SANTOS, Ynaê, Além Da Senzala. Arranjos de Escravos de Moradia No RJ
SANTOS, Ynaê, Além Da Senzala. Arranjos de Escravos de Moradia No RJ
SANTOS, Ynaê, Além Da Senzala. Arranjos de Escravos de Moradia No RJ
ALM DA SENZALA
ARRANJOS ESCRAVOS DE MORADIA NO RIO DE JANEIRO
(1808-1850)
SO PAULO
2006
UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA
PROGRAMA DE HISTRIA SOCIAL
ALM DA SENZALA
ARRANJOS ESCRAVOS DE MORADIA NO RIO DE JANEIRO
(1808-1850)
SO PAULO
2006
AGRADECIMENTOS
... no porque nosso trabalho desgastante (...), mas por todas as horas livres que
deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo, para nadar, para namorar.
RESUMO
A presente dissertao examina os diferentes arranjos escravos de moradia do
Rio de Janeiro no perodo de 1808 a 1850 a partir das complexas relaes estabelecidas
entre: cativos, senhores e o Estado. A maior mobilidade escrava, caracterstica dos
grandes centros urbanos, permitiu que o alargamento da autonomia cativa tambm se
expressasse por meio da atividade do morar, cuja variedade pode ser observada nos
relatos de viajantes, documentao policial, posturas municipais, pedidos e licenas
encaminhados Cmara Municipal e inventrios post-mortem.
A diversidade do morar escravo possibilita, ainda, entender mais a fundo os
condicionantes que viabilizaram a manuteno da instituio escravista durante o
conturbado perodo da formao do Estado nacional brasileiro, assim como cativos e
seus descendentes conseguiram refazer laos de solidariedade, afeto e parentesco em
meio a tal processo.
ABSTRACT
The present dissertation examines the different slave-arranged housing in Rio de
Janeiro in the period between 1808 to 1850 from the complex relations established
between slave, owners and the State. The big slave mobility, which was a characteristic
of the great urban centers, made possible slaves autonomy to widen itself through
dwelling activity, whose variety could be observed in the stories of travelers, police
documents, municipal positions, order and licenses directed to the City Council and
post-mortem inventories.
Besides, the diversity of slaves dwelling allows us to understand more deeply
the determining factors that made possible the maintenance of the slavery institution
during the disturbing period of Brazilian National State formation, and, also, how slaves
and their descendants could create anew bonds of solidarity, affection and kinship in the
middle of these process.
Key-words: Urban slavery, Slave Dwell, Rio de Janeiro, National State, 19th Century
SUMRIO
AGRADECIMENTOS ..................................................................................................... 4
RESUMO ......................................................................................................................... 6
ABSTRACT ..................................................................................................................... 7
INTRODUO.............................................................................................................. 10
CAPTULO I A presena da moradia cativa nos estudos sobre escravido urbana....... 19
Primeiros Trabalhos.................................................................................................... 22
Renovao Historiogrfica ......................................................................................... 29
Terceiro Momento dos Estudos sobre Escravido Urbana......................................... 37
CAPTULO II As Muitas Senzalas 1808 - 1830 ....................................................... 53
Possveis arranjos coloniais ........................................................................................ 53
Incio de uma vida em Corte ...................................................................................... 60
Uma Corte Escravista ................................................................................................. 69
Olhares de fora sobre moradas de dentro ................................................................... 80
Morar sobre si: no limite entre autonomia e resistncia escrava................................ 90
Brasil: um Estado Independente ............................................................................... 100
CAPTULO III Novas Polticas e Mesmas Prticas do Morar Escravo1831 - 1850 ... 115
Mudanas no Quadro Poltico .................................................................................. 115
Rumores de muitas vozes no Perodo Regencial...................................................... 119
A proibio de morar sobre si .................................................................................. 132
Rio de Janeiro, a maior cidade escravista das Amricas. ......................................... 137
Um caso extraordinrio. ........................................................................................... 144
EPLOGO Alm da Senzala ......................................................................................... 148
FONTES ....................................................................................................................... 153
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 160
8
INTRODUO
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante: AGCRJ). Ofcio do Chefe de Polcia, 1860.
Cdice 6.1.37.
2
CHALHOUB. S. Cidade Febril. Cortio e epidemias na corte Imperial. So Paulo, Cia. das Letras,
1996.
10
O termo morar sobre si apareceu em diversos documentos analisados e designava a prtica de escravos
que no habitavam a casa senhorial, morando as prprias custas.
4
Cf. CHALHOUB, S. Op. Cit., pp. 29-32, 109-110.
5
Cf. CHALHOUB, Sidney. Vises da Liberdade. Uma histria das ltimas dcadas da escravido na
corte. So Paulo, Cia. das Letras, 1990.
11
que foi a Capital do Imprio Portugus (1808), Capital do Imprio do Brasil (1822) e
maior cidade escravista das Amricas, mas tambm examinar como essa atividade
escrava esteve profundamente vinculada com as relaes estabelecidas entre cativos,
senhores e o Estado.
*
Nas ltimas dcadas do sculo XVIII, um ciclo de revolues alterou o quadro
mundial. O Antigo Regime e o Sistema colonial foram colocados em xeque ao mesmo
tempo em que o liberalismo se expandia rapidamente. A Revoluo Norte-Americana
(1776) foi o primeiro evento de grandes propores baseado nos princpios do
Iluminismo que rompeu os paradigmas da colonizao europia. Os ideais de
Liberdade, Igualdade e Fraternidade, defendidos na Revoluo Francesa, foram
resignificados em diferentes localidades do mundo, chegando, inclusive, a viabilizar o
que foi a maior revoluo de escravos da Histria Atlntica: a revoluo do Haiti, que
abalou o sistema escravista em escala mundial6.
No continente europeu, a experincia constitucional marcou o fim do
absolutismo e a construo de um novo modelo de sociedade, no qual conceitos como
cidadania e soberania nacional eram palavras-chave, discutidas nos parlamentos recmconstitudos. Do outro lado do atlntico, tais conceitos foram relidos sob a tica da
submisso poltica e econmica das relaes coloniais, impulsionando assim o processo
de independncia no continente americano. Nunca a liberdade foi to debatida e
defendida. Nunca se usou tanto a mo-de-obra escrava.
Aparentemente contraditrias, a liberdade ilustrada e a escravido moderna
conseguiram se rearticular em meio s transformaes da Era das Revolues. bem
verdade que a nova concepo de homem aliada aos interesses mercantis fizeram do
abolicionismo no s um movimento que inflava os defensores do humanismo, como
uma posio poltica defendida pelos ingleses. A partir da primeira dcada do
oitocentos, a Inglaterra, que j despontava como grande potncia, adotou uma poltica
ferrenha contra o trfico pressionando diversos pases que mantinham o comrcio
negreiro.
medida que se sofisticava o processo de industrializao europia, crescia a
demanda de consumo por artigos tropicais nos principais centros urbanos do continente.
6
Uma boa sntese sobre o perodo conhecido como Era das Revolues : BLACKBURN, Robin. A
queda do escravismo colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro, Record, 2002.
12
O que era produzido e exportado por meio do emprego do escravismo colonial deixava
de ser suficiente. Paralelamente, o aumento da competitividade no mercado mundial fez
com que as produes coloniais no conseguissem acompanhar esse ritmo frentico. Era
preciso que as colnias ou pases recm formados se adequassem a um sistema de
produo mais especializado7.
Por diferentes razes, Brasil, Cuba e Estados Unidos conseguiram adequar a
escravido expanso capitalista. No caso brasileiro, especificamente, tal adaptao foi
resultado da aliana entre escolhas polticas e interesses econmicos. H muito tempo, a
historiografia brasileira tem se debruado sobre o enigma da formao do Estado
nacional brasileiro, cuja singularidade parece ser a nica concordncia entre as
diferentes linhas de pesquisa.
Em primeiro lugar, preciso lembrar que, graas invaso napolenica, a Corte
portuguesa transferiu-se para o Rio de Janeiro na tentativa de salvar todo seu Imprio
Ultramarino. Apesar da discordncia de inmeros portugueses, o fato que, a partir de
1808, a cidade foi moldada transformando-se assim na nova sede do Imprio Luso. A
eficcia dessa mudana foi tamanha que, em 1815, a Amrica Portuguesa recebeu o
ttulo de Reino Unido a Portugal e Algarves. Esse foi um perodo de instrumentalizao
do aparato estatal no Rio de Janeiro, que acarretou na interiorizao da metrpole, por
meio de um processo de enraizamento do Estado portugus no centro-sul da colnia8.
Os mesmos interesses que viabilizaram uma independncia menos violenta
definiram as diretrizes da construo do Estado Nacional brasileiro a partir de 1822. O
Brasil foi um Estado que nasceu assentado no escravismo. A resistncia s presses
inglesas para o trmino do trfico transatlntico de escravos foi um dos aspectos mais
significativos da poltica liberal adotada. Durante quase trinta anos, um pas recm
criado, em parte dependente das relaes comerciais e polticas com a Inglaterra (maior
economia mundial), conseguiu no s manter, como incrementar o trfico com a frica.
Foi justamente nessa conjuntura que o Rio de Janeiro tornou-se a maior cidade
escravista das Amricas. Como bem lembrou Mary Karasch, durante a primeira metade
do sculo XIX desembarcaram mais africanos no Rio de Janeiro do que em Salvador9.
7
Cf. TOMICH, Dale W. Through the Prism of Slavery. Labor, Capital, and World Economy.Boulder,
Co.: Rowman & Littlefield, 2004.
8
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A Interiorizao da Metrpole. In: A Interiorizao da Metrpole
e outros estudos. So Paulo, Alameda, 2005, p. 14.
9
KARASCH, Mary. A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808 1850). (1a ed.: 1987; trad.port.). So
Paulo, Cia. das Letras, 2000, p. 27.
13
Como no restante da Amrica Portuguesa, desde sua criao, o Rio de Janeiro dependia
da mo-de-obra cativa para a execuo das mais variadas tarefas. A transferncia da
Corte e, mais tarde, a consolidao da independncia brasileira apenas aumentaram tal
necessidade.
Ao mesmo tempo, essa forte presena escrava, especialmente africana,
emprestava um carter particular ao Rio de Janeiro. Quantas vezes os viajantes no
ficaram surpresos com a quantidade de homens e mulheres negras que perambulavam
pelas ruas da cidade? Quantos no foram os relatos e imagens iconogrficas deixadas
por esses estrangeiros ressaltando o aspecto mpar que a dispora africana emprestava
ao Rio? Mas tambm, quantas relaes e dinmicas de uma cidade escravista ficaram
invisveis a esses olhares externos?
*
A presente pesquisa comeou ainda nos tempos da graduao, quando foi
montado um grupo de iniciao cientfica, sob orientao do professor Istvn Jancs e
co-orientao do professor Luis Geraldo Silva, cujo principal objetivo era, por meio da
anlise de representaes visuais produzidas entre os sculos XVI a XIX, repensar a
idia de senzala, buscando, sobretudo, desmontar a imagem desse espao como local
das mais variadas promiscuidades. Contudo, em meio ao processo de anlise
iconogrfica e leitura especfica sobre escravido, entramos em contato com obras que,
alm de mostrar empiricamente que as senzalas no eram espaos repletos de
promiscuidade, tambm evidenciaram que muitos escravos souberam negociar pelo uso
desses espaos e, com isso, puderam reconstruir laos afetivos e familiares que durante
muito tempo pareceram incompatveis com a estrutura escravista10.
Alm do mais, o contato inicial com a historiografia e com o conjunto
documental examinado permitiu que cada integrante do grupo pensasse uma questo
especfica sobre escravido atrelada ao problema da moradia cativa. No caso especfico
desse trabalho, o conhecimento do escravo ao ganho11 foi o ponto de partida para tentar
entender um pouco mais sobre a escravido urbana no Brasil. Tal modalidade era
especfica dos centros urbanos e caracterizava-se pela ampla autonomia de trnsito do
10
Cf. SLENES, Robert W. Na Senzala uma Flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia
escrava Brasil Sudeste, sculo XIX. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999.
11
Tanto na historiografia lida, como na documentao analisada foram encontradas a expresses escravos
ao ganho e escravo de ganho. Ao que tudo indica, no h diferena de significado entre elas.
14
cativo, que saa s ruas vendendo seu servio em troca de pagamento, tendo, como
contrapartida, que entregar ao seu proprietrio uma quantia previamente estipulada.
A diferena com o modelo rural de escravido era tanto, que no incio do estudo,
quase foi aceita a avaliao de Jacob Gorender que, partindo do pressuposto que a
escravido no Brasil constituiu-se como um modo de produo autnomo, entendia o
cativeiro urbano como uma forma secundria de escravido. Dessa forma, o peclio que
o escravo urbano recebia parecia ser contraditrio em relao instituio escravista,
assemelhando-se mais ao modelo de produo capitalista, no qual o trabalhador livre
vende sua fora de trabalho12. No entanto, a leitura da historiografia que trabalhava com
o cativeiro nas cidades apontava que seu objeto de estudo era bem mais complexo do
que parecia. A leitura, em especial, do trabalho de Joo Jos Reis sobre o levante Mal
ocorrido em Salvador no ano de 1835, foi central para essa reavaliao.
A fim de entender as motivaes que levaram escravos e libertos muulmanos,
principalmente os nags, a organizar uma rebelio que pretendia acabar com a
escravido desse grupo, Reis demonstrou parte das dinmicas de uma cidade escravista,
dando especial destaque para a anlise das relaes que permeavam o cotidiano dos
escravos ao ganho. E, nesse momento, a possibilidade do cativo morar longe do olhar
senhorial apareceu como uma das razes que possibilitaram a organizao do levante13.
O morar sobre si, que at ento havia sido apenas mencionado na historiografia que
trabalha com escravido urbana, despontou como uma das condies de possibilidade
para a revolta escrava.
A partir de ento, a pesquisa de iniciao cientfica enveredou-se na tentativa de
entender porque o Rio de Janeiro, a maior cidade escravista das Amricas, no havia
conhecido uma rebelio escrava dessas propores. As respostas para tanto foram dadas
pelos prprios estudos que analisaram a instituio na cidade, demonstrando que, na
realidade, o caso Mal foi exceo regra. Contudo, o maior contato com a
12
No seu livro Escravido Reabilitada, Jacob Gorender teceu inmeras crticas aos trabalhos que haviam
examinado a escravido urbana. Para o autor, os pesquisadores haviam tomado seu tema como objeto
autnomo de anlise, o que possibilitou interpretar a escravido ao ganho como forma de um
protocapitalismo. Segundo Gorender, por serem modos de produo especficos, a transio sugerida pela atividade do ganho - do escravismo mercantil para o capitalismo seria contraditria e invivel.
Gorender ainda afirmou que, s vezes, a escravido se apresentava incompleta, ou ento no seu sentido
lato, que admitia a escravido improdutiva, como no caso do cativeiro domstico. s sob esse ponto de
vista que a escravido urbana poderia ser analisada: secundria e submissa escravido das grandes
lavouras. In: GORENDER, J. Escravido Reabilitada. So Paulo, tica, 1991, captulo 6.
13
REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil A histria do levante dos Mals (1835). So Paulo, Ed.
Brasiliense, 1987.
15
17
18
CAPTULO I
A presena da moradia cativa nos estudos sobre escravido
urbana
14
Arquivo Nacional (doravante: AN). Termos de Bem Viver. Coleo Policia da Corte. Cdice 410
vol.2 p. 9.
15
AZEVEDO, Aluzio. O Cortio. 1. edio 1890, Rio de Janeiro, Edies de Ouro, s/d.
19
18
material da vida escrava da qual a moradia faz parte pode trazer importantes
contribuies para o estudo mais abrangente da escravido em diferentes localidades e
pocas19. No caso da escravido no Brasil, o recente trabalho de Robert Slenes
16
Um importante trabalho que tomou a escravido urbana como anomalia do sistema escravista foi
PRADO JR. Caio. Formao do Brasil Contemporneo. 24a. reimpresso So Paulo, Brasiliense, 1996, p.
223.
17
DEBIEN, Gabriel .Les esclaves aux Antilles Franaise (XVII e XVIII Siecles).Basse Terre: Socit
dHistoire de la Guadalupe, 1974.
18
GENOVESE, Eugene. Roll Jordan Roll. The World the Slaves Made de Eugene Genove. New York,
Vintage, 1974.
19
Trabalhos mais recentes confirmam a importncia do conhecimento crtico sobre moradia para melhor
entender a escravido, tais como: PREZ DE LA RIVA, Juan. El Barracn: esclavitud y capitalismo en
Cuba. Barcelona. Editora Crtica, 1983; HIGMAN, B.W. Slave Populations of British Caribbean, 18071834. (1a. Ed: 1984). Barbados. The Press University of West Indie, 1995; MORENO FRAGINALS,
20
redimensionou a idia que se tinha sobre o morar cativo. Em Na Senzala uma Flor20, o
autor - que pretendeu entender a famlia cativa no sudeste escravista dos oitocentos desconstruiu a imagem da moradia escrava rural como espao de promiscuidade,
mostrando que em muitos casos os cativos tiveram autonomia na construo de suas
habitaes ou puderam resignificar as moradas construdas por seus senhores. A senzala
deixou de ser um modelo analtico preconcebido, para se tornar um dos campos de
estudo da cultura material escrava21.
A situao dos trabalhos sobre escravido urbana um pouco diferente, embora
o mesmo movimento que viabilizou o exame da vida material dos escravos rurais tenha
possibilitado entender a escravido urbana como um objeto de anlise autnomo e
legtimo. Portanto, questes relacionadas moradia escrava ainda no receberam uma
apreciao sistemtica, embora estejam presentes nas obras que abordam o cativeiro nas
cidades22.
Partindo do pressuposto que o entendimento dos arranjos escravos de moradia
permitir uma compreenso mais ampla da autonomia e da prpria vida dos escravos
urbanos em parte atestada pelos trabalhos sobre escravido rural -, o objetivo
fundamental dessa discusso historiogrfica mostrar o espao reservado para a
problemtica da moradia escrava nas obras que se debruaram sobre o cativeiro nas
cidades do Novo Mundo. Mesmo abordada pela historiografia, ainda existe uma lacuna
Manuel. O engenho:complexo scio-econmico aucareiro cubano. Trad. Port. So Paulo, HucitecUnesp, 1987; VLASH, J.M. Back of the Big House. The Architeture of Plantation Slavery. Chapel Hill,
The University of North Carolina Press, 1993; MORGAN, Philip. Slave Contrapoint. Black Culture in the
Eighteenth-Century Chesapeake & Lowcountry. Chapel Hill, University of North Carolina Press,
1998,pp. 103-145. No caso especfico do Brasil, ver: FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Fontes textuais
e vida material: observaes preliminares sobre casas de moradias nos campos de Goitacazes, sc. XVIII
e XIX. Anais do Museu Paulista. Histria e Cultura Material. So Paulo-USP. Nova Srie, n1, pp. 10729, 1993; SILVA, Alberto da Costa e. A Casa do escravo e do ex-escravo. Um Rio Chamado Atlntico.
A frica no Brasil e o Brasil na frica. Rio de Janeiro, Nova Fronteira Ed. UFRJ, 2003.
20
SLENES, Robert. Na Senzala uma Flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia escrava
Brasil Sudeste, sculo XIX. Rio de Janeiro, editora Nova Fronteira, 1999.
21
Os trabalhos sobre moradia escrava esto se tornando cada vez mais sofisticados. Exemplo disso o
trabalho de Rafael Marquese, no qual o autor realizou interessante discusso sobre os padres
arquitetnicos nas moradias rurais do sudeste escravista levantados por Slenes, sugerindo que mais do que
exemplos de herana africana, tais habitaes eram resultado da experincia do trfico Atlntico aliada
crescente necessidade em controlar os cativos: MARQUESE, R. Moradia escrava na era do trfico
ilegal: senzalas rurais no Brasil e em Cuba no c. 1830-1860. In: Anais do Museu Paulista. Histria e
Cultura Material. Nova Srie vol. 13, no. 2, pp. 165-188, jul-dez, 2005.
22
J em 1936 Gilberto Freyre chamou ateno para o exame das cidades brasileiras, a fim de melhor
compreender a decadncia do patriarcado rural e desenvolvimento urbano no contexto de uma sociedade
escravista. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Decadncia do patriarcado rural e
desenvolvimento urbano. 13a. Edio. Rio de Janeiro. Ed. Record, 2002.
21
no estudo do morar escravo nos grandes centros urbanos. Vale lembrar que os estudos
sobre o escravismo do Rio de Janeiro tero especial ateno na exposio.
Primeiros Trabalhos
O primeiro trabalho que elegeu a escravido urbana moderna como tema foi
Slavery in the Cities. The South 1820-1860, do norte americano Richard Wade
23
.O
23
WADE, R. Slavery in the Cities the South, 1820 1860. Londres, Oxford University Press, 1964.
Para melhor entender o que foi esse boom historiogrfico, ver: PATTERSON, Orland. Rethinking
Black History Harvard Educational Review, 41 (3): 297-325, 1971. WOOD, Peter H. I did the best I
Could fou y ay: The Study of Early Black History during the second Reconstruction 1960 to 1976. The
William and Mary Quartely: 3a. Srie. 35 (2):185-225, 1978; DAVIS, David Brions. Slavery and the
Post War II Historians; BANTON, Michel. 1960: a turning point in the Study of the Race Relations.
In: MINTZ, Sidney (ed.). Slavery, Colonialism, and Racism. New York. W.W. Norton, 1974.
24
22
Mesmo que sua concluso tenha sido contestada por pesquisas posteriores25, a
importncia do trabalho de Wade para essa pesquisa reside na nfase dada
problemtica da moradia escrava - a ponto de dedicar um captulo inteiro para essa
questo , e na relao que o autor estabeleceu entre esse morar urbano e a crise da
instituio escravista na dcada de 1860. Em The Quarters and the House (terceiro
captulo de seu trabalho), o autor descreveu os diferentes tipos de moradia escrava
demonstrando uma efetiva diversidade nessa atividade cativa. Segundo ele, a maior
parte dos escravos urbanos habitava na casa de seus senhores e exercia tarefas
domsticas26; no entanto, o desenvolvimento dos sistemas de ganho e de aluguel
ampliou a mobilidade escrava, o que em muitos casos refletiu em suas formas de morar
e viver.
Os cativos podiam habitar os stos, os pores, ou ento pequenos quartos midos e com parca ventilao - que normalmente ficavam prximos cozinha ou ao
quintal. Os escravos domsticos, maioria da populao cativa urbana e principais
habitantes desses tipos de moradia, alm do firme controle de seu amo, tambm lidavam
com uma intricada rede restritiva, que transformou os bairros das cidades sulistas em
verdadeiras prises. As ruas eram muito estreitas, havia muros altssimos que
separavam as casas, inmeros becos sem sada, enfim, parte significativa dos escravos
vivia em constante clausura, tendo que resignificar esses espaos na medida do
possvel27.
Com o desenvolvimento do sistema de ganho, muitos escravos passaram a
morar fora da residncia senhorial, habitando casas ou cmodos alugados de terceiros.
Essa prtica trouxe muitos problemas para a polcia, chegando a ser proibida em New
Orleans28. Contudo, as vantagens extradas desse costume iniciado pelos cativos se
tornaram atraentes para seus proprietrios que, alm de se verem livres de manter seus
escravos, vislumbravam desfrutar do peclio adquirido pelos mesmos - razes
suficientes para no permitirem grande interferncia do poder pblico nessa questo.
25
Cf. GOLDIN, Cludia D. Urban Slavery in the American South. 1820-1860. Chicago, University of
Chicago Press, 1976. Nessa obra, que tinha como objetivo inicial dar uma explicao econmica para as
razes que resultaram na queda do escravismo urbano nos EUA levantadas por Wade, Goldin acabou
revisitando a problemtica da escravido citadina e chegou concluses que no corroboram com a
percepo de que escravido e cidade foram contraditrias. Para tanto, a autora fez um estudo
economtrico cuidadoso, utilizando ampla variedade de fontes documentais.
26
WADE, Op. Cit., p. 30.
27
Idem. Ibidem, p. 60.
28
Idem, Ibidem, p. 63.
23
Exemplos dessa postura so os casos descritos pelo autor, como o dos escravos de uma
mesma fbrica em Richmond que, apesar de pertencerem a diferentes donos, moravam
todos num mesmo prdio; ou ento, o interessante caso de um cativo que chegou a
pagar US$ 72,00/ ano para alugar um local29.
A riqueza dos exemplos examinados e sua diversificada anlise documental
possibilitaram que Wade comprovasse no s a existncia de diferentes arranjos
escravos de moradia nessas cidades estadunidenses, como tambm traasse a ntima
relao entre o morar e as demais atividades exercidas pelos escravos, principalmente
no que diz respeito ao mundo do trabalho. No por acaso, os escravos que moravam
com seus senhores exerciam, fundamentalmente, atividades domsticas, enquanto
aqueles que ganhavam a vida nas ruas conseguiram lutar com mais facilidade por outros
espaos de moradia. Essa situao, segundo o autor, contribuiu para a queda do
cativeiro nos centros urbanos norte americanos, tendo em vista o alto gasto do poder
pblico no controle dos escravos e a conseqente construo de uma poltica
segregacionista que excluiu os negros dos seus antigos trabalhos.
Verifica-se, ento, que a anlise da moradia escrava (dentro de uma perspectiva
mais abrangente do cativeiro urbano) permitiu que Wade constatasse a existncia de
duas categorias bsicas de arranjos de moradia: a) os escravos que moravam com seus
senhores, e b) os escravos que moravam fora (living out). Esses dois padres bsicos
de moradia que, como o prprio autor mostrou, diversificaram-se de acordo com as
circunstncias da vida escrava sero encontrados nos demais trabalhos que estudaram
o cativeiro urbano.
Se Wade foi o primeiro pesquisador a trabalhar com a questo da escravido
urbana moderna, o primeiro estudo sobre o cativeiro urbano no Brasil foi feito pela
tambm estadunidense Mary Karasch em Slave Life in Rio de Janeiro 1808-1850, em
uma tese de doutorado defendida originalmente em 1972 e publicada quinze anos mais
tarde30. Alm do ineditismo do tema, o estudo de Karasch tem, no seu prprio ttulo, um
aspecto fundamental para esta dissertao: a escolha pelo Rio de Janeiro. E tal escolha
no foi casual; a despeito da grande concentrao dos escravos em Salvador e seus
29
Idem, p.68.
KARASCH, Mary. A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808 1850). (1a ed.: 1987; trad. port.) So
Paulo, Cia. das Letras, 2000.
30
24
arredores, o Rio foi a maior cidade escravista das Amricas, como bem demonstrou a
autora. Justamente por isso, seu estudo merece especial ateno.
