Vozes Insolitas

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representações de diversidades

e minorias na literatura e no
cinema contemporâneo
Ana Cristina dos Santos e Camila da Silva Alavarce (Orgs.)
representações de diversidades
e minorias na literatura e no
cinema contemporâneo
Ana Cristina dos Santos e Camila da Silva Alavarce (Orgs.)
2020
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitora
Mario Sergio Alves Carneiro

Dialogarts
Coordenadores
Darcilia Simões
Flavio García

Conselho Editorial

Estudos de Língua Estudos de Literatura


Darcilia Simões (UERJ, Brasil) Flavio García (UERJ, Brasil)
Kanavillil Rajagopalan (UNICAMP, Brasil) Karin Volobuef (Unesp, Brasil)
Maria do Socorro Aragão (UFPB/UFCE, Brasil) Marisa Martins Gama-Khalil (UFU, Brasil)

Conselho Consultivo

Estudos de Língua Estudos de Literatura


Alexandre do A. Ribeiro (UERJ, Brasil) Ana Cristina dos Santos (UERJ, Brasil)
Claudio Artur O. Rei (UNESA, Brasil) Ana Mafalda Leite (ULisboa, Portugal)
Lucia Santaella (PUC-SP, Brasil) Dale Knickerbocker (ECU, Estados Unidos)
Luís Gonçalves (PU, Estados Unidos) David Roas (UAB, Espanha)
Maria João Marçalo (UÉvora, Portugal) Jane Fraga Tutikian (UFRGS, Brasil)
Maria Suzett B. Santade (FIMI/FMPFM, Brasil) Júlio França (UERJ, Brasil)
Massimo Leone (UNITO, Itália) Magali Moura (UERJ, Brasil)
Paulo Osório (UBI, Portugal) Maria Cristina Batalha (UERJ, Brasil)
Roberval Teixeira e Silva (UMAC, China) Maria João Simões (UC, Portugal)
Sílvio Ribeiro da Silva (UFG, Brasil) Pampa Olga Arán (UNC, Argentina)
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Maracanã - Rio de Janeiro - CEP 20550-900
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Copyright© 2020 Ana Cristina dos Santos; Camila da Silva Alavarce (Orgs.)
Capa
Raphael Ribeiro Fernandes
Diagramação
Raphael Ribeiro Fernandes
Revisão
NuTraT – Supervisão de Tatiane Ludegards dos Santos Magalhães
André Luís Gomes de Jesus
Karen Paula Quintarelli
Thaiane Baptista
Thaiane dos Santos Magalhães
Produção
UDT LABSEM – Unidade de Desenvolvimento Tecnológico
Laboratório Multidisciplinar de Semiótica
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura
e no cinema.
S237 Organização: Ana Cristina dos Santos; Camila da Silva Alavarce
A324 Edição: Flavio Garcia
Capa: Raphael Fernandes
Diagramação: Raphael Fernandes
Rio de Janeiro: Dialogarts
2020, 1a ed. (digital)
800 – Literatura
ISBN 978-65-5683-000-1
Estudos Literários. Gótico. Fantástico. Insólito.
Índice
APRESENTAÇÃO
Camila da Silva Alavarce 7
SEXISMO E RACISMO: MONSTROS PRESENTES NA
CONSTITUIÇÃO NARRATIVA DE ESTRELAS ALÉM DO TEMPO
Viviane Conceição Antunes
Elda Firmo Braga 14
A FANTÁSTICA E INQUIETANTE COTIDIANIDADE FEMININA
DE AUGUSTA FARO E RENAN ALVES MELO Liliane de
Paula Munhoz
Maria Aparecida de Castro 32
Corpo e identidade: o cabelo como símbolo de
resistência
Maria Inês Freitas de Amorim 45
DE MULHER FALADA À QUE FALA, NAS OBRAS DE
MACHADO DE ASSIS E PEPETELA
Daniella Moreira de Oliveira 58
E A NOIVA DE FRANKENSTEIN? REFLEXÕES SOBRE A
(DES)IMPORTÂNCIA
Rita de Cássia Silva Sacramento
José Carlos Felix 68
ENTRE O ANORMAL E O MONSTRUOSO: NOTAS SOBRE
O LIVRO CARRIE DE STEPHEN KING (1974) E O FILME
HOMÔNIMO DE BRIAN DE PALMA (1976)
Gabriela Müller Larocca 84

O PALÁCIO DE TOCHTLI COMO O ESPAÇO DE


MONSTRUOSO DE SUA INFÂNCIA
Hiolene de Jesus M. O. Champloni 105
O MÚLTIPLO CRIA A LITERATURA VIVA
Marcella de Paula Carvalho 117
O CONFLITO DE UMA RAÇA: QUANDO O MONSTRO AMA
E O HOMEM MATA
Gabriel Braga Ferreira de Melo 137
A TESSITURA DO INSÓLITO EM TORNO DE MARIA:
A MINORIA E A MORTE (EM) CENAM EM A CORDA BAMBA,
DE LYGIA BOJUNGA
Ana Paula Caixeta de Brito
Camila da Silva Alavarce 149
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

APRESENTAÇÃO

Os dez textos que compõem o presente volume são resultado das


apresentações e discussões realizadas no simpósio “Vozes insólitas:
representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema
contemporâneos”, coordenado por mim e pela Profª Drª Ana Cristina
dos Santos, durante o IV Congresso Internacional Vertentes do Insólito
Ficcional, VII Encontro Nacional O Insólito como Questão na Narrativa
Ficcional, XVI Painel Reflexões sobre o insólito na narrativa ficcional –
Monstruosidades Ficcionais.
As palavras “insólito” e “minoria”, presentes no título do nosso
simpósio, marcaram de modo bastante significativo – é claro – todas as
falas entre aqueles dias 11 e 15 de novembro de 2018. Conversamos muito
sobre um espaço que, ainda hoje, é o da exceção – o espaço ocupado
pelas minorias – e relacionamos esse assunto urgente aos conceitos de
insólito e de fantástico. Dialogamos, sobretudo, naqueles dias, sobre
as contingências do existir como minoria, tecidas poeticamente – as
contingências – nas narrativas e nos filmes que foram objeto do olhar
atento dos autores aqui presentes; narrativas e filmes tecidos pelo único
viés possível, quando se toma como prerrogativa a minoria e o insólito ou,
ainda, o insólito como minoria: o viés da dissonância.
Lamentavelmente, no dia 29 de Outubro de 2019 – e, portanto,
quase um ano após o nosso encontro – precisamos, todos, elaborar a

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

morte da professora Ana Cristina dos Santos. Conheci Ana por intermédio
da professora Regina Michelli, que ouviu a minha fala numa Banca, em
Uberlândia, na UFU, e achou que seria frutífero academicamente me
apresentar à Ana. E foi: o resultado está bem aqui.
Sinceramente, não éramos próximas. Arrisco-me a dizer, entretanto,
baseada no que vi, naqueles dias durante o nosso simpósio, que a sua
morte deve ter sido vivida como uma contingência bastante dolorosa
por aqueles que, de fato, a acompanharam, quer em sua vida pessoal,
quer na caminhada acadêmica. Porque o que vi foi uma mulher
inteligente, aberta e generosa; vi uma professora acolhedora das
diversas vozes e abordagens que para nós se apresentaram, honrando
e respeitando a proposta principal daquele encontro, que não foi outra
senão a reunião de trabalhos sérios em torno do respeito à diversidade
e às minorias – caminho de pesquisa trilhado pela professora Ana e por
seu Grupo de pesquisa há muito tempo; o simpósio que coordenamos
juntas foi, portanto, um pequeno desdobramento da produtiva
caminhada acadêmica da Ana no sentido desses temas urgentes; e desse
desdobramento eu tive a grata oportunidade de fazer parte. É, pois, com
imenso respeito que me coloco aqui, objetivando finalizar um trabalho
que a professora Ana Cristina dos Santos iniciou e que, infelizmente,
não pôde concluir. Para tanto, contei com a ajuda do querido colega,
o Prof. Dr. André Luís Gomes de Jesus, a quem agradeço imensamente
pelo trabalho de organizar comigo este livro.
A proposta que norteou o Simpósio foi, em linhas gerais, a análise
da construção de personagens que, vivenciando a sua fragilidade como
minoria, se encontram à margem de um padrão comportamental eleito
como “melhor” e “correto” ou, ainda, como “superior”. As falas acolhidas
no simpósio nos trouxeram, pois, um pouco da vivência da exceção,
sobretudo nos espaços do homoerotismo, da negritude, do feminino e
da criança. Os trabalhos aqui apresentados, resultantes dessas falas, nos

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

trazem, pois, fragmentos de representação de uma reinvenção cotidiana


dessas identidades “insólitas”, em busca da sua voz, em tensão com uma
sociedade de poder que as exclui.
A presença dessas personagens no insólito ficcional possibilita, ainda,
a discussão sobre a questão das relações de poder, de suas formas de
representar-se e de ser representado. Logo, os trabalhos que apresento
a seguir sinalizam, principalmente, a construção e a reconstrução das
personagens e de seus múltiplos traços de identidade e, ainda, o papel dessas
minorias na estrutura narrativa e, consequentemente, na sociedade atual.
Em Sexismo e racismo: monstros presentes na constituição
narrativa de Estrelas além do tempo, Viviane Conceição Antunes e Elda
Firmo Braga fazem uma análise consistente do lugar da mulher negra
em um ambiente hostil como a NACA e a NASA, entre os anos de 1930
a 1980. Estrelas além do tempo (2016) baseia-se em um livro da autora
afro-americana Margot Lee Shetterly e, alinhando-se à proposta do filme,
as autoras Viviane e Elda procuram comentar e resgatar o protagonismo
de mulheres que atuaram no campo da matemática e da ciência – espaço
normalmente ocupado por homens brancos, sobretudo entre as décadas
de trinta e oitenta do século XX. O texto faz uma leitura fundamental do
filme, pela perspectiva dos conceitos de sexismo e de racismo, dos quais
as personagens, mulheres negras – embora vítimas – conseguem “um
lugar ao sol”, reinventando o seu “lugar”.
Liliane de Paula Munhoz e Maria Aparecida de Castro, em A fantástica
e inquietante cotidianidade feminina de Augusta Faro e Renan Alves
Melo propõem uma análise dos contos “As formigas”, de Augusta Faro,
e “Cavalos”, de Renan Alves Melo, inseridos, respectivamente, nos livros
A friagem e Mar escrito. A leitura das autoras privilegia a construção das
personagens Virgínia e Dolores, que, inseridas num universo patriarcal, são
vitimadas pela solidão e pelas agruras de uma sexualidade invariavelmente
reprimida. Trata-se de uma leitura humanizadora, na medida em que,

