, ela pode ser uma forma de equilbrio, uma ferramenta atravs
da qual possvel controlar a abertura da exposio. Se o momento atual se mostra instvel,
flutuando entre, de um lado, o uso desenfreado da intimidade em pblico e a colocao do
individual sobre o coletivo, e, de outro, a retomada da vontade de preservao
provavelmente no mais possvel , a escrita o elemento capaz de promover o controle
desses estados, j que permite ao autor decidir o quanto um espao vai interpenetrar o outro.
Se na crnica prevalece a aparente simplicidade, muitas vezes confundida com a
estrutura curta e uma escrita coloquial, com ar de dilogo e o emprego de temas cotidianos, a
complexidade fica por conta de encontrar este ponto exato em que o autobiogrfico expe
somente o necessrio para aproximar-se do leitor e causar a identificao deste com a ideia
proposta, sem deixar que tudo seja entregue, mantendo o espao em branco que deve ser
preenchido pelo leitor. o ntimo que se transforma, por alguns instantes, em pblico, para,
logo depois, tornar-se ntimo novamente, mas agora no leitor, na sua percepo. Ela
transforma o ntimo em pblico, mas numa posio provisria, apenas extensiva.
Esse o diferencial da crnica. trazer o autobiogrfico, expor o eu que escreve at
um ponto exato em que, o que era at ento particular, torna-se pblico, mas sem ser
umbiguista, e sim interagindo com o mundo, buscando para si o leitor. Assim, a crnica
capaz de criar uma relao em que o sujeito fornece o material para a escrita e essa mesma
escrita retorna, causando no sujeito novas percepes. a crnica que fala sobre a vida e a
vida que acaba em crnica.









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5 CONCLUSO


Pensar na atualidade e em sua diversidade s possvel quando integramos diferentes
elementos, compreendendo a atuao individual dos mesmos e como eles agem quando
combinados. assim quando pensamos nas mdias, na literatura, no sujeito, nas expresses
individuais e coletivas, entre outros aspectos que compem o universo contemporneo.
As ideias aqui trabalhadas tiveram o intuito de colocar disposio uma reflexo atual
sobre a atuao das variadas formas de escritas ntimas, quando associadas literatura e s
mdias, e como essa atuao influencia o sujeito contemporneo e suas vivncias, alterando
sua forma de se relacionar e se posicionar diante do mundo e da sociedade.
A crnica serviu como objeto de anlise para desenvolver essa viso, estando
posicionada como eixo central das abordagens aqui realizadas. Dessa forma, foi exposta a
reflexo que demonstra o interesse em localizar este gnero a crnica como uma das
principais vertentes literrias quando se trata sobre a integrao entre o pblico e o privado na
atualidade. Ela tambm foi utilizada como forma de exemplificar o hibridismo do campo
literrio contemporneo, o que acaba por eleger como base a existncia de um espao
biogrfico (ARFUCH, 2010), no qual os limites entre realidade e fico so burlados e
atravs do qual possvel assumir a juno desses espaos em construes nicas.
O trabalho aqui apresentado se concentrou em confirmar reflexes em torno da
literatura e seu papel na atualidade utilizando a crnica para tal efeito , apontando como
essa capaz de se adaptar s diversas realidades e seguir sendo um meio de integrao entre a
criao e a expresso de ideias. Destacando que, hoje em dia, no mais possvel pensar no
sujeito como uma construo pronta, a literatura tambm no uma forma imutvel e se
adequa aos perodos, sem perder o valor de sua atuao, especialmente como meio de criao
do sujeito.
Foram escolhidas as crnicas da autora Martha Medeiros, pois, como pde ser visto ao
longo do trabalho, as mesmas so capazes de sustentar as ideias geradas sobre a posio das
escritas mantidas pela primeira pessoa e que no se restringem ao espao privado, mas se
expandem ao pblico, atendendo aos anseios do sujeito atual curioso pela vida do outro e
por conhecer modelos nos quais possa se espelhar, definindo sua individualidade atravs do
contato com o outro.
76

A finalizao se d pela confirmao de que h a predominncia de caractersticas

contemporneas e que as mesmas se mostram responsveis pela atuao do sujeito, assim
como so geradas e fortalecidas por ele, constituindo um crculo do qual fazem parte a
literatura e as diversas formas de expresso, especialmente as escritas ntimas.








































77

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KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnogrfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.