Com o desafiador objetivo de mostrar que, apesar das afirmaes de Gilberto
Freyre, era possvel fazer a histria da escravido urbana, a autora se valeu de um amplo
e diversificado corpus documental que incluiu relatos de viajantes, correspondncias
entre rgos governamentais, processos criminais, censos populacionais, dentre outros.
Na realidade, o resultado da pesquisa de Karasch foi a construo de um verdadeiro
guia da vida escrava no Rio de Janeiro entre 1808-1850.
Karasch organizou a narrativa de seu texto com o claro objetivo de indicar como
que, diante das inmeras dificuldades vivenciadas no cativeiro urbano, os escravos
conseguiram no s sobreviver, mas viver e at mesmo transcender sua condio dentro
de uma sociedade escravista. Dentro dessa perspectiva, a questo da moradia escrava foi
tratada pela autora em trs momentos distintos. Como no recebeu o mesmo olhar
sistemtico de Wade (que reservou uma parte especfica de seu estudo para isso),
fundamental entender em quais momentos de seu trabalho a moradia escrava foi
examinada.
A autora iniciou seu estudo mostrando as diferentes origens dos escravos vindos
da frica, alm de trazer uma enriquecida anlise das diversas etnias que compunham a
massa cativa no Rio de Janeiro. Em seguida, Karasch mostrou como esses escravos
sados do continente africano chegavam s mos dos senhores, descrevendo com
riqueza as casas de leilo e o mercado do Valongo, principais espaos de aquisio de
escravos.
A fim de responder a muitos historiadores que descriam na funcionalidade da
instituio escravista no mundo urbano nas cidades, o cativo teria experimentado uma
autonomia que, aparentemente, contradizia a prpria instituio , Karasch dedicou um
captulo inteiro de seu trabalho para mostrar os limites fsicos, institucionais, legais e
sociais que o Rio impunha ao cativo. Nesse momento de sua anlise, fez sua primeira
meno sobre o morar escravo.
Ao abordar os escravos que trabalhavam no comrcio e nas ruas cariocas,
Karasch demonstrou que os limites desses cativos se faziam sentir noite quando
eram trancados para dormir amontoados no cho, s vezes acorrentados
31
31
nos
Idem, p.104.
25
Idem, p.105.
Ibidem.
34
Ibidem.
35
KARASCH, Op. Cit., p. 152.
36
Idem, p. 171. Nesse momento a autora adotou a definio desenvolvida por Genovese sobre
tratamento, pois, segundo a prpria autora, somente tal abordagem permite relacionar o tratamento com
a mortalidade total dos escravos. Vale ressaltar que Karasch se remete ao livro Slavery in the New
World: a reader in comparative history, ed. Laura Foner e Eugene Genovese (Englewood Cliffs, NJ,
1969) (nota 2 do captulo 5).
33
26
37
Importante ressaltar que para fazer tais afirmaes, a autora utilizou diferentes fontes documentais,
dentre elas uma planta baixa produzida por Debret, na qual o pintor francs indicou os cmodos
destinados aos escravos. (Nota 46 do captulo 5).
38
Idem, p.188.
39
Ibidem.
27
Mas no foi apenas o trabalho que marcou a presena dos cativos (africanos,
ladinos e crioulos) na cidade. Karasch teve especial cuidado em mostrar as atividades
dos escravos em seu tempo de descanso, momentos fundamentais para a construo de
novos laos de identidade atravs de situaes como o candombl, a umbigada,
capoeira, congada, o jogo de entrudo, dentre outros. Vale ressaltar que, na maioria dos
casos citados acima, a dana e a msica eram companhias importantes para escravos e
forros, para quem at a morte era uma festa.
Todavia, a reconstruo dos laos de identidade no se restringiu apenas aos
momentos de descanso do trabalho; a autora ilustrou isso atravs da analise da
participao de escravos e libertos em grupos sociais e irmandades religiosas,
organizaes que muitas vezes contriburam para a obteno da alforria dos cativos. S
que a liberdade nem sempre foi conquistada de forma pacfica. Karasch deu exemplos
de diversas formas de rebelio e luta contra a condio de cativeiro, sendo a mais
conhecida delas a fuga coletiva e a formao de quilombos nos morros e matas do Rio.
Houve tambm muitos suicdios, infanticdios, abortos e outras tentativas individuais de
sair do escravismo. Ao concluir seu estudo, a autora indicou que o grande nmero de
cartas da alforrias que, para muitos historiadores, seria de fcil obteno no espao
citadino foi, em suas palavras, um verdadeiro mito que se construiu em volta do
escravismo urbano, pois "o africano tpico importado para a cidade entre 1808 e 1850
morria escravo 40.
Essa breve apresentao da volumosa obra de Karasch, inclusive sua concluso,
permitiu entender que para a autora a moradia seria apenas mais uma das facetas da vida
material do escravo na cidade. No foi -toa que o morar cativo apareceu de forma
segmentada na anlise da autora, pois ela estava preocupada com o exame mais amplo
da instituio. Contudo, Karasch apontou no s a existncia de uma diversidade de
moradia que, como foi visto em Wade, pode ser classificada entre escravos que
moravam com seu senhor e escravos que moravam fora , como tambm indicou
documentos que tratam dessa questo e que, se analisados com mais vagar, trazem
importantes contribuies para a compreenso da problemtica da moradia escrava nos
grandes centros urbanos.
40
Idem, p. 479.
28
Renovao Historiogrfica
A partir da dcada de 1980, a historiografia sobre a escravido vivenciou uma
expressiva mudana na sua agenda de pesquisas. Os escravos, que durante muito tempo
foram tratados como vtimas passivas da histria, passaram a ser encarados como
sujeitos histricos capazes de configurar o devir do sistema escravista41. Essa nova
perspectiva, aliada ao exame de novas fontes documentais, propiciou a ampliao dos
temas relacionados escravido, dentre eles, o cativeiro citadino42.
Em tese de doutorado defendida em 1982, publicada cinco anos depois e
ampliada em 2003, Joo Jos Reis reorientou o tema da escravido nas cidades. Ao
estudar o levante dos Mals, o autor trabalhou com a potencialidade explosiva dos
centros urbanos do Brasil Imperial, que exacerbavam o sentimento de desigualdade
social e poltica43. Para compreender as razes que levaram escravos e negros libertos a
planejarem a rebelio, Reis reconstituiu (atravs de documentao policial) a vida em
Salvador, dando especial destaque ao carter tnico da revolta, planejada
fundamentalmente por nags. Com esse estudo, o autor apontou caractersticas
fundamentais do sistema escravista na cidade, mostrando a tenso que marcava o viver
urbano.
Para melhor compreender o levante, Reis se valeu de uma minuciosa anlise do
escravismo urbano, dando destaque aos arranjos de moradia de Salvador. Nesse item de
seu estudo, mostrou a significativa diversidade do morar cativo, que podia variar desde
as lojas, tpicas senzalas urbana, localizadas no andar trreo dos sobrados senhoriais
onde os escravos dormiam sobre esteiras estendidas no cho, at casebres e cmodos
alugados por escravos44. Vale ressaltar que essas lojas conforme o exame de Reis, a
forma mais comum de moradia escrava muitas vezes eram controladas pelos prprios
escravos, o que mostra que mesmo no podendo morar sobre si, o cativo de Salvador
exerceu um considervel grau de autonomia sobre sua morada.
41
Um dos trabalhos que trata muito bem dessa nova abordagem REIS, J.J. SILVA E. Negociao e
Conflito. So Paulo, Cia. das Letras, 1989.
42
Ainda do final da dcada de 1970, Ktia Mattoso desenvolveu importante trabalho no qual examinou
algumas facetas da escravido urbana - tomando como exemplo a cidade de Salvador -, principalmente no
que diz respeito adaptao do africano condio do cativeiro e s formas de obteno de sua liberdade.
Cf. MATTOSO, Ktia Q. Ser Escravo no Brasil, 3a. edio. So Paulo, Editora Brasiliense, 1990.
43
REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil A histria do levante dos Mals em 1835. Edio
Revista e Ampliada. So Paulo, Cia. das Letras, 2003.
44
Idem, p. 402.
29
45
30
50
casa de seu proprietrio era domstico ou no, a autora deixou claro que a problemtica
dos arranjos escravos de moradia no fazia parte do seu horizonte de anlise, pois, se
tivesse se referido ao escravo domstico, Algranti teria uma boa oportunidade de
esmiuar a relao entre o mundo do trabalho e o lar. Verifica-se que, para autora, a
vida escrava se deu nas ruas do Rio, em clara oposio clausura vivenciada nas
residncias de seus senhores; por isso mesmo a rua, e no a casa, foi seu espao de
estudo.
Infelizmente, essas foram as duas nicas menes problemtica do morar
cativo, uma questo que poderia ajudar a autora a enriquecer sua anlise sobre o papel
do Estado na mediao das relaes entre senhores e escravos. Todavia, vale salientar
que a metodologia utilizada na anlise dos processos criminais para entender uma das
facetas mais polmicas do cativeiro nas cidades, a maior liberdade escrava nas ruas dos
centros urbanos e o papel do Estado como instncia de controle social, pode ser de
grande valia para o estudo dos arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro.
Mas, no foram apenas os principais centros urbanos brasileiros que suscitaram
estudos sobre o cativeiro. Em 1984, Maria Odila Leite da Silva publicou Quotidiano e
48
Idem, p. 49.
Idem, p. 50.
50
Idem, p. 97.
49
31
52
54
seus impostos, alugou um quarto para seu escravo, o que indica que ela deveria ter
srios interesses nisso55.
51
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em So Paulo no sculo XIX. So Paulo,
Brasiliense, 1984.
52
Idem, pp. 125-126.
53
Idem, p.126.
54
Idem, p. 143.
55
Vale ressaltar que a preocupao da autora com o morar escravo no se ateve aos exemplos
mencionados. Em passagem sugestiva desse mesmo trabalho, Maria Odila escreveu que resta ainda
32
33
ambiente urbano, a autora trouxe dados significativos desse cativeiro, tais como o
nmero de africanos importados para o Rio entre 1800-1850; as maneiras de adquirir os
cativos; os preos a que eram vendidos; e as ms condies em que aqui chegavam, o
que muitas vezes resultou na morte dos mesmos.
No captulo seguinte, Silva caracterizou pormenorizadamente o escravo ao
ganho, definindo seus elementos fundamentais, e tomando o devido cuidado para
diferenci-lo do escravo de aluguel. Vale dizer que neste momento a maior preocupao
da autora era demonstrar a eficincia da atividade do ganho no cotidiano carioca. Dessa
forma, o que at ento parecia ser contraditrio ao sistema escravista a maior
autonomia e mobilidade cativa mostrou-se fundamental para o funcionamento da
cidade, a ponto de estigmatizar o trabalho manual como trabalho escravo.
Nesse momento de sua anlise, quando negou as hipteses sobre um possvel
medo dos cidados em relao massa escrava, Silva fez duas menes problemtica
da moradia cativa. A primeira ocorreu no momento em que argumentou que a
escravido urbana tambm se escorava em acordos no-escritos entre senhores e
escravos58, sendo um desses acordos, a prtica de senhores permitirem que seus
escravos morassem sozinhos, o que acarretou inmeras reclamaes ao poder pblico.
Nas palavras da autora, embora existindo rigor, a aplicabilidade da legislao
discutvel na medida em que interessava ao proprietrio permitir que seu escravo
residisse sozinho, em qualquer cantinho do centro comercial59.
A segunda observao feita pela autora no tocante moradia escrava apareceu
no momento em que ela analisou as diferentes formas de sobrevivncia do cativo ao
ganho - to sofrida como dos demais cativos, pois tinha, muitas vezes, que fazer jornada
dupla ou tripla a fim de se manter e conseguir a quantia previamente estipulada pelo seu
proprietrio. Ao expor as pssimas condies materiais do cativo, como alimentao e
vestimenta inadequadas, a autora descreveu as provveis moradias dos escravos ao
ganho, sem fazer meno a nenhuma fonte documental: Os escravos sublocavam
quartinhos sem ventilao e midos, ou ento seus proprietrios, que viviam no
primeiro e no segundo andar das casas velhas coloniais, reservavam para seus
escravos os piores cmodos, a parte de baixo, geralmente lojas trreas ou pores, sem
58
Segundo a autora, um dos maiores exemplos desses acordos era a existncia do peclio escravo, que s
foi reconhecido legalmente em 1871. Cf. SILVA, M.R.N. Op. Cit., p 114.
59
Idem, p.113.
34
60
Idem, p.125.
GRAHAM, Sandra Lauderdale. Proteo e Obedincia. Criadas e seus patres no Rio de Janeiro 1860
1910. (1 edio 1988 , trad. portugus) So Paulo, Cia. das Letras, 1992.
62
Idem, p. 209.
61
35
SOARES, Luiz Carlos. Urban Slavery in the Nineteenth Century Rio de Janeiro. Tese de Doutorado
apresentada na University College London, Londres, 1988.
64
Um dos objetivos principais do autor era cobrir a lacuna existente na historiografia sobre escravido
urbana no Rio de Janeiro, j que os trabalhos que haviam se debruado sobre o assunto - vale lembrar, as
obras de Karasch, Algranti e Marilene Silva se limitaram problemticas ou perodos especficos, o que
no permitiu uma possvel comparao da instituio escravista antes e depois da abolio do trfico em
1850.
65
O entendimento do escravo urbano a partir do mundo do trabalho fica ainda mais evidenciado no
artigo publicado pela Revista Brasileira de Histria, em comemorao ao primeiro centenrio da abolio
da escravido. Cf. SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do sculo XIX In:
Revista Brasileira de Histria vol. 16, So Paulo, Editora Marco Zero e ANPUH, 1988.
66
SOARES, L.C. Op.Cit., captulos 4,5,6,7 e 8.
67
Idem, p. 306.
36
COSTA, Ana de Lourdes R. da. Ekab. Trabalho escravo, condies de moradia e reordenamento
urbano em Salvador no sculo XIX. Dissertao de Mestrado defendida na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1989.
37
moradia. No caso dos escravos que moravam sobre si, a autora apresentou a
intrincada relao entre a moradia e o trabalho exercido pelos cativos, principalmente
daqueles que dependiam do ganho para sobreviver69. Embora o foco do trabalho
passasse pela relao trabalho/moradia, Ekab foi o primeiro estudo que colocou a
problemtica do morar escravo em destaque, indicando as possveis contribuies dessa
abordagem para a historiografia da escravido.
No mesmo ano, Maria Cristina Wissenbach concluiu seu mestrado sobre
escravos e forros em So Paulo70. Com o objetivo de reconstruir parte da vida cativa e
forra a partir de processos criminais, a autora fez um cuidadoso exame de diferentes
aspectos da vida desses homens e mulheres na segunda metade do sculo XIX. A
problemtica da moradia escrava apareceu diversas vezes, em sua grande maioria
relacionada intimamente com as residncias dos libertos, como o caso de Ricardo,
cativo de importante figura da sociedade paulista que, em 1872, havia fugido da fazenda
de seu senhor e morava h mais de dois anos em um quartinho conjugado no Arouche
(bairro da cidade), cujo dono era um forro71.
Alm de seguir a anlise proposta por Maria Odila da Silva no que tange ao
morar escravo, Wissenbach trouxe duas importantes contribuies para os estudos sobre
o cativeiro citadino. Em primeiro lugar, a articulao entre espao urbano e rural,
mostrando que esses dois mundos eram indissociveis no contexto paulista da poca, o
que por sua vez apontou uma complexidade muito maior para os estudos dos arranjos
escravos de moradia. A segunda contribuio est na percepo de que a anlise da
escravido urbana tem muito a ganhar quando feita juntamente com o estudo do
segmento liberto da sociedade, levando em conta as dinmicas e relaes dessa parte da
populao (cativos e forros) com o Estado.
Ainda em 1989, Sidney Chalhoub, em sua tese de doutorado72, procurou indicar
a elaborao dos significados da liberdade pelos escravos do Rio de Janeiro a partir de
sua experincia cativa. Usando processos civis, criminais, jornais e outras fontes,
Chalhoub mostrou como, nas ltimas dcadas do sistema escravista, cativos e libertos se
69
Idem, captulo 4.
WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos Escravos Vivncia Ladinas. Escravos e forros em So
Paulo (1850 1880). So Paulo, Editora Hucitec, 1998.
71
Idem, p.138.
72
CHALHOUB, S. Vises de Liberdade. Uma histria das ltimas dcadas da escravido na corte. So
Paulo, Cia. das Letras, 1990.
70
38
73
Idem, p. 186.
Idem, p. 234.
75
Idem, p. 248.
76
CHALHOUB, S. Cidade Febril. Cortios e Epidemias na corte imperial. So Paulo, Cia. das Letras,
1996.
74
39
81
cativos e senhores, mas tambm instrumento de luta dos escravos, a ponto de contribuir
para o fim da instituio no Rio de Janeiro.
Data tambm de 1996 o importante trabalho organizado por Joo Jos Reis e
Flvio Gomes, intitulado Liberdade Por Um Fio82. Essa coletnea de artigos um dos
muitos exemplos da renovao historiogrfica sobre escravido no Brasil que passou a
encarar o cativo como sujeito, de fato, do processo histrico. Atravs do uso de
77
Idem, p. 8.
Idem, pp. 26-27.
79
Idem, p. 27.
80
Idem, p. 28.
81
Idem, pp. 28-29.
82
REIS. J.J. GOMES, Flvio dos Santos (Org). Liberdade por um fio. Histria dos quilombos no Brasil.
So Paulo, Cia. das Letras, 1996.
78
40
83
GOMES, Flvio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no sculo XIX. In: REIS & GOMES. Op.
Cit., pp. 263-290.
84
Idem, p. 271(Ver Legenda sobre a Imagem "Rue Droite Rio de Janeiro", M. Rugendas).
85
Idem, pp. 274-278.
86
GOMES, Flvio. Histria de Quilombolas. Mocambos e Comunidades de Senzalas no Rio de Janeiro sculo XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995.
41
87
SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Zung: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro, Arquivo Pblico do
Rio de Janeiro, 1998.
88
Idem, p. 16.
89
Idem, p. 57.
90
Idem, p. 37.
42
Esse carter dspare e confuso tambm pode ser aplicado aos zungs. Em
primeiro lugar, pelo fato dele receber pessoas de diferentes condies sociais, como o
liberto Ado Jos da Lapa (proprietrio de uma dessas casas), e o escravo Henrique, que
muito freqentou esses locais. Em segundo, os usos feitos dos zungs tambm eram
muito diferentes: em alguns momentos podiam ser pontos de encontros amorosos; em
outros, locais para reunies de escravos fugidos; ou ento, apenas espao de lazer e
descanso de alguns cativos, que chegaram a obter autorizao senhorial para freqentar
a casa91.
No entanto, importante reter que, por trs dos inmeros papis atribudos aos
zungs (para Lbano Soares, antes hospedagem do que moradia escrava92), estava a
constante luta de escravos e forros em forjar espaos de liberdade, fazendo com que sua
moradia muitas vezes se resumisse na passagem por duas ou trs horas nesses locais93.
Fica ento a pergunta: o que era o morar para o cativo? Ser que a atividade se
restringia a espaos diferentes (casa dos senhores, zungs, cortios, pores, etc.), ou
possua significados que no se limitavam materialidade da moradia? Essas so
questes cruciais que se pretende responder, mesmo que parcialmente, no final da
dissertao.
Ainda em 1998, Cludio Costa Pinheiro defendeu sua dissertao de mestrado,
na qual buscava investigar as diferentes formas de associao entre senhores e escravos
no Rio de Janeiro do sculo XIX94. Partindo de uma perspectiva antropolgica e
embasado no exame de diversificado leque documental - que abarcou jornais da poca e
documentao policial, dentre outros -, o autor procurou entender os diferentes impasses
vividos em uma cidade escravista, principalmente no que diz respeito s fugas cativas.
Em meio aos vrios pontos trabalhados, Cludio Pinheiro abordou a questo da moradia
escrava ao analisar a estrutura urbana e a mobilidade social e espacial no Rio de Janeiro.
Uma vez mais, a problemtica dos arranjos escravos de moradia se restringiu ao
morar sobre si. Para o autor, o grau de mobilidade espacial e de independncia escrava
91
Idem, p. 50.
Idem, p. 52.
93
No seu ltimo trabalho, Capoeira Escrava, Lbano Soares articulou sua anlise sobre os zungs com a
trajetria e a tradio dos capoeiras do Rio de Janeiro, mostrando a interessante relao da moradia com
os laos afetivos e de solidariedade entre escravos e libertos na Corte brasileira. Cf. SOARES, Carlos
Eugnio Lbano. Capoeira Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850).
Campinas, Ed. Unicamp, 2002, pp. 199-216.
94
PINHEIRO. Cludio Costa. Quereis ser escravos? Escravido, Saberes de Dominao e Trajetrias de
Vida na sociedade do Rio de Janeiro, 1808 - 1865. Dissertao de Mestrado defendida no Museu
Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998.
92
43
possibilitou que os cativos vivessem sobre si95, o que pode ser atestado atravs dos
diversos casos de cativos ao ganho que moravam distantes de seus senhores. Cludio
Pinheiro vai alm. Para ele, a prtica do morar sobre si foi to disseminada na Corte
imperial que precisou ser proibida com o Projeto de aditamento s Posturas Municipais
de 1838. Todavia, provavelmente por no fazer parte de sua questo principal, Cludio
Pinheiro no analisou com cuidado o documento, pois ele no levou em considerao ou ento no teve conhecimento - do fato dessa proibio no ter sido aprovada, o que
acarretou outras conseqncias para a problemtica dos arranjos escravos de moradia,
como se ver no terceiro captulo desta dissertao. No entanto, o autor trouxe a
importante contribuio de articular de forma direta esse morar sobre si com as fugas
dos escravos, usando para isso o caso do cativo Henrique, j citado, dono de um zung e
que recebia escravos fugidos em seu estabelecimento96.
A autonomia que viabilizou a muitos escravos a possibilidade de morar longe de
seus proprietrios - tanto em cortios como nos zungs - esbarrou, por vezes, em
diretrizes de cerceamento emanadas do Estado. O trabalho de Jupiracy Rossato, Sob os
Olhos da Lei: o escravo urbano na legislao97, demonstrou que a Cmara dos
Deputados do Rio sempre esteve a par dos problemas envolvidos com a escravido
urbana dentre eles a moradia cativa-, mas soube acatar os limites da sua interferncia
na dinmica do sistema, respeitando o direito privado de propriedade que cabia aos
senhores. Nesse sentido, a autora acrescentou um dado fundamental pesquisa de Leila
Algranti: a escravido urbana foi marcada no apenas pela ausncia do feitor, mas
esteve em comum acordo com os interesses dos sujeitos que pensaram, construram e
executaram o projeto do Estado Nacional Brasileiro em sua maioria, proprietrios de
escravos.
Ao analisar as formas de cerceamento da mobilidade escrava nas ruas do Rio de
Janeiro, a autora fez apenas uma rpida meno questo da moradia escrava: o
escravo, pelo menos aquele que era colocado'no ganho', podia habitar sozinho sim, em
quartinhos muitas vezes sublocados nos cortios da cidade, indo ter com o seu senhor
somente no dia marcado para pagamentos dos 'jornais' devidos. Mesmo para anos
posteriores, isso continuava a ser comum, pelo que a documentao demonstra, atravs
95
Idem, p. 91.
Idem, Ibidem.
97
ROSSATO, Jupiracy A. R. Sob os Olhos da Lei: o escravo urbano na legislao municipal da cidade
do Rio de Janeiro (1830-1838). Dissertao de Mestrado apresentada na Universidade Federal
Fluminense, Niteri, 2002.
96
44
das licenas solicitadas pelo senhor Cmara Municipal, para que seu escravo 'vivesse
sobre si' 98.
Observa-se que, assim como os demais autores analisados, Rossato tambm
associou o escravo de ganho com o morar sobre si, de maneira que a autonomia
vivenciada pelos cativos no mbito do trabalho podia, em certas ocasies, ser tambm
experimentada na esfera privada da vida escrava. A autora fundamentou essa hiptese
na anlise dos pedidos de licenas para negros sarem ao ganho pelas ruas do Rio de
Janeiro. Contudo, verifica-se certa incongruncia no uso que a autora fez da
documentao, tendo em vista que tais pedidos no se prestavam assertiva. Como
poder ser atestado adiante, tais licenas foram produzidas para induzir os proprietrios
a melhor controlar seus escravos de ganho; exemplo disso o fato do nico endereo
que aparece em tais pedidos ser do senhor. Isso mostra que, a princpio, pouco
interessava Cmara Municipal saber o local de morada dos cativos, contanto que
pudesse localizar seu responsvel em caso de necessidade.
As posturas municipais tambm fizeram parte do escopo documental analisado
por Mrio Maestri no livro intitulado O Sobrado e o Cativo99. Ao examinar o
desenvolvimento da arquitetura no caso gacho, o autor mostrou que a escravido no
foi uma realidade circunscrita aos grandes centros urbanos. Porto Alegre, So Joo do
Monte Negro, Alegrete, So Francisco de Paula de Cima da Serra foram outras tantas
cidades do sculo XIX, onde a presena cativa se fez sentir nos mais diversificados
espaos, desde as cozinhas e quintais dos sobrados mais abastados, at a rede de
servios urbanos.
Apesar da anlise pormenorizada dos diferentes tipos de moradia existentes - no
que tange populao livre, uma vez mais o exame da moradia escrava esteve atrelado
ao tipo de trabalho exercido pelo cativo. Dessa forma, o autor descreveu no s as
parcas condies dos cativos que habitavam a casa senhorial, estabelecendo importante
relao com os usos dos quintais e cozinhas dessas residncias100, como tambm
apresentou as diferentes formas do morar sobre si, salientando, inclusive, a existncia de
zungs101.
98
Idem, p.115.
MAESTRI, Mrio. O Sobrado e o cativo. A arquitetura urbana erudita no Brasil escravista. O caso
gacho. Passo Fundo. Editora UPF, 2002.
100
Idem, pp. 111-112, p. 154.
101
Idem, pp.160-162 e pp. 175-177.
99
45
CARVALHO. Marcus J.M. de. Liberdade. Rotinas e Rupturas do Escravismo. Recife, 1822-1850.
Recife, Editora UFPE, 2002.
103
Idem, pp. 175-211.
104
FLORENTINO, Manolo. Dos escravos, forros e fujes no Rio de Janeiro imperial. In: Revista da USP
- Dossi Brasil Imprio, 58, jun./jul./ago. 2003 pp.104-115.