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

fazendo jus à discussão mais importante dos contos, descortina a trágica


experiência de existir subordinada ao machismo e às consequências
que ele – mas sobretudo a sua naturalização – criam: a fragilização e a
coisificação de muitas mulheres, ainda hoje.
Em Corpo e identidade: o cabelo como símbolo de resistência, sua
autora, Maria Inês Freitas de Amorim discute os contos “Pixaim”, de Cristiane
Sobral e “Fios de Ouro”, de Conceição Evaristo, sob a ótica do racismo e da
resistência. Maria Inês analisa a construção narrativa de duas personagens,
tendo em vista, sobretudo, a relação entre elas e os seus cabelos, buscando
representar a tentativa racista de apagamento dos traços da negritude e,
ainda, a adequação a um padrão de beleza eurocêntrico, construído a partir
de relações de poder. Por meio de uma leitura bastante pertinente dos
referidos contos, a autora traz uma reflexão urgente em torno do incentivo
– tão forte, em nossa sociedade, – a apagar e a transformar todo traço físico
que destoe deste padrão de beleza instituído e enrijecido: pele branca,
cabelos lisos, traços finos, entre outros.
Daniella Moreira de Oliveira, em seu texto intitulado De mulher
falada à que fala, nas obras de Machado de Assis e Pepetela, nos traz
uma leitura das personagens femininas Capitu, de Dom Casmurro, de
Machado de Assis, e Marisa, de O tímido e as mulheres, de Pepetela.
Ampliando o conceito de insólito ficcional, Daniella vê, na tessitura dessas
personagens femininas, especialmente, uma voz insólita, no sentido de ser
inusitada e de, portanto, se constituir como tensão em relação ao universo
masculino, delimitado pela cultura patriarcal. Para a autora, tanto Capitu,
quanto Marisa representam figuras insólitas, por não se subordinarem ao
machismo, e por desafiarem as tradições do casamento e da família.
Em E a noiva de Frankenstein? Reflexões sobre a (des)importância,
os autores Rita de Cássia Sacramento e José Carlos Feliz fazem uma
comparação entre Frankenstein, de Mary Shelley, e Poor things (1992),
do escritor escocês Alasdair Gray, uma reescrita do clássico Frankenstein.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Em seu texto, Rita e José Carlos discutem, especialmente, a falta de


protagonismo das personagens femininas nas duas obras – numa
representação literária daquela que é, de fato, a condição de minoria da
mulher na sociedade – e, partindo do conceito de desleitura, os autores
refletem, ainda, sobre as especificidades da reescrita de Frankenstein por
Alasdair Gray, em Poor things.
Gabriela Müller Larocca em Entre o anormal e o monstruoso: notas
sobre o livro Carrie, de Stephen King (1974) e o filme homônimo de Brian
de Palma (1976) nos traz uma reflexão importante sobre a concepção do
feminino como monstruoso e anormal, em diversas sociedades – ainda
hoje – partindo dos conceitos de anormalidade de Michel Foucault e
monstruosidade-feminina de Barbara Creed. Para Gabriela, há uma
relação fundamental entre a presença da monstruosidade feminina nas
ficções que se constituem pelo horror e a marginalização das mulheres,
de seus desejos e de sua subjetividade – tão antiga e ainda hoje presente.
Em O palácio de Tochtli como o espaço do monstruoso de sua
infância, Hiolene de Jesus M. O. Champloni analisa a violência e a
monstruosidade na infância, tomando como base teórica para a sua
reflexão os apontamentos da moderna teoria social proposta por Percy
Saul Cohen. Tochtli é o narrador de Festa no Covil, do escritor mexicano
Juan Pablo Villalobos e, com apenas oito anos de idade, o menino vivencia
experiências insólitas no que diz respeito, sobretudo, ao seu caráter de
violência e de monstruosidade – na infância, o que confere à narrativa um
traçado ainda mais insólito.
Marcella de Paula Carvalho, em seu texto intitulado O múltiplo cria a
literatura viva, nos apresenta uma análise da novela Poética de las sirenas,
do livro Diez poemas sobre el amor, de 2017, escrito pela argentina Teresa
de Mira Echeverría. Marcella propõe uma reflexão que se encaminha no
sentido de uma leitura da referida novela como uma espécie de “máquina
de criação monstruosa, contrária à tradição de multiplicidade”. Logo,

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

entre várias teorias, a autora se pauta, também, nos estudos de Deleuze,


a fim de salientar a importância da multiplicidade de devires, bem como a
urgência de se perceber traços fascistas que impossibilitam novos olhares.
Em seu texto O conflito de uma raça: quando o monstro ama e o
homem mata, Gabriel Braga Ferreira de Melo nos traz uma contribuição
muito importante sobre os X-Men, um grupo de mutantes cuja missão é
proteger uma sociedade que os teme. Na leitura proposta por Gabriel,
os X-Men são, desde a sua origem, a representação mais básica das
minorias, nos quadrinhos. O autor põe em destaque o trabalho do
roteirista Chris Claremont, que, segundo ele, foi bem sucedido escrevendo
esses personagens e, por essa razão, é o nome mais associado aos X-Men.
Gabriel assinala, ainda, que um dos temas principais abordado nos
quadrinhos é a questão do preconceito direcionado ao diferente e, ainda,
a dificuldade do exercício de alteridade.
Finalmente, minha orientanda de Mestrado Ana Paula Caixeta de Brito
e eu também compusemos o presente livro, trazendo o texto A tessitura
do insólito em torno de Maria: a minoria e a morte (em)cena em A corda
bamba, de Lygia Bojunga, que compreende uma parte das reflexões da
Ana em sua Dissertação de Mestrado, já defendida. A partir do referido
romance de Bojunga, procuramos refletir sobre o insólito ficcional para
além de sua associação mais comum com os conceitos de fantástico ou
de metaempírico. Em nosso entendimento, o conceito de insólito também
pode ser pensado a partir de uma tensão instaurada, na narrativa, entre um
determinado acontecimento e o seu choque em relação a certa concepção
de “real” – tensão constitutiva, que cria uma série de efeitos de sentido no
romance. Em A corda bamba, nos encontramos com a personagem Maria,
uma criança que presencia a morte dos pais, em um espetáculo circense,
em que eles se apresentavam, andando numa corda bamba.
Bem, chego ao fim dessa apresentação, mais uma vez, muito agradecida
pela oportunidade de fazer parte de discussões tão importantes. De fato,

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

pensar o conceito de insólito associado às minorias e, ainda, como um


modo de funcionamento que, pela tensão e pela dissonância, desencadeia
efeitos de sentido importantes nessas ficções é ampliar e aprofundar a
discussão – nunca encerrada – em torno do conceito de insólito ficcional.
Nunca será demais retomar que “nunca encerrada” deve ser a condição
de toda discussão literária em torno de quaisquer conceitos, afinal, se o
conceito se pretende fixo e genérico, as nossas questões serão sempre
movediças, contingenciais e singulares. Os conceitos devem estar a serviço
do crítico literário e de suas indagações: jamais o contrário.
Fica aqui o nosso “muito obrigado” à Profª Drª Ana Cristina dos Santos
pela acolhida generosa de reflexões que, mesmo seguindo um “norte”
comum, se revelaram tão diversas – o que deve ser a prerrogativa do
diálogo no âmbito da teoria literária, e por que não, da vida: a possibilidade
da diversidade!
Camila da Silva Alavarce
Organizadora.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

SEXISMO E RACISMO: MONSTROS


PRESENTES NA CONSTITUIÇÃO NARRATIVA
DE ESTRELAS ALÉM DO TEMPO
Viviane Conceição Antunes
Elda Firmo Braga

INTRODUÇÃO
Estrelas além do tempo (2016) baseia-se em um livro da autora afro-
americana Margot Lee Shetterly, resultado de pesquisas que faz com o
intuito de realizar um autêntico revisionismo histórico: resgatar e revelar
o protagonismo de inúmeras mulheres que atuaram, entre 1930 e 1980,
na NACA e NASA, no campo da matemática, da ciência, da engenharia e da
computação. O referido filme está ambientado, na maior parte do tempo,
no início dos anos 60, época na qual ainda vigorava a segregação racial e
a luta pelos direitos civis começava a se intensificar.
Neste momento, a corrida espacial entre os EUA e a, até então,
denominada URSS estava a todo vapor. No entanto, algumas pessoas,
mesmo executando tarefas estratégicas, tiveram seu talento invisibilizado
e ocultado pela história oficial. Dentro de tal contexto, havia uma
predominância de homens brancos que contavam com o “cérebro” de

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

matemáticas negras, também chamadas de computadores humanos.