78

LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975.

_______. Le pacte autobiographique (bis). Potique, Paris, n. 56, 1983, p. 416-35.

_______. O pacto autobiogrfico: de Rousseau internet. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

MARTINET, Andr. A linguagem, instituio humana. In: COHN, Gabriel (org.).
Comunicao e indstria cultural. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1977. p.
38-55.

MIRANDA, Wander Melo. A iluso autobiogrfica. In: _______. Corpos escritos. So Paulo:
Edusp; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1992, p. 25-41.

MEDEIROS, Martha. Doidas e santas. Porto Alegre: L&PM, 2011.

_______. Montanha russa. Porto Alegre: L&PM, 2010.

PAVO Jr., Jadyr ; SBARAI, Rafael. O que quer o senhor das redes. Veja, So Paulo, 5 out.
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RESENDE, Beatriz. Dirio do hospcio: a crnica da loucura. In: _______. Lima Barreto e o
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S, Jorge de. A crnica. So Paulo: tica, 1985.

SANTIAGO, Silviano. Suas cartas, nossas cartas. In: _______. Ora (direis) puxar conversa!
Ensaios literrios. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006, p. 59-95.

SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memria e guinada subjetiva. So Paulo:
Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.

SCHITTINE, Denise. Blog: comunicao e escrita ntima na internet. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2004.

SIBILIA, Paula. O show do eu a intimidade como espetculo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2008. Disponvel em: <http://www.oshowdoeu.com.br/oshowdoeu/livro.asp>.
Acesso em: 03 jan. 2012.

VIEGAS, Ana Claudia. A inveno de si na escrita contempornea. In: JOBIM, Jos Luis
& PELOSO, Silviano (org.). Identidade e literatura. Rio de Janeiro/Roma: Casa Doze
Edies/ Instituto de Letras da UERJ/ Universidade de Roma La Sapienza, 2006, p. 11-24.

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CHIARA, Ana; ROCHA, Ftima Cristina Dia. (org.). Literatura brasileira em foco: escritas
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_______. O retorno do autor relatos de e sobre escritores contemporneos. In:
VALLADARES, Henriqueta do Couto Prado (org.). Paisagens ficcionais: perspectivas entre
o eu e o outro. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
79

Sites consultados:
http://wp.clicrbs.com.br/marthamedeiros
http://blogdokelmer.wordpress.com/




