105
BRITO, Denelson Souza. Uma cidade sem senzalas: Moradias escravas e autonomia na cidade do
Rio de Janeiro (1789-1850). Monografia obrigatria para Concluso de Curso e obteno do grau
bacharel em Histria sob a orientao do Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino. Rio de Janeiro, UFRJ,
2003. Disponvel na biblioteca do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais - URFJ.
106
Idem, p. 4.
46
107
Idem, p. 32.
SILVA, Eduardo. As Camlias do Leblon e a abolio da escravatura. Uma investigao de histria
cultural. So Paulo, Cia. das Letras, 2003.
109
Adrelino Campos abordou novamente a problemtica dos quilombos que se formaram ao redor do Rio
de Janeiro no sculo XIX. Segundo o autor, essas comunidades teriam sido as antecessoras das favelas
108
47
Com uma perspectiva um pouco diferente do que vem sendo produzido nos
ltimos anos, o historiador estadunidense Zephyr L Frank trouxe importantes questes
sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro, tratando tambm da problemtica do morar
cativo110. Partindo do exame do extraordinrio caso do africano Jos Dutra, que morreu
em 1849, liberto e detentor de treze cativos (todos eles msicos e componentes de uma
banda), alm de uma casa e outros bens, o autor analisou parte da realidade do grupo
que ele intitulou de middling wealtholders, ou seja, os homens livres e forros detentores
de alguma propriedade. Por meio da anlise de um significativo nmero de inventrios
post mortem, alm da documentao policial e dos relatos deixados pelos viajantes,
Frank acompanhou a economia e estrutura social no Rio de Janeiro entre 1820 e 1860, e
percebeu que esse grupo intermedirio da sociedade tinha como propriedade bsica o
escravo.
Ao observar as formas de aquisio de propriedades, o autor discorreu sobre a
problemtica da habitao no Rio de Janeiro, analisando com mais vagar dados que j
haviam sido apontados pela historiografia. No incio do sculo, as casas eram
significativamente mais caras que os escravos, valores que foram tornando-se mais
prximos no correr dos anos. Esse movimento foi acompanhado pelo aumento do
nmero de quartos nas habitaes que, em 1821, comportavam cerca de oito pessoas;
vinte e oito anos depois (1849), cerca de 10 pessoas moravam nas residncias do
segmento intermedirio da sociedade111. O autor chegou a afirmar que nessas casas os
escravos dormiam no cho, nos jardins ou ento em habitaes prprias, usando o caso
dos cortios da dcada de 1850 para comprovar a existncia da prtica do morar sobre
si112.
Mesmo sem examinar as habitaes autnomas dos escravos no Rio de Janeiro,
Zephyr Frank chamou ateno para o morar dos cativos urbanos que residiam nas casas
senhoriais, locais que, normalmente, no contavam com mais que trs cmodos. Se, por
um lado, tal constatao indica onde morava parte dos escravos domsticos, por outro
suscita a pergunta sobre como tais cativos moravam, ou at que ponto dormir em
esteiras nos corredores e cozinhas se caracterizou como moradia escrava. E justamente
cariocas, j que ambos se constituem como espaos criminalizados na cidade - mesmo que em diferentes
contextos histricos. Cf. CAMPOS, Adrelino. Do Quilombo Favela. A produo do "espao
criminalizado" no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2004.
110
FRANK. Zephyr L. Dutra's World. Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro.
Albuquerque, University of New Mexico, 2004.
111
Idem, p. 80.
112
Idem, Ibidem.
48
na anlise conjunta de onde e como os escravos moravam que o estudo dos arranjos de
moradia precisa ser feito.
O recente trabalho No Labirinto das Naes, escrito conjuntamente por Juliana
Barreto Farias, Carlos Eugnio Lbano Soares e Flvio Gomes113, alargou de forma
geral a problemtica da moradia no Rio de Janeiro. A fim de melhor compreender parte
das articulaes e dinmicas vividas pelas diferentes etnias africanas que habitaram o
Rio de Janeiro durante o oitocentos, os autores trabalharam com a reconstruo da
identidade desses indivduos na Corte imperial. Dentre os diversos aspectos abordados,
dois apresentaram dados interessantes sobre moradia escrava e/ou forra na cidade.
Ao analisar a identidade dos cativos que fugiam na primeira metade do sculo
XIX, Flvio Gomes apontou como a fuga permitiu que muitos cativos pudessem morar
longe do olhar senhorial, mesmo que ilegalmente. Essa prtica possibilitou a formao
de quilombos nas regies urbanas e suburbanas, como os encontrados na freguesia do
Engenho Novo114. Esses quilombos muitas vezes se constituram no s como espaos
de morada, mas tambm como locais onde novos laos identitrios poderiam ser
formados.
No quarto captulo do livro, Lbano Soares trabalhou com a moradia, a ocupao
e a criminalidade de libertos africanos entre 1860 e 1890115. Apesar de no examinar o
segmento escravo propriamente dito, o autor ofereceu um interessante quadro de parte
do cotidiano dos forros africanos na Corte. Atravs da anlise da documentao da Casa
de Deteno, Lbano Soares mostrou como esses africanos - cada vez mais escassos conseguiram ou no se adequar a uma cidade escravista, onde sua ascendncia escrava
impunha limites dirios.
Um dos dados mais interessantes trazidos pelo autor foi a migrao que esse
segmento da sociedade sofreu no final do sculo XIX. Esses homens e mulheres, que
antes habitavam as regies centrais do Rio de Janeiro - normalmente, seus locais de
trabalho -, foram sendo empurrados para as freguesias mais distantes, ou ento se
contentavam em dividir cubculos dos cortios cariocas. Se durante anos os escravos
lutaram para conseguir exercer o mnimo de autonomia frente sua morada, alguns dos
africanos que conseguiram deixar o cativeiro foram aos poucos sendo apartados
113
FARIAS, J.B. SOARES, E.C.L. GOMES, F.S. No Labirinto das Naes. Africanos e identidades no
Rio de Janeiro, sculo XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005.
114
Idem, p. 87.
115
Idem, pp. 149-208.
49
116
50
Na realidade, boa parte dos cativos que saa ao ganho tambm fazia os servios das
casas senhoriais117, principalmente os escravos das famlias menos abastadas. Tais
constataes permitem ampliar o questionamento sobre o morar do escravo urbano,
sobretudo aqueles que realizavam dupla jornada.
As dificuldades em adentrar a intimidade das relaes escravistas, em boa parte
responsveis pelas poucas anlises do mundo domstico nas cidades, tornam o estudo
desse aspecto da vida cativa mais complicado. No por acaso, as obras sobre o tema
debruaram-se sobre a documentao produzida pelo Estado. Foi por meio do exame
das aes policiais, posturas municipais, pedidos de licena para as Cmaras, censos
populacionais, etc., que muito do que se conhece sobre escravido urbana foi
construdo. No que diz respeito ao morar escravo no foi diferente. Desse modo, o
estudo dos arranjos escravos de moradia escrava necessita das informaes
disponibilizadas pelos diferentes rgos estatais, o que por sua vez coloca a anlise do
Estado vigente como ponto crucial na compreenso dessa prtica escrava.
117
52
CAPTULO II
As Muitas Senzalas 1808 - 1830
Arquivo Nacional (AN). Inventrio de Bernardo Jos Ferreira Rabello, ano 1806, caixa 4061, no.
8938.
119
Leila Algranti analisou as famlias e a vida domstica brasileira no perodo colonial. A partir de relatos
de viajantes e de inventrios post mortem, principalmente da capitania de So Paulo, abordou alguns
aspectos da intimidade, dentre eles o mobilirio das casas coloniais. Segundo a autora, a precariedade das
53
Alm dos bens descritos acima, outro fator que confirma a posio scioeconmica do casal Rabello era a quantidade de escravos que possuam e as atividades
exercidas pelos mesmos. Junto com a famlia de Joo, outros onze escravos estavam
presentes no inventrio do capito Bernardo. Dentre eles, dois no tinham idade para
trabalhar Zefina parda, de seis anos; Faustino crioulo, da mesma idade e filho da
escrava Rosa, que no apareceu no inventrio. Dos nove escravos economicamente
ativos, apenas Joo Benguela e Pedro Congo no tinham atividade especificada; os
outros sete cativos exerciam diferentes servios domsticos, como o cozinheiro Gaspar
Angola, de 40 anos, ou ento o jovem Antonio Crioulo, 25 anos, cocheiro da famlia.
Antonio Moambique, Manoel Benguela, Feliz Parda, Catharina Cabra, Maria
Benguela, Augusta Angola e Feliciano Camunda se enquadravam no amplo quesito
servio de casa. Percebe-se claramente que, com a provvel exceo de Joo e Pedro, os
demais cativos realizavam tarefas estritamente vinculadas ao mundo domstico da
famlia Rabello que podiam ser especficas, como cozinheiro, ou mais gerais, como o
cuidado da casa120.
As informaes contidas nesse inventrio permitem formar um amplo leque de
questes sobre a escravido no espao urbano. plausvel pensar na constituio de
famlias escravas no mundo domstico senhorial assim como, a anlise dos significados
econmicos e simblicos que esses cativos tinham para seus proprietrios tambm
admissvel. Contudo, o que mais interessa presente pesquisa entender onde e como
esses escravos moravam.
A constatao de que uma famlia escrava conseguiu se formar sob os olhos e o
aval de seus amos121, dentro de sua residncia, expande um pouco mais a idia que se
tem dessa casa na Rua Direita, sem nmero. Duas opes parecem vlidas. A
possibilidade de D. Anna Maria ser detentora de uma casa modesta parece pouco
plausvel. O nmero de moblia e outros bens arrolados no inventrio, bem como a
localizao da residncia indicam que a viva do Capito Rabelo habitava uma casa que
fazia jus sua condio.
moblias foi uma realidade em grande parte das residncias da Amrica Portuguesa at fins do setecentos.
ALGRANTI, Leila M. Famlias e Vida Domstica. In: Histria da Vida Privada Vol. 1. So Paulo, Cia.
das Letras, 1998, p.105.
120
Importante ressaltar que, mesmo indicando a existncia de um moinho de milho e de um engenho de
acar, nenhum dos escravos arrolados no inventrio estavam vinculados s atividades rurais, ou de roa.
121
No inventrio, a unio consensual ou no - de Joo Benguela e Augusta Angola est descrita
literalmente: Augusta Angola, cerca de 39 anos, mulher do escravo Joo e serve a casa, avaliada em
cem mil ris.
54
122
Cf. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro Setecentista. A vida e a construo da cidade da invaso
francesa a chegada da corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2005, pp. 379-404.
123
AN. Inventrio de Manoel Rodrigues Morais, 1807. Mao 368, n. 6493.
55
A hiptese de invalidez do cativo Antonio Rebolo fica mais forte pelo fato dele ser o nico escravo
sem preo estimado no inventrio.
56
entre Joanna e Eugenia: o fato da segunda ser me de Manoel Crioulo, cativo de um ano
e meio. Para Eugenia, a maternidade poderia significar a escolha por uma vida mais
tranqilae estvel (ainda que fosse resultado de algum caso amoroso, fruto de suas idas
rua), e isso era mais fcil de conseguir morando na casa de seus senhores, no s pela
garantia de um teto e comida, mas tambm de certa proteo, muito importante para
uma me cativa e solteira. Pode-se tambm inverter a tica frente maternidade de
Eugenia: mesmo representando uma queda temporria da produtividade da escrava,
Manoel Crioulo era mais um cativo para a famlia de D. Anna Izabel, que seria criado
por sua senhora da forma que lhe aprouvesse, inclusive tornando-se importante fonte de
renda para viva. Nos dois casos, o que parece mais sensato que me e filho morassem
com sua senhora125.
J Joanna Conga tinha a possibilidade de ampliar seus laos de amizade,
solidariedade e amor, nos momentos em que fazia suas vendas. Eventualmente, a
escrava cozinharia de manh, sairia tarde para sua segunda jornada de trabalho e
retornaria noite para a casa de sua proprietria. Mas tambm crvel que tal retorno
no acontecesse, ou no todas as noites. Alm do mais, nada assegurava que Joanna
sasse s ruas apenas para vender seus produtos - claro que, ao menos na tica senhorial,
esse era o objetivo fundamental de suas sadas -, mas nada garantia que esse tambm
no fosse o momento da cativa estar em outras moradas. A hiptese aventada para
Joanna, tambm cabe para Joo Rebolo, sendo que o ltimo realizava apenas servio de
rua, na medida em que, provavelmente se tratasse de um dos muitos negros de ganho da
cidade que s retornavam para residncia de seus senhores para repassar o dinheiro que
havia recebido em seus trabalhos na rua. Tal hiptese tambm vlida para Manoel
Crioulo e Antonio Benguela.
Outro elemento que permite pensar que alguns dos escravos de D. Anna Izabel
no habitavam sua residncia, ou no na maior parte do tempo, o valor estipulado para
sua casa. Novamente, o inventrio de Manoel Morais no contm descrio interna da
morada, nem a sua localizao, mas ser avaliada em 32 mil ris metade do valor do
escravo Jos Crioulo, de treze anos, que tinha escorbuto demonstra que no se trata de
uma casa como a do capito Rabello.
125
Vale lembrar que a escrava Eugenia foi classificada como aleijada dos quartos no inventrio de
Manoel Morais, o que tambm poderia ter influenciado no local de sua morada. Importante frisar que as
informaes contidas nos inventrios esto circunscritas ao momento em que a documentao foi
produzida. Justamente por isso, possvel pensar no s que a escrava Eugnia nem sempre sofreu dos
quartos, como a aquisio dessa "deficincia" pode ter sido decorrncia de um trabalho de parto e que s
depois desse episdio a cativa passou a morar de forma mais sistemtica na residncia senhorial.
57
126
FRANK. Z.L. Dutra's World. Wealth and family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque,
University of New Mexico Press, 2004, p. 77.
127
KARASCH. Mary. A vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808 1850). So Paulo, Cia. das Letras,
2000 (2a. edio), p.185.
128
GOULART REIS, Nestor. Imagens de vilas e cidades do Brasil colonial. So Paulo, Imprensa Oficial,
2000.
129
CAVALCANTI, N. Op. Cit.
130
Existem tambm trabalhos que abordaram a problemtica da escravido no Rio de Janeiro antes de
1808. O estudo de Mariza Soares trabalhou aspectos do carter escravista da cidade ao analisar identidade
tnica e religiosidade cativa no setecentos. Cf. SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da Cor.
58
Identidade tnica, religiosidade e escravido no Rio de Janeiro, sculo XVIII. Rio de Janeiro, Civilizao
Brasileira, 2000.
59
131
Thomas Ewbank, um pouco insatisfeito com sua viagem ao Brasil, descreveria sua
chegada na capital do pas como no sendo to ruim como esperava, pois "a baa,
triangular em seus contornos, considerada uma das mais seguras e mais lindas que a
presente disposio das guas no globo terrestre formou 132.
No entanto, a empolgao observada nos relatos dos viajantes sobre as belezas
naturais, no condizia com a opinio que eles mesmos formaram sobre os aspectos
urbansticos do Rio. Isso porque, at fins dos setecentos, a cidade era apertada pelos
morros responsveis por seu carter seguro; boa parte de seu cho era resultado do
aterro de mangues e brejos; possua pouco mais de 50 ruas, sendo poucas as que
receberam calamento133.
Fania Fridman lembrou que a organizao espacial dos centros urbanos coloniais
foi realizada quase toda pela Igreja Catlica, ainda no sculo XVI. Segundo a autora, as
leis eclesisticas e a prpria religiosidade ditaram o ritmo do cotidiano das vilas e
cidades at as reformas Pombalinas no final do sculo XVIII134. No por acaso, em
meados dos oitocentos, o Rio de Janeiro ainda era formado basicamente de casas
trreas, onde os maiores edifcios, na sua grande parte religiosos, estavam localizados
nos morros, mostrando as fachadas do sculo XVII135. Suas principais construes da
eram a Catedral da Candelria e os Arcos da Carioca (ou Lapa) - aqueduto responsvel
pelo difcil abastecimento de gua.
131
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Coleo Reconquista
do Brasil. Vol. 21. So Paulo/ Belo Horizonte, EDUSP/ Itatiaia, 1975, p. 22.
132
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. Coleo Reconquista do Brasil. Vol. 28. So Paulo/ Belo
Horizonte, EDUSP/ Itatiaia, 1976, p.51.
133
ABREU, Maurcio de A . Evoluo Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IPLANRIO, 1997.
134
FRIDMAN, Fania. Geopoltica e produo da vida cotidiana no Rio de Janeiro Colonial. In: Actlas do
Colquio Internacional "Universo Urbano Portugus 1415-1822". Lisboa, CNCDP, 2001, pp. 299-319.
135
MARINS, Paulo Csar Garcez. Atravs da Rotula. Sociedade e Arquitetura Urbana no Brasil, sculos
XVII a XX. So Paulo, Humanitas, 2001, p. 154.
60
Cf. FRAGOSO, Joo. Homens de Grossa Ventura: Acumulao e Hierarquia na Praa Mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1998.
137
Vale lembrar que a Coroa portuguesa teve que deixar Lisboa e se transferir para o Rio de Janeiro em
decorrncia das guerras napolenicas que estavam acontecendo na Europa, o que fez com que a segurana
fosse elemento central para a escolha.
138
MARINS, Op. Cit., p.158.
139
Em seu trabalho sobre o Rio de Janeiro setecentista, Nireu Cavalcanti questionou o nmero de pessoas
que acompanhou Joo VI e sua famlia para o Brasil. Segundo o autor, que analisou as listas dos
passageiros vindos de Portugal para o Rio de Janeiro, o nmero total de portugueses no ultrapassaria 500
(o que em nada atenuaria o impacto da transferncia da Corte), e no 15 mil como foi sugerido pela
historiografia at ento. Cf.: Cavalcanti, N. Op. Cit., pp. 96-97.
61
observaes de Noronha dos Santos, Maurcio de Abreu mostrou que, no incio dos
oitocentos, o Rio contava com cinco freguesias urbanas, que correspondiam a menos de
10% do territrio da cidade140. Paralelamente, era nesse espao que se concentrava a
maior parte da populao carioca, que j em 1808 estava entre as trinta maiores do
mundo141. A equao entre pouco espao e populao numerosa fez com que a moradia
fosse um problema recorrente no Rio de Janeiro142. Exemplo disso foi a grande tenso
causada pela lei das aposentadorias, que permitiu que os portugueses recm chegados
ocupassem as casas de alguns habitantes, principalmente das casas mais abastadas.
Como de se imaginar, essa lei causou certo incmodo no processo de acomodao da
nobreza, principalmente para aqueles que foram desalojados de suas casas 143.
Passado esse transtorno, iniciou-se um rpido movimento para a conformao do
Rio de Janeiro ao papel de nova Corte do Imprio portugus. Com o objetivo de garantir
no s a sobrevivncia da Coroa, como do prprio Imprio144, as instituies
governativas j existentes em Lisboa sofreram uma duplicao nos trpicos, fazendo
com que, nas palavras de Ftima Gouva, "o Rio fosse gradativamente transformado em
uma Corte miniaturizada
145
140
62
. Dito de outra forma, foi o rgo que viabilizou o processo civilizador na nova
capital, j iniciado com as mudanas pombalinas, mas que foi levado a cabo pelo
regente D. Joo. A instaurao da Intendncia exps, tambm, o que Thomas Holloway
chamou de "reciprocidade entre a fonte de autoridade do Estado e a elite econmica do
146
Cf. LOBO, Maria Eullia Lahmeyer. Histria do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital
industrial e financeiro) vol. 1. Rio de Janeiro, IBEMEC, 1978, p.78.
147
A Intendncia foi criada a partir da determinao do alvar de 10 de maio de 1808, em semelhana da
existente em Lisboa desde a segunda metade do sculo XVIII.
148
Cf. GOUVA. Op. Cit., p. 723.
149
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Intendncia-Geral da Polcia: 1808-1821. In: Acervo. Rio de
Janeiro, v.1, n.2, pp.137-151, jul - dez. 1986, p.188.
63
Rio de Janeiro
150
para ocupar o cargo foi Paulo Fernandes Viana, que, alm de ter experincia no assunto,
era genro de Brs Carneiro Leo, um dos maiores comerciantes do Rio151.
As aes de Paulo Fernandes Viana afirmaram o carter mediador entre as duas
esferas de poder, a alta e a baixa, da Intendncia. Junto s reunies quase dirias com D.
Joo, o intendente construiu uma ampla rede de comunicao que articulou as principais
autoridades governativas do Brasil (governadores de capitania, ouvidores, ministros,
juzes de fora e de crime de bairro, etc.), visando tratar dos mais variados assuntos152. A
fim de facilitar essa comunicao, o Prncipe Regente dividiu a Corte em duas
jurisdies que ficaram sob a responsabilidade de dois Juizes de Crime, cargo recmcriado, cujos ocupantes seriam escolhidos pelo monarca. Subordinados ao Intendente,
esses magistrados facilitaram a associao dos poderes policiais e judiciais153. Observase que a Intendncia teve uma atuao cotidiana e foi responsvel no s pelas
transformaes feitas, como pela aplicao de leis e controle da populao, revelando,
assim, o duplo significado da palavra polcia na poca.
Apoiada no dicionrio de Lngua Portuguesa organizado por Antnio M. Silva,
Ftima Gouva apontou que o termo polcia significava, na poca, "governo e
administrao interna, que trazia seguranas aos cidados
154
mesmo tempo garantia a segurana e o governo, j havia sido trabalhado por Ilmar
Mattos anos antes. Segundo o autor, a polcia reunia aspectos administrativos e
judicirios da governabilidade que, at incio da dcada de 1830, foram exercidos pela
Intendncia155. No por acaso, o desempenho da instituio esvaziou boa parte do
poder da Cmara Municipal nesse perodo, pois, segundo o prprio Paulo Fernandes,
"no tendo sido bastante at agora seus cuidados [...] empregados para se evitarem os
males que do contrrio se seguem, ou pela pouca vigilncia e mesmo corrupo dos
Rendeiros ou dos Oficiais executores das suas deliberaes; da data desta em diante se
vigiar por esta Intendncia com zelo 156.
150
HOLLOWAY, Thomas. A Polcia no Rio de Janeiro. Represso e Resistncia numa cidade do sculo
XIX. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 1997, p.45.
151
Cf. GOUVA. Op. Cit., p. 724.
152
Idem, p. 725.
153
Cf. HOLLOWAY. T. Op. Cit., p.46.
154
GOUVIA, Op. Cit, p. 723.
155
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema: a formao do Estado Imperial. So Paulo, Ed.
HUCITEC, 1990, p. 229.
156
Apud. SLEMIAN, Andra. Vida Poltica em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo:
Hucitec, 2006, p. 70.
64
Uma das primeiras medidas de peso tomada pela instituio, deixando claro em
que direo suas aes rumariam, foi a criao, em junho de 1808, da Dcima Urbana tributo que passou a ser cobrado sobre todos os edifcios da cidade157. Dessa forma, foi
necessrio delimitar com maior preciso o permetro urbano do Rio de Janeiro sobre o
qual incidiria o imposto. De acordo com Nireu Cavalcanti, tal malha urbana abrangeu
totalmente as freguesias da S, Candelria e Santa Rita e parcialmente a de So Jos (at
as regies da Glria e do Catete) e do Engenho Velho, principalmente o caminho de
Mataporcos158, como demonstra o mapa abaixo.
157
65
MAPA
Malha Urbana do Rio de Janeiro em 1817
http://www.brazilbrazil.com/m/map1817j.jpg
66
159
dinheiro arrecadado das multas aplicadas, que a Intendncia angariou fundos para
realizar tarefas como calar as vias do Rio, trazer iluminao noturna, realizar rondas e
construir estradas que ligassem a cidade s regies produtoras de alimento160.
Todavia, no foi apenas atravs da tributao que a Intendncia atuou sobre as
residncias e edifcios cariocas. Era necessrio que houvesse certo padro no conjunto
arquitetnico do Rio de Janeiro, como marca de seu processo civilizatrio. Paulo Garcez
Marins defendeu a idia de que o sculo XIX foi caracterizado por um novo morar, j
que neste momento da histria do Brasil, o conceito moderno e burgus de privacidade
se expressou na organizao urbana, principalmente na arquitetura das casas. O autor
mostrou como a retirada sistemtica das gelosias e rtulas, janelas tpicas das
residncias coloniais - por meio do Edital de 11 de Junho de 1809 do prprio Intendente
da Polcia161 - assinalou essa nova forma de compreenso do espao que estava sendo
introjetada no Rio de Janeiro, pressupondo uma delimitao clara entre o ambiente
privado e o mundo pblico: era necessrio que as vias tivessem uma passagem de fcil
acesso, o que no acontecia com a presena macia desses tipos de janelas que invadiam
as ruas 162.
Outra interferncia do Estado via Intendncia de Polcia no que tange s
residncias do Rio foi a proibio da construo de casas trreas na regio nova da
cidade. Uma vez mais, os interesses das autoridades governativas pareciam coincidir
159
Idem, p. 264.
Com excesso feita s rondas, importante frisar que a maior parte da mo-de-obra empregada nas
tarefas que objetivavam o desenvolvimento urbano do Rio e Janeiro era escrava. Em sua dissertao de
mestrado, Carlos Eduardo de Arajo mostrou como a Intendncia Geral de Polcia utilizou-se diversas
vezes dos cativos que eram esquecidos ou abandonados por seus senhores nas diferentes prises da
Corte, caracterizando o que ele chamou de duplo cativeiro. Cf. ARAJO, Carlos Eduardo Moreira de. O
Duplo Cativeiro. Escravido urbana e o sistema prisional no Rio de Janeiro 1790-1821. Dissertao de
Mestrado defendida na UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.
161
MARINS, P. C. G. Op. Cit., pp. 164-165.
162
Junto necessidade em definir com maior preciso o que era pblico e privado nas casas cariocas, o
aumento do nmero de moblias foi outro indcio do aburguesamento da atividade do morar. Algranti j
havia indicado esse crescimento para as casas de So Paulo e o exame dos inventrios post mortem
encontrados no Arquivo Nacional confirmaram essa tendncia. importante reter que o processo
civilizador vivido no Rio de Janeiro tambm atingiu o interior das residncias, pois esse movimento pode
ter acarretado mudanas para os escravos que habitavam nas casas senhoriais, principalmente de pessoas
mais abastadas, como se ver adiante. Cf. FRANK, Z. Op. Cit.
160
67
163
68
Nireu Cavalcanti, era foroso que o Rio de Janeiro tivesse as mesmas instituies
cientficas encontradas nas principais cidades europias. Justamente por isso, a
duplicao de rgos lisboetas no se restringiu administrao e segurana da Corte.