Ao contrário de serem reconhecidas por suas intensas e imprescindíveis
atividades, elas sofriam cotidianamente as investidas de um monstro de
duas cabeças, responsável por coadunar duas formas de preconceito:
o sexual (o universo das ciências exatas é muito masculino) e o racial
(dentro da instituição era reproduzida com recorrência a segregação
ainda existente em algumas regiões dos Estados Unidos naquela época).
Concebemos o sexismo e o racismo como monstros ideológicos,
simbólicos, metafóricos que são capazes de causar feridas reais; frutos
robustos de uma matriz baseada na tríade raça/gênero/trabalho, entendida
por Quijano (2011) como ferramentas de dominação colonial. Ancoradas
em um viés decolonial, pretendemos mostrar que entendê-los dessa forma
significa: i) observar como se apresentam nos mais variados contextos,
pois estão imersos em questões socioculturais que os legitimam e os
mantém de forma silenciosa, mas, ainda assim, opressora; ii) compreender
que representam sérios mecanismos de anulação da subjetividade por
de invalidação/desconsideração do potencial e da capacidade inventiva;
iii) conceber que o assolamento, a humilhação, o descaso, a submissão, o
sequestro da autoestima e da subjetividade se assemelham ao perfil grotesco
dos monstros: seres que amedrontam, ferem, tragam nossas vísceras e que
podem nos levar a óbito. Por isso, urge que saibamos combatê-los.
Pautando-nos em Ricouer (2005, p.301), convém ressaltar que
a percepção da similaridade destes domínios – o do sofrimento e o
do grotesco – oferece sustentação a esta discussão. Estrelas além do
tempo  retrata a história inspiradora de três mulheres negras fortes e
talentosas, apaixonadas pela matemática, exemplos de empoderamento
feminino, de valentia, de resistência ao sexismo e de triunfo contra o
racismo. Embora estivessem num ambiente hostil, elas conseguiram unir
forças, através das brechas (grietas (WALSH, 2017)) e assim, mesmo diante
das mais variadas adversidades, conquistar significativas vitórias.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Um rechaço consciente às ferramentas de dominação em nossa


sociedade, aos mencionados monstros, se fundamenta em ações de
atenção à representatividade, coletividade, autonomia, atuação efetiva
em defesa de um convívio ético e valorização/reconhecimento público do
conhecimento. Uma discussão tão necessária e que, realmente, ultrapassa
o tempo.

1. O SEXISMO E O RACISMO: GRANDES OBSTÁCULOS AO GIRO


DECOLONIAL
De acordo com Cañas e Gallego (2016, p.285), o legado cultural
das comunidades ancestrais continuaria vivo e, certamente seria mais
respeitado, se sua memória fosse concebida dentro de um projeto
transversal na recepção e produção de conhecimentos. Neste escopo, o
movimento de controle hegemônico que incute saberes, comportamentos
sociais e referências da cultura dominante não diminuiria nem conseguiria
deslegitimar seus valores originais. Assim, entendemos que tanto a
universidade quanto os ambientes científicos deveriam ““decolonizar” sus
saberes para alcanzar un espacio transcultural que incluya todos aquellos
conocimientos y cosmovisiones populares y tradicionales para que
puedan ser tenidos como pares (p.286)”, no qual o processo de ensino-
aprendizagem seria responsável por acolher os mais variados saberes.
Entretanto, essa ação decolonizadora não faz parte de nossa realidade,
em pleno século XXI, e, de forma alguma, figurava na década de 60, nos
EUA, conforme retrata Estrelas além do tempo (2016). Domínios acadêmico-
científicos não eram e ainda não são vistos como espaços dos quais podem
participar mulheres, principalmente se forem negras. Se nos pautarmos
nos estudos de Quijano (2014, p.289), tal questão tem relação direta com a
concepção histórica de poder, uma forma de controle fundamentada pela
necessidade de domínio da existência social em diversas áreas.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Figura 1. O poder e o controle dos âmbitos da existência social.


Baseada em Quijano (2014)

Se examinarmos essa figura com atenção, podemos perceber


que a mulher não vivencia equanimidade de tratamento em nenhum
dos âmbitos sublinhados por Quijano (2014, p.289), quer seja no
trabalho, na participação na natureza, na reprodução da espécie, nas
suas especificidades enquanto mulher, muito menos no que tange à
autoridade. E, se esta mulher for negra, o nível de equanimidade diminui
drasticamente ou, muitas vezes, se anula. Estas considerações nos levam
a pensar na teoria da interseccionalidade e na colonialidade de gênero,
expressão concebida por Lugones (2018).
Lugones (2018) destaca a validade da expressão americana “mulheres
de cor (Women of color)”, como uma conquista identitária, pois dilacera
posicionamentos absolutos pregados por grupos racializados frutos
do capitalismo, do cerne da colonialidade. Estilhaça a hegemonia
racista e tem grande potencial inclusivo, pois une todas as mulheres
subalternalizadas no universo da colonialidade (as afro-americanas, as
indígenas, as caribenhas...); algo que, para Lugones (2018), produz uma
relevante amálgama entre o feminismo de perspectiva transnacional, de
Terceiro Mundo e decolonial (p.76).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Nesta linha de raciocínio, a compreensão do que é ser “mulher”


de forma alguma se restringe a ser “dona de casa” ou “faxineira”; a
subordinação da mulher a outro homem ou a outra mulher em uma
condição social superior não é inerente e precisa ser tema de reflexão da
sociedade, a partir de um viés interseccional (LUGONES, 2018, p.82)
Neste sentido, intersecções quebram hegemonias, pois a categoria
“mulher” guarda relações de poder que se comportam de formas diferentes
e provocam situações diversas a depender do tipo de interseção. O monstro
que trazemos à baila pode ser descrito realmente como um ser cujo corpo
apresenta duas cabeças e, assim, podemos pensar sobre os problemas que
juntos acarretam e as sérias consequências que elas geram. Conforme ressalta
Lugones (2018), as categorias não são dominantes e nem excludentes entre si,
mas intercategoriais no que tange ao poder; são, portanto, co-constituintes
e para que a engrenagem da colonialidade se rompa, será preciso empregar
uma força capaz de destruí-las ao mesmo tempo.
Nesta linha de raciocínio, a compreensão do que é ser “mulher”
de forma alguma se restringe a ser “dona de casa” ou “faxineira”; a
subordinação da mulher a outro homem ou a outra mulher, em uma
condição social maior do que a sua, não lhe é inerente e precisa ser tema
de reflexão da sociedade, a partir de um viés interseccional (LUGONES,
2018, p.82). Este nos leva a entender que não é um problema das mulheres
negras co-teorizar raça e gênero, mas é um problema que afeta a todos
e de todos é responsabilidade. Tal fato indubitavelmente se verifica em
muitas cenas de Estrelas além do tempo (2016).
Convém dizer que intersecções quebram hegemonias, pois a categoria
“mulher” guarda relações de poder que se comportam de formas diferentes
e provocam situações diversas a depender do tipo de interseção. O monstro
que trazemos à baila pode ser descrito realmente como um ser cujo corpo
apresenta duas cabeças e, assim, podemos pensar sobre os problemas que
juntos acarretam e as sérias consequências que elas geram.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Conforme ressalta Lugones (2018), as categorias não são dominantes


e nem excludentes entre si, mas intercategoriais no que tange ao poder;
são, portanto, co-constituintes e, para que a engrenagem da colonialidade
se rompa, será preciso empregar uma força capaz de destruí-las ao
mesmo tempo. Enquanto uma mulher negra for subjugada, enquanto
sua subjetividade for considerada menor, como detentora de identidade
subalterna, não será possível decolonizar.

2. AUTOESTIMA E RESGATE DE SUBJETIVIDADE: UMA


QUESTÃO DE REPRESENTAÇÃO
Retomando Harris (1990), Hernández (2005, p.78) procura entender a
estrutura das culturas, a partir de um padrão universal. Ainda que saibamos
que as palavras “padrão” e “universal” reforçam o prisma da colonialidade,
vejamos como se compreendem as culturas com base nesta ótica.

LAS CULTURAS: PATRÓN UNIVERSAL


Ideología y valores religiosos.
Creatividad,
Valores éticos y morales. Valores
ideología y
estéticos. Actividades lúdicas,
valores
SUPERESTRUCTURA artísticas, creativas, expresivas, etc.
Aspectos Organización psicológica cognitiva
intelectuales y y afectiva. Organización y sistema
mentales educativo formal y no formal. Etc.
Relaciones externas. Sistema de
Economías
distribución y acceso al poder. Poder
políticas
territorial, militar, judicial, etc.

ESTRUCTURA Sistema familiar, parentesco, clan


papel de la mujer, etc. Relaciones
Economías
intergeneracionales. Sistemas de
domésticas
consumo, ahorro, distribución,
reparto, etc.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Regulación del crecimiento


Modo de
demográfico. Técnicas y ritos de
reproducción
crianza y educación intrafamiliar.
Requisitos mínimos de
INFRAESTRUCTURA subsistencia: artesanía,
Modo de herramientas, vivienda,
producción alimentación, cocina, vestuario,
salud, recolección, agricultura,
caza, pesca, etc.
Tabela 1. Las culturas: Patrón universal. Harris (1990)
Se pensarmos no papel da mulher negra em termos da infraestrutura e da
estrutura no que concerne ao padrão universal, ela é invisibilizada em todos
os espaços científicos. No filme em questão, são-lhes cerceadas a criatividade,
a intelectualidade, o acesso ao poder; menoscabam-lhes a capacidade física
no modo de produção. Nas economias domésticas e no modo de reprodução,
na maioria das vezes, têm sua participação inferiorizada.
Ser exemplo. Pioneira. Líder. A representatividade é algo decisivo em
Estrelas além do tempo (2016). Não obstante, a autoestima e o resgate de
subjetividade da mulher negra não têm espaço em um padrão colonial de
cultura. Sendo assim, é preciso lutar por ele, construí-lo, pensá-lo, liderá-lo. A
relação raça/gênero perpassa, portanto, a nossa interação com os membros
da sociedade, de maneira consciente ou inconsciente, de formas variadas.
A decolonização de gênero pode encontrar na transculturalidade e na
interculturalidade elementos que a legitimam. Por um lado, seria preciso
reaproximar culturas a ponto de que pudessem intercambiar valores que
promovessem a paz (HERNÁNDEZ, p.79). Por outro, o diálogo efetivo entre
as culturas, uma volta intercultural no universo ancestral, pode levar a um
maior equilíbrio, harmonia, complementaridade e a um movimento sério
de despatriarcalização.
O universo científico e a colonialidade têm a mesma origem e dão relevo
à formação do mundo dito moderno no século XVI , conforme dizem Miranda