80

ANEXOS


ANEXO A

Veneno antimonotonia Martha Medeiros

Falcatruas, alagamentos, violncia urbana. Eu colocaria mais uma coisinha nesta lista de
pequenas tragdias com que somos brindados diariamente: o tdio. A cada manh, abrimos os
jornais e a mesma indecncia poltica. Nas ruas, perdemos tempo com os mesmos
engarrafamentos. E escutamos as mesmas queixas no local de trabalho. sempre o mesmo, o
mesmo. Como bom quando algo nos surpreende.
Para quem vive na opressiva e cinzenta So Paulo, a novidade atende pelo nome de Cow
Parade, a exposio ao ar livre de 150 esculturas em forma de vacas, em tamanho natural,
feitas de fibra de vidro e decoradas com muita cor e insanidade por artistas plsticos, diretores
de arte, designers e cartunistas. Um nonsense mais que bem-vindo, uma interveno no nosso
olhar acostumado. Espalhadas por ruas, praas, nos lugares mais inesperados, l esto elas,
vacas enormes, vacas profanas, vacas inslitas. Para qu? Para nada de especial, apenas para
espantar o tdio, inspirar loucuras, lembrar que as coisas no precisam ser sempre iguais.
Havia uma vaca no meio do caminho, no meio do caminho havia uma vaca. poesia tambm.
Falando em poesia, h sempre uma nova coletnea sendo lanada no mercado editorial,
herica, tentando atrair aqueles leitores que ainda resistem a qualquer coisa que rime. Desta
vez, no coletnea de mulheres poetas ou poetas do terceiro mundo, essas cortesias que nos
fazem... Finalmente, o humor e a leveza baixou no reino dos versos. O livro chama-se
Veneno antimonotonia e traz o subttulo Os melhores poemas e canes contra o tdio.
Organizado por Eucana Ferraz, a antologia pretende combater o vazio, o medo, a falta de
imaginao. um convite para a vida, e um convite feito atravs das palavras de Drummond,
Chico Buarque, Antonio Ccero, Ferreira Gullar, Adriana Calcanhoto, Armando Freitas Filho,
Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Joo Cabral de Melo Neto e outros ilustres, sem faltar
Cazuza, claro, cuja cano Todo amor que houver nesta vida - uma das minhas letras
preferidas inspirou o ttulo da obra.
At hoje pergunta-se: para que serve a arte, para que serve a poesia?
Intelectuais se aprumam, pigarreiam, comeam a responder dizendo Veja bem... e da em
diante um blablabl terico que tenta explicar o inexplicvel. Poesia serve exatamente para a
mesma coisa que serve uma vaca no meio da calada de uma agitada metrpole. Para alterar o
curso do seu andar, para interromper um hbito, para evitar repeties, para provocar um
estranhamento, para alegrar o seu dia, para faz-lo pensar, para resgat-lo do inferno que
viver todo santo dia sem nenhum assombro, sem nenhum encantamento.

2 de outubro de 2005






81

ANEXO B

A mulher invisvel Martha Medeiros

Eu estava na sala de embarque esperando a chamada do vo. Havia gente demais e poucas
cadeiras disponveis, tive sorte de conseguir uma. Enquanto lia uma revista, reparei de soslaio
um senhor se aproximando com duas bagagens de mo. Era um homem grande, extra large.
Veio se aproximando e ao mesmo tempo virando o corpo de costas. Que estranho... Ento ele
parou bem onde eu estava. Continuava de costas. Repare no perigo iminente da situao. No
houve muito tempo para agir. Antes que eu pudesse raciocinar, o corpo dele comeou a se
flexionar em minha direo, e eu tive que aceitar humildemente: ele iria sentar-se em cima de
mim! Uma cena de desenho animado: eu me encolhendo na cadeira enquanto aquelas ndegas
gigantescas estavam prestes a me espremer. Com a nica mo livre que me restava a outra
segurava a revista espalmei-a em seu bundo e disse com um fiapo de voz: senhor, senhor,
tem gente.
Ele virou a cabea e: oh, me desculpe, senhorita (foi perdoado na mesma hora por causa do
"senhorita") e foi acomodar-se uns trs assentos adiante, que, para alegria geral, estava vazio.
Escapei por um triz de virar mingau em pleno Galeo.
Voc pode no acreditar, mas isso aconteceu de verdade, tenho vrias testemunhas. Alis, que
gente educada: ningum riu. Diante da discrio de todos, tranquei o riso tambm, o que me
requereu certo esforo, pois a vontade que eu tinha era de, s gargalhadas, bater na coxa da
mulher ao lado e dizer: j viu isso, criatura?
Rindo apenas por dentro, festejei ser uma pessoa com a auto-estima em dia, pois outra, com
menos apego por si mesma, ficaria arrasada ao descobrir-se invisvel. Porque foi como me
senti: invisvel. O sonho de muita gente. E o terror de tantos outros.
J me senti invisvel em algumas ocasies ao longo da vida. Voltando no tempo, me pego
invisvel em festas, invisvel mesa do jantar, invisvel na sala de aula. Uma sensao
incmoda de estar ali, mas ningum levar em conta sua presena. Voc fala, ningum escuta.
vista, mas no percebida. E, ao ir embora, ningum d por sua falta. Com voc, nunca?
Em outros momentos da vida, eu daria tudo para estar invisvel, mas no tive a sorte. Como
da vez em que engasguei com risco de morte no incio de um jantar com Silvia Pfeifer, na
primeira vez em que nos encontrvamos. Inesquecvel: eu azul e aquela mulher linda de trs
metros de altura correndo atrs de mim pelo restaurante lotado, batendo com fora nas minhas
costas. E nas vezes inmeras em que no lembrei o nome de conhecidos na hora de
autografar um livro. Esta clssica.
Desaparecer em momentos estratgicos deve ser bom. Creio que descobri como se faz.
Naquele dia, no aeroporto, eu devia estar to entretida com meus pensamentos que acionei
algum mecanismo que me invisibilizou. S pode ter sido isso. O senhor grando no parecia
ter problemas oftalmolgicos ou neurolgicos. Devia, ele tambm, estar com a cabea longe,
desaparecido para si mesmo, e resolveu sentar em qualquer lugar. No meu colo, o que o
impede?
Moral da histria: preste ateno. Mesmo onde voc enxerga um vazio, pode ter gente dentro.