Foi tambm nesse perodo que se deu a criao da academia militar e de novas cadeias;
a abertura dos cursos mdicos; a construo do Horto Botnico e do Museu Real a fim
de estimular os estudos de botnica e zoologia local; a instalao da Biblioteca Real em
1814 e, dois anos depois, a abertura da Escola Real de Cincia, Artes e Ofcio. Em 1811
iniciou-se a construo da Quinta da Boa Vista, moradia da famlia real, na ento
distante freguesia de So Cristvo. Quatro anos depois era construdo o Campo de
Santana168.
Entretanto, todo espetculo precisa de platia para ter sentido. No caso do Rio de
Janeiro, havia uma multido crescente de espectadores das mais diferentes condies
sociais. Segundo os dados levantados por Nireu Cavalcanti, entre 1797- 1799 o Rio de
Janeiro comportava 43.730 almas; j em 1808, a transferncia da Corte fez com que a
populao saltasse para mais de 60 mil habitantes169. Um crescimento considervel, que
s aumentou nos anos seguintes e que foi objeto de constante preocupao da
Intendncia Geral de Polcia, j que esses homens e mulheres de diferentes condies
passaram a se apropriar da rua no s para seus festejos e cerimnias religiosas, mas
como local de fazer poltica 170.
168
Cf. MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolfo. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro, 1946.
Sobre o caso especfico da Biblioteca Real, ver: SCHWARCZ, L.M. AZEVEDO, P.C. COSTA, A.M. A
Longa Viagem da Biblioteca dos Reis. Do terremoto de Lisboa Indpendncia do Brasil. So Paulo, Cia.
das Letras, 2002.
169
CAVALCANTI, N. Op. Cit., p. 256.
170
Cf. MOREL, M. As Transformaes dos Espaos Pblicos. Imprensa, Atores Polticos e
Sociabilidades na Cidade Imperial (1820-1840). So Paulo, Hucitec, 2005, p.165.
69
chegou a comparar, ainda em 1808, o Rio de Janeiro com o corao da frica171, com a
particularidade, porm, de que, como ressaltou Leithold, "negros e negras se
cumprimentam ao estilo europeu: os homens tirando o chapu com uma inclinao na
cabea; as mulheres fazendo uma reverncia
172
relatou como que "percorrendo as ruas fica-se espantado com a prodigiosa quantidade
de negros, perambulando seminus e que executam os trabalhos mais penosos
173
Freguesias
Urbanas
Santa Rita
Santana
Sacramento
Candelria
So Jos
Total
Total
1.742
1.351
3.352
1.434
2.272
10.151
13.744
10.835
22.486
12.445
19.811
79.321
6.949
6.887
12.525
5.405
11.373
43.136
6.795
3.948
9.961
7.040
8.438
36.139
70
176
71
Para compreender com mais detalhes a atividade do ganho e a diferena com a escravido de aluguel,
ver: ALGRANTI, L.M. Op. Cit., 70; SILVA, Marilene Rosa Nogueira. O Negro na Rua. A nova face da
escravido. So Paulo, HUCITEC, 1988, pp. 87-89; SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio
de Janeiro do sculo XIX. In: Escravido -Revista Brasileira de Histria, vol. 16. So Paulo, Marco Zero
ANPUH, 1988, pp. 107-142.
183
Baseado no exame de inventrios post mortem, Zephyr Frank sugeriu que, em 1818, um escravo de
ganho, entre 20 e 30 anos, era avaliado em 160$00 ris e recebia cerca de $320 por dia. De tal modo que,
em um ano, o cativo teria recebido entre 50$000 e 70$000, tendo gasto metade dessa quantia para se
sustentar, e a outra parte para pagar o que devia a seu senhor. Fazendo um clculo otimista, no qual o
escravo conseguisse economizar um quarto do que recebia anualmente (caso trabalhasse 20 dias todos os
meses), seria necessrio quase quatro anos para que ele conseguisse comprar sua alforria Cf. FRANK, Z.
Op. Cit., p. 27.
184
Usando os dados levantados por Burlamaqui para o ano 1837, Marilene Silva apontou que o valor
mdio de um cativo comum era de 400$000 ris e o jornal que ele conseguia, empregado no ganho,
permanecia $320 ris. Entretanto, o escravo oficial, aquele que tinha uma atividade especializada chegava
a receber duas vezes mais que o escravo comum, embora pudesse custar entre 500$000 e 1.000$000.
Realizando a mesma base do clculo anterior, sem levar em considerao a inflao, seria preciso mais de
treze anos para o escravo mdio juntar o suficiente para sua liberdade. Cf. SILVA, M.R.N. Op. Cit., p. 61.
72
185
188
185
LIMA, Oliveira. D. Joo VI no Brasil (3a edio) Rio de Janeiro, TOPBOOKS, 1996, p. 593.
DEBRET. Op. Cit., p. 306.
187
SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles. Empire, Monarchy, and the Portuguese Royal Court in Rio
de Janeiro, 1808 - 1821. New York /London, Routledge, 2001, p.121.
188
Mary Karasch conta, ainda, que com a chegada da Corte houve uma imitao da moda francesa. As
escravas das senhoras mais ricas da cidade no s eram treinadas para copiar os modelos, como elas
mesmas, muitas vezes, saam nas ruas usando vestidos franceses. KARASCH, M. Op. Cit., p. 302.
186
73
189
Cf. DEBRET. Op. Cit, p. 277. Importante frisar que, como em diferentes sociedades escravistas, o
trabalho manual era visto como algo degradante, pois era servio de escravo. Dessa feita, quanto mais
distante o cativo estivesse desse tipo de trabalho, melhor colocado ele estaria, hierarquicamente, na
sociedade.
190
A dinmica da escravido urbana fez com que o Rio de Janeiro, assim como Salvador e Recife, tivesse
um significativo nmero de libertos, embora os rpidos clculos feitos nas notas 66 e 67 deste captulo
demonstrem a aspereza dessa empreitada. A despeito das dificuldades dirias da vida escrava, dentre elas
a freqente concorrncia por trabalho que, segundo dados levantados por Leila Algranti e Marilene Silva
foram responsveis por boa parte dos crimes cometidos pelos cativos, a rentabilidade do servio de ganho
e a possibilidade de outras tarefas nas ruas da cidade permitiram que alguns escravos conseguissem
guardar a soma necessria para a compra de sua alforria (ALGRANTI, L. Op. Cit. Captulo 4. SILVA, M.
Op. Cit. Captulo 3). Contando, ainda, com redes de solidariedade - como os cantos de Salvador e as
Irmandades Negras - e at mesmo com a vontade senhorial, o vislumbre da alforria, mais do que ela
prpria, serviu como vlvula de escape s opresses do sistema escravista, na medida em que reforava,
positivamente, as aes individuais pacficas dos cativos na luta pela obteno da liberdade. Estudos
apoiados em anlises empricas assim como trabalhos de cunho terico tm mostrado que mais do que
formade luta, as alforrias serviram como fator regulador e fortalecedor da instituio escravista no Brasil.
Ver: FLORENTINO, M. Sobre minas, crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871.
In: FLORENTINO (org). Trfico, Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro, sculos XVII-XIX. Rio de
Janeiro, Civilizao Brasileira, 2005; PATTERSON. O. Slavery and Social Death. a comparative study.
Cambridge, Havard University Press, 1982; MARQUESE, Rafael B. Resistncia, trfico negreiro e
alforrias, sculos XVII e XIX. In: Novos Estudos CEBRAP, 74:107-123, maro 2006. No entanto,
importante salientar que a carta da alforria no foi uma realidade na vida da maior parte dos africanos que
aportaram no Rio de Janeiro durante a primeira metade do sculo XIX. Cf. KARASCH, M. Op. Cit.,
Captulos 10 e 11.
74
era a sua condio dentro da cidade; as fronteiras se faziam sentir nos mais variados
nveis191.
Casos como de Antnio Benguela, escravo de Roza Batalha, preso em 1814 por
ter furtado uma galinha192, ou at mesmo o de Francisco Angola, que roubou o tabuleiro
de doces de uma preta forra no centro do Rio193, sugerem que muitas vezes a quantia
que o cativo recebia por seus servios nem sempre pagava o que devia para seu senhor e
o necessrio para seu prprio sustento. De tal modo, esses pequenos furtos foram
prticas freqentes e que, sob certa tica, caracterizaram a escravido na Corte.
No entanto, inegvel que a maior mobilidade da atividade ao ganho alargou as
possibilidades de ao dos escravos, principalmente no que diz respeito s negociaes
e relaes com outros segmentos sociais. No estudo sobre capoeira escrava no Rio de
Janeiro, Lbano Soares mostrou algumas das formas de articulao e resistncia cativa.
Responsvel por cerca de 9% das prises feitas pela polcia no perodo joanino194, os
capoeiras trouxeram muita dor de cabea para os governantes da cidade. E no foram
apenas os diversos conflitos travados entre as diferentes maltas ou contra a polcia que
preocupavam as autoridades. Para alm da luta, do jogo, e do relaxamento do trabalho, a
capoeira evidenciava toda uma rede de sociabilidade entre escravos, livres e libertos
com a prpria dinmica do cativeiro na Corte195.
Os dados levantados pelo autor apontaram que Sacramento196, localidade com
maior populao escrava entre 1808 e 1821, tambm foi onde boa parte das prises de
cativos por capoeira ocorreram197. O cruzamento dos dados coletados por Mary
Karasch, Leila Algranti e Lbano Soares demonstrou que a capoeira foi uma forma
urbana de resistncia escrava. Conseqentemente, as freguesias de dentro foram os
locais onde maior nmero de retenes de capoeiras foram realizadas. No s porque
parte significativa dos senhores de escravos moravam ali, mas, principalmente, porque
era l que a vida citadina, propriamente dita, acontecia. Nas palavras de Lbano Soares,
191
75
"vemos que o mapa de capoeira no Rio joanino em grande parte est restrito ao centro
mais comercial da cidade, onde o grosso da populao escrava se rene" 198.
As tabernas do Rio tambm facilitaram a formao e comunicao dos
capoeiras. Servindo como ponto de ajuntamento, nesses locais eles no s bebiam e se
divertiam para esquecer as mazelas de sua condio, mas tambm se socializavam com
outros cativos, forros e homens livres. Flvio Gomes ressaltou o papel dessas casas
comerciais no planejamento de fugas coletivas, assim como na comercializao de
mercadorias produzidas pelos quilombolas199. Junto com esses locais, as casas de
molhados e de jogos de azar, alm das praas, ruas e chafarizes, serviam como ponto de
encontro de escravos e libertos, transformando a relao do Rio de Janeiro com o
cativeiro numa verdadeira via de mo dupla. Ao mesmo tempo em que a cidade
necessitava do trabalho escravo, essa mesma malha urbana permitia maior encontro dos
cativos tanto nos momentos de trabalho como de descanso.
No que tange s casas comerciais, como as tabernas, foi mais fcil para a
Intendncia proibir a entrada de cativos, embora a prpria documentao policial aponte
que tal proibio era freqentemente desrespeitada200. Mas, como controlar os escravos
nos espaos pblicos da Corte? Como evitar que os locais de trabalho escravo tambm
no fossem espaos de sociabilidade, tendo em vista no s a mobilidade escrava, como
o grande nmero de libertos no Rio?
Questes como essas j foram trabalhadas pela historiografia que examinou a
escravido urbana no Rio de Janeiro. Mesmo partindo de diferentes abordagens, existe
certo consenso na literatura de que o Estado, via Intendncia Geral de Polcia, atuou
fundamentalmente no hiato existente entre a relao escravista privada e os usos do
espao pblico. Exemplo disso foi a extino, em 1820, dos capites-do-mato no Rio de
Janeiro; a tarefa de caar os escravos fugidos passou para a alada da polcia201. Como
bem frisou Holloway, com a transferncia da Corte e o aceleramento do processo de
modernizao do Estado, o controle dos escravos passou a ser dividido entre senhores e
rgos estatais. Grosso modo, os cuidados bsicos dos cativos como alimentao,
198
Idem, p. 177.
GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro sculo XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995. Ver principalmente captulo 1.
200
Inmeros documentos policias proibiram a entrada de escravos nesses locais. Cf. AN. Polcia da
Corte. Cdice 318. Registro de Avisos e Portarias da Polcia da Corte. Fl. 11 verso. Edital lanado em
07/05/1808. AGCRJ. Cdice 16.4.27-B. Editais de Postura. 1830-1836.
201
Cf. HOLLOWAY, T. Op. Cit., p. 63.
199
76
vesturio e moradia ficaram a cargo de seus proprietrios. Ao Estado coube zelar pelo
controle da escravaria por meio da punio disciplinar e das prises202.
Infelizmente, poucos so os documentos que discorreram sobre o tratamento e
cuidado que os senhores urbanos davam a seus cativos. No caso da autoridade estatal,
pode-se afirmar que ela substituiu a figura do feitor institucionalmente por meio das
punies disciplinares. Segundo Holloway, o servio de aoite prestado pela polcia
colocava em relevo o papel do Estado como instrumento da classe dominante, j que era
oferecido, mediante pagamento, aos senhores que no queriam castigar pessoalmente
seus escravos. Os proprietrios encaminhavam seus cativos para o Calabouo, crcere
construdo exclusivamente para esse segmento social203, e pagavam 160 ris por cada
cem chibatas, mais 40 ris por dia para os custos da manuteno do escravo nas
instalaes204. Ao mesmo tempo em que o Estado mantinha e institucionalizava a
punio violenta, ele tambm controlava possveis excessos de alguns senhores.
Outra forma do Estado controlar os cativos foi por meio das prises. Os dados
trabalhados por Algranti mostraram diversos motivos para o recolhimento de escravos
entre 1808 e 1821. Desordens de grupos, capoeiras, porte de arma, roubo, permanncia
fora de hora nas ruas, insulto a policiais, vadiagem, agresso, feitiaria, tentativa de
suicdio, etc.
205
trs grandes grupos: crimes contra a ordem pblica, crimes de violncia e crimes contra
a propriedade.
No primeiro caso, enquadrava-se a maior parte dos delitos cometidos, que
tambm eram os que mais preocupavam as autoridades: capoeira, porte de armas e as
mais diferentes desordens, problemas que no foram resolvidos sequer no Segundo
Reinado. No caso dos crimes de violncia, a embriagus era a grande responsvel pelas
brigas, pedradas e tentativas de estupro - situao nas quais as maiores vtimas eram
mulheres negras e mulatas escravas ou forras. Por fim, nos delitos contra a propriedade,
estavam os pequenos furtos que visavam, como no caso de Antonio Benguela e
202
Idem, p.64.
Erigido em 1767, o Calabouo localizava-se na antiga fortaleza de Santiago, freguesia de Santa Rita,
onde permaneceu at 1813, ano em que foi transferido para o Morro do Castelo. Apesar de ser o nico
crcere destinado exclusivamente para escravos, os cativos tambm ficaram detidos em outras prises
junto com homens livres e libertos. O Rio de Janeiro possua ainda o Aljube, priso eclesistica localizada
no morro da Conceio (considerada a pior dentre todas as prises), a Casa de Suplicao, criada em
1810, a Cadeia de Botafogo e a priso da Ilha de Santa Brbara. Alm desses presdios, o cativo ainda
poderia ser condenado para as gals, ou ento, degredado para a frica. Cf. HOLLOWAY, Op. Cit., pp.
65-67. KARASCH, M. Op. Cit., pp. 176-183. ARAJO. C.E.M. Op. Cit.
204
HOLLOWAY, T. Op. Cit., p. 64.
205
Cf. ALGRANTI. Op. Cit., p. 209.
203
77
Idem, pp. 168-180. Os dados levantados por Leila Algranti demonstram que no ltimo tipo de crime
escravo havia maior presena de prises de mulheres.
207
Segundo Leila Algranti, 751 escravos foram aprisionados por estarem fugidos. Esse nmero
representou 15,5% do total das prises feitas. Cf. ALGRANTI, Op. Cit., p. 209.
208
AN. Cdice 403, vol. 1, (16/07/1812), fl. Ilegvel.
209
AN. Cdice 403, vol. 1, (13/08/1812), fl. Ilegvel.
210
AN. Cdice 403, vol. 1, (13/02/1813), fl. 123.
211
Para mais informaes sobre a formao de quilombos no Rio de Janeiro e suas articulaes com a
cidade, ver: GOMES, F. Op. Cit., 1995. GOMES, F. Quilombos do Rio de Janeiro no sculo XIX. In:
REIS & GOMES. (Orgs). Liberdade por um fio. Histria dos quilombos no Brasil. So Paulo, Cia. das
Letras, 1996, pp. 263 - 290.
212
AN. Cdice 403, vol. 1, (22/12/1813), fl. 168. (Grifo meu).
78
semelhana, muitas vezes forros e cativos exerciam as mesmas atividades pelas ruas
cariocas. Essa era apenas uma das facetas da maior mobilidade escrava no espao
urbano: a possibilidade dela homogeneizar a populao negra e mestia do Rio. Como
as autoridades resolveram esse problema? Prises, diversas vezes arbitrrias, rondas
noturnas, toques de recolher, exigncia de licenas para andar noite, dentre outras
medidas paliativas.
Conforme Holloway apontou, o Estado dividia com os proprietrios as
responsabilidades em relao aos escravos do Rio. Claro est que a autonomia de
trnsito vivenciada pelos cativos urbanos fazia parte da prpria instituio nas grandes
cidades. No entanto, a recorrncia de crimes envolvendo cativos, a freqncia com a
qual eles eram encontrados nas tabernas, casas de molhados, e, at mesmo, a
significativa incidncia de fugas, colocam a seguinte questo: afinal de contas, onde
moravam tais escravos?
As dcimas urbanas analisadas por Nireu Cavalcanti, que infelizmente estavam
indisponveis para consulta na fase de pesquisa, apontam que, alm das diferentes casas
do Rio, tambm existiram construes especficas, designadas como senzalas. Mesmo
diante da impossibilidade em analisar como seriam tais construes (inclusive em
termos arquitetnicos) e suas possveis localizaes, plausvel afirmar que
dificilmente elas teriam outro objetivo que no abrigar escravos urbanos. Alm dessas
senzalas compartimentadas, preciso lembrar que as residncias senhoriais
provavelmente teriam um espao designado para a habitao de seus cativos.
Como, ento, explicar o grande trnsito de escravos fora dos horrios de
trabalho, ou at mesmo a presena deles nas tabernas e nas muitas casas de jogos
espalhadas pela cidade? Que tipo de relao se estabeleceu entre proprietrios e cativos
que permitiu, ao mesmo tempo, maior autonomia escrava e menor cuidado senhorial no
que tange vida material de suas propriedades?
Entender onde e como os escravos moravam ajudar a responder essas questes.
79
213
Cf. SLENES, Robert. W. Na Senzala uma Flor. Esperanas e recordaes na formao da famlia
escrava Brasil Sudeste, sculo XIX. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999. Ver Epgrafe
Contraponto.
214
Idem, pp. 134-142.
215
Importante ressaltar que mesmo antes da transferncia da Corte, o Rio de Janeiro recebeu a visita de
inmeros estrangeiros que tambm deixaram registradas diversas observaes sobre a cidade. Todavia,
foi a partir do sculo XIX que tais relatos constituram-se em um gnero literrio propriamente dito. Cf.
LISBOA, Karen M. Olhares estranegiros sobre o Brasil do sculo XIX. In: MOTTA, C.G. (org.).
Viagem Incompleta. A experincia brasileira (1500-2000). Formao:Histria. So Paulo, Ed. SENAC,
2000, pp. 256-299.
216
Esses estudos, entretanto, tm utilizado tal fonte de forma mais crtica, no tomando os relatos e
imagens deixadas pelos estrangeiros como "retratos de uma poca", mas sim como um registro que, assim
como os demais, precisa ser avaliado criticamente.
217
SMITH, Robert C. Arquitetura Civil no Perodo Colonial. Rio de Janeiro In: Revista do Patrimnio
Histrico e Artstico Nacional. Vol. 17, 1969, p. 111.
80
220
218
Esse levantamento foi feito durante a Iniciao Cientfica financiada pelo CNPq (processo no.
112684/2001-7), cujo principal objetivo era entender a diversidade do morar escravo no mundo urbano, a
partir dos relatos dos viajantes que estiveram no Brasil durante o sculo XIX. Esses relatos foram
catalogados em um banco de dados.
219
Cf. SANTOS, Yna Lopes. Arranjos escravos de moradia sob o olhar dos viajantes. Um estudo sobre
a Moradia Escrava na Cidade do Rio de Janeiro do sculo XIX. Anais do XVII Encontro Regional de
Histria - O Lugar da Histria, 2004. Verso em CD-ROM.
220
Cf. SCHLICHTHORST, C. O Rio de Janeiro como (1824 - 1826). Huma vez e nunca mais.
Contribuies dum dirio para a Histria atual dos costumes e especialmente a situao da tropa
estrangeira na capital do Brasil. Editora Getlio Costa, 1937, p. 133.
221
Cf. SLENES, R. Op. Cit. Ver, sobretudo, captulos 3 e 4.
222
Cf. KARASCH. Op.Cit., pp. 207-258.
81
223
Trs anos depois, em 1824, Ernest Ebel relatou que (...) a maioria das casas no
Rio tem apenas sobre a rua trs janelas de frente ou portas, melhor dito, que abrem
para pequenas sacadas em balano com seus gradis de ferro, limitando-se o mesmo a
uma nica pea, por assim dizer, comunicante por duas portas envidraadas com outro
223
GRAHAM, Maria. Dirio de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse pas durante parte dos
anos de 1821, 1822, 1823. Belo Horizonte: Itatiaia, So Paulo: Edusp, 1990, p.183.
82
compartimento, que uma alcova e faz as vezes de dormitrio. A rea que sobra d
comumente para um pequeno ptio e consiste, alm da cozinha de tipo econmico
ingls, de escuros cubculos - maiores e menores - divididos por parties delgadas, os
quais servem unicamente para quartos de criados ou para despejo" 224.
No mesmo ano, Schlichthorst fez meno influncia da presena escrava nas
casas cariocas: "Cozinhas e quartos sujos da criadagem se distribuem por ali e tm
aspecto repelente. Em resumo, tanto no Palcio Imperial como em qualquer casa
brasileira, sempre se encontram vestgios da influncia dos negros. A sujeira, a falta de
ordem, o mais berrante contraste entre a sovinice e o esbanjamento, servio pssimo
apesar da quantidade de escravos pretos e brancos, o ralhar e o bater sem fim so
coisas insuportveis para o europeu recm-chegado, o qual s com o tempo a elas se
acostuma" 225.
A despeito dos adjetivos utilizados para caracterizar a presena escrava nas casas
senhoriais, importante reter que essas residncias da dcada de 1820 tambm eram
vistas pelos viajantes como espaos de moradia dos cativos, que habitavam pequenos
cmodos quartos, pores ou stos. Tais observaes lembram uma realidade do Rio,
apontada por Rugendas em 1821, de que "grande parte da populao escrava do Rio de
Janeiro acha-se empregada em servios domsticos, com pessoas ricas ou de posio.
um artigo de luxo, inerente antes vaidade do senhor do que as necessidades da
casa. Esses escravos usam librs fora de moda, que, acrescidas aos turbantes e
penteados esdrxulos, fazem deles verdadeiras caricaturas" 226.
A constatao de que a maior parte da populao escrava do Rio de Janeiro era
destinada ao servio domstico tambm consenso na historiografia227. Contudo, as
dinmicas criadas pelo trabalho ao ganho e de aluguel possibilitaram tamanha
autonomia escrava nos espaos pblicos da cidade, que a vida do cativo domstico
parece ter ficado em segundo plano nos trabalhos que analisaram a escravido urbana
no Rio de Janeiro. Pouco se fala sobre esses escravos. Parte desse silncio se deve
dificuldade em analisar a escravido domstica, tanto no campo quanto nas vilas e
cidades da Amrica Portuguesa. Poucos foram os escravos que conseguiram registrar
224
EBEL, Ernest. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. So Paulo, Cia. Nacional, 1972. Coleo
Brasiliana 35, pp. 25-26.
225
SCHLICHTHORST. Op. Cit., p. 52.
226
RUGENDAS. J. M. Viagem pitoresca atravs do Brasil (1835). So Paulo, Editora Martins, 1941, p.
187 e 203.
227
Ver, por exemplo, os trabalhos citados de: ALGRANTIL, p. 83. SILVA, M.R. Captulo 2.
83
qualquer aspecto da sua vida e, de fato, no havia porque documentar uma relao que
era definida e vivenciada no mbito privado das relaes sociais.
A polcia, a Cmara de Vereadores e os demais rgos estatais no tinham como,
nem razo para adentrar em um assunto que, rarssimas vezes, colocava em questo a
ordem social. No entanto, aceitar a premissa de que o morar do escravo domstico pode
ser entendido a partir da transposio das relaes domsticas do mundo rural, seria
negar as particularidades do cativeiro citadino, mesmo porque, a prpria noo de
escravido domstica deve ser reexaminada no contexto urbano.
Nas grandes urbes, a diversidade de atividades no foi caracterstica exclusiva
dos escravos de ganho. O mundo domstico guardava toda uma rede de servios, cuja
parcela significativa dependia da ida dos escravos para a rua. A dificuldade na obteno
de gua no Rio de Janeiro fez com que a lavagem de roupas acontecesse nas diferentes
fontes da cidade, sobretudo nos arredores do Campo de Santana e nos rios prximos228.
A mesma dificuldade obrigou diversas famlias a mandarem seus cativos para
chafarizes, fontes e aquedutos do Rio, na busca de gua para beber, comida e banho.
Consequentemente, estes locais foram palco de muitas brigas e desordens registradas
pela polcia, mas, tambm, espaos de reencontros229.
As tarefas do mundo domstico no se encerravam na residncia senhorial, quer
nas famlias mais abastadas, quer nas casas mais humildes. No primeiro caso, era
comum que o escravo responsvel pela cozinha fosse diariamente fazer compras na
cidade. O trabalho do cocheiro s tinha sentido quando ele ia s ruas; os moleques de
recado pipocavam por toda a parte. Dessa forma, a constatao da clausura de escravos
domsticos na casa senhorial um pouco exagerada230. A no ser no caso de algumas
mucamas, amas-de-leite e copeiras, a rua tambm era espao de sociabilidade desses
cativos, mesmo que por um tempo menor. Isso sem levar em conta os cativos dos
senhores mais pobres que, alm de todo o trabalho domstico, muitas vezes tambm
228
84
saiam s ruas em busca de algum servio, j que em alguns casos eram responsveis
pelo sustento da famlia senhorial.