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

e Silva (2015). Dessa maneira, discursos desestabilizadores neste universo


legitimam práticas coloniais e alimentam a violência simbólica. Esta fere, mas,
muitas vezes, se dá de maneira implícita... ainda que nada sutil.
O filme traz algumas evidências do patriarcalismo vigente nos anos
60, nos Estados Unidos. Nesta época, muitas mulheres conseguiam estar
no mercado de trabalho porque havia carência de mão de obra masculina,
uma consequência ainda da II Guerra Mundial e a partir de 1964 também
da Guerra do Vietnã. No entanto, em várias partes do filme, é possível
percebermos que as mulheres são vistas através de um filtro sexista.
Destacaremos, aqui, aspectos relacionados à Mary Jackson e à Katherine
Goble/Jonhnson. Começaremos com Mary Jackson.
O sexismo é salientado em uma conversa entre Mary Jackson e Zielinski.
Merece destaque a atitude de Zielinski. Ele demostra ter um caráter
diferente do senso comum que abrange os homens, geralmente, envoltos
nos preceitos machistas, pois Zielinski enaltece o potencial de Mary Jackson
e a incentiva a lutar para que pudesse tornar o “impossível” em “possível”.
Zielinski: “Tem outra vaga no Programa de Treinamento
de Engenheiros. [...] quem pensa como engenheiro, deve
ser um. Não pode ser uma matemática para sempre.”
Mary Jackson: “Sr. Zielinski, sou uma mulher negra. Não
vou alimentar o impossível.”
Zielinski: “Eu sou um judeu polonês cujos pais morreram
em uma prisão nazista. Agora estou debaixo de uma
nave espacial que vai levar um astronauta para as
estrelas. Acho que podemos dizer que estamos vivendo
o impossível. Vou te fazer uma pergunta. Se [você] fosse
um homem branco, gostaria de ser engenheiro?”
Mary Jackson: “Não precisaria querer, eu já seria um.”

Vemos nos excertos anteriores que, incialmente, Mary Jackson,


mesmo chegando a conclusões similares a de um engenheiro, ela não
poderia se especializar nesta área por conta de duas barreiras: a de raça e

21
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

a de gênero. No entanto, posteriormente, Mary Jackson resolve batalhar


para conseguir se habilitar a fim de participar do Programa de Treinamento
de Engenheiros. São dois os desafios que ela precisará vencer: a família
(seu marido) e a justiça. Vejamos trechos de uma conversa entre o casal:
Levi Jackson: “Eu não entendo.”
Mary Jackson: “Não quero mais falar sobre isso, está bem.”
Levi Jackson: “Mas uma engenheira! Uma engenheira!
Somos negros, meu amor, não existe isso em Langley1”
[...]
Levi Jackson: “Criança tem que comer verdura, saberia
disso se ficasse em casa.”

Além de não contar com apoio do marido, Mary Jackson ainda recebe
críticas suas pelo fato de, na visão dele, ela não cumprir com um papel
socialmente determinado para as mulheres: cuidar do lar e de sua família
ao insinuar que ela não se preocupava com a alimentação de seus filhos
porque estava ausente por causa de seu trabalho.
Para transpor a barreira judicial, Mary Jackson se vale de uma aguda
sagacidade feminina. Observemos a sua conversa com o Juiz durante a
audiência que julgará a sua Petição para estudar na Hampton High School.
Mary Jackson: “Excelência, você deveria entender a
importância de ser o primeiro.”
Juiz: “Como assim, Sra. Jackson?”
Mary Jackson: “Você foi o primeiro da [sua] família a
servir às Forças Armadas. O primeiro a ir a Universidade
George Mason. E o primeiro juiz estadual a ser
[renomeado] por três governadores consecutivos.”
Juiz: “Você andou pesquisando.”
Mary Jackson: “Sim, senhor.”

1  Referente ao Centro de Pesquisas Langley (Langley Research Center), situado em Hampton,


estado da Virgínia (EUA). Este foi o primeiro centro de pesquisa de campo da NASA.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Juiz: “O que quer dizer?”


Mary Jackson: “Excelência, nenhuma negra em Virgínia
estudou num colégio de brancos.”
Juiz: “Nunca aconteceu.”
Mary Jackson: “Sim nunca aconteceu. E antes de Alan
Shepard sentar no topo de um foguete, nenhum outro
americano havia ido ao espaço. E, agora, ele será sempre
lembrado como o americano de New Hampshire, o
primeiro a tocar nas estrelas. E eu, senhor, planejo ser
uma engenheira da NASA, mas só conseguirei se estudar
naquela escola de brancos. E não posso mudar a cor
da minha pele. Então não tenho escolha, exceto ser a
primeira. O que não posso fazer sem o senhor. Excelência,
de todos os casos que ouvirá hoje, qual vai importar
daqui a 100 anos? Qual vai fazer você ser o primeiro?”
Juiz: “Só aulas noturnas, Sra. Jackson.”

Sua postura firme diante do juiz, somada a um discurso alicerçado na


defesa do pioneirismo – na “importância de ser o primeiro” –, utilizando
como exemplo a trajetória do próprio juiz e a do astronauta Alan Shepard,
primeiro a ir ao espaço, levou-a a conquistar a almejada permissão
para frequentar um curso de engenharia. É relevante ressaltar dados
apresentados na fala do juiz sobre segregação racial que, nesta época, já
havia sido revogada nos Estados Unidos, mas, segundo ele, o estado da
Virgínia não seguia as leis nacionais, senão as suas próprias regras, ou seja,
as leis regionais prevalecem sobre as nacionais. Vendo a determinação de
sua esposa, Levi Jackson muda de atitude. Em vez de criticá-la, lhe dá o
seu apoio e reconhecimento:
Levi Jackson: “[...] Você será uma boa engenheira [...]. E
ninguém se atreverá a ficar no seu caminho dos sonhos
de Mary Jackson. Nem mesmo eu.”

Quando Mary Jackson chega à sala de aula, no curso de engenharia,


encontra somente homens brancos. A primeira atitude sua foi se

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

apresentar ao professor da turma. Diante da perplexidade do professor


e dos alunos, Mary Jackson se acomoda em uma cadeira e permanece no
curso até o dia da sua formatura.
Katherine Goble passará por um processo muito semelhante ao
vivido por Mary Jackson tanto em relação ao seu futuro marido, o coronel
Jim Johnson, que teve, inicialmente, uma atitude bastante machista ao
conhecê-la, quanto a se impor para romper com regras rígidas para obter
o reconhecimento seu trabalho.
Na primeira conversa que tem com seu futuro marido, o coronel
Johnson, ele demonstrou estar alinhado com um pensamento patriarcal:
Coronel Johnson: “Eles deixam mulheres lidarem com...
Não foi o que quis dizer.”
Katherine Goble: “O que você quis dizer?”
Coronel Johnson: “Só estou surpreso que algo tão
pesado...”
Katherine Goble: “Sr. Johnson, se eu fosse você eu
pararia de falar agora.”
Coronel Johnson: “Não quis te desrespeitar.”
Katherine Goble: “Fique sabendo que eu fui a primeira
estudante negra na Universidade do Oeste da Virgínia.
[...] analiso níveis manométricos de deslocamento, atrito
e velocidade do ar. E faço 10.000 cálculos de cosseno, raiz
quadrada e geometria analítica à mão. Há 20 mulheres
negras brilhantes e capazes no grupo das Matemáticas.
E estamos orgulhosas de servir o país. Então sim, deixam
mulheres fazerem coisas na NASA, Sr. Johnson. E não
porque usamos saias. É porque usamos óculos.”

O discurso anterior também está amparado no valor do pioneirismo.


Nele, temos informações relevantes sobre as conquistas de Katherine
Goble, bem como de seus conhecimentos científicos. Também merece
destaque a metáfora dos “óculos” que remete, aqui, a inteligência.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

No trabalho, Katherine Goble/ Johnson se valem da persistência e


determinação para serem respeitadas. Uma de suas principais batalhas é para
poder assinar os relatórios com cálculos que ela mesma elabora. Outro exemplo
que mostra o empenho e a persistência de Katherine é a sua insistência em
querer participar de reuniões do Pentágono, restritas a militares homens.
Paul Stafford: “Reuniões do Pentágono não são para
civis. Exigem autorização.”
Katherine: “Sou a melhor para mostrar meus cálculos.”
Harrison: “Não vai desistir.”
Katherine: “Não.”
Paul Stafford: “Ela vai entrar? Ela é mulher. Não há
protocolo para isso.”
Harrison: “Está bem. Entendo esta parte, Paul. Mas
dentro deste prédio, quem faz as regras?”
Katherine: “Você, senhor. Você é o chefe. Só tem que
agir como um, senhor.”
Harrison: “Fique quieta.” Katherine: “Obrigada”
Harrison: “Esta é Katherine Goble, da Divisão de
Trajetória de Lançamento. O trabalho dela é pertinente
aos procedimentos de hoje.”

De forma muito parecida com a estratégia utilizada por Mary Jackson


no Tribunal de Justiça, Katherine se faz valer do exemplo dos pilotos
da NASA para levantar questionamentos: se homens podem dar voltas
orbitais arredor da Terra sem existir um protocolo que regulamente
esta ação, por que uma mulher não poderia participar de uma reunião
do Pentágono embora não houvesse um protocolo que tratasse de tal
façanha? As seguintes frases são também merecedoras de destaque: “Mas
não é assim que funciona”; “Não é possível” e “É assim que as coisas são”.
Todas elas remetem a um determinado status quo que não poderia ser
desconsiderado, indicando também uma justificativa para o conformismo.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

No entanto, vimos que a constância e a persistência podem romper


com uma circunstância considerada como injusta e arbitrária. Da mesma
forma que Mary Jackson passa a contar com o apoio de Levi Jackson, seu
marido, Katherine Goble também conquista o reconhecimento do Coronel
Johnson. Tanto Mary Jackson quanto Katherine Goble, mesmo diante
inúmeros obstáculos, não se resignaram. Pelo contrário, graças à astúcia
e à determinação, ambas romperam com uma ideologia do conformismo
imposto. Ao transformar o impossível em possível, elas passaram a
compor, também, a constelação de mulheres pioneiras no âmbito do
Programa Espacial da NASA, pois suas conquistas abriram caminho para a
sua própria geração e as procedentes.