8 de janeiro de 2006




82

ANEXO C

Os bastidores da crnica Martha Medeiros

Uma sociedade plural muito melhor do que uma sociedade em que todos pensam igual. Sem
divergncias, nada evolui nem o pensamento, nem o pas.
Quem escreve em jornal sente na pele essa dinmica de opinies conflitantes. So tantos os
leitores, das mais variadas origens e crenas, que fica absolutamente impossvel almejar uma
unanimidade, s em santa ingenuidade. Voc fala em sexo e desejo, o outro salta condenando
o hedonismo. Voc clama por charme na vida, o outro salta condenando que elitismo. Quem
tem razo? Cada um tem a sua, e que se atreva algum a dizer quem est certo ou errado. H
tantas verdades quanto seres humanos na terra.
O Brasil, em especial, dos pases menos coesos. Deste tamanho e com esta desigualdade
social que tanto nos choca, como se abrigasse vrios planetas a conviverem no mesmo
territrio. E obriga. E rimo: no sei como no sai mais briga.
Uns elogiam 2 Filhos de Francisco, outros apontam a rendio do cinema nacional, que no
arrisca nada fora do padro global. Uns elogiam os shows internacionais, outros questionam:
por que no se d mais espao pro regional? Voc fala de amor eterno, piegas. Voc fala em
seduo e liberdade, a filha preferida do demnio.
Alguns voc comove, outros revolve o estmago. Se cita um caso que aconteceu com voc,
porque est focada no prprio umbigo. Se cita um caso que aconteceu com algum, no tem
originalidade suficiente. Se inventa um caso que no aconteceu mas poderia, est fazendo
fico onde no devia.
Falou em Nova York, metida. Falou em Ibiraquera, metida a made in Brasil. Colocou
palavras em ingls no texto? Nenhum problema, pensam uns; paredn, pedem outros, que
palavra em espanhol pode.
Falou bem do PT? Rendida, vendida, mal-intencionada. Falou mal do PT? Rendida, vendida,
mal-intencionada. No falou de poltica? Alienada.
Usa palavra antiga, entrega a idade. Usa uma palavra nova, est inventando moda. Que
palavra est em voga?
Voga???
O mesmo texto tudo provoca: uns te amam, outros te toleram e alguns no perdem a chance
de te esculachar. Como te leem os que te odeiam.
Voc toca profundamente o corao de uma senhora e com o mesmo texto enoja um
estudante. Uma professora te agradece a contribuio em sala de aula, outra probe que os
alunos te convoquem. Voc defende as minorias e alguns vibram com a referncia, outros tm
certeza que deboche. E nem ouse citar Deus em suas crnicas, apenas em suas preces.
uma aventura a cada linha, uma salada mista a cada ponto de vista. Franco-atiradores a
servio da reflexo, todos ns, os da e os de c, sabemos um pouco de tudo e muito do nada,
e salve o bom humor diante desta anarquia, j que de algum jeito h que se ganhar a vida.