Embora a presena escrava tenha chamado ateno de praticamente todos os
estrangeiros que visitaram o Rio de Janeiro, os relatos que permitem analisar com mais
detalhe determinados aspectos do cotidiano escravista, sobretudo no que dizia respeito
intimidade das relaes que permearam o cativeiro, foram aqueles produzidos pelos
viajantes que ficaram mais tempo no Brasil. No caso especfico do Rio durante as
primeiras dcadas do sculo XIX, as observaes feitas por Jean Baptiste Debret so
extremamente relevantes.
Freqentador da Academia francesa de Belas Artes, Debret foi convidado a
participar da Misso Artstica francesa no Brasil em 1816, cujo principal objetivo era
fundar uma Escola de Belas-Artes na nova sede do Imprio portugus, uma das muitas
formas de empregar o conceito europeu de civilizao nos trpicos. Sua estadia foi
longa (18 anos no total) e atribulada, mas permitiu que o francs tivesse a oportunidade
de viajar por boa parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves231. Nesses
momentos, Debret pode observar diferentes aspectos dessa sociedade to estranha e
pitoresca aos seus olhos, observaes essas que, em parte, foram posteriormente
registradas e compiladas no seu livro Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil.
Formada por 149 litografias, normalmente acompanhadas de comentrios do
artista, a obra de Debret contundente em mostrar a forte e disseminada presena do
cativo no Rio de Janeiro. Negros carregando cangalhas; Aplicao do castigo da
chibata; Negros serradores de tbua; Negros vendedores de aves; O colar de ferro,
castigo dos negros so exemplos de litografias nas quais o cativo foi retratado como
personagem principal, mesmo que submetido autoridade senhorial ou do Estado. Tal
submisso aparece de forma mais tnue nas imagens que retratam aspectos da
intimidade da famlia brasileira. E, ainda que quase desapercebidas, questes
relacionadas moradia escrava no espao urbano so tangenciadas.
Ao analisar parte da estrutura arquitetnica das casas brasileiras, sobretudo no
que diz respeito ao legado das tcnicas de construo herdadas dos portugueses e da
influncia moura, o francs examinou duas casas, uma urbana e outra de campo,
231
A importncia dos registros e da prpria trajetria de Debret no Brasil tamanha, que j se tornou
objeto de diversas pesquisas. Ver em especial LIMA, Valria A. E. A Viagem pitoresca e Histrica de
Debret: por uma nova leitura. Campinas. Tese de Doutorado defendida na Universidade Estadual de
Campinas, 2003; e STRAUMANN, Patrick (org). Rio de Janeiro, cidade mestia. So Paulo, Cia. Das
Letras, 2001.
85
fazendo algumas distines entre elas, sobretudo no que diz respeito situao scioeconmica de seus proprietrios. No primeiro caso, Debret retratou uma residncia de
um andar que, segundo ele, era muito comum nas ruas cariocas. Geralmente habitadas
por uma nica famlia, essas construes eram profundas e estreitas, conforme a planta
abaixo:
Planta de Casa Urbana
Ilustrao 1. Planta baixa de casa trrea comumente encontrada nas ruas do Rio de Janeiro. As
letras presentes em cada cmodo indicam seus respectivos usos. Na planta do rs-do-cho: a Vestbulo
ou corredor. b Sala de visitas. c Quartos de dormir, espcies de alcovas. d Sala de Jantar. e Copa. f
rea, poo. g Cozinha. h - Quartos de Negros. i Jardim. k Estrebaria. J o primeiro andar
formado por: A - Quatros com 4 janelas. B Espcie de corredores escuros para os quartos de dormir. C
Gabinete com 4 janelas. D Telhado dos cmodos prximos ao poo. E Telhado do hangar. (Debret.
Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil, vol. 3. So Paulo. Editora do Crculo do Livro, 1985, pp. 305306).
Ilustrao 2. Nessa imagem, Debret retratou uma das tarefas domsticas de uma casa
brasileira, a costura, mostrando tambm como o poder senhorial se expressava num universo no
qual os escravos desfrutavam de menos liberdade do que o macaco acorrentado prximo ao chicote.
(Debret. Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil, vol.2. So Paulo. Editora do Crculo do Livro, 1985,
pp. 185).
232
87
88
Ilustrao 3. A decadncia de muitas famlias livres foi um aspecto que chamou a ateno
de Debret. Esse desenho representa o interior da casa de uma viva que mora com sua filha e uma
escrava velha, nica fonte de renda da famlia.(Debret. Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil, vol.2.
So Paulo. Editora do Crculo do Livro, 1985, pp. 305).
A cena retratada, mostra uma escrava na porta da casa senhorial, com um cacho
de bananas na cabea entregando algumas moedas para sua senhora provavelmente
fruto de sua ida rua -, que por sua vez est sentada sobre uma esteira, tecendo.
Segundo a imagem e os comentrios de Debret, evidente que se trata de uma famlia
humilde. A prpria estrutura da casa uma cabana construda maneira dos ndios
camacs233 - d os sinais de pobreza: a existncia de apenas dois cmodos, o que o
primeiro plano retrata e um outro, onde h uma espcie de fogo, assemelhando-se a
uma cozinha; a tcnica construtiva do pau-a-pique; o fato da casa ter apenas um andar
com um baixo p direito; a presena das galinhas em seu interior, que indica certa
rusticidade da moradia.
Debret ainda afirmou que a nica escrava era responsvel pelo sustento da
famlia, pois era ela quem saa s ruas em busca de trabalho, e por isso mesmo, quem
trazia dinheiro para suas senhoras, no especificando quais atividades a cativa
realizava234. Entretanto, mesmo retratando a residncia de uma famlia pobre, onde,
aparentemente, as senhoras e a escrava dividiam o mesmo espao, o francs deixou
233
234
89
claro, por meio da postura e da posio das personagens, que estava mostrando uma
relao de poder independente da condio econmica na qual se inseria.
O exame dessa cena indica como a complexidade dos arranjos escravos no se
deteve s moradias construdas distantes do olhar senhorial. Os cativos domsticos e de
ganho que habitavam a mesma residncia que seus senhores tambm tiveram que se
"arranjar" de diversas formas, quer fosse nos pores e stos reservados para sua estada,
quer nas esteiras colocadas sob o cho da cozinha, ou ento nos corredores das casas
menos abastadas. Toda casa que tivesse escravo, tambm teria um espao para ele
dormir, o que indica que o proprietrio era o responsvel por esse aspecto da vida
escrava. Ser que todos os cativos aceitaram viver nos espaos oferecidos por seus
donos? Esta uma outra histria.
90
O caso que abriu o captulo anterior, encontrado nos termos de bem viver
produzidos pela Intendncia de Polcia, um interessante exemplo dos muitos arranjos
feitos pelos cativos. Em 1819, Pedro Congo morava com sua esposa, Maria Roza, num
casebre prximo ao centro do Rio235. Aparentemente simples, essa situao demonstra
parte da complexidade da escravido na Corte Imperial. Em primeiro lugar, houve a
confirmao de que escravos moravam longe de seus senhores, e no s: muitas vezes
esse morar sobre si envolvia a possibilidade da reconstruo de laos de afeto e
identidade, assim como o uso de diferentes materiais e tcnicas de construo. A
passagem tambm apresenta situaes nas quais os escravos dividiam seus espaos
autnomos de morada com libertos. Por fim, o caso de Pedro Congo e sua esposa
ressalta o carter econmico da escravido: provvel que a escolha da localizao do
casebre do casal tenha sido feita em funo do local de trabalho de ambos que, assim
como boa parte dos escravos e forros que saam ao ganho, exerciam sua atividades nas
freguesias urbanas.
To interessante como o caso narrado foi o porqu de seu registro. A situao
descrita acima no foi documentada por uma queixa do proprietrio de Pedro Congo,
exigindo que seu escravo retornasse para casa senhorial, mas sim por uma reclamao
da preta forra Joaquinna, vizinha do casal que, atravs da Secretaria de Intendncia da
Polcia, requisitou boa vizinhana com Maria Roza. Ou seja, esse caso foi registrado a
fim de remediar uma situao de conflito entre vizinhos, e no para prevenir possveis
aes escravas. Tal constatao leva a crer que o senhor de Pedro Congo, que em
nenhum momento foi citado, estivesse de comum acordo a respeito do local de morada
de seu cativo.
Reclamaes como a de Joaquinna foram constantes durante as primeiras
dcadas do sculo XIX, e coube Intendncia Geral de Polcia cuidar desses assuntos
por meio dos termos de bem viver, criados em 1808 por Paulo Fernandes Vianna.
Partindo das queixas de pessoas que, por alguma razo, se sentiam desrespeitadas, os
termos de bem viver seguiam sempre um mesmo procedimento com o objetivo de
acordar as partes em disputa, chegando inclusive a estipular multas e punies. Segundo
Marcos de Freitas Reis, os termos de bem viver formalizavam compromissos
assumidos por uma, duas ou mais partes perante o intendente ou um seu representante.
235
91
236
REIS, Marcos de Freitas. A Intendncia Geral de Polcia da Corte e do Estado do Brasil: os Termos
de Bem Viver e a ao de Paulo Fernandes Viana. Sociedade Brasileira de Pesquisa Histrica (SBPH).
Anais da II Reunio. So Paulo, 1983.
237
Durante o exame dessa documentao foram encontrados mais de sessenta termos relacionados
escravido. No volume 1 do cdice 410 encontram-se apenas termos de bem viver (datados desde 1808),
mas nenhum deles fez meno direta ao escravismo. J o segundo volume do cdice, cuja data inicial
1819, mostrou a crescente presena da escravido no cotidiano da corte imperial.
238
A N. Termos de Bem viver. Coleo Policia da Corte. Cdice 410 vol.2 p. 16. 14/12/1819.
239
Idem, p. 102. 05/10/1820.
92
240
93
245
acolhia a escrava de Jos Meirelles em sua casa sem o consentimento dele. Interessante
notar que, diferentemente do que se poderia supor, a pessoa que recebeu a escrava em
sua casa no era outro cativo ou um liberto, mas sim uma holandesa, que certamente
no viveu a experincia do cativeiro.
As razes que levaram Carolina Boch a acobertar no se pode saber ao certo
por quanto tempo ou quantas vezes a escrava de Meirelles so difceis de estabelecer,
visto que, aparentemente, a nica condio que compartilhavam era a de mulheres
numa sociedade escravista, e mesmo assim uma era cativa e a outra livre. Talvez, a
holandesa Carolina tenha simplesmente se afeioada escrava, e consentiu que ela
desfrutasse de alguns momentos de privacidade ou conforto em sua casa. Ou ento, a
cativa realizava algum servio para D. Carolina a fim de juntar um pequeno peclio
para comprar sua liberdade situao que no podia chegar ao conhecimento do
proprietrio da escrava, pois provavelmente ele exigiria parte do dinheiro para si, o que
justificaria suas fugas. Por fim, Carolina Boch poderia se compadecer dos maus tratos
sofridos pela cativa, permitindo que em momentos mais graves, ela se refugiasse em sua
casa. No possvel saber quais das conjecturas estiveram mais prximas da realidade.
De todo modo, a situao serve como alerta a respeito dos variados significados que o
morar poderia ter para os escravos urbanos e como essa prtica tambm envolveu outros
segmentos da sociedade.
Por fim,
Aos trs dias de ms de outubro de mil oitocentos e vinte e
trs anos a Secretaria da Intendncia foram vindos dordem do
Intendente Estevo Ribeiro de Rezende, Jacinto Pinto Gomes e
Domingo Coutinho Pereira, e pelo dito Intendente lhes foi
determinado, que assinassem o termo de no darem coito a
negros fugidos, e nem terem comrcio com eles, e menos daremlhes entrada nas suas casas de molhados, pena no caso de
obrarem o contrrio de trs meses de priso, e de nunca mais
poderem abrir as ditas casas. O que sendo por eles ouvido assim
245
MORAIS E SILVA, A. Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Confluncia,
1922 (1a. edio 1789), p. 273.
94
como
arranjo
escravo
de
moradia,
tendo
em
vista
seu
carter
246
95
247
Importante salientar que, na renovao historiogrfica do incio da dcada de 1980, outros trabalhos
analisaram a escravido por meio de informaes contidas na documentao policial. Como exemplo, o
estudo de Maria Helena P.T. Crime e Escravido. Trabalho, Luta, Resistncia nas Lavouras Paulistas
1830-1888. So Paulo, Ed. Brasiliense, 1987 e o de WISSENBACH, Maria Cristina Cortez. Sonhos
Escravos Vivncia Ladinas Escravos e forros em So Paulo (1850 1880). So Paulo, Editora Hucitec,
1998.
96
o que possibilitou que ela formulasse padres de criminalidade escrava para o perodo
joanino.
No entanto, mesmo que pouco detalhados, os casos de prises encontrados neste
cdice tambm permitem um exame mais qualitativo. E justamente nesse tipo de anlise
reside parte das nuances entre autonomia e fuga escrava delineadas nos termos de bem
viver. Exemplo disso foi a priso de Joo Crioulo, escravo de Antonio Jos que foi
preso e depois solto,
por estar refugiado em um quarto do corredor de Antonio
Nascimento Pinto e na sada furtar um lenol de um seu
escravo248.
No h como garantir que a priso de Joo tenha sido resultado de sua fuga, ou
ento do furto que cometeu ao sair da propriedade de Antonio Nascimento. Contudo, o
fato dele ter sido solto logo em seguida, aponta a segunda opo como a mais plausvel.
Em primeiro lugar, porque boa parte dos cativos fugidos detidos pela Polcia deveria
ser encaminhada para algumas das prises da cidade, na qual seu senhor seria acionado,
processo relativamente demorado. Alm disso, j foi dito que o padro de detenes
feitas por fuga encontrado no cdice 403 oferece poucas informaes; normalmente o
que constava nesses casos era o nome do escravo, o do seu senhor (nem sempre) e a
frase: por estar fugido.
Nesse contexto, cabvel examinar o caso de Joo Crioulo sob duas ticas. Por
um lado, ele pode ter sido mais um dos cativos que no habitava a casa senhorial,
residindo, no se sabe ao acerto por quanto tempo, num quarto na casa de Antonio
Pinto , o que caracterizaria a situao como mais uma forma do cativo morar sobre si.
Todavia, existe a possibilidade de Antonio Nascimento (dono do quarto) ser o locatrio
do escravo, prtica comum nas sociedades escravistas, no obstante a documentao
identificar seu real proprietrio, Antonio Jos quem, em ltima instncia deveria
responder pelos atos de Joo. Nesta situao, Joo Crioulo estaria na residncia de seu
locatrio no momento da priso.
De todo modo fica a dvida. E essa incerteza aumenta mais com episdios como
o de Joo Cassange que, um ano antes, foi preso por ser, apenas, encontrado dentro de
uma casa249. Obviamente, no se tratava da residncia de Francisco dos Passos, seu
senhor, e tambm no houve meno alguma de fuga. Por que razo tal escravo fora
248
249
97
preso? Ser que ele habitava o local onde foi encontrado sem o aval de seu
proprietrio? Ou ter sido essa mais uma das muitas casas de quilombos encontradas no
Rio de Janeiro nas primeiras dcadas do sculo XIX?
Novamente, a prpria lgica da documentao policial sugere a prtica do morar
sobre si, sem a anuncia senhorial, pois no havia porque ocultar o fato dessa ser mais
uma casa de quilombo, caso se tratasse de uma250. Trs meses antes da priso de Joo
Cassange, o cativo Francisco Benguela foi detido por ser encontrado numa dessas
casas251. Situaes semelhantes aparecem no decorrer do cdice. Em agosto de 1813,
cinco cativos (todos congos) e nove forros, que no tiveram sua nacionalidade
especificada, foram presos por se acharem nesses locais252. Trs anos depois, dois
pretos forros foram detidos pelo mesmo motivo. Em 1818, os escravos Bento Benguela
e Salvador Crioulo tambm foram encontrados em uma casa de quilombo na Rua do
Sabo253.
A historiografia que se debruou sobre a escravido urbana ainda no sabe, ao
certo, o que foram essas casas de quilombo. Tanto Flvio Gomes, como Carlos Eugnio
Soares, que trabalharam mais a fundo tal questo, sugerem que nessas casas eram
encontrados muitos escravo fugidos alm de libertos africanos e crioulos, sendo uma
espcie de precursora dos zungs que pipocaram na cidade a partir da dcada de
1830254. Eram espaos, muitas vezes localizados nas zonas centrais do Rio de Janeiro,
onde se achavam descendentes (diretos ou no) da dispora africana. Entretanto, dentre
a documentao analisada, no houve especificao de que os cativos detidos por
estarem nessas casas estivessem em fuga. Tais locais tambm podiam servir como
moradia para escravos que, com ou sem a autorizao senhorial, utilizavam-no para
refazerem seus laos de afeto e solidariedade.
Certamente, as casas de quilombo eram mais do que ajuntamentos ou arranjos
escravos de moradia; outrossim, a documentao no seria to especfica nas 38 prises
feitas entre 1810 e 1821255. Talvez, o fato dos cativos l encontrados serem fugitivos
250
Importante lembrar que Leila Algranti classifica a existncia das casas de quilombos como mais um do
tipo de crime na Corte Joanina. Segundo a autora, 38 pessoas foram detidas por se encontrarem em tais
casas e 3 por serem dono delas. Cf. ALGRANTI, L. Op. Cit., pp. 209-210.
251
AN. Cdice 403, vol. 1, (08/07/1812).
252
AN. Cdice 403, vol. 1, (11/08/1813) fls. 151-152.
253
AN. Cdice 403, vol. 2, (03/03/1818).
254
Cf. FARIAS, J.B. SOARES, E.C.L. GOMES, F.S. No Labirinto das Naes Africanos e identidades
no Rio de Janeiro, sculo XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005, pp. 88-89. SOARES, Carlos
Eugnio Lbano. Zung: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro, Arquivo Pblico do Rio de Janeiro,
1998, pp. 57-59.
255
Cf. ALGRANTI, L. Op. Cit., p. 209.
98
tornasse essas casas alvos para as autoridades policiais, mas essa hiptese no permite
entender porque, em 1817, foram presos apenas dois homens forros. O que havia de
especfico nesses locais foge do conhecimento historiogrfico. Por hora, o que se pode
afirmar que as pessoas l encontradas tinham ligaes estreitas com o cativeiro e que
faziam mais do que batuques e danas para relembrar o passado africano. Caso
contrrio, a priso de Ricardo de Andrade Costa deveria ser uma das trs detenes
feitas sob a suspeita de se tratar de um dono das casas de quilombo.
Em 1818, o pardo forro Ricardo de Andrade e Costa foi detido por
Admitir em sua casa (no distrito de Macaco) ajuntamento de
negros para batuques, incentivando-os assim para se desviarem
do servio de seus senhores256.
Esse episdio versa sobre as desordens mais corriqueiras com as quais as
autoridades de uma cidade escravista se deparavam. Eram escravos aproveitando da
mobilidade adquirida nos centros urbanos para usufrurem de momentos de prazer. No
se trata de um forro acoitando, por solidariedade ou interesse, cativos de outros
senhores, mas sim uma situao freqente e caracterstica do Rio de Janeiro
oitocentista, numa espcie simples de vlvula de escape, que, de todo modo, ia contra
os princpios de uma Corte civilizada.
Laos de identidades tnicas, solidariedade entre companheiros de cativeiro,
relaes amorosas e familiares, proximidade com os locais de trabalho e, at mesmo,
interesses econmicos possibilitaram a instaurao de uma prtica de morar que esteve
fundamentada na resistncia individual, porm no solitria, dos escravos do Rio de
Janeiro. Justamente por isso, a linha que separava as fugas breves e temporrias do
morar sobre si era extremamente tnue.
256
99
Vale dizer que o no cumprimento de acordos feitos com seus senhores no foi a nica nem a principal
razo da fuga escrava. A violncia, caracterstica de toda sociedade escravista, a concorrncia por
trabalho nas ruas cariocas e a luta pela liberdade foram outros tantos motivos que levaram escravos de
todo o Brasil a fugir.
258
Apesar da inexistncia de um cdigo especfico para a escravido, no perodo colonial inmeras leis
referentes aos escravos foram produzidas. Ver: LARA, Silvia Hunold. Legislao sobre escravos
africanos na Amrica portuguesa. Nuevas Aportaciones a la Historia Jurdica de Iberoamerica. Madri,
Fundacin Histrica Tavera-Digibis-Fundacin Hernando de Laramendi, 2000 (Cd-Rom).
100
261
259
Importante lembrar que Debret foi um dos viajantes que vivenciou a independncia do Brasil, fato que
no parece ter mudado suas observaes sobre os diferentes aspectos da escravido urbana que analisou.
260
Durante muitos anos, a historiografia brasileira acreditou que os eventos de 1822 no foram
significativos na Histria do Brasil, haja vista o incremento do uso da mo-de-obra escrava e a
manuteno de uma economia baseada na exportao de gneros tropicais. Cf. PRADO Jr., Caio.
Formao do Brasil Contemporneo, 24. reimpresso. So Paulo, Editora Brasiliense, 1996. Um
trabalho recente que traz um timo balano dos estudos historiogrficos sobre a independncia do Brasil
: COSTA, Wilma Peres. A Independncia na Historiografia Brasileira. In: JANCS, I. (Org.).
Independncia: Histria e Historiografia. So Paulo, Editora Hucitec e FAPESP, 2005, pp. 53- 118.
261
JANCS, I. PIMENTA, J.P.G. Peas de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergncia
da identidade nacional brasileira). In: MOTTA, C.G. (org.). Viagem Incompleta. A experincia
brasileira (1500-2000). Formao:Histria. So Paulo, Ed. SENAC, 2000, pp. 127-176.
101
diferentes relaes com a metrpole, traaram caminhos diversos e, por isso, tinham
expectativas prprias do Estado que desejavam262. Parafraseando Jancs e Pimenta, a
escravido foi uma espcie de cimento para a juno das peas desse mosaico que deu
formao do Brasil seu carter singular.
Diferentemente do que ocorreu no restante do continente americano, o Brasil
transformou-se em uma monarquia parlamentar fortemente assentada na instituio
escravista. Para alm das diferenas internas existentes desde a poca colonial, o incio
do sculo XIX foi decisivo para aquilo que, no final da dcada de 1840, seria de fato o
Imprio do Brasil. Em meio s convulses da Era das Revolues, em 1808, a Corte
portuguesa rumou s pressas para sua principal colnia com o objetivo de assegurar sua
soberania nacional ameaada pela invaso napolenica. Tal atitude acarretou numa srie
de mudanas, principalmente na cidade do Rio de Janeiro que, como foi explicitado
nesse captulo, tornou-se a nova sede de poder do Imprio lusitano.
Segundo Maria Odila Leite da Silva Dias, a transferncia da Corte lusa trouxe
no s novos capitais - com a abertura dos portos para as naes aliadas e a migrao de
significativo nmero de comerciantes portugueses e europeus -, como o enraizamento
do Estado portugus associado aos interesses das camadas dirigentes da regio centrosul do Brasil. Tomando como base a antiga prtica da participao de burocratas
nascidos no Brasil na administrao pblica portuguesa, Dom Rodrigo de Souza
Coutinho e o Conde da Bragana foram to eficientes em transformar o Rio em uma
Lisboa minituarizada, que, para muitas capitanias, foi praticamente a mesma coisa tratar
com os dois centros de poder263. Tal processo, chamado pela autora de interiorizao da
metrpole, resultou na centralidade poltica da cidade do Rio de Janeiro, que acabou
exercendo dois papeis contraditrios: ao mesmo tempo em que era a cabea da
Monarquia, foi responsvel pela negao do Imprio luso264. A independncia ocorreu,
justamente, quando os interesses da elite ilustrada brasileira entraram em descompasso
com a poltica pregada pelos portugueses, principalmente diante a ameaa de um
possvel retorno da Corte e de todo o aparelho estatal para o velho continente, o que, em
ltima instncia, representaria a volta prticas polticas do Antigo Regime.
262
102
265
103
foi decisiva nas discusses sobre a instituio268. A despeito da forte influncia da Corte
de Cdis (1811-1812), no caso de Lisboa a escravido foi tema debatido. Aps o
momento inicial de expectativa em relao ao retorno de D. Joo VI e a ofensiva para
eleger os deputados na Amrica (primeiro semestre de 1821), pernambucanos e depois
baianos chegaram a Lisboa, em 1821, reivindicando maior autonomia das provncias.
Segundo Berbel e Marquese, poucas semanas antes, a escravido havia sido discutida
pelo congresso. Entretanto, foi apenas a partir de fevereiro de 1822, quando D. Pedro I
tinha decidido ficar no Brasil - revelia do desejo de muitos polticos de Portugal - que
o debate sobre o cativeiro na Amrica foi retomado. Nessa data, os deputados paulistas
recm chegados em Portugal traziam uma plataforma que previa a defesa da unidade do
Reino do Brasil ratificando a presena do prncipe Regente nesse lado do Atlntico269.
Assim como ocorrido em Cdis (1810-1814), nas Cortes portuguesas, os
parlamentares dos dois lados do oceano adotaram a estratgia de silenciar o debate
sobre escravido e o trfico negreiro na constituio, ainda que a manuteno de ambos
fosse ponto passivo270. Berbel e Marquese salientam que propostas como de Borges de
Barros, que previa a substituio gradual da mo-de-obra cativa por imigrantes
europeus, no foram discutidas uma nica vez271. Contudo, esse silncio no
permaneceu quando o assunto foi o procedimento eleitoral. Retomando os artigos 22 e
29 da Constituio espanhola, o deputado portugus Miranda props que libertos e seus
descendentes fossem proibidos de votar272. A partir de ento, as singularidades que
caracterizaram as diversas ptrias existentes no Brasil se submeteram defesa de um
interesse comum. Deputados baianos, pernambucanos, fluminenses, paraenses e
paulistas defenderam, em unssono, a concesso do direito cidadania para forros e seus
filhos, defesa que foi acatada pelos demais deputados. A proximidade desses
parlamentares ficou maior quando, em maio de 1822, as Cortes decidiram enviar tropas
para a Bahia com o intuito de prevenir uma reedio da rebelio de So Domingos, alm
de combater do ideal de independncia que se disseminava. Conhecedores de suas
ptrias e de seu pas, os deputados brasileiros contra-argumentaram que a demografia
268
Cf. BERBEL, M.R. MARQUESE, R.B. A escravido nas experincias constitucionais ibricas 18101824.. Texto apresentado no Seminrio Internacional Brasil: de um Imprio a outro (1750-1850). So
Paulo, setembro de 2005. Artigo disponvel no site: www.estadonacional.usp.br
269
Idem, p. 24.
270
Para entender o que foi a experincia constitucional de Cdis ver: BERBEL & MARQUESE,. Op. Cit.,
pp. 5-19.
271
Idem, p. 26.
272
Idem, p. 27.
104
275
. Ainda que
273
105
Constituio do Estado nacional brasileiro se assentava por meio de um pacto social que
reiterava as desigualdades existentes no pas que se forjava276.