3. GRIETAS E SILÊNCIOS AGENTIVOS...


Encontrar saídas para resolver a interseção, a intercategoria raça/
gênero, nos leva a pensar no padrão colonial: “capitalista-moderno/
colonial-antropocéntrico-racista-patriarcal”. Precisamos buscar formas de
destituí-la. Estas saídas são brechas (grietas), muitas vezes, abertas com
cuidado, com medo, como troféu depois de algum tipo de sofrimento. São
essas que resgatam nossa subjetividade, nos permitem caminhar, reagir,
num intenso movimento de pensar, sentir, fazer e agir.
Son gritos que llaman, imploran y exigen un pensar-
sentir-hacer-actuar, que claman por prácticas no solo
de resistir sino también de in-surgir, prácticas como
pedagogías-metodologías de creación, invención,
configuración y co-construcción —del qué hacer y cómo
hacer— de luchas, caminares y siembras dentro de las
fisuras o grietas del sistema “Dejar el grito, forjar la
palabra. (WALSH, 2017, p.30)

Esse movimento começa no filme Estrela além do tempo a partir da


história de Katherine, uma criança que se encontra no sexto ano escolar

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

no ano de 1926. Ela é a aluna mais nova da sala de aula em que estuda,
tendo adolescentes e jovens como seus colegas de turma. Devido a sua
extraordinária inteligência, seus professores incentivam os seus pais a
matriculá-la no Instituto da Virginia Ocidental, único colégio da região que
vai além do nono ano. Ali, Katherine teria direito a uma bolsa de estudo
integral, mas sua família precisaria se mudar para que a menina pudesse
aproveitar a oportunidade que surgiu.
Uma de suas professoras declara a família que, desde que começou
a lecionar, jamais viu uma aluna tão brilhante como Katherine. Ela diz
aos pais: “Vocês precisam ir. Precisam ver o que Katherine se tornará.”.
O coletivismo e a solidariedade se manifestam, seus professores fazem
uma arrecadação, entre si, de dinheiro para contribuir com a mudança e
o estabelecimento de Katherine e sua família mais perto da nova escola.
Depois disso, o filme dá um salto temporal para o ano de 1961. Em
uma estrada de Hampton, estado da Virgínia, estão Dorothy Vaughan,
Katherine Goble (depois que se casa pela segunda vez passa a se chamar
Katherine Jonhnson) e Mary Jackson com um carro avariado. As três são
amigas, cada uma, a sua maneira, demostra ser persistente e determinada,
além representar algum tipo de pioneirismo. Elas trabalham na sede
da NASA, em Tangley, que fica a 26 quilômetros de distância de onde
moram. Em uma conversa entre elas, aparecem opções que cotam para
se deslocarem: andar em um carro velho, ir a pé ou se sentar nos fundos
de um ônibus. Na última alternativa, aparece um primeiro indicativo,
nesta obra cinematográfica, da segregação racial existente na região
nessa época. No decorrer do filme, surgem outros flagrantes de racismo
institucionalizado ainda existente em algumas regiões dos EUA no início
dos anos 60.
A título de exemplificação, bebedouros, sendo que cada um traz um
registro para quem está destinado “White only” e “White colored”. Mostra-
se também a segregação racial dentro dos transportes coletivos, com

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

destaque para a seguinte inscrição: “For colored patrons only”, indicando


que os únicos assentos disponíveis para a população afro-americana eram
os que ficavam na parte traseira dos ônibus. Vislumbra-se o espaço de um
Tribunal de Justiça; neste ambiente, brancos estão sentados nos bancos
da direita e nos do meio enquanto que os negros se encontram apenas na
parte detrás, à esquerda. A expulsão de Dorothy e seus filhos da biblioteca
pública Hampton também é uma mostra da segregação, porque ela não
respeitou a restrição para circular somente na seção de livros específica
para negros. A mesma segregação existente em vários âmbitos da referida
região também é manifestada dentro da NASA: no final de um corredor,
da ala oeste, há uma escada que dá para o espaço externo do prédio, é
bastante significativa, pois indica que as matemáticas negras trabalham
no subsolo desta ala, que fica há 800 metros da ala leste, prédio principal
da NASA; em uma das salas do referido subsolo, existe uma placa em cima
do quadro de giz com a seguinte inscrição: “Colored computers” e outra
com a expressão “East computing room”.
Em um ambiente onde a segregação é bastante notória, o combate
ao racismo institucionalizado também se evidencia. Um exemplo são as
atitudes tomadas por Harrison, diretor do Grupo de Missão Espacial. Ele
retira a cafeteira destinada exclusivamente a pessoas negras de sua sala e
acaba com a distinção racial no uso dos banheiros.
Existia um contraste entre o banheiro de mulheres brancas e o das
afro-americanas. Em um havia uma placa com a seguinte inscrição “Ladies
restroom” enquanto que no outro “Colored ladies restroom”. A diferença
segue, um não possuía sabonete, papel toalha e tampouco decoração
alguma. Já o outro tinha cortina, luminárias, abajures, além de itens de
higiene que no primeiro não havia.
Embora um homem branco intervenha para atenuar o flagrante
racismo existente na NASA, as transgressões à ordem estabelecida,
protagonizadas por Mary, Dorothy e Katherine, são grande merecedoras

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

de destaque. Em um determinado momento, elas foram escoltadas por


um policial até o seu trabalho para que não chegassem atrasadas. Vejamos
as palavras de Mary: “Três negras seguindo um policial branco na estrada
em Hampton [...]. Senhoritas, este é um milagre ordenado por Deus!”
Após ganhar um recurso na justiça, Mary, bacharel em matemática e
ciências físicas, é a primeira aluna negra a fazer um curso avançado para
se formar em engenheira em uma instituição segregacionista. Mary se
apresenta ao professor da turma e em seguida se senta na primeira fileira de
cadeiras na sala de aula, rompendo com uma norma vigente que colocava
os fundos como o espaço determinado para os negros. Ela também foi a
primeira mulher negra a se tornar engenheira aeronáutica na NASA.
Outro elemento importante encontrado no filme diz respeito
ao coletivismo, somado a uma boa dosagem de solidariedade e de
empoderamento das mulheres negras. Dorothy é a protagonista destas
ações. Ela, diante do avanço de suas amigas Mary e Katherine, diz:
“Qualquer ascensão [de alguma de nós] é um ganho para todas nós.”
Todos tinham dificuldade para usar o gigante computador IBM que
havia chegado à NASA. Dorothy, que praticou mecânica com seu pai,
aprendeu de forma autodidata a programar este computador e conseguiu
colocá-lo para funcionar. Prevendo que esta máquina poderia causar
desemprego para muitas matemáticas, ela ensinou programação a várias
jovens negras. Com isso, um relevante deslocamento se evidenciou. Estas
jovens deixaram o subsolo do edifício oeste para trabalharem no leste,
passando a compartilhar o mesmo espaço com as matemáticas brancas.
Lideradas por Dorothy, elas chegam à sala do supercomputador. Dorothy
foi também a primeira supervisora negra da NASA.
Katherine, primeira aluna negra a ingressar na Universidade do Oeste
da Virgínia, foi selecionada para trabalhar com geometria analítica na
equipe Harrison, diretor da NASA. Quando se apresentou ao novo posto

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

de trabalho, ela foi confundida com uma faxineira por um dos seus futuros
colegas. Neste ambiente, se encontravam dezenas de homens, todos
brancos. A única mulher, além de Katherine, existente neste ambiente era
Ruth, a secretária de Harrison.
Apreciemos o primeiro diálogo entre as duas. Katherine diz: “Sou a
matemática do Sr. Harrison”. E Ruth responde: “Pegue a mesa dos fundos,
logo passarei o trabalho”. Outra vez, pelo fato de ser uma mulher negra,
teria de ir para os fundos. A segunda recomendação de Ruth foi: “Trabalhe
e mantenha a cabeça baixa.”. Katherine trabalhou intensamente, mas não
baixou sua cabeça, pelo contrário, lutou cotidianamente para conquistar o
devido respeito, como, por exemplo, poder assinar os cálculos e relatórios
que elaborava e receber café de um dos seus colegas.
O trabalho de Katherine foi fundamental para que a NASA pudesse
colocar o primeiro homem a orbitar no espaço. O astronauta John Glenn,
quem botou a sua vida nas mãos da matemática, disse que somente
decolaria depois que ela checasse todos os cálculos. Outro elemento que
merece destaque é o desenho feito por uma das filhas de Katherine. Nele,
a mãe é retratada dentro de um foguete, vista como uma astronauta.
Esta imagem antecipa uma façanha realizada em 1992 que teve
como protagonista Mae Jemison, a primeira astronauta negra da NASA2.
É importante ressaltar, ainda, que as conquistas das matemáticas da
NASA abriram um importante caminho tanto para mulheres de sua época
quanto as de períodos posteriores.

CONCLUSÃO
Ao transformar o impossível em possível, as protagonistas de Estrelas
além do tempo (2016), personagens reais, passaram a compor, também,

2  In https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2018/10/mae-jemison-conheca-
primeira-astronauta-negra-ir-para-o-espaco.html Acesso em Mar.2019.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

a constelação de mulheres pioneiras no âmbito do Programa Espacial da


NASA, pois suas conquistas abriram caminho para a sua própria geração
e as procedentes.
Suas ações e atitudes refletem o intenso movimento de pensar, sentir,
fazer, agir a partir do coletivo, da solidariedade, da representatividade e da
luta pelo reconhecimento. Todas de grande relevância para a quebra da
matriz colonial que tanto assola as mulheres de cor cujo brio e luta funcionam
como brechas. Feixes de luz que brilham diante de tantas injustiças.