25 de janeiro de 2006






83

ANEXO D

100 coisas Martha Medeiros

febre. Livros listando as cem coisas que voc deve fazer antes de morrer, os cem lugares
que voc deve conhecer antes de morrer, os cem pratos que voc deve provar antes de morrer.
Primeiramente, me espanta o fato de todos terem certeza absoluta de que voc vai morrer. Eu
prefiro encarar a morte como uma hiptese. Mas, no caso de acontecer, serei obrigada mesmo
a cumprir todas essas metas antes? No d pra fechar por 50 em vez de cem?
Outro dia, estava assistindo a um DVD promocional do Discovery Channel, que tambm
mostra, com imagens e depoimentos, as cem coisas que a gente precisa porque precisa fazer
antes de morrer. Me deu uma angstia, pois das cem, eu fiz apenas 11 at agora. Falta muito
ainda. Falta dirigir uma Ferrari, fazer um safri, frequentar uma praia de nudismo, comer algo
extico (um baiacu venenoso, por exemplo), visitar um vulco ativo, correr uma maratona,
perder uma fortuna nos cassinos de Las Vegas, fotografar a aurora boreal no Alasca, assistir a
um desfile do Armani em Milo, atravessar a Rota 66 numa Harley Davidson, nadar com
golfinhos, andar de camelo, escalar uma montanha e outras coisas que eu estou contando os
minutos para fazer, s no sei se vai dar tempo.
Se dependesse apenas da minha vontade, eu j teria um plano de ao esquematizado, mas
quem fica com as crianas? Conseguirei cinco frias por ano? E quem patrocina essa
brincadeira?
Hoje dia de mais um sorteio da Mega Sena. O prmio est acumulado em R$ 50 milhes. A
maioria das pessoas, quando perguntadas sobre o que fariam com a bolada, responde: pagar as
dvidas, comprar um apartamento, um carro, uma casa na serra, outra na praia, garantir a
segurana dos filhos e guardar o resto para a velhice.
Normal. So desejos universais. Mas fica aqui o convite para sonhar com mais criatividade.
Arranje uma dessas listas de cem coisas para fazer antes de morrer e divirta-se com as opes.
D para fazer quase tudo com muito dinheiro, e algo me diz que hoje seu dia de sorte.
Embolse a grana, doe uma parte para quem necessita e depois v assistir final de
Wimbledon, surfar na Indonsia, ver Barishnikov danar, a Julianne Moore atuar na
Broadway, alugue um balo e sobrevoe um deserto, visite uma aldeia indgena, passe o
aniversrio ao lado de um amigo que mora longe. No pense tanto em comprar, mas em viver.
Eu, que no apostei na Mega Sena, por enquanto sigo com minha lista de cem coisas a evitar
antes de morrer. divertido tambm, e bem mais fcil de realizar, nem precisa de dinheiro.