Uma vez mais, o silncio em relao escravido e ao trfico negreiro foi
estrategicamente empregado no texto constitucional, caracterizando o que Alencastro
chamou de compromisso para o futuro, onde o Imprio do Brasil retoma e
reconstri a escravido no quadro do direito moderno, dentro de um pas independente,
projetando-a sobre a contemporaneidade 277.
A reafirmao da escravido e do comrcio transatlntico de escravos permitiu
que a Constituio brasileira distinguisse aqueles que faziam parte do pacto,
diferenciando direitos civis dos direitos polticos278. Eram considerados cidados
brasileiros todos os homens livres e os escravos nascidos no Brasil que obtivessem a
alforria. No entanto, os cidados passveis de serem eleitos deveriam fazer parte do
Corte censitrio definido, alm de terem nascido ingnuos. Aos libertos brasileiros
estava afianado o direito de votarem, contanto que obedecessem ao critrio de renda279.
Enquanto vigorou o trfico negreiro, a possibilidade dos libertos nascidos no
Brasil tornarem-se cidados, mesmo no gozando plenamente dos direitos polticos,
aliado ao significativo nmero de alforrias do pas, foram estratagemas eficazes na
manuteno da instituio escravista. Essa ttica potencializou as aes individuais dos
cativos como forma mais eficaz na luta pela obteno da liberdade, em detrimento de
possveis levantes em massa280. Dessa feita, no s o provimento de mo-de-obra
continuava garantido, pois os escravos que adquirissem sua liberdade seriam
substitudos por africanos novos, como o receio de sublevaes cativas que fizeram
parte do horizonte das discusses liberais - ficava mais distante.
Embora no incorporados na Constituio, nas letras da lei os libertos africanos
viam, para seus filhos, o direito cidadania em aberto. A aceitao direta e indireta do
legado escravista demonstra quo inclusiva era a Constituio do Brasil. Mais do que
276
Idem, p.17.
ALENCASTRO. L.F. A Vida Privada e a Ordem Privada no Imprio. In: ALENCASTRO, L.F. (org).
Histria da Vida Privada no Brasil. Imprio: a corte e a modernidade nacional. Vol. 2. So Paulo, Cia.
das Letras, 2004, p.17.
278
Berbel e Marquese lembram que tal diferenciao foi elaborada na Assemblia Constituinte de 1823,
sendo reutilizada no ano seguinte. Cf. BERBEL & MARQUESE. Op. Cit., pp. 30-32.
279
Idem, Idibem.
280
Importante lembrar que em sociedades escravistas como a Amrica Portuguesa e o Brasil imperial, a
liberdade se expressava, muitas vezes, no s pela compra ou a obteno da alforria, mas tambm ao
tornar-se senhor de escravos. E isso estava claro para os homens que pensaram a formao do Estado
nacional brasileiro. No Brasil, a alforria constituiu-se como uma espcie de vlvula de escape do sistema
escravista. Cf. FLORENTINO, M. Op. Cit., 2005; PATTERSON, O. Op. Cit., 1982; MARQUESE, R.B.
Op. Cit., 2006.
277
106
isso. Sugere como que heranas de um passado colonial escravista foram reelaboradas
na construo de um novo pas. A equao entre grande nmero de cativos, volumoso
trfico de escravos africanos e alto ndice de alforrias foram sancionadas em 1824,
assegurando a perpetuao de prticas que haviam viabilizado a estabilidade do sistema
escravista na Amrica portuguesa.
Sendo assim, o governo do escravo continuava a ser responsabilidade do
proprietrio, que agora tinha esse direito garantido por meio da defesa constitucional da
propriedade (artigo 179). Ao analisar a ordem nacional e o governo dos escravos,
Marquese afirmou que os senhores faziam questo de exercer sua soberania domstica,
ficando a cargo do Estado auxiliar no controle dos cativos no espao externo s casas281.
No que tange escravido urbana, esse espao externo era deveras amplo e
diversificado. Justamente por isso, nesses locais, o governo dos escravos era dividido
entre proprietrios e Estado, cabendo ao ltimo entrar em ao quando o controle
senhorial no fosse suficiente para garantir o bem pblico. No entanto, os dados
trabalhados at o presente momento demonstram que, grosso modo, questes
relacionadas moradia escrava mantiveram-se sob a alada do proprietrio, pois era ele
o responsvel direto pelos elementos bsicos da vida escrava mesmo que tal
responsabilidade significasse certo desleixo, ou se apresentasse como boa oportunidade
para o cativo exercer sua autonomia.
Se o Estado brasileiro optou em manter muitas leis e prticas que regiam o
sistema escravista como um todo, no caso urbano no foi diferente. Agora como sede
do Imprio do Brasil, o Rio de Janeiro manteve sua dependncia em relao ao trabalho
escravo na execuo das mais variadas tarefas. A malha urbana da cidade continuava se
desenvolvendo desde 1808, levando criao, na dcada de 1820, da freguesia de
Sacramento. O volume do trfico, que j tinha aumentado com a transferncia da Corte
joanina, cresceu ainda mais: em 1822 cerca de 23.280 cativos desembarcaram no porto
carioca, ultrapassando o nmero de 47.000 em 1826282.
Sob a gide de um Estado independente que se formava, a polcia passou a
controlar com maior assiduidade a movimentao escrava nas ruas do Rio. Feito
Intendente em janeiro de 1825, Francisco Alberto Teixeira Arago decretou diversas
281
Nesse artigo, o autor tambm demonstrou, por meio do exame de textos prescritivos, que o Estado
deveria ficar isento das responsabilidades sobre os cativos, a no ser que a propriedade e a nao fossem
ameaadas. Cf. MARQUESE, Rafael de Bivar. Governo dos escravos e ordem nacional: Brasil e Estados
Unidos, 1820-1860. In: JANCS, Istvn (org.). Brasil: Formao do Estado e da Nao. So Paulo,
Hucitec-Fapesp-Ed. Uniju, 2003, pp. 258-260.
282
Cf. FLORENTINO, M. Op. Cit., 1996, p. 51.
107
normas que pretendiam delimitar o horrio no qual os cativos poderiam circular pela
cidade, alm de proibir a entrada deles em armazns, tavernas e botequins. Tambm foi
preocupao da Intendncia de Polcia assegurar que interesses pessoais no
interferissem na manuteno da ordem social, diminuindo com isso a violncia
arbitrria que caracterizou a priso de escravos durante o perodo joanino283.
O terceiro volume do cdice 403 onde se encontram os registros das prises
feitas entre 1825-1826 - um exemplo desse duplo movimento das autoridades
policiais. Junto com o menor nmero de ocorrncia de escravos detidos e de certa
reorganizao no registro dos locais e datas das detenes284, tambm se observa a
manuteno do mesmo padro dos delitos cometidos por cativos no perodo joanino.
Brigas nas ruas, vadiagens, capoeiras, pequenos furtos e, sobretudo, fugas continuaram
a ser os principais motivos para a recluso escrava285. Por isso, as situaes referentes
prtica do morar sobre si continuam difceis de serem encontradas e analisadas. As
condies materiais da vida escrava permanenceram circunscritas esfera privada das
relaes travadas entre senhores e cativos.
Mas existiu uma relevante preocupao estatal em melhor conhecer os sditos
do Imprio brasileiro. Nesses mesmo dois anos, encontram-se no cdice 410 os termos
de abonao ou termos de fiana, igualmente produzidos pela polcia286.Assim como os
termos de bem viver, o poder pblico permitia, pela letra do documento, que senhores
alugassem ou emprestassem seus cativos para terceiros, prtica comum em toda a
sociedade escravista brasileira tanto no campo, como na cidade. Ou seja, tratava-se
de um acordo firmado entre dois homens livres (ou libertos) perante a Intendncia, no
qual o proprietrio permitia que outrem usufrusse o trabalho de seu escravo,
provavelmente em troca de algum tipo de remunerao.
Em primeiro de fevereiro de 1825 assinou:
Termo de fiana (...) Antonio Jos Moreira morador na Rua do
Sacramento, em que abona Manuel Joaquim Martim para seu
escravo mascatear na Vila de Marica.287
283
108
Dois dias depois, Jos Manoel Ferreiro Salgado, morador da Rua da Quitanda,
abonou Francisco Igncio Sebastio da Silva, para seus escravos mascatearem pela
cidade, freguesia de Inhama (que na poca fazia parte da zona rural da provncia do
Rio de Janeiro), e terra firme at o municpio de Itabora288.
Esses dois termos exemplificam que o aluguel de escravos que mascateavam
ou seja, faziam comrcio era relativamente simples: bastava o nome e o endereo do
senhor, o nome do locatrio e os locais em que os escravos iriam trabalhar. A ausncia
de meno a qualquer caracterstica do escravo (nome, idade, possveis sinais) reafirma
que se tratava de um acordo entre dois cidados sacramentado pelo poder pblico289.
Interessante notar que esses termos no apenas mostram as nuances do
escravismo urbano (escravos que trabalhavam no comrcio para senhores que no eram
seus proprietrios), como tambm as possveis complexidades dos arranjos escravos de
moradia. Explicando: em todos os casos de abonao lidos, o senhor permitiu que seu
escravo vivesse com outra pessoa (um proprietrio em potencial), pois, provavelmente,
iria receber alguma compensao em troca. Dessa forma, o escravo saa da casa de seu
proprietrio para viver com a pessoa que recebeu a abonao.
A maior parte dos termos de abonao se remete ao mascate cuja atividade
consiste na venda ambulante de produtos. Isso sugere que o cativo ficaria sem pouso
certo, dormindo aqui e ali nas vilas por onde passasse. E o mais intrigante que essa
instabilidade do morar escravo no aparecia como um problema para o cativo, para o
abonado, para o senhor, e muito menos para a Intendncia Geral de Polcia, que podia
entender essa prtica como excelente oportunidade para a fuga escrava.
A leitura realizada a respeito dos termos de bem viver tambm vale para a
anlise dos termos de abonao: o Estado - representado pela Intendncia e seus
funcionrios - no se preocupou em controlar, at meados da dcada de 1820, os locais
de moradia dos cativos, pois essa funo cabia ao seu senhor o nico responsvel real
pelo escravo, tanto que era seu nome e endereo que constavam nos termos. Seu papel
era apenas garantir o controle, o que, nesse caso, ocorria por meio da prpria redao
dos termos de abonao.
288
Idem, p. 275.
No foi encontrada nenhuma documentao complementar que esclarecesse se os termos eram feitos
apenas pela vontade dos senhores em garantir um negcio, ou se havia algum tipo de imposio do
Estado. Contudo, o estudo de outras fontes documentais, como as posturas e pedidos de licena para
escravos ao ganho, sugere que a primeira hiptese mais plausvel, j que o proprietrio do escravo era
quem mais corria risco nessa negociata.
289
109
291
290
Cf. FLORY. Thomas. El Juez de Paz y el Jurado em el Brasil Imperial, 1808-1871. Control social y
estabilidad poltica em el nuevo Estado. Mxico, Fundo de Cultura Econmica, 1986, p. 86.
291
Idem, pp. 95-97.
110
111
112
Importante notar que a palavra senhor apareceu em trs momentos, uma a menos que escravo.
Cf. MATTOS, Op. Cit. HOLLOWAY, Op. Cit. GOUVIA, M.F. Op. Cit.
300
AGCRJ, Posturas Municipais de 1830.
301
Idem.
299
113
114
CAPTULO III
Novas Polticas e Mesmas Prticas do Morar Escravo1831 1850
115
116
para
reconhecimento
da
independncia
do
pas,
aumentava
Reis Negros no Brasil Escravista. Histria da Festa de Coroao de rei Congo. Belo Horizonte, Editora
UFMG, 2002.
307
Cf. RODRIGUES, J. Op. Cit., pp. 101-103.
117
com seus cativos, mesmo que para isso fosse necessrio aumentar ainda mais a
violncia inerente s relaes escravistas.
No que tange moradia escrava no Rio de Janeiro, a permisso velada para o
cativo morar sobre si sofreria grande diminuio, fato que implicaria o aumento de fuga
e crimes escravos, e no uso da casa senhorial como principal, quando no o nico,
espao de moradia. Uma coisa era um proprietrio correr o risco de permitir que seu
cativo morasse sobre si em uma sociedade na qual o valor do escravo era baixo, porque
era um bem facilmente reposto. Outra, bem diferente, seria a manuteno de tal prtica
numa sociedade que no mais contaria com o fomento constante de novos escravos.
E mais, o provvel aumento de preo do cativo poderia resultar em uma
explorao ainda maior dessa mo-de-obra sem a contrapartida da possibilidade da
compra ou concesso da alforria, levando em considerao a sua valorizao. Mesmo
que a liberdade tenha sido adquirida por um nmero relativamente pequeno de
escravos308, o vislumbre dela fez parte do imaginrio de todo e qualquer cativo,
especialmente daqueles que trabalhavam e moravam nos grandes centros urbanos. Dito
de outra forma, o fim do trfico colocaria em risco a permanncia da resistncia escrava
mais difundida no Rio, a resistncia individual, e, ao fazer isso, ampliaria a
probabilidade de articulaes escravas na luta contra a instituio.
Como se sabe, no entanto, nada disso se verificou at 1850. Conjecturas no tm
espao na histria. A partir de 1835, a disputa entre os dois principais projetos polticos
para a formao do Estado nacional brasileiro acabou resultando na vitria dos
parlamentares conservadores, tambm conhecidos como saquaremas309. Dentre as
inmeras medidas adotadas por esses polticos, que em linhas gerias pretendiam criar
um Estado forte, centralizado, escravista e que beneficiasse os grandes produtores
rurais, no ano de 1836 o trfico negreiro foi reaberto sistemicamente na ilegalidade,
recebendo, a partir do ano seguinte, o aval do parlamento310. Mais uma vez, as aes
308
Cf. KARASCH. Mary. A Vida Escrava no Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo, Cia. Das Letras,
2000, captulo 11. Trabalhos mais recentes tm explorado com maior cuidado a questo das alforrias no
Rio de Janeiro, inclusive inferindo alguns padres nessa prtica deveras difundida na sociedade brasileira
escravista. Cf. FLORENTINO. M. (org.) Trfico, Cativeiro e Liberdade. Rio de Janeiro, sculos XVIIXIX. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2005, parte 3, pp. 285-417.
309
Cf. MATTOS, Ilmar R. O Tempo Saquarema: a formao do Estado Imperial. So Paulo, Ed.
HUCITEC, 1990.
310
Cf. PARRON, Tmis P. Op. Cit., pp. 62-66. Uma das idias centrais trabalhadas por Tmis Parron
reside na diferenciao que ele estabeleceu entre as duas fases da ilegalidade do trfico. A primeira,
chamada fase residual, compreende os anos de 1831 a 1835, quando o contrabando teve nmeros baixos e
no contou com a anuncia do parlamento. J na fase sistmica, 1836 a 1850, a ilegalidade desse
118
comrcio contou com o suporte de parlamentares engajados no que ele chamou de uma poltica da
escravido.
311
Segundo Wilma Costa, essa viragem na construo do Estado nacional brasileiro teve um dos seus
pilares, a escravido, operando na zona de ilegalidade. COSTA, Wilma Peres. O Imprio do Brasil:
dimenses de um enigma In: www.almanack.usp.br, 2005, p. 32.
312
Cf. COSTA, Emlia Viotti da. Introduo ao estudo da Emancipao poltica do Brasil. In: Da
Monarquia Repblica. Momentos Decisivos. (5. Edio). So Paulo. Ed. Brasiliense, 1987, pp. 17-54.
119
313
Segundo Holloway, havia uma forte preocupao do Ministro da Justia, Diogo Feij, em fortalecer os
aparatos policiais, sobretudo no Rio de Janeiro. As prises realizadas pela polcia sofreram significativo
aumento no segundo semestre de 1831, quando, num intervalo de 18 dias 244 detenes chegaram a ser
feitas, sendo 52 de escravos. Cf. HOLLOWAY, T. Polcia no Rio de Janeiro. Represso e resistncia
numa cidade do sculo XIX. Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas Editora, 1997, pp. 75-86.
314
Idem.
315
CARVALHO, Jos Murilo de. A construo da Ordem - a elite poltica imperial. Teatro de Sombras:
a poltica imperial. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 2003, p. 250.
316
Um exemplo desse tipo de abordagem recente o trabalho: HRNER, Erik. A Guerra entre Pares. A
revoluo liberal em So Paulo, 1838-1844. Dissertao de Mestrado defendida na FFLCH-USP, So
Paulo, 2005.
317
CARVALHO. J.M. Op. Cit., p. 251.
120
Importante ressaltar que os ltimos trs levantes citados tiveram como protagonistas os proprietrios
(de terras e escravos) dessas capitanias. Cf. CARVALHO, J.M. Op. Cit., pp. 252-255.
319
REIS, J.J. "A Greve de 1857". So Paulo, Revista USP. Dossi Brasil e frica ,vol. 18 (jun/jul/agos),
1993, p.9.
320
Idem, p.13.
121
elaborado em 1833); no caso especfico de Salvador, foi aprovada uma postura que
proibia a prtica do escravo morar sobre si321.
A pergunta sobre o porqu do Rio de Janeiro, que tinha mais de trinta por cento
de sua populao na condio cativa, no ter vivido uma experincia parecida com o
movimento Mal j foi, em parte, respondida pelos estudiosos do prprio movimento,
em parte pela historiografia que se debruou sobre o exame da Corte escravista,
mostrando ser um falso problema para os estudos que analisam escravido urbana nessa
cidade322. Por mais eficazes que tivessem sido as formas de resistncia escrava no Rio, a
simples presena fsica do aparato estatal no algo que se possa desconsiderar.
Segundo Mattos, o Rio era o centro irradiador da nao323, uma espcie de
laboratrio das elites dirigentes sobre como governar um imprio de propores
continentais, no qual era absolutamente inadmissvel permitir que a populao escrava
e/ou liberta - independentemente de sua composio tnica - se organizasse de forma
mais sistemtica324. Alm disso, a variedade tnica dos cativos tambm deve ser levada
em conta. Como j foi ressaltado, at meados da dcada de 1830, o Rio de Janeiro tinha
significativo nmero de escravos oriundos da frica Central junto crescente presena
de africanos transportados do oriente do continente, sobretudo da regio de
Moambique. Numa perspectiva simplista, possvel afirmar que mais de quarenta
nacionalidades africanas conviviam nas ruas cariocas, sem contar a significativa
porcentagem de crioulos da cidade, que nessa mesma dcada compunham cerca de 25
por cento da populao cativa325.
preciso frisar que, entre os dois ciclos de revoltas examinados por Murilo de
Carvalho, iniciou-se um processo de centralizao de poder pelos prprios liberais. De
acordo com Thomas Flory, a aprovao do Ato Adicional, em 1834, acabou por
diminuir os poderes locais ao colocar os conselhos municipais nas mos das
assemblias provinciais, a despeito de suas pretenses centralizadoras; era criada uma
espcie de centralizao intermediria, mesmo face perda de poder sofrida pelo Rio de
321
Idem, Ibidem.
Cf. ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente. Estudo sobre a escravido urbana no Rio deJaneiro
1808-1821.Petrpolis, Editora Vozes, 1988. SILVA, Marilene Rosa Nogueira. O Negro na Rua. A nova
face da escravido. So Paulo, HUCITEC, 1988.
323
MATTOS, I. Op. Cit, 1990, captulo 2.
324
Jos Murilo lembrou o que Emlia Viotti j havia apontado sobre a singularidade liberal do Brasil, ao
afirmar que poucas foram as revoltas regenciais que admitiram a participao escrava devido ao receio do
segmento livre da sociedade. Cf. CARVALHO, J.M. Op. Cit., p. 251.
325
At o presente momento, um dos levantamentos mais completos sobre a nacionalidade dos escravos
africanos do Rio de Janeiro est no trabalho de Mary Karasch. Cf. KARASCH, M. Op. Cit., pp. 35-63.
322
122
Janeiro326. Tal medida surtiu efeitos positivos nos levantes ocorridos em Pernambuco,
Alagoas e Cear, mas no teve fora para conter movimentos mais articulados como os
ocorridos a partir de 1835327; a polcia provincial no deu conta do recado. Segundo
Maria Odila da Silva Dias, a decadncia das municipalidades resultou no acirramento
das faces locais que, desesperadas, tiveram que recorrer a um entendimento com o
poder central328.
Provavelmente, as insurreies ocorridas em diversas localidades do pas
deixaram as autoridades da Corte ainda mais apreensivas, principalmente em relao ao
segmento escravo da sociedade. Se possvel afirmar que o Estado foi eficaz no
controle da populao negra (escrava, liberta e nascida livre) do Rio de Janeiro frente
uma possvel rebelio em grande escala, essa mesma massa de "homens de cor" soube
usar de outros artifcios para lutar por seus interesses, trazendo para seu cotidiano
conflitos e negociaes. Apesar da relativa diminuio da populao escrava, decorrente
da proibio do trfico de africanos329, prticas como a capoeira e a fuga continuaram
recorrentes na documentao policial330.
Na semana do dia 29 de outubro de 1833, foi preso do 3o. distrito de Sacramento
o escravo Loureno Congo. A acusao contra o cativo era simples: fora encontrado
escondido em uma casa da freguesia331. Aparentemente, a priso de Loureno invalida
tudo o que foi dito at agora sobre como a prtica do morar sobre si era parte do acordo
privado entre escravos e senhores. No entanto, um pequeno detalhe sobre a deteno do
cativo precisa ser mencionado: ele no foi preso por estar escondido numa casa, mas
sim por estar l sem o consentimento de seu senhor.
Loureno Congo deve ter sido um dos muito escravos que no conseguiu
negociar com seu proprietrio a possibilidade de morar fora da residncia senhorial; ou
ento, teve sua permisso negada como uma espcie de retaliao do proprietrio a
326
FLORY, T. Op. Cit., pp. 244-245. A historiadora Miriam Dolhnikoff desenvolveu uma perspectiva
diferente para o Ato Adicional. Para ela, essa medida representou, de fato, a instalao de uma monarquia
federativa no Imprio, que vigeu at 1889. Cf. DOLNIKOFF, M. O pacto imperial origens do
federalismo no Brasil. So Paulo, Globo, 2005.
327
Idem, p. 250.
328
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Ideologia liberal e construo do Estado. In: A Interiorizao da
Metrpole e outros estudos. So Paulo, Alameda, 2005, p. 145.
329
Segundo os dados trabalhados por Mary Karasch, o nmero total de escravos da cidade em 1829 era de
150 mil, tendo cado para pouco mais de 97 mil na dcada de 1830. A quantidade de escravos s voltaria
a crescer a partir de 1840, com a reabertura sistemtica do trfico. Cf. KARASCH, M. Op. Cit., p. 108.
330
Cf. SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Capoeira Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850). Campinas, Ed. UNICAMP, 2002, captulos 5 e 6. FARIAS, J.B. SOARES, C.E.L. GOMES,
F.S. Op. Cit., captulo 1.
331
AN. Srie Justia IJ6, 1833.
123
algum comportamento seu e recebeu como "castigo" a proibio de escolher seu local
de morada. O fato que o caso acima trata de um escravo que, provavelmente, por no
conseguir obter de seu senhor autorizao para escolher onde iria morar, resolveu se
esconder numa casa em Sacramento, freguesia central da cidade - e por isso mesmo com
alto grau de circulao escrava. Essa situao aponta para uma questo que j havia sido
esboada no captulo anterior, mas que ganhou fora no perodo regencial: a tnue linha
que dividia o morar sobre si das fugas escravas.
Seria ingenuidade acreditar que os cativos no tinham conhecimento dos
conflitos polticos que marcaram a regncia. Alm das informaes que chegavam s
ruas e cozinhas da cidade pelas notcias do jornal, ou pelo popular diz-que-me-disse, o
maior cuidado da polcia em controlar a populao negra se fazia sentir cada dia mais, o
que por sua vez indicava a essas pessoas que o espao de negociao poderia se alargar,
ou ento ser rompido de vez332.
O volume da documentao produzida pela polcia nos primeiros anos do
perodo regencial significativo. Sua volumosa quantidade aponta que, na prtica, a
figura do juiz de paz permitiu maior comunicao entre as autoridades competentes,
ampliando ainda mais a rede criada por Paulo Fernandez Vianna em 1808. No final da
dcada de 1820, tanto os problemas menores solucionados por meio dos termos de
bem viver, como as prises realizadas pela polcia, estavam reunidos na mesma
documentao que chegava s mos da justia. A srie de justia encontrada no Arquivo
Nacional um exemplo de como inspetores de quarteiro, juzes de paz, secretrios e
at mesmo ministros, comunicavam-se a respeito das desordens ocorridas no Rio de
Janeiro e das medidas tomadas a fim de restaurar a ordem. Parte dessa documentao
consiste nos resumos semanais das prises feitas e nos termos de bem viver assinados
em cada distrito das freguesias da cidade.
Conforme visto h pouco, a Intendncia Geral de Polcia deu lugar a Secretaria
de Polcia, perdendo assim, parte significativa de seus poderes no incio da dcada de
1830333. Essa mudana coincidiu com a revalorizao da Cmara Municipal que, no
mesmo perodo, formulou o primeiro Cdigo de Posturas da Corte do Brasil Imprio.
Parece que a dupla funo policial exercida pela Intendncia nos tempos de Fernandes
332
SOARES, Carlos Eugnio Lbano. Capoeira Escrava e outras tradies rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850). Campinas, Ed. Unicamp, 2002.
333
HOLLOWAY, T. Op. Cit., pp. 104-106.
124
Viana havia sido desmembrada, cabendo Cmara executar seu carter administrativo,
e Secretaria e demais rgos policiais o carter judicirio.
A consulta de tais papis indica uma permanncia nos motivos das prises de
escravos que, como no perodo anterior, variavam entre porte de armas, desordens,
capoeiras. A principal novidade eram os escravos presos por infrao de posturas, sem a
especificao das que eram violadas. Houve tambm a forte presena de homens livres e
libertos presos por seduzirem cativos - o que, em alguns casos, tambm significou a
deteno do escravo, vtima da seduo. Assim como evidenciado no cdice 403, a fuga
parece ter sido a principal razo das prises dos cativos documentadas pela srie de
justia. O detalhamento de algumas delas permite reforar ainda mais seu estreitamento
com a prtica do escravo morar sobre si, como no caso de Loureno Congo.