REFERÊNCIAS
CAÑAS, Francisco Chica; MARÍN, José Duván (2016). “La decolonización del saber
epistémico en la universidad”. Cuadernos de Filosofía Latinoamericana. 37(115), 285-302.

HERNÁNDEZ, Veronica H (2005). Cultura, Multiculturalidad, Interculturalidad y


Transculturalidad: Evolución de un Término. In http://pedagogia.fcep.urv.cat/
revistaut/revistes/juny05/article04.pdf 2005 Acceso em Abr.2019.

LUGONES, María (2018). “Hacia metodologías de la decolonialidad”. In: SOLANO,


Leyva (et. al.) Prácticas otras de conocimiento(s). Entre crisis, entre guerras (Tomo
III). México, Cooperativa Editorial RETOS, Taller Editorial La Casa del Mago, CLACSO.

MELFI, Theodore (2016). Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures). EUA. 20th
Century Fox, (127 min).

MIRANDA, Claudia; SILVA, Sonia Maria Vieira da (2015). “Narrativas insurgentes


de universitários/as negros/as: desvios e práticas discursivas de inspiração
colonial”. Revista Educere et Educare. 10(20).

QUIJANO, Aníbal (2014). Colonialidad del poder y clasificación social. Buenos


Aires: CLACSO Editorial.

RICOEUR, Paul (2005). A metáfora viva. Dion Davi Macedo (Trad.). São Paulo: Loyola.

WALSH, Catherine (2017). Pedagogías decoloniales: Prácticas insurgentes de


resistir, (re)existir y (re)vivir. Ediciones Abya-Yala.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A FANTÁSTICA E INQUIETANTE
COTIDIANIDADE FEMININA DE AUGUSTA
FARO E RENAN ALVES MELO
Liliane de Paula Munhoz
Maria Aparecida de Castro

1. INTRODUÇÃO
Duas frases nos motivam as reflexões acerca dos textos de realismo
fantástico a que dedicamos nossa análise: “A boca de Dolores era limpa” (FARO,
1999, p.11) e “Virgínia esfrega seus seios contra a parede áspera, as pernas,
e desliza suas mãos imundas por todo o corpo” (MELO, 2012, p.50). Estas
passagens, extraídas dos contos “As formigas”, de Augusta Faro, e “Cavalos”,
de Renan Alves Melo, nos remetem ao universo feminino que ambos os
autores figurativizam nos livros A friagem (2001) e Mar escrito (2012).
Os contos destes autores goianos falam da sexualidade da mulher, numa
sociedade que, majoritariamente, a considera suja, maldosa, indecente e
obscena. Por um lado, a personagem Dolores, na meia idade, seria o que
poderíamos denominar “assexuada virtuosa”, cujo desejo sexual é interditado;
por outro, a jovem Virgínia, propriedade do pai, sofre com o abuso sexual
mais perturbador e inquietante que pode haver nesta nossa sociedade.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Faro e Melo criam solidões invencíveis que espreitam a obscura e


melancólica vida de duas mulheres ambientadas num universo patriarcal,
machista, que as diminui, as fragiliza, as coisifica. Dolores e Virgínia são
duas mulheres assombradas pelo espectro doentio da própria sexualidade
que longe de prazer e amor, é fonte de dor, estranhamento, perdição,
“pecado”, decadência física e moral, fruto de um domínio masculino
naturalizado e perverso.
Augusta Faro Fleury de Melo nasceu em Goiânia, Goiás. Ela representa
nos seus contos algo das mulheres da terra goiana patriarcalista,
coronelista. Esta perspectiva nos lembra Fernando Pessoa quando afirmou
que: “[...] Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir”
(PESSOA, 1986, p.47).
Augusta Faro diminui sua febre das sensações escrevendo contos,
como os reunidos em A friagem cujas tramas são centradas em personagens
femininas. A constituição das relações de gênero, no ambiente narrativo
da obra, está delimitada e marcada por relações patriarcais, que infringem
opressão velada e/ou explícita das personagens femininas.
Renan Alves Melo nasceu em Inhumas, Goiás. Adolescente muda-se
para a cidade de Goiânia, onde constrói toda sua trajetória profissional e
acadêmica. Melo é graduado em Publicidade e propaganda pela PUC Goiás e
é diretor de criação da Agência Espaço. Ele declara-se um leitor apaixonado
de Clarice Lispector, Virginia Wolf e Hilda Hilst (LOPES, 2018, p.3).
As personagens femininas de Melo são subumanas, animalescas,
sempre submetidas a uma figura patriarcal (pai, marido), que geralmente
não recebe um nome. São homens sem nome. Para o autor goiano, foi
fácil escolher os temas abordados em Mar escrito, seu livro de estreia.
“[…] Escrevo o que gosto de ler, mas minha escrita tende para o lado do
diferente de tudo aquilo que já li. Gosto de usar a leveza e eufemismo
para falar de coisas fortes” (LOPES, 2018, p.2).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

É falando de “coisas fortes” que Melo cria um universo feminino


insólito. Com temáticas como a necrofilia, a pedofilia, o incesto, os contos
de Renan Melo são densos, pesados, de difícil “degustação”. O autor
destaca que seus personagens “exibem livremente a face que às vezes
tentamos esconder”. Personagens que trazem à tona reflexões incômodas
sobre a monstruosidade do cotidiano mais prosaico.

2. O REALISMO FANTÁSTICO
Em Le récit fantastique: la poétique de l’incertain, Irène Bessière
chama atenção para o sujeito da narrativa fantástica. No relato,
diferentemente dos romances ou novelas realistas, o sujeito é passivo,
não está inserido numa contingência em que se interrogue a respeito
de si mesmo. Isto é, enquanto o sujeito de um romance como os de
Balzac pergunta-se sobre quem ele/ela é ou questiona-se acerca de
seu poder e valor pessoal, o sujeito da narrativa fantástica, em vez
disso, problematiza o enigma do acontecimento. Isto Tzevetan Todorov
(2007) já havia afirmado, mas Bessière avança na discussão do efeito do
fantástico sobre o sujeito.
O fantástico não é um gênero que privilegia o indivíduo. Os temas de
que tratam as narrativas fantásticas têm origem na alienação do sentido
das coisas banais, porque o sujeito está distante do mundo. Por isso, para
o sujeito, o espaço da narrativa não é um espaço para as ações, para a
atuação, mas para a percepção de que esse mundo estranho e, ao mesmo
tempo, cotidiano, se impõe. Não resta nada, a não ser sentir-se num jogo
de xadrez, em que a realidade o domina e lhe escapa.
Afirma Bessière que o relato fantástico surge do maravilhoso e
guarda desse gênero alguns traços, como a presença do sobrenatural e
o questionamento do acontecimento. Mas, enquanto no maravilhoso há
universalidade, porque ali estão representados o bem e o mal, com as devidas

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

regras de conduta e moral, com traços nítidos do que se pretende mostrar


(ali as coisas acontecem com deveriam acontecer), no fantástico, há uma
espécie de nebulosa, de incerteza, que o caracteriza na sua singularidade.
Cada narrativa problematiza a ordem, recusa a razão e, ambiguamente,
retira dela seus argumentos. Nesse sentido, afirma Bessière, ele nutre-se
do ceticismo e do relativismo. Assim escreve a autora:
Conservant metamorfoses et génies bénéfiques
ou maléfiques le récit fantastique a pour ressort le
problème de la nature de la loi, de la norme. La non-
réalité introduit toujours la question sur l’événement,
mais cet événement est une atteinte à l’ordre du bien,
du mal, de la nature, de la surnature, de la société.
(BESSIÉRE, 1974, p.18)

Esse questionamento da ordem ou apagamento da norma faz pensar


em inverossimilhança do discurso fantástico. No entanto, afirma Bessière
que, no relato fantástico, existe uma multiplicidade de verossimilhanças
antagônicas e a coexistência delas conduz a diferentes soluções possíveis.
Enquanto o maravilhoso aponta para uma solução, o fantástico promove
várias, de forma que uma anula a outra. Está aqui uma contradição do
fantástico: acontecimentos múltiplos e incoerentes concorrem para
explicação do estranho.
A autora descreve esse aspecto sob o título “Une raizon paradoxale”
(1974, p.11). Trata-se de considerar que o fantástico não é inverossímil,
mas que suas contradições e as consequentes fraturas das convenções
coletivas “des fractures des conventions communautaires” são colocadas
de forma a darem sentido ao inaudito. Em outras palavras: suas
“improbabilidades” são imagens das probabilidades reais. Como afirma
Erich Auerbach, a respeito das fantasias de Rabellais, em “O mundo na
boca de Pantagruel”: “O real quotidiano está engastado na fantasia mais
inverossímil” (AUERBACH, 2011, p.243).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Essencialmente paradoxal, o fantástico seria, segundo Bessière, uma


forma mista do caso e da advinha. Ela usa essas duas palavras como
metáforas para abordar a posição do sujeito diante da ordem-desordem.
Por um lado, existe o que ela chama de legalidade outra, que o discurso
instaura e que o herói aceita (adivinha) e, por outro, forma do caso, o
herói – miserável e perplexo – percebe “l’arbitraire de toute raison e de
toute réalité” (BESSIÉRE, 1974, p.24).
Os contos “As formigas” e “Cavalos” navegam pelo veio do gênero
fantástico. As vozes que soam na obra de Augusta Faro (1999) e Renan
Melo (2012) emergem das fortes ideologias do patriarcado no interior de
Goiás. Ambos dão vozes a mulheres reprimidas, violentadas, submissas,
envolvidas por traços do fantástico num ambiente permeado por elementos
insólitos da perda da noção de gravidade da nossa sociedade. Dolores e
Virgínia são mulheres que provocam estranheza e espanto no/a leitor/a, por
protagonizarem o inexplicável e o sobrenatural (FREITAS, 2012).
Freitas (2012) destaca que, no livro A friagem, a escritora goiana
Augusta Faro utiliza-se do fantástico como recurso expressivo que
evidencia o caráter tênue das fronteiras entre o real e o imaginário, entre
o natural e o insólito, mas sem perder de vista a vida em sua realidade
mais trivial.
Nas narrativas realistas, segundo Freitas (2012), a vida seria racional
e caberia ao/a escritor/a desvendar a lógica do comportamento humano
em sua dinâmica histórico-social. As narrativas que se filiam à corrente
fantástica contestam essa falsa certeza do real, e expõem por meio do
ilógico, do improvável, do absurdo, o quão cruel e desumana pode ser a
realidade individual e social.
Augusta Faro é partícipe de uma longa linhagem de escritores que,
com diferentes modulações, ultrapassaram as barreiras do real em suas
obras. Jorge Luis Borges, Franz Kafka, Julio Cortázar, Miguel Angel Astúrias,