10 de janeiro de 2007














84

ANEXO E

Far Away Martha Medeiros

Tenho escutado o ltimo disco de Robert Cray, que esteve recentemente fazendo um show em
Porto Alegre. Alis, o show dele foi um tanto burocrtico, preferi o show de abertura feito por
Jeff Healey, bem mais intenso e sujo, no bom sentido. Mas Cray que ando escutando no
carro, em especial a faixa Far Away, cuja letra o lamento de um homem que est saindo de
casa. Ele dia pra esposa que ela tima, que o problema no com ela: ele que no conhece
a si mesmo e precisa se descobrir. Pega as suas coisas, deixa as chaves na estante e avisa que
na manh seguinte voltar para comunicar s crianas, assim que acordarem, que papai tem
que ir embora. A guitarra chora durante os seis minutos da msica, e a gente quase chora
junto.
Pra voc, uma msica apenas uma msica, mas pra mim uma msica uma msica e um
assunto, assim como uma pesquisa eleitoral uma pesquisa eleitoral e um assunto. Um dia
vou falar sobre a fome de assuntos que faz sofrer todo colunista. Pois bem. De tanto ouvir esta
cano de Robert Cray, comecei a achar que mesmo um privilgio ser homem. Um belo dia
o cara se d conta de que no sabe nada sobre si mesmo, que h muitas coisas para serem
vividas do lado de fora da porta da rua e que se continuar na sua vidinha regrada vai perder o
melhor da festa. A ele amansa a patroa dizendo que ela uma mulher estupenda, no tem
culpa nenhuma de ele ser um ignorante sobre si mesmo, e sai de casa e do casamento, no
sem antes ter a considerao de no acordar as crianas. Ele voltar no dia seguinte para se
despedir dos pequenos, que ficaro eternamente gratos por papai ter sido camarada e deix-los
dormir antes de receber a m notcia.
Mulher tambm tem vontade de se descobrir, fazer sua trouxa e deixar as chaves na estante.
Mas imagine a cena. Crianas adoradas, mame precisa se descobrir. Papai, que um sujeito
bacansimo, vai ficar cuidando de vocs, ok? Tchauzinho.
Punk rock. Nem a Courtney Love cantaria isso sem engasgar. Mulheres tm que se descobrir
durante o trajeto do nibus, tm que se conhecer melhor enquanto escolhem o tomate menos
murcho na feira, tm que experimentar novas vivncias ali no bairro mesmo Mulheres dizem
para seus filhos que vo passar o final de semana na serra com as amigas e eles
automaticamente esquecem onde fica o chuveiro, imagine se ela disser que vai pra galera,
conhecer o mundo. Suicdio coletivo.
Foi s um pensamento que me ocorreu enquanto ouvia Robert Cray no carro, presa num
congestionamento, indo buscar minhas filhas no colgio como fao todos os dias.









85

ANEXO F

Direito ao sumio Martha Medeiros

So poucos os adolescentes que no sonham, um dia, em passar uma temporada fora do pas.
Nem todos realizam, obviamente no um sonho barato. Mas juntando umas economias aqui,
um fundo de garantia ali, se inscrevendo num programa de intercmbio ou simplesmente
munindo-se de coragem e uma mochila, muitos conseguem embarcar num avio: hora de dar
um tempo pro Brasil, aprender outro idioma, meter a cara l fora.
Eu tive essa oportunidade aos 20 e poucos anos. Poupei dinheiro, acumulei frias no
vencidas na empresa onde trabalhava e sa para o mundo sozinha, interessada em conhecer
vrios lugares mas, principalmente, interessada em entender o que significava, afinal, esse
"sozinha". Que delcia. Ningum saber onde estou, o que comi no almoo, quais os meus
medos, quem eram as pessoas com quem eu cruzava. Olhar para os lados e no reconhecer
nenhum rosto, direcionar meus passos para onde eu quisesse, sem um guia, sem um acordo
prvio, liberdade total. Desaparecida no mundo. Isso me conferia uma certa bravura,
fortalecia minha autoestima. Claro que eu telefonava para casa de vez em quando e escrevia
cartas, fazendo os relatos necessrios e tranquilizando o pessoal, mas eu estava sozinha da
silva com meus pensamentos e emoes novas.
A veio a tecnologia, com seus mil olhos, e acabou com essa histria de sozinha da silva. Hoje
ningum mais consegue tirar frias da famlia, dos amigos e da vida que conhece to bem.
Antigamente era uma aventura fazer um autoexlio, sumir por uns tempos. Mas isso foi antes
do Skype. Do MSN. Do e-mail. Hoje, nem que voc v para outro planeta consegue
desaparecer.
Claro que s usa essa parafernlia tecnolgica quem quer. Voc pode encontrar uma dzia de
cybercafs em cada quarteiro da cidade em que est e passar reto por eles, fazer que no viu.
Mas sua me, seu pai, sua namorada, sua irm, seu melhor amigo, todos eles sabem que voc
est vivendo coisas incrveis e querem que voc conte tudinho, em detalhes. No custa nada
mandar um sinal de vida, p. Todos os dias, claro! Dois boletins dirios: s 11h da manh e
no fim da noite, combinado.
Sei que quando chegar a hora de minhas filhas sumirem no mundo vou rezar uma novena para
abenoar a sagrada internet, mas no quero esquecer jamais da importncia de se respeitar o
distanciamento e o prazer que o viajante sente ao estar momentaneamente fora de alcance,
sem rastreamento, sem monitorao. Para os que ficam, um alvio poder sentir prximo
aquele que est longe, mas aquele que est longe tem o direito ao sumio - e o dever at.
Quem no desfruta do privilgio de deixar uma saudade atrs de si e curtir o "no ser", "no
estar" e "no ser visto", perde uma das sensaes mais excitantes da vida, que se sentir um
estrangeiro universal.