Um caso interessante ocorreu em 1836. Em maio desse ano foi apreendida a
escrava de Jos da Silva Torres, que se encontrava na Rua do Lavradio no. 61, na
companhia de Manoel Bernardes, tambm retido por se fazer passar por senhor da
escrava334. Ser que esse era o local de morada da escrava de Jos da Silva Torres,
levando em conta a possibilidade da cativa ser mais uma das muitas vendedoras
ambulantes que moravam e trabalhavam na regio central da cidade, ou esse seria mais
um caso de um homem livre que acobertava uma escrava fugida? So perguntas
possveis, mas difceis de serem respondidas. Na mesma semana, a preta Catharina
Angola, escrava de D. Rosa, fora recolhida ao Calabouo por estar fugida: onde se
escondera a escrava? Num dos muitos quartos do centro da cidade, ou nos quilombos
que pipocavam nos morros cariocas?
Na freguesia de Santana, em agosto de 1836, Antonio Angola foi encontrado
dentro da casa de Francisco Gomes Magalhes335. O fato da situao ter resultado na
priso do cativo demonstra que Francisco no era o proprietrio de Antonio. O que o
cativo estaria fazendo nessa casa? Existe a possibilidade de uma tentativa de roubo do
escravo; mas no se pode descartar que se tratasse, uma vez mais, de um homem livre
acoitando o escravo de outrem pelas mais variadas razes. O ponto que um escravo foi
achado na residncia de um homem livre que no era seu proprietrio, situao que
parece ter sido costumeira no Rio de Janeiro.
334
335
125
126
proprietrio pediu que D. Igncia (de quem era muito amigo) tratasse da escrava que,
por sua vez, recebeu uma casinha de pau-a-pique coberta de sap para morar. No dia 29
de junho, D. Igncia viu um claro da janela da cozinha de sua casa, mas no conseguiu
acudir a tempo. Segundo a interrogada, no havia ningum na vizinhana que tivesse
motivo para matar a cativa, presumindo assim que a culpa de tal acidente teria sido da
prpria vtima que, todas as noites, mantinha uma vela acesa.
Ter sido verdade a verso contada por D. Igncia? Em princpio, a morte de
Mcia representava uma perda econmica para Joo Vieira e sua esposa. Contudo,
dependendo da enfermidade contrada pela escrava, sua morte poderia significar certo
alvio para seus proprietrios: a historiografia apresentou muitos casos de escravos
enfermos que foram abandonados ou ento alforriados por seus senhores, que no
desejavam ter nenhum tipo de despesas com eles339. Mcia pode ter sido apenas mais
um exemplo desse "abandono". De qualquer forma, a doena permitiu que a cativa
pudesse viver os ltimos dias de sua vida distante do olhar senhorial, mesmo que isso
significasse uma piora na qualidade de sua vida material, tornando-se inclusive fatal, j
que, no fim das contas, ningum zelou pela escrava.
Outro episdio documentado indica algo semelhante. Em 1837, Luiz Muniz
Mello ficou sabendo do assassinato de sua escrava Claudiana, cerca de um ms depois
do ocorrido. Ao que tudo indica, Claudiana vendia fazendas pelas ruas da Corte e teria
sido seduzida pelo preto Miguel Duarte at a casa no. 16 na Rua do Sacco. L, a cativa
foi assassinada pelo crioulo Faustino e pela preta Francisca Tereza em decorrncia de
um assalto e, quando seu corpo j se encontrava em estado de putrefao, foi deixado na
Rua Diogo340. provvel que a demora de Luiz Mello em saber do trgico fim de sua
escrava deveu-se ao fato dela no habitar a mesma residncia que ele. Sendo assim, o
senhor levaria mais tempo para sentir falta de sua escrava, j que o acordo por eles
estabelecido estaria sendo cumprido.
Em outros casos, o exerccio da autonomia escrava passou ao largo dos acordos
firmados. Um exemplo disso foi a priso dos cativos Silvestre e Domingos.
Pertencentes a senhores distintos, ambos os escravos foram encontrados numa canoa na
Praia Formosa com outros dois cativos (que conseguiram fugir), quando voltavam da
compra de mantimentos. O detalhe mais interessante era que os alimentos comprados
339
340
127
tinham como destino o Quilombo de Iguau, onde os dois moravam341. Segundo Flvio
Gomes, o Quilombo de Iguau presente na documentao do perodo joanino - foi um
dos muitos ajuntamentos escravos ao redor do Rio de Janeiro que, ao mesmo tempo em
que se constituram como resistncia ativa escravido urbana, mantiveram estreita
rede de comunicao com a cidade, tornando-se assim, mais um dos possveis arranjos
escravos de moradia342.
Essa srie documental tambm aponta a forte presena de um tipo de moradia
escrava que causou muita dor de cabea para a polcia do Rio de Janeiro, os zungs.
Ado Jos da Lapa, personagem recorrente nos trabalhos que analisam os zungs, foi
figurinha carimbada nesse perodo343. O ex-escravo teve seu nome citado em diferentes
ocasies: em 1834, por pedir licena para ter sua quitanda na Rua Guarda da Velha, no.
19; no ano seguinte, a mesma permisso foi requisitada por Ado; em 1836, Ado Jos
da Lapa foi preso e sentenciado com 8 dias de priso e trinta mil ris de multa por ter
casa de alcouce344. provvel que tais locais tivessem ligao com as casas de
quilombo encontradas nos primeiros trinta anos do sculo XIX, ou os zungs estabelecimento que o prprio Ado era proprietrio.
Entre 1837 e 1838, o nmero de pessoas presas por estarem em zungs foi
significativo. Ora, esses anos foram marcados pelo Regresso Conservador e pela
implementao do projeto de Estado nacional dos saquaremas. Tal projeto estava
calcado em uma poltica escravista que, a fim de manter a instituio pelo maior tempo
possvel, agia em duas frentes. Por um lado, esse foi o governo que reabriu em escala
sistmica o trfico ilegal de africanos para o Brasil345, defendendo assim os interesses
econmicos de algumas das elites do pas. Nesse perodo, milhares de africanos
desembarcaram no porto carioca e foram inseridos nas atividades urbanas.
Paralelamente, a polcia civil, sob o comando de Euzbio de Queiroz (um dos
fundadores do Partido Conservador) passou a controlar mais de perto as aes escravas,
sobretudo daqueles que habitavam e trabalhavam na Corte. Dessa forma, pretendia-se
equacionar as conseqncias da adoo de uma poltica escravista do Estado: ao mesmo
tempo em que crescia a chegada contnua de africanos, eram elaboradas dinmicas e
instrumentos governamentais para controlar a crescente massa cativa.
341
128
129
As razes que levaram proibio das casas de zungs iam alm das aes de
escravos e libertos. Era tambm expresso da conquista do poder pelos conservadores,
que equalizava o intenso trfico ilegal com o maior domnio do governo sobre os
escravos, fato que invariavelmente implicaria na interferncia mais incisiva da
autoridade do Estado no controle dos cativos. Essa nova forma de encarar o governo dos
escravos pode ser vista no segundo Cdigo de Postura da Cmara Municipal do Rio de
Janeiro. As mudanas podem ser notadas no corpo da lei que, apesar de manter suas
duas sees, recebeu um aumento significativo de ttulos e artigos, principalmente na
seo Polcia.
Um primeiro exame do cdigo de posturas permite observar um enrijecimento
das leis que passaram a governar a cidade. A seo Polcia foi acrescida em trs ttulos e
mais de trinta artigos, que versaram, principalmente, sobre os diversos meios de manter
a segurana, comodidades e tranqilidade dos habitantes351, como demonstra o artigo
abaixo.
Tt. 4o. Art. 6o. Nenhuma pessoa de qualquer estado,
condio ou sexo (inclusive pessoas encarregadas da conduo
de gneros) poder transitar pelas ruas deste municpio seno
com vestes descentes, isto , no deixando patente qualquer
parte do corpo que ofenda a honestidade e moral publica. O
contraventor, alm da multa de 10$000 rs, sofrer 4 dias de
priso, e o duplo na reincidncia tanto a despeito da multa como
o tempo de priso: sendo escravo, estar 8 dias de calabouo.352
Assim como apresentado nas posturas de 1830, a presena dos escravos se
concentrou na seo de Polcia, tornando-se mais constante no cdigo de 1838.
Exemplo simples a verificao das cinqenta e trs vezes que a palavra escravo
apareceu diretamente nas posturas, fora os artigos que se referiam pessoas de
qualquer condio e cor. Vale ressaltar, que, neste caso, havia uma preocupao maior
com as possveis aes escravas. O cativo, que em 1830 era proibido de trs ou quatro
coisas, alm de ser comprometido (via seu senhor) em ajudar a apagar o fogo dos
incndios, comeou realmente a ser tratado como suspeito em potencial. Os artigos
abaixo ilustram bem como os escravos passaram a ser encarados.
Tt. 7o. Art. 6. Todo escravo que for encontrado das 7 horas
da tarde em diante sem escrito se seu Senhor, datado do mesmo
351
352
130
Tit. 10. Art. 23. Ningum poder expor venda em loja, nem
mesmo em particular, plvora e armas ofensivas de qualquer
natureza que sejam (*), sem que obtenham licena da Cmara
Municipal, obrigando-se as no vender a escravos, nem a
pessoas de suspeita, prestando, alm da licena, uma fiana,
perante o juiz de paz, de pessoa idnea e de probidade
conhecida. Os infratores incorrero na multa de 20$ rs. e 8 dias
de priso, e, no caso de reincidncia, em 30$ rs. e 20 dias de
cadeia354.
Parecia que a mobilidade escrava, caracterstica do espao urbano, comeara a
incomodar os responsveis pela ordem no Rio de Janeiro. Mas, no foram apenas as
voltas noturnas dos escravos que a Cmara Municipal passou a controlar. Tambm
houve a preocupao em normatizar a venda e compra de escravos; proibi-los de jogar o
entrudo (brincadeira de carnaval), bilhar ou qualquer outro tipo de jogo; alm de
controlar os que saam ao ganho.
Art. 5. Ningum poder ter escravos ao ganho sem tirar licena
da Cmara Municipal, recebendo com a licena uma chapa de
metal numerada, a qual dever andar sempre com o ganhador
em lugar visvel. O que for encontrado a ganhar sem a chapa
sofrer 8 dias de calabouo, sendo escravo, e sendo livre 8 dias
de Cadeia355.
Nesse artigo fica evidente a apreenso da Cmara em controlar os passos dos
escravos ao ganho, chamando, mais uma vez, a responsabilidade para os senhores, pois
a eles cabia levar seus escravos para tirarem licena na Cmara. Essa atitude mais um
indicativo da forma atravs da qual os rgos estatais podiam controlar a escravido.
O nico artigo que dizia respeito problemtica da moradia escrava, mesmo que
indiretamente, era aquele que proibia os zungs na cidade:
Tt.4o. Art. 7o. So proibidas as casas conhecidas vulgarmente
pelos nomes de casas de zung e batuques. Os donos ou chefes
de tais casas sero punidos com a pena de 8 dias de priso e
353
131
Idem
AN. Cdice 330, volume 5, p. 106. Microfilmado.
358
Em 1835, foi aprovada postura municipal em Salvador, na qual proibia-se que escravos morassem
sobre si. Provavelmente essa postura foi uma espcie de resposta ao levante dos Mals e outras
organizaes escravas na cidade que se valeram da maior mobilidade oferecida pelo espao urbano. Cf.
COSTA, Ana de Lourdes R. da. Ekab. Trabalho escravo, condies de moradia e reordenamento
urbano em Salvador no sculo XIX. Dissertao de Mestrado defendida na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 1989, captulo 3.
357
132
nenhuma lei ou postura municipal sobre o assunto. Vale lembrar, mais uma vez, que os
zungs, mesmo se constituindo como espaos de morada cativa, no tinham, ao menos
na tica policial, essa prtica como principal finalidade. As posturas de 1838 e a atuao
policial durante toda dcada de 1830 estiveram mais preocupadas em dificultar a
reunio de negros (escravos, libertos e nascidos livres) do que rastrear o local - ou locais
- onde os cativos moravam.
Esse silncio sobre o morar escravo nos documentos legais aumenta a
dificuldade para o estudo sobre os arranjos escravos de moradia. O fato de no
constituir crime ou infrao torna muito difcil esboar um quadro desses arranjos,
principalmente no que diz respeito aos escravos que moravam sobre si. As pistas
oferecidas at agora so resultado do cruzamento de diferentes fontes documentais
preocupadas com outras questes relativas aos cativos (como a fuga), que acabavam por
citar seu local de morada, ou sugerir o morar sobre si.
No entanto, entre 1839 e 1840, esse aparente silncio foi quebrado. No Projeto
de aditamento s posturas municipais de 1838, a questo da moradia escrava recebeu
luz. O artigo 14o foi muito claro ao estipular que
Fica proibido aos Senhores de escravos que consentirem que
eles morem sobre si, a pretexto de quitandarem, ou por
qualquer outro: os transgressores sero punidos com 5 a 15
dias de priso, e multa de 10 a 30 $ e os escravos castigados
com 100 aoites, e traro por 1 ano ferro ao pescoo, penas
estas que sero dobradas havendo reincidncia359.
Era a primeira vez que o Estado intervinha legalmente num acordo privado.
Segundo o artigo, senhor e escravo seriam punidos caso se constatasse a prtica do
cativo morar sobre si. A punio reservada ao escravo no s recairia sobre seu nico
bem (seu corpo), como tinha um forte carter exemplar. No por acaso, o uso do ferro
no pescoo tambm era aplicado aos escravos fugitivos, indicando que a Cmara
Municipal passou a ver o morar sobre si como um ato de fuga. As razes possveis para
tamanha intromisso residem no recrudescimento da legislao que tratava de assuntos
relacionados escravido. Era mais uma faceta dos saquaremas no poder.
O artigo 14o foi escrito juntamente com outros dezoito, todos eles referentes
escravido ou ao governo de escravos e forros. A tnica principal desse documento era
incrementar o controle sobre essa massa potencialmente perigosa que habitava a cidade.
Junto com a proibio de morar sobre si, era exigido que os senhores matriculassem
359
133
todos seus cativos, sob pena de multa, e que todos os libertos se apresentassem ao Juiz
de Paz de seu distrito com seus ttulos de liberdade. A preocupao com a fuga dos
cativos tambm esteve presente nesse documento. O artigo 9o proibia que qualquer
escravo viajasse por mar ou por terra alm de duas lguas de distncia em relao casa
de seu senhor sob pena de ser preso como fugido360.
Seria de se esperar, portanto, que a partir da dcada de 1840 tornar-se-ia mais
fcil enxergar parte dos arranjos escravos de moradia, pois a proibio do morar sobre si
produziria documentao relativa aos cativos e proprietrios que no acatassem a
deciso. No entanto, esse Projeto de Aditamento de Postura, citado pela historiografia
como uma das formas pelas quais a polcia do Rio de Janeiro tentou controlar a vida
escrava na cidade361, tem uma peculiaridade: ele no foi aprovado. O conjunto de
posturas que objetivava o aumento do controle dos escravos e libertos da cidade
procurando, inclusive, melhor estabelecer a diferena entre as duas condies, tendo em
vista a forma como elas se misturavam numa cidade esconderijo
362
no foi
sancionado.
O porqu da reprovao desse documento no est muito claro. Em primeiro
lugar, no se sabe ao certo quem foi o responsvel por sua elaborao, no caso de
conjecturar provveis disputas internas na Cmara Municipal. Segundo, no possvel
afirmar se foi a prpria Cmara que barrou o projeto, o Ministrio do Imprio ou at
mesmo a Assemblia Geral, devido, especialmente, ao fato de estar em acordo com os
fundamentos polticos defendidos pelos saquaremas, que haviam conquistado o poder
em 1837. Em linhas gerais, tal projeto privilegiava o governo do Estado em detrimento
do governo da Casa por meio de adoo de uma poltica que coibiria os exageros dos
crculos familiares inclusive no que dizia respeito ao governo dos escravos ,
afinando-os s diretrizes estatais363. Assim sendo, tal projeto de aditamento era uma
radicalizao das posturas aprovadas em 1838, onde a preocupao com a ordem de
360
Idem, Ibidem. Fica claro que os termos de abonao e fiana, abundantes na dcada de 1820, haviam
perdido seu sentido, pois as viagens feitas pelos cativos-mascates devem ter se convertido em boa
oportunidade para a fuga.
361
Cf. BRITO, Denelson Souza. Uma cidade sem senzalas: Moradias escravas e autonomia na cidade
do Rio de Janeiro (1789-1850). Monografia de Concluso de Curso em Histria. Rio de Janeiro, UFRJ,
2003; ROSSATO, Jupiracy A . R. Sob os Olhos da Lei: o escravo urbano na legislao municipal da
cidade do Rio de Janeiro (1830-1838). Dissertao de Mestrado apresentada na Universidade Federal
Fluminense, Niteri, 2002.
362
Termo cunhado por Sidney Chalhoub que sintetiza parte das complexidades de uma cidade escravista
das propores do Rio de Janeiro, onde muitas vezes era difcil distinguir um escravo de um liberto. Cf.
CHALHOUB, S. Op. Cit.
363
Cf. MATTOS, Ilmar R. Op. Cit.
134
uma cidade sabidamente escravista estava clara. Era necessrio que o Estado
distinguisse a Casa (espao privado) das Ruas e Praas (espaos pblicos), o que, em
ltima instncia, poderia representar uma intromisso estatal mais direta dos poderes
particulares.
Dito de outra forma, o veto ao projeto parecia ir contra a plataforma fundante do
Regresso Conservador. Ter sido fraqueza dos saquaremas vis--vis o enraizamento de
um costume freqente no mundo urbano? Ser que os princpios liberais estavam to
arraigados no recm-criado Imprio do Brasil que os polticos conservadores tiveram
que se render sua fora e magnitude?
Antes de mais nada fundamental salientar que esse projeto ia alm dos limites
razoveis da interferncia estatal, na medida em que propunha no s a multa como a
priso do senhor, caso seu escravo fosse encontrado morando sobre si. Essa medida do
artigo 14o do projeto de aditamento chega a ser absurda, pois a um s tempo ia contra o
direto de propriedade garantida a todos os cidados, como tornava o proprietrio um
refm em potencial de seus prprios cativos.
Outra coisa que no pode ser esquecida que foram os polticos saquaremas que
referendaram a abertura sistemtica do trfico ilegal. bem verdade que essa medida
devia ser acompanha pelo aumento do controle estatal da circulao cativa, tendo em
vista o nmero de africanos que desembarcavam ilegalmente na cidade. No entanto, tal
controle no poderia, de forma alguma, permitir que o prprio Estado registrasse
possveis aspectos dessa ilegalidade. No foi por coincidncia que a fiscalidade sobre a
escravido tornou-se assunto complicado a partir de 1831364.
Foi justamente por conhecer muito bem os meandros da sociedade escravista
brasileira e, sobretudo, a natureza do trfico de escravos aps 1837, que os saquaremas
no aprovaram o projeto de Aditamento s Posturas de 1838. Importante lembrar que,
mesmo conservadores, os saquaremas tambm tinham sua viso de mundo baseada nos
princpios do liberalismo clssico, sendo a defesa da propriedade um de seus pilares. E
mais, face s presses inglesas e presena de opinies antiescravistas na primeira
metade do sculo XIX, principalmente nos centros urbanos, os saquaremas tambm
eram defensores ferrenhos da escravido no Brasil.
364
Cf. COSTA, Wilma Peres. Estratgias Ladinas. O imposto sobre o comrcio de escravos e a
legalizao do trfico no Brasil. (1831-1850). In: Novos Estudos CEBRAP, no. 67, nov. 2003, pp 58-74.
135
365
136
366
Segundos os dados levantados por Mary Karasch, em 1838 a populao cativa girava em torno de 97
mil almas, nmero que saltou para 205 mil em 1849. Cf. KARASCH, M. Op. Cit., p. 108.
367
Cf. SILVA, M.R.N. Negro na Rua. A nova Face da Escravido. So Paulo, Editora Hucitec, 1988, pp.
40-41.
368
Cf. ABREU, Maurcio de A. Evoluo Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, IPLANRIO, 1997.
369
Idem. P. 37
137
AGCRJ. Cdigo de posturas Municipais de 1838. Seo de Polcia, ttulo nono, artigo terceiro.
Infelizmente, tais mapas no foram encontrados durante a pesquisa documental, o que levou inclusive
a pensar se eles foram realmente produzidos ou ficaram apenas na letra da lei.
372
AGCRJ. Cdigo de posturas Municipais de 1838. Seo de Polcia, ttulo nono, artigo dez.
373
ROSSATO, J. Op. Cit.
374
COSTA, Wilma Peres. Op. Cit., pp. 59-65. Importante lembrar que a lei que decretou o final do trfico
tambm previa que todo africano que conseguisse comprovar que sua entrada no pas ocorreu aps
novembro de 1831 tornava-se automaticamente liberto, ficando sobre a tutela do Estado. A histria do
Brasil registrou casos de sucesso de africanos que conseguiram obter a liberdade por essa via.
371
138
375
instrumentos estatais reconheceram a prtica difundida de o cativo morar sobre si, ainda
que indiretamente.
Caso essas matrculas tivessem sido produzidas, constituiriam uma fonte
fabulosa sobre os arranjos escravos de moradia. Em trabalho recente, Wilma Peres
mostrou que a tentativa de matricular os escravos fracassou em diversas partes do
Brasil, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro376. A autonomia escrava sobre seu local
de moradia permaneceu no reino do costume, e, portanto, como uma prtica no
documentada.
No entanto, houve no perodo um incremento do controle estatal sobre alguns
aspectos da vida escrava. No por acaso, os pedidos de licena para escravos sarem ao
ganho foram regulados pelo artigo 5 do Cdigo de Postura de 1838. Todo senhor que
pretendesse colocar seu escravo ao ganho precisava se dirigir Cmara Municipal,
encaminhar seu pedido e efetuar o pagamento de 1$000 ris por cada cativo que
quisesse alocar na atividade, sendo que as licenas teriam validade de apenas um ano377.
Quando a licena era concedida, o escravo recebia uma chapa com seu nmero de
matrcula, que deveria carregar consigo aonde quer que fosse; a ausncia dessa chapa
podia representar o recolhimento dos cativos na Cadeia378 e, provavelmente, um
significativo prejuzo para seu senhor, que, alm de perder horas ou dias de trabalho do
seu escravo, tambm deveria pagar uma multa para a soltura do mesmo.
A estrutura bsica dos pedidos de licena para escravos ao ganho era a seguinte:
o nome completo do proprietrio, sua nacionalidade, endereo, o(s) nome(s) do(s)
escravos(s) que queria colocar no ganho, e a(s) nao (naes) do(s) mesmo(s) que
normalmente era o sobrenome do cativo. O nmero de matrcula que o escravo
recebia deveria estar estampado na sua chapa e, em alguns casos, acrescentavam-se as
atividades que realizaria.
Eis um exemplo:
Diz D. Anna Joaquina de Souza Bastos natural do Rio de
Janeiro, residncia na Rua dos Barbonos no.82 que pretende
375
Apud: COSTA, Wilma Peres. Op. Cit., 2003, p. 73. (Grifo meu).
COSTA, W.P. Op Cit, 2005.
377
Cf. SOARES, L. C. Op. Cit, 1988b, p. 111.
378
Idem, p. 112.
376
139
380
pedidos mostrou que no houve nenhum interesse da Cmara Municipal em saber onde
e como os escravos ao ganho moravam. A maior prova disso que o nico endereo
requisitado na licena era o do senhor que, em primeira e ltima instncia, responderia
pelo seu cativo. Se os pedidos para escravos sarem ao ganho representaram a
possibilidade dos cativos morarem longe de seus senhores, tal possibilidade ficou
restrita relao senhor e escravo, no sendo estampada na letra da lei.
Na dcada de 1840, apenas um pedido entre os 156 examinados apontou o local
de morada escrava. Em 1847
Joo Manoel Soares da Rocha, brasileiro, quer trazer ao ganho
nas Ruas do Municpio desta cidade trs escravos os quais foi
concedido os alvars de licena sendo o de n. 906 para Joaquim
Congo, n. 908 para Francisco Guilimane, n. 2695 para Fortuna
Nag, todos moradores na Rua do Hospcio n. 176. 381.
Nos demais 155 casos, apenas o endereo senhorial vinha escrito.
Desse modo, os pedidos de licena para escravos sarem ao ganho estavam em
perfeito acordo com as demais posturas de 1838, nas quais a responsabilidade das aes
escravas recaa sobre o proprietrio. Entretanto, a leitura seriada desta documentao
trouxe informaes relevantes sobre a escravido urbana no Rio de Janeiro, que ajudam
a entender a problemtica do morar escravo na cidade.
Os dados levantados a partir deste pedido de licena apontam que, durante os
doze primeiros anos de vigncia da postura, 156 cativos foram matriculados na Cmara,
sendo eles majoritariamente africanos principalmente das naes Congo e
Moambique. Salvo o caso de Azelino Leite Pereira e S382 - morador de Santa Rita
que, em 1847, colocou nove escravos no ganho a estrutura de posse escrava que se
379
140
pode vislumbrar na srie aponta que a maior parte dos senhores colocava apenas um ou
dois cativos na atividade383.
Esse dado permite a formulao de duas hipteses sobre os arranjos de moradia
para a maior parte dos escravos ao ganho. Por um lado, o baixo nmero de cativos por
proprietrio permite pensar que mesmo os senhores mais humildes podiam abrigar seus
cativos em suas residncias, embora de maneira precria. Por outro lado, esse nmero
tambm sugere que a maior parte dos proprietrios escravistas devia fazer parte do
segmento mdio da sociedade; dessa forma, a atividade exercida pelos cativos
representaria uma significativa porcentagem da renda familiar, situao essa que
serviria de poder de barganha ao escravo para adquirir espao de autonomia.
O mais interessante que essas duas hipteses tambm so plausveis para os
casos excepcionais de posse escrava, na qual o mesmo proprietrio era dono de
relevante nmero de cativos. Em 1846, Gregrio Jos de Abreu faleceu deixando para a
esposa e seus trs filhos 17 escravos384. Dentre eles, quatro estavam no ganho todos
homens, sendo trs africanos e um crioulo -, cinco eram responsveis pelos servios da
casa e oito no tiveram atividade especificada devido sua pouca idade. Esse elevado
nmero de cativos permite pensar que, inclusive por questes espaciais, ao menos os
destinados ao ganho tiveram boa oportunidade de negociar a oportunidade de morar
sobre si. Mesmo porque, alm dos 17 escravos, Gregrio Abreu tambm era proprietrio
de dezesseis casas, todas elas localizadas nas freguesias centrais de cidade, sendo oito
trreas e oito sobrados. Dessa forma, parece que a famlia Abreu no teve muitos
problemas em alojar seus cativos, podendo, at mesmo, ter reservado uma ou duas
dessas casas (principalmente as trreas, localizadas em pontos estratgicos da cidade,
como na Rua Direta e na Rua da Alfndega), para a morada de seus escravos ao ganho.