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Guimarães


Rosa, dentre outros, construíram obras cujos enredos criam pontes que
ligam o universo do real e do irreal, da realidade e do sonho, do crível e do
absurdo (FREITAS, 2012).
Tanto Faro, quanto Melo lançam mão de “[...] acontecimentos insólitos
que muitas vezes encontram eco no absurdo de que muitas vezes a nossa
existência se reveste”. Se valem do insólito, do fantástico como elemento
estruturador de seus contos, onde o fantástico é “[...] a configuração de
um contexto individual/social, que violenta, oprime o sujeito, no caso as
mulheres” (FREITAS, 2012, p.17).

3. DOLORES E VIRGÍNIA
As personagens Dolores, de “As formigas”, e Virgínia, de “Cavalos”,
habitam em universos sombrios, angustiantes e carregados de uma
realidade fantástica, que transita entre o inverossímil e o real. Faro e
Melo se valem do insólito, do sobrenatural, para dar vida a duas mulheres
marcadas pelo desamparo e por uma dor psicológica pungente, que as
leva à loucura e no caso de Dolores, à morte.
O conto “As Formigas”, de Faro (2001), apresenta a ancestral
solidão de Dolores. Segundo Toledo (2001), a personagem Dolores
ganha vida num Goiás primordial, patriarcal, que remete ao cenário da
histórica Cidade de Goiás entre os séculos XVIII e XX. Dolores deseja
profundamente fugir da solidão, casar-se, ter um marido, relacionar-se
sexualmente, mas, para além de ter uma vida sexual ativa, Dolores quer
ser amada, quer ser feliz.
Dolores tem cinquenta longos anos vividos num intenso e doloroso
silêncio. Esse isolamento social, pode ser a explicação do porquê Dolores,
embora adulta, se mantenha na pré-adolescência, com desejos sexuais
reprimidos que a levam a ser consumida por formigas “imaginárias”.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O comportamento adolescente de Dolores, fica explícito na grande


preocupação com a higiene bucal, antevendo o momento do primeiro
beijo. Quando Dolores vai ao médico e fala dos sonhos com a boca cheia
de formigas, o/a leitor/a descobre a verdadeira idade da personagem,
através da fala do médico: “[...] Onde já se viu u’a moça de 50 anos sem
comer doce, nem carne, sendo que não é preciso?” (FARO, 2001, p.12).
Dolores está sempre subordinada ao julgamento e às ordens de
comando de outrem, em sua vida. O médico e o irmão de Dolores definem:
a verdadeira causa de seus “sonhos” com a boca cheia de formigas. É falta
de casar.
– De um tempo pra cá, doutor, só sonha com a boca
cheia de formigas. Que é isso? – Falta de casar.
A cidade buliçou-se como um formigueiro.
– Falta de couro.
– Não, Zé, paciência, isso é solidão que cozinha os
miolos dela.
– Que mané solidão, falta de serviço, isto sim.
– Até que pode ser, mas é sua irmã, tem que ter dó.
Vamos levar lá pra casa.
– Vamos nada. Por que não casou, para ter sua casa?
Mulher tem que casar, santa. (FARO, 2001, p.12-14)

Segundo as normas socioculturais do universo patriarcal de Dolores,


o casamento seria a solução para os “devaneios” da personagem.
Dolores está tragicamente só, não tem a solidariedade, a amizade, a
acolhida compreensiva que protege contra o perigo da anomia, da perda
da sanidade. Ela não tem ninguém, não pode contar nem com o irmão,
“sangue do seu sangue”, que deveria ser seu amigo, solidário a sua dor.
Sente-se irremediavelmente sozinha, desamparada, perdida, numa
cidade do interior, onde todos vigiam a vida alheia. Vive num contexto
de dominação patriarcal enraizada, naturalizada culturalmente. Uma

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

dominação que engole sua frágil e solitária vida, tira-lhe o sono agora
povoado por formigas.
Dolores não se sente amada, tem um “buraco” no peito, que poderia
ser preenchido por projetos de vida, por sonhos, esperanças e relações
de carinho e cuidado, mas não o é. O que preenche esse buraco são as
formigas que lhe devoram a vida.
A personagem de Faro não tem voz, nem ação, fica sempre à mercê
de vozes masculinas que comandam sua vida e ditam quem ela é, e como
deveria ser. A voz do irmão define quem Dolores deveria ser: ela é culpada
por estar sozinha e infeliz e seu destino já está traçado: é enlouquecer
sozinha. “[...] - Que nada. Mulher que não casa, dá nisso. Tem que ter marido
e filho para cuidar, senão endoida, cada qual de um jeito” (FARO, 2001 p.17).
Dolores só poderia ter uma vida feliz, saudável física e mentalmente,
se estivesse casada. No universo da personagem, o equilíbrio emocional, a
felicidade está condicionada a uma figura masculina, o marido. É impossível
ser feliz sem se casar. E não se pode fazer sexo sem casar. Não se pode fazer
sexo sem a “benção” da Igreja. É pecado, é sujo. E Dolores não se casou, então
está condenada à infelicidade e a não vivenciar o sexo pelo resto da vida.
Todo esse quadro de fragilidade emocional, solidão e desamparo
levam Dolores a não mais dormir, a sentir-se rodeada por formigas
“monstruosas” das quais não há como escapar. O desejo sexual reprimido
de Dolores, uma mulher de 50 anos, que nunca beijou, nunca experimentou
uma relação íntima de afeto, oprime-a de tal forma, que ela sente sua
boca cheia de formigas:
Faziam caminhos da boca pro chão, do chão pra boca. E
elas riam com seu riso de formiga. Estalavam os lábios,
cerravam os dentes, trincando, trincando; o barulho
parecia mesmo serrinha de brinquedo e Dolores acordava
pingando mel, ia pro chuveiro, escovava os dentes muitas
vezes no meio da madrugada. (FARO, 2000, p.13)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A perda dos dentes é uma simbologia da perda da vitalidade, da


juventude e da força. É um símbolo de falência, de perda da energia vital.
Dona Felisbina entrou pé ante pé até o quarto de
Dolores e deu com uma cena triste. Dolores não
respirava, imóvel, branca como leite, nua, mas
coberta de formigas de todas as cores e feitios, num
movimento de fim de mundo. O ruído delas era
imenso, vaivém ensandecido. (FARO, 2000, p.18)

No fim, as formigas “eram reais” e de fato extinguiram literalmente a


encolhida e frágil vida de Dolores. O/A leitor/a se depara com o fantástico,
o extraordinário, o estranho fato de uma mulher morrer coberta por
formigas que faziam um barulho ensurdecedor, é um acontecimento
sem explicação. A morte de Dolores suscita no/a leitor/a hesitação
e interrogação. Como é possível formigas “de todas as cores e feitios”
fazerem ruído e dizimarem uma mulher?
A incapacidade da personagem de se libertar do jugo masculino e se
tornar dona de sua vontade, de seu corpo, de sua vida a leva a aniquilação. E,
mesmo depois de morta, Dolores permanece com “[...] seu sorriso de solidão
com a boca limpa e cheirosa” (FARO, 2001, p.18). À espera de um beijo.
O universo de Virgínia é tão solitário quanto o de Dolores. Porém,
muito mais macabro e assustador. No conto “Cavalos”, Melo apresenta
a temática do incesto entre um pai e uma filha. “[...] O incesto é um
tipo de abuso sexual que comumente, dura um longo período e pode
ser praticado com o conhecimento e cobertura de outros membros da
família” (FLORENTINO, 2015, p.139).
O incesto é uma das formas de abuso sexual mais frequentes, sendo
este o que causa as consequências mais danosas às vítimas, em nível
psíquico. A criança ou adolescente, vítima de violência sexual, corre o
risco de vivenciar psicopatologias graves, que perturbam sua evolução
psicológica, afetiva e sexual (ROMARO; CAPITÃO, 2007).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O incesto entre pai e filha é uma das faces do humano mais difíceis de
encarar, face essa, que geralmente fica oculta entre quatro paredes, em
segredo velado, por vergonha, dor, medo:
Nunca saíra do campo. Nunca. E a inocência, a partir dessa
sempre eternidade, faz-se arquitetura companheira
de Virgínia. O pai de nomeação desnecessária,
indiscutivelmente um homem estranho. Muito estranho.
Homem cujo instinto animal imita-lhe a concordância das
coisas, reprime a discordância das coisas. Impulsivo e
sempre, com seu acre semblante. [...] Todos os dias liberta
fumaças escuras de seu cachimbo misturadas às suas
frases curtas, também com bordados de obscuridade.
(MELO, 2012, p.45)

Ao dar vida a Virgínia, Melo choca, assusta, incomoda o/a leitor/a e


consegue, com maestria, seu intento de levar leitores e leitoras à reflexão
sobre o quão monstruosa, nauseante, pode ser a realidade:
– Tratemos das coisas como são. Coisas!
Com Virgínia não seria diferente. Sua função nesta
fazenda, notavelmente distante, é servir ao pai. Sempre
servir cabisbaixa, como animal contido na própria ânsia
de ser animal. Nunca souberam de sua existência. Vive
desde sempre no mesmo recinto em que nascera. Local
de espectros tristes e passados, carnívoros, de saudades
insólitas. [...] Mal sabe seu nome. O pai único indivíduo
com quem conversou alguma vez na vida, a chama por
menina, por coisa. (MELO, 2012, p.45-46)

Coisa é o que Virgínia é. “[...] Não tem sentimentos. Pior, não possui nem
a dúvida de ter lágrimas guardadas para algum instante” (MELO, 2012, p.46).
Certa vez, não faz muito tempo, tornou-se moça. Seu
quarto manchou-se até as medianas da parede pálida.
Sentia-se atraída pela coloração rubra e se pintara dela.
Camuflou todo o corpo de sangue. [...] Foi quando seu
pai, ao trazer a lavagem diária para Virgínia, estatificou-se

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

frente a esdrúxula paisagem sem gesticulação alguma. [...]