20 de janeiro de 2008









86

ANEXO G

No sorria, voc est sendo filmado

Sou incentivadora de alguns mtodos clssicos para garantir a segurana pblica - por
exemplo, policiais bem remunerados e bem treinados, e em quantidade suficiente para
monitorar as ruas. Mas no sou fantica. Tenho me constrangido com um procedimento que
est se tornando comum nos "prdios inteligentes", todos eles de escritrios. Falo dessa mania
irritante de nos ficharem na recepo.
Antes de pegar o elevador, preciso passar por uma catraca. E, antes da catraca, h os
recepcionistas que, no bastasse pedirem nossos documentos (at a, ok) pedem para nos
fotografar e tambm para que a gente aplique nossa digital num sensor para que a visita fique
registrada para a posteridade. No deve ser muito diferente de entrar num presdio, s que no
estou visitando nenhuma cadeia de segurana mxima, quero apenas consultar um dentista.
Outro dia fui bem antiptica num desses halls de entrada. Logo eu, que costumo ser uma flor
de condescendncia.
Pediram documentos, dei.
Pediram para tirar foto, tirei.
Pediram para aplicar minha digital numa mquina, apliquei.
Mas minha digital no ficou registrada. Sei l, o teclado do computador deve ter gasto meus
dedos.
Ento, a recepcionista me perguntou: posso passar um hidratante na sua mo?
Juro, sou calma, uma monja beneditina, mas no vou passar um hidratante qualquer no meio
de uma tarde calorenta s porque minha digital no est sendo bem registrada por uma
mquina incompetente. Vim trazer minha filha para uma consulta de reviso, e no trazer
escondido um celular para um traficante.
Coitada da moa, estava ali apenas cumprindo ordens. Eu no disse nada disso, no nesse
tom, mas admito, me recusei a passar o tal creme. Acabaram me deixando entrar, a
contragosto, temendo que eu violasse todos os cdigos de segurana e estivesse escondendo
uma Uzi embaixo do vestido a fim de cometer uma carnificina naquele prdio todo espelhado.
Ah, me deu vontade mesmo de incorporar um Javier Bardem, de cabelinho chanel e portando
uma arma de matar gado. Onde os fracos no tm vez, r-t-t-t.
Da mesma forma, meu esprito selvagem aflora cada vez que vejo uma placa avisando: sorria,
voc est sendo filmado! Sorrio nada. E quase viro um Hannibal Lecter quando passo por
aquelas portas giratrias e intimidatrias dos bancos, onde revistam nossa bolsa como se
vasculhassem nossa alma. Sei que so tempos difceis e paranicos, sei que todo esse aparato
serve para identificar criminosos, mas c entre ns: uma praga essa histeria com segurana.
Daqui a pouco essa vigilncia insana vai se tornar mais desconfortvel do que ser gentilmente
assaltado.

23 de abril de 2008