Tudo indica que boa parte das residncias deveria ser alugada a terceiros, o que
pode ter gerado significativa renda para a famlia385. Todavia, Jos Benguella, Sebastio
Crioulo, Joo Congo e Jos Congo no eram simples carregadores que saram pelas ruas
cariocas oferecendo seus servios. Enquanto os dois primeiros eram carpinteiros, Joo e
Jos Congo eram pintores. A especificidade das atividades realizadas por esses cativos
383
H ainda a constatao que a maior parte desses proprietrios habitava as freguesias centrais da cidade,
locais de grande concentrao escrava.
384
AN. Inventrio de Gregrio Jos de Abreu, ano 1846, caixa 41-40, no 1504.
385
Cf. Zephyr Frank afirmou que nesse perodo, grande parte dos homens livres do Rio de Janeiro morava
de aluguel. Dessa forma possvel conjecturar que Gregrio de Abreu fazia parte da pequena elite
proprietria de imveis. Cf. FRANK. Z. Dutra's World. Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de
Janeiro. Albuquerque, University of New Mexico, 2004.., p. 87.
141
386
AN. Inventrio de Antnio Jos Dutra, ano 1847, caixa 3999, no. 171.
Para melhor conhecer a histria de Antnio Jos Dutra ler: FRANK. Z. Op. Cit.
388
AN. Inventrio de Antnio Jos Dutra, ano 1847, caixa 3999, no. 171.
387
142
permitindo que seus escravos morassem onde lhes aprouvesse, contanto que realizassem
seu trabalho nas horas estipuladas.
Entretanto, a atividade profissional de msico implicava reunies regulares
desses escravos no s para tocar, como para ensaiar. De tal modo que essa dupla
jornada no s exauria o tempo dos cativos o que tornaria mais cmodo habitar a casa
senhorial como pressupunha que, ao menos, eles morassem prximos uns dos outros.
Tanto os dados obtidos nos pedidos de licena como as hipteses construdas
sobre os dois casos descritos que fogem dos padres encontrados no Rio de Janeiro
sugerem, mais uma vez, que os arranjos escravos de moradia foram condicionados,
sobretudo, pela relao senhor - escravo. Como j foi apontado no captulo anterior,
havia uma maior propenso dos escravos ao ganho terem mais facilidade para habitar
locais distantes do olhar senhorial do que os escravos domsticos, graas natureza do
trabalho exercido. Mas tambm no se pode esquecer que, no caso das famlias pobres,
o cativo era ao mesmo tempo domstico e de ganho.
De maneira geral, at 1850 poucas mudanas foram encontradas no tocante aos
arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro. A proibio do trfico transatlntico,
sobrepujada pela sistematizao do contrabando de africanos escravizados, garantiu
certa unicidade nas dinmicas sociais durante a primeira metade do sculo XIX, assim
como a reiterao de prticas e relaes escravistas. Independentemente das formas
variadas, o morar escravo foi um assunto discutido, negociado e determinado pelas
relaes travadas entre cativos e seus senhores. bem verdade que o Estado, cada vez
mais centralizador, acabou resvalando nesse aspecto da vida escrava; no entanto, isso s
ocorreu nos momentos em que outras questes foram acionadas, sobretudo aquelas que
colocavam a ordem e a segurana da cidade em alerta.
A abolio total do trfico em 1850 resultou em mudanas significativas no
escravismo brasileiro: a principal fonte de renovao dessa mo-de-obra estava,
realmente, extinta. O fato resultaria em outras e novas articulaes escravistas no Rio de
Janeiro, inclusive no que diz respeito moradia e habitao dos cativos389. Nesse
mesmo perodo, iniciou-se um fluxo de migrantes portugueses para o Rio que, junto
com escravos e forros, disputavam trabalho no centro da cidade, fazendo dessa uma
regio extremamente habitada. Ao mesmo tempo, as famlias de posse passaram a
construir suas casas em regies mais distantes, alargando ainda mais o permetro urbano
389
Cf. FARIAS, J.B. SOARES, E.C.L. GOMES, F.S. No Labirinto das Naes. Africanos e identidades
no Rio de Janeiro, sculo XIX. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2005, captulo 7.
143
Um caso extraordinrio.
Em 1857, Maria Thereza dos Prazeres Porto compareceu Cmara Municipal do
Rio de Janeiro requerendo licena para que quarenta e trs escravos, todos mina,
sassem ao ganho390. Dois anos depois, a mesma senhora solicitou autorizao para
outros vinte cativos391. Tendo em vista o padro dos pedidos de licena encontrados no
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, pode-se afirmar que D. Maria Thereza era
uma proprietria com um significativo nmero de escravos392. Aventando-se a hiptese
que nesse intervalo de dois anos nenhum de seus cativos faleceu, fugiu ou adquiriu
alforria, a senhora Porto era detentora de sessenta e trs, todos destinados ao ganho.
A expecionalidade desse caso no pra por a.
Em 1862,
Vicente Pereira da Silva Porto, morador da Rua
dos arcos no. 44, Freguesia de Sto. Antnio, precisa de
113 licenas para poderem andarem ao ganho os seus
escravos constantes no verso e retro deste
requerimento393.
Cinco anos mais tarde, a mesma Maria Thereza fez outros trinta e oito pedidos e
Guilherme Pereira da Silva Porto, que apareceu pela primeira vez na documentao,
requereu oito solicitaes394. A coincidncia dos sobrenomes, o elevado nmero de
pedidos e o endereo presente nas licenas, todos indicando logradouros na freguesia de
Santo Antnio, sugerem a possibilidade de se tratar de uma mesma famlia de senhores.
390
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Cdice 6.1.46 (1845-1863). Escravos ao ganho, pp. 145148.
391
AGCRJ. Cdice 6.1.51. (1857-1862). Escravo ao ganho, p. 35.
392
Cf. SOARES, Luiz Carlos. Os escravos de ganho no Rio de Janeiro do sculo XIX. In:Escravido
Revista Brasileira de Histria vol. 16. So Paulo, Marco Zero e ANPUH, 1988 pp. 107 a 142.
393
AGCRJ. Cdice 6.1.51 (1857-1862). Escravos ao ganho, p. 123. (grifo meu)
394
AGCRJ. Cdice 6.1.55 (1864-1878). Escravos ao ganho, pp. 130 e 213.
144
AN. Inventrio de Vicente Pereira da Silva Porto, 1865, no. 6878, caixa 606. Importante ressaltar que a
famlia Silva Porto fez parte, na primeira metade do sculo XIX, da elite dos traficantes de escravos
africanos sediada no Rio de Janeiro, fato que ajuda a explicar a riqueza de Vicente Pereira, assim como o
assombroso nmero de escravos que possuia. Cf. FLORENTINO, M. Op. Cit, 1997, anexos.
396
Idem.
145
onde havia outro sobrado, de propores menores, no qual no consta meno a espaos
destinados aos cativos.
Percebe-se, ento, que havia na estrutura fsica da residncia da famlia Porto,
dois espaos distintos destinados aos cativos, ambos nomeados de quartos de dormir.
Infelizmente, a ausncia das dimenses internas de cada cmodo no permite traar o
tamanho exato do espao destinado aos escravos. Todavia provvel que existisse uma
diviso entre esses dormitrios segundo as atividades exercidas pelos cativos. O
primeiro pavimento destinado aos escravos, onde tambm era a cozinha e a casa de
engomar, possivelmente era designado aos que exerciam o servio domstico.
A famlia Porto tinha quatro copeiros, dois cozinheiros, dois cocheiros, um
lavrador, cinco mucamas, uma lavadeira, um engomador, alm de um pajem, um
aprendiz de comrcio e duas crianas com menos de um ano397. Imaginando que esse
pavimento fosse igualmente dividido em quatro partes, o espao destinado aos vinte
escravos teria em torno de trinta e sete metros quadrados, o que daria um pouco menos
de dois metros quadrados por cativo. Levando em considerao que muitas vezes os
escravos dormiam em esteiras e nos corredores das casas senhoriais, a hiptese desses
cativos dormirem nesse local plausvel.
O segundo pavilho reservado escravaria possua duzentos e dezesseis metros
quadrados. Muito semelhante ao modelo de senzala galpo das fazendas cafeicultoras da
segunda metade do sculo XIX, esse espao tinha dimenses impressionantes para uma
"senzala urbana". Supondo que fosse destinado aos cativos de ganho e aqueles que
possuam alguma especialidade398, esse pavilho comportaria cerca de duzentos e trinta
e quatro escravos. Dessa forma, cada um dos cativos teria menos de um metro quadrado
para dormir, metade do espao reservado aos domsticos e nmero muito inferior ao
encontrado nas fazendas brasileiras399.
A no ser que esses cativos dormissem amontoados uns nos outros, proposio
que no deve ser descartada, difcil imaginar que entre todos eles nenhum tenha
logrado xito na negociao com Vicente Porto para morar sobre si, j que, em sua
grande maioria, passavam a boa parte do dia nas ruas da cidade. Essa convivncia
397
146
147
EPLOGO
Alm da Senzala
Justamente por ser excepcional, o caso da famlia Porto corrobora a constatao
da diversidade dos arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro. Dentre os
inventrios, termos de bem viver, pedidos de licenas e documentao policial
consultados, essa foi a nica situao na qual se encontrou algo prximo do que seria
uma senzala urbana, ou seja, um espao destinado aos cativos que se assemelhava fsica
e materialmente s senzalas das fazendas oitocentistas do sudeste brasileiro.
Nas demais ocasies analisadas, os escravos urbanos habitaram diferentes
moradas que, de modo geral, obedeceram duas variveis. A primeira foi a relao
estabelecida entre escravo e senhor. Os espaos de autonomia conquistados e cedidos
foram definidores no tipo de morar de cada escravo urbano. Obviamente, a atividade
exercida pelo cativo facilitou ou no o usufruto dessa possvel autonomia. No por
acaso, a maior parte dos escravos que habitaram as casas senhoriais era domstica,
enquanto aqueles destinados ao ganho apareceram com mais freqncia na
documentao que tratou de forma geral do morar sobre si. Mas essa relao entre
atividade exercida e tipo de moradia no foi to direta.
Da a segunda varivel. A posio socioeconmica do proprietrio tambm foi
fundamental para o estabelecimento do tipo de moradia escrava. Conforme apontado
anteriormente, parcela significativa dos senhores do Rio de Janeiro possua de um a dois
escravos400. Apesar de terem recebido certo destaque nesse trabalho, poucas foram as
situaes nas quais um grande nmero de cativos pertenceu a um mesmo senhor. Assim
sendo, essa massa de senhores enquadrava-se no que Zephyr Frank chamou de
middleclass.401
Se, por um lado, o pequeno nmero de cativos permitia que eles se arranjassem
nas casas senhoriais - quer em pequenos quartos e/ ou stos, quer em esteiras
espalhadas nos corredores -, a falta de recurso do proprietrio fazia do escravo seu bem
mais valioso. Essa situao se devia no s pelo preo pago no cativo (um bem
relativamente caro), mas tambm porque essa propriedade era capaz de gerar lucro.
400
Cf. FRANK, Zephur L. Dutra's World. Wealth and family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro.
Albuquerque,University of New Mexico Press, 2004. KARASCH, Mary. A vida dos Escravos no Rio de
Janeiro (1808 1850).So Paulo, Cia. das Letras, 2000 .
401
FRANK, Zephur L. Op. Cit.
148
Todavia,
fugas,
capoeiras
quilombos
povoaram
os
relatrios
aos homens e mulheres livres e de posses. O que dir adentrar na morada escrava.
Estudar a escravido numa perspectiva mais prxima ao que seria a viso do cativo tem
um obstculo h muito salientado pelos especialistas: exceto em rarssimos casos, no
foram eles que documentaram sua prpria histria.
A impossibilidade de analisar alguns detalhes da moradia escrava, como suas
dimenses ou os materiais usados na sua construo, refora um outro ponto que
acompanhou todo o trabalho: mais do que a moradia escrava, era necessrio
compreender o morar do cativo. Essa constatao acabou desembocando numa
importante considerao: a materialidade da vida escrava no foi um fator definidor da
relao escravista. Apesar do exerccio da autonomia, ningum foi menos escravo por
morar longe de seu senhor. E isso no foi resultado da ineficcia da luta escrava. Foi
justamente a consonncia dos interesses pblicos com os privados que barrou a
possibilidade de as lutas escravas abalarem a estrutura do sistema escravista. O que no
quer dizer que os escravos no entraram em conflito com seus senhores, mas que, no
contexto urbano do Rio de Janeiro da primeira metade do sculo XIX, tais aes foram
sobretudo individuais, ainda que no solitrias.
No que tange esse morar escravo, o silncio prevaleceu e durante um certo
momento, pareceu definidor. Mas um conjunto de leis que no entrou em vigor acabou
revelando algumas vozes. A principal delas foi a existncia da prtica do escravo morar
sobre si, e como isso incomodava parte do poder pblico. Para mobilizar um conjunto
de vereadores no fim do turbulento perodo regencial, era necessrio fazer barulho.
Casos como o de Pedro Congo, de Henrique, e da crioula Tereza devem ter pipocado na
Corte imperial durante a primeira metade do sculo XIX. E incomodado tambm. Resta
saber a quem.
Responsveis por manter a ordem e segurana do Rio de Janeiro, rgos estatais
como a Cmara Municipal e a Intendncia de Polcia cuidaram de assuntos relacionados
escravido. Eram os "braos do Estado" que faziam boa parte do "servio sujo" no
trato dos cativos, como a punio (institucionalizada), o apresamento de fugitivos e
quilombolas, o toque de recolher. De certa maneira, coube ao Estado exercer atividades
que, no campo, eram desempenhadas pelo feitor. Ele era a figura mediadora da relao
entre senhores e cativos no mundo urbano, porque, em ltima anlise, partia dele as
determinaes pblicas que balizavam a instituio escravista402. Se, por um lado, as
402
Cf. PATTERSON, O. Slavery and Social Death a comparative study. Cambridge, Harvard
University Press, 1982, captulo 7.
150
duas variveis que determinaram onde e como os cativos citadinos moraram dependiam
fundamentalmente da relao privada senhor/escravo, por outro fez parte das
incumbncias do Estado respaldar ou no tal relao.
Ao que tudo indica, em 1839 ou 1840, esse respaldo foi contrrio a uma prtica
corrente. Elaborou-se uma pea que proibiria os proprietrios permitirem que seus
cativos morassem sobre si. Razes para isso foram dadas no correr desse trabalho, mas
podem ser resumidas de seguinte maneira: a maior autonomia de trnsito dos escravos
urbanos incomodava e assustava parte da populao.
Como lembra o socilogo Orlando Patterson, foi na relao entre os
determinantes pblicos e os determinantes privados que a condio da escravido se
construiu e se manteve403. O morar sobre si trazia certas tenses, e por isso se aventou a
possibilidade de oficialmente proibi-lo. Porm, a conjuno entre o poder senhorial
(determinante privado) e o jogo de foras na esfera do Estado que perdurou durante a
vigncia do trfico (determinante pblico) foi de tal ordem que impediu a
implementao efetiva desse projeto. Durante a primeira metade do oitocentos, no
houve nenhuma proibio legal sobre qualquer aspecto da moradia escrava, entendida
strito sensu. Bondade senhorial? Frouxido estatal? No.
Ningum melhor do que o proprietrio sabia as conseqncias que o
impedimento de uma prtica disseminada poderia trazer. Seria o mesmo que interditar a
possibilidade da alforria, largamente difundida no espao urbano, ou ento retirar os
domingos e feriados dos cativos rurais. Foi por meio desse jogo de negociaes que a
escravido se manteve durante tantos anos. E foi justamente por isso que a anlise sobre
o morar escravo se deparou com tanto silncio. Simplesmente, no havia o que dizer, a
no ser em situaes onde a ordem e segurana estavam realmente ameaadas. Reis e
Silva afirmaram que entre a passividade do escravo Pai Joo e o enfrentamento radical
de Zumbi existiram diversas formas de resistir escravido404. Dentre elas, lutar por
espaos autnomos de moradia, refazer laos familiares e de solidariedade, enfim,
afirmar a humanidade escrava.
Ao examinar a instituio escravista sob a tica processual, Kopytoff apontou
que, em termos sociolgicos, a escravido no a desumanizao de uma pessoa, mas
403
Idem, p.172.
Cf. REIS, J.J. & SILVA, E. Negociao e Conflito: a resistncia negra no Brasil escravista. So
Paulo, Cia. das Letras, 1989.
404
151
sim sua reumanizao em um novo lugar405. Antes que boais ou heris emblemticos,
os escravos foram homens e mulheres que viveram, mesmo no cativeiro. Pode parecer
bvio, mas durante muito tempo a historiografia preocupou-se em estudar um desses
dois extremos de escravo e esqueceu-se de olhar para a grande massa cativa que fez
parte da histria do Brasil. Como foi dito no incio desse trabalho, preciso examinar
com mais cuidado as histrias possveis, pois so nelas que se encontra a humanidade
escrava. Isso permite entender como esses escravos atuaram no seu tempo e
determinaram alguns aspectos do seu porvir, inclusive, o fim da instituio escravista.
Mas essa outra histria.
405
152
FONTES
Manuscritas
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
1. Cartas de libertao de escravos, cdice: 6.1.13; 6.1.14; 6.1.15
2. Mercadores de escravos (1777-1831) cdice: 6.1.23
3. Escravido (1814 1831), cdice 6.1.25
4. Escravos (1844), cdice 6.1.29
5. Casa de aluguel de escravos (1846), cdice 6.1.30
6. Escravos ladinos (1847, 1848, 1854, 1855) cdice 6.1.31 at 6.1.34
7. Junta classificatria de libertao de escravos atas (1873 1883) cdice 6.1.39
8. Escravos (1876) cdice 6.1.40
9. Escravos (1881 1888), cdice 6.11.41; 6.1.42
10. Escravos ao ganho
a) 1820 1828 cdice 6.1.23
b) 1833 1841 cdice 6.1..43
c) 1841 1855 cdice 6.1.44
d) 1842 1845 cdice 6.1.45
e) 1845 1863 cdice 6.1.46
f) 1846 1850 cdice 6.1.47
g) 1851 1855 cdice 6.1.49
h) 1856
cdice 6.1.50
153
15. Livros de registros das leis referentes Cmara Municipal (1828 1847) cdice
18.1.66
16. Cmara Municipal Posturas (1830 1831) cdice 18.1.67, 18.1.68 (1830
1849), 18.1.69 (1830 1858)
17. Legislao do Imprio (1831) cdice 18.1.71
18. Cmara Municipal Posturas (1832 1888) cdice 18.1.72; 18.2.1; 18.2.2 at
18.2.12 (documentos quase ilegveis e sem roteiro).
19. Relatrio de Salubridade cdice 6.1.37 -Ofcio do Chefe de Polcia, 1860, flio.
Arquivo Nacional
1. Livros da Polcia
a) Devassas da polcia sobre vrios delitos 1809-1815 cdice 401
b) Devassas da polcia sobre vrios delitos 1809-1817 cdice 402
c) Registros da correspondncia da polcia (ofcios da polcia aos Ministros
de Estado, juzes de crime, vara, cmaras) 1809-1822 cdice 323 - 6
vols.
d) Registros das Ordens e Ofcios expedidos pela polcia aos juzes de
crime dos bairros de So Jos, Santa Rita, Da S, Candelria 1819
1823 cdice 330 4 vols.
e) Relao de presos feitos pela polcia 1810 1821 cdice 403 2 vols.
154
Ano
1806
1807
1821
1823
1823
1829
1832
1832
1833
1835
1835
1839
Nome do Inventariante
Capito Bernardes Jos
Ferreira Rabelo
Manoel Rodrigues Morais
Clemente Jos de
Figueiredo
Clara Luiza de Jesus
Joaquim do Vale Pereira
Gertrudes Maria do Pilar
Francisco Jos de Medeiros
Maria das Graas dos
Santos Lrio
Delfina do Nascimento
Jesus
Helena Pereira Maciel
Joo Pereira vora
Custdio Jos Pereira
Caixa/Mao
cx 1117
No.
8938
m368
6493
c909
m455
c1444
m440
m385
8219
8679
795
8486 (0)
6798/6799
m474
9071
m2288
c4109
c284
2055
1692
3409
155
1865
1870
1871
1873
1876
c606 Gal A
6878
c638
c287
c2762
A7386
265
234
c263
482
Nmero: 4059, 4284, 3956, 3961, 4038, 3962, 5634, 3978, 3981, 4041, 4055, 4319,
CD 72, 3958, 4312, 3961, 4043.
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE)
1. Censo Populacional da Freguesia de So Cristvo, 1870.
Impressa
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro
Cdigo de Posturas da Ilustrssima Cmara Municipal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, Typografia Dous de Dezembro, 1854.
Cdigo de Posturas da Ilustrssima Cmara Municipal do Rio de Janeiro e Editais
da Mesma Cmara. Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique Laemmert, 1870.
Cdigo de Posturas: Leis, Decretos, Editais e Resolues da Intendncia Municipal
do Distrito Federal. Rio de Janeiro, Papelaria e Typographia MontAlverne, 1894.
Colleo das decises do governo do Imprio do Brazil. Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1873, Posturas municipais aprovadas por portaria de
23/12/1833.pp. 569-573.
Leis e Coleo de Leis do Imprio do Brazil 1830 Rio de Janeiro, Typographia
Nacional, 1876.
Posturas de 1830 Typografia Imperial Nacional (documento fotografado)
157
Viajantes
BRACKENRIDGE, Henry Marie. Viaje a America del Sur I. Buenos Aires:
Hyspamerica,1988.
BURMEISTER, H. Viagem ao Brasil atravs das provncias do Rio de Janeiro e Minas
Gerais. So Paulo: Livraria Martins Fontes, 1952
CANSTATT, E. Oskar. Brasil, terra e gente. Rio de Janeiro. Ed. Irmos Pongeotti,
1954.
DEBRET, Jean Baptiste.Viagem Pitoresca e Histrica ao Brasil (1834) 2vols. So
Paulo, Editora Circulo do Livro, 1985.
EBEL, Ernest. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. So Paulo, Cia. Nacional,
1972. Coleo Brasiliana 35.
EWBANK, Thomas. A vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: Edusp, 1976.
Coleo Reconquista do Brasil vol. 28,
GRAHAM, Maria. Dirio de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse pas durante
parte dos anos de 1821, 1822, 1823. Belo Horizonte: Itatiaia, So Paulo:
Edusp,1990.
LEITHOLD, Theoder Von e RANGO, L.V. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos
em 1819. So Paulo, Compainha Editora Nacional, 1966.
MAWE, John. Viagens ao interior do Brasil: principalmente aos distritos de ouro e dos
Diamantes. Rio de Janeiro, Zelto Valverdas, 1944.
RUGENDAS, Juahann Moritz. Viagem pitoresca atravs do Brasil (1835). So Paulo,
Editora Martins, 1941.
158
159
BIBLIOGRAFIA
ABREU, Maurcio de A . Evoluo Urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
INPLARIO, 1997.
ALENCASTRO, Felipe. Bahia, Rio de Janeiro, et le nouvel ordre colonial, 1808-1860.
In: CHASE Jeanne (org). Gographie du capital marchand aux Amriques 17601860. Paris, ditions de lcole ds Hautes tudes em Sciences Sociales, 1987,
pp. 131-150.
___________________. Modelos da Histria e da Historiografia Imperial. In:
ALENCASTRO, L.F. (org). Histria da Vida Privada no Brasil. Imprio: a Corte
e modernidade nacional.vol. 2 So Paulo, Cia. das Letras, 2004.
ALGRANTI, Leila Mezan. O Feitor Ausente. Estudo sobre a escravido urbana no Rio
de Janeiro 1808-1821.Petrpolis, Editora Vozes, 1988.
_____________________. Os Registros da Polcia e seu aproveitamento para a Histria
do Rio de Janeiro: Escravos e Libertos. In: Revista de Histria USP (jul - dez),
1988.
_____________________. Famlias e vida domstica. In: Histria da Vida Privada no
Brasil I. So Paulo, Cia. das Letras, 1998.
ARAJO. Carlos Eduardo Moreira de. O Duplo Cativeiro. Escravido urbana e o
sistema prisional no Rio de Janeiro. 1790-1821. Dissertao de Mestrado,
apresentada no IFCS-UFRJ, Rio de Janeiro, 2004.
AZEVEDO, Clia M. Marinho de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginrio
das elites, sculo XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
BANDECCHI, Brasil. Legislao bsica sobre a escravido africana no Brasil,
Revista de Histria, So Paulo, 44 (89): p. 207-213, jan./maro 1972.
160
161
162
163
164
165
Viagem
Incompleta.
experincia
brasileira
(1500-2000).
168
REIS, Joo Jos. Rebelio Escrava no Brasil A histria do levante dos Mals (1835).
So Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
___________. "A Greve de 1857". So Paulo, Revista USP. Dossi Brasil e frica ,vol. 18
169
SCHULTZ, Kirsten. Tropical Versailles. Empire, Monarchy, and the Portuguese Royal
Court in Rio de Janeiro, 1808 - 1821. New York /London, Routledge, 2003.
SCHWARCZ, L.M. AZEVEDO, P.C. COSTA, A.M. A Longa Viagem da Biblioteca
dos Reis. Do terremoto de Lisboa Indpendncia do Brasil. So Paulo, Cia. das
Letras, 2002.
SILVA, Eduardo. As Camlias do Leblon e a abolio da escravatura. So Paulo, Cia.
das Letras, 2003.
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A Intendncia-Geral da Polcia: 1808-1821. Acervo.
Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp.137-151, jul-dez. 1986.
SILVA, Marilene R. N. Negro na Rua. A nova Face da escravido. So Paulo, Editora
HUCITEC, 1988.
SLEMIAN, Andra. Vida Poltica em tempo de crise: Rio de Janeiro (1808-1850).
So Paulo: Hucitec, 2006.
SLENES, Robert. W. Na Senzala uma Flor. Esperanas e recordaes na formao da
famlia escrava Brasil Sudeste, sculo XIX. Rio de Janeiro, Editora Nova
Fronteira, 1999.
SMITH, Robert C. Arquitetura Civil no Perodo Colonial. Rio de Janeiro: Revista do
Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Vol. 17, 1969.
SOARES, Carlos Eugenio Lbano. Zung: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro,
Arquivo Pblico do Rio de Janeiro, 1998.
___________________________. Capoeira Escrava e outras tradies rebeldes no Rio
de Janeiro (1808-1850). Campinas, Ed. Unicamp, 2002.
SOARES, Luiz Carlos. Urban Slavery in the Nineteenth Century Rio de Janeiro. Tese
de Doutorado apresentada na University College London, Londres, 1988a.
170
171