Virgínia se encostava a um dos cantos do quarto quando
seu pai começou a se despir. (MELO, 2012, p.47-48)

Cabe a cada leitor/a dimensionar a profundidade da dor, do


sentimento de abandono, solidão e impotência de Virgínia ante o
inacreditável inferno a que está submetida cotidianamente.
– Está vendo, menina, o que me faz fazer! Sua coisa de
gente é minha desgraça! [...] Desvirginou Virgínia a noite
inteira. Gozos e mais gozos atravessavam a manhã. No
chão em que ela dormia em meio a sangue [...] Parecia
sorrir. Parecia chorar. (MELO, 2012, p.48)

A frase “[...] – Está vendo, menina, o que me faz fazer! (MELO, p.48) é
paradigmática para compreender a relação de violência (física e psicológica) e de
abuso entre pai e filha. A culpa é da vítima, a culpa é de Virgínia. A monstruosidade
da culpabilização da vítima, que se vê ferida, destroçada, não só pela violência,
mas também pela culpa, um dado intrínseco da violência sexual.
Numa matinal visita, seu pai, na ânsia por bucólica
orgia, não tranca a porta ao sair. Virgínia, depois de
algum tempo, se atreve a fugir de seu desmundo. É dia
de folga dos empregados e o ermo corre para quaisquer
horizontes. Tudo é novo, estranho, belo. Tudo é árvore.
Sai da Casa Grande Solavac e respira toda imensidão de
verde, de árvores. (MELO, p.50-51)

Virgínia sai de seu quarto, de sua prisão voluntária e “vê” a fazenda, vê o


mundo, onde há tanta beleza. O tom da narrativa dá esperança a leitores(as)
de que Virgínia pode mudar seu destino, mas não, ela encontra o cavalo, que
olhava de longe “[...] Paralisados por algum tempo se entreolham. Chorando se
esquece do pai completamente. Segundos depois, Virgínia cavalga pelo pasto,
pelo verde, pelas árvores. E sente a liberdade nas narinas” (MELO, 2012, p.51).
Quando pensamos que Virgínia fugiu do inferno e que está livre, o
narrador nos surpreende: “[...] Apenas cavalga, sem nunca ter cavalgado.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Cavalga, cavalga e cavalga. Cavalgam os três” (MELO, 2012, p.51). E Virgínia


continua presa no pesado do abuso sexual, cometido pelo pai, que é
justamente quem deveria protegê-la.
A violência sexual lesa o corpo, a mente, a alma do sujeito violado,
desrespeita direitos humanos inalienáveis, como liberdade, respeito e
dignidade. “[...] A criança e o adolescente são as maiores vítimas de atos
abusivos e maus-tratos, ocasionados por sua maior vulnerabilidade e
dependência” (FLORENTINO, 2015, p.139).
A vulnerabilidade, o desamparo e a solidão marcam a ferro e fogo o corpo
e alma de Dolores e Virgínia. Embora adulta, Dolores traz em sua subjetividade
a marca da vulnerabilidade e da dependência infantil. É sempre o olhar de
fora que dita o que Dolores é. Ela não tem voz, está à mercê do julgamento
do irmão, do médico e acaba por sucumbir, sufocada pelo desespero, pela
dor de não se sentir amada. Num quadro dantesco é devorada por formigas
ruidosas. E Virgínia é uma adolescente abusada sexualmente pelo pai, um
pesadelo monstruoso, mas, tragicamente real e frequente.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fantástico que permeia os contos de Augusta Faro e Renan Alves
Melo é o pano de fundo para uma reflexão sobre dramas humanos, dramas
femininos, atemporais e universais, que dialogam com a monstruosidade
em sua forma mais perversa, revestida de naturalização da violência
física, psicológica e sexual contra as mulheres, violência essa, sempre
revestida de segredo obscuro e cometida no âmbito doméstico, pelas
figuras masculinas mais íntimas. Os textos “As formigas”, de Augusta Faro
e “Cavalos”, de Renan Alves Melo, não são contos de fada, com finais
felizes. São contos que tratam de pesadelos monstruosos, calcados na
vida real e, por isso, muito próximos do universo dos/as leitores/as.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

REFERÊNCIAS
AUERBACH, Erich. (2011). Mimesis. São Paulo: Perspectiva.

BESSIÈRE, Irène. (1974) Le récit fantastique: la poétique de l’incertain. Paris:


Larousse université.

FARO, Augusta. (2001). A friagem: contos. São Paulo: Global.

FLORENTINO, Bruno Ricardo Bérgamo. (2015). “As possíveis consequências


do abuso sexual praticado contra crianças e adolescentes”. Fractal: Revista
de Psicologia, 27(2), 139-144, mai./ago. In http://www.scielo.br/pdf/fractal/
v27n2/1984-0292-fractal-27-2-0139.pdf Acesso em12.Jan.2018.

FREITAS, Ewerton. (2012).”Frio e calor em “A friagem”, de Augusta Faro”. Jornal


Opção. 10 mar. In http://www.jornalopcao.com.br/posts/opcao-cultural/
antologia-do-conto-goiano-contemporaneo Acesso em 15.Abr.2018.

FURTADO, Filipe. (1980) A construção do fantástico na narrativa. Lisboa:


Horizonte.

LOPES, Yuri (2012). “Renan Alves Melo fala de temas fortes em livro de estreia”.
A redação. In https://www.aredacao.com.br/cultura/22284/renan-alves-melo-
fala-de-temas-fortes-em-livro-de-estreia Acesso em 12.Out.2018.

MELO, Renan Alves. (2012) Mar escrito: contos. Goiânia: R&F Editora.

ROMARO, R. A; CAPITÃO, C. G. (2007). As faces da violência: aproximações,


pesquisas, reflexões. São Paulo: Vetor.

PESSOA, Fernando. (1986). Livro do desassossego. V.6. São Paulo: Martins Fontes,

TODOROV, Tzvetan. (2007). Introdução à literatura fantástica. Maria Clara Correa


Castello (Trad.). São Paulo: Perspectiva.

TOLEDO, Roberto Pompeu de. (2001). “Nota”. In: FARO, Augusta. A friagem:
contos. São Paulo: Global.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Corpo e identidade:
o cabelo como símbolo de resistência
Maria Inês Freitas de Amorim

Trazendo comigo o dom de meus antepassados,


Eu carrego o sonho e a esperança do homem escravizado.
E assim, eu me levanto
(Maya Angelou, Still I rise)

A representação do mundo empírico é um dos alicerces da narrativa


literária. Seja a partir de elementos do fantástico ou a partir de uma
narrativa mais “realista”, a ficção busca no partilhamento de experiências,
vivenciadas ou imaginadas, despertar no leitor sentimentos, reflexões,
análises. Os contos analisados no presente trabalho, “Pixaim”, de Cristiane
Sobral e “Fios de Ouro”, de Conceição Evaristo, discutem temas como
racismo e resistência a partir da relação das personagens com os seus
cabelos. De uma tentativa de apagamento, as personagens apresentam
suas estratégias de lutarem para manter suas identidades.
Numa sociedade racista como a brasileira, cujo período da escravidão
ainda é uma mancha não resolvida da história e que ainda desvaloriza
tudo aquilo que não seja relacionado ao Ocidente branco, a construção
de estereótipos corporais permeia as relações humanas. Peles claras,
cabelos claros, olhos claros, feições finas são padrões tidos como sendo os
belos. Toda característica física que destoa do padrão é incentivada a ser

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

transformada. Cabelos são alisados a partir de produtos químicos, muitas


vezes nocivos à saúde. Pois, como afirma a filósofa Djamila Ribeiro (2018,
p.14): “A vontade de ser aceita nesse mundo de padrões eurocêntricos
é tanta que você literalmente se machuca para não ser a neguinha do
cabelo duro que ninguém quer”.
Tido como sustentáculo da beleza, o cabelo pode ser considerado como
uma das partes do corpo que mais traços afirmativos de personalidade
conferem a um indivíduo. Os cabelos, pelas múltiplas possibilidades de
manipulação, como pintura e alisamento, podem ser instrumentos de
apagamento de traços ancestrais, sobretudo quando visam a adequação
a um padrão de beleza construído a partir de relações de poder. Mas,
também, podem ser meios de expressão de identidade e resistência,
sobretudo por irem de encontro a estes padrões.
Djamila Ribeiro, ao narrar suas próprias experiências com o seu
cabelo, de todas as experiências dolorosas pelas quais passou, sobretudo
na tentativa de deixá-los lisos, afirma que
a sensação de não pertencimento era constante e me
machucava, ainda que eu jamais comentasse a respeito.
Até que um dia, num processo lento e doloroso, comecei
a despertar para o entendimento. Compreendi que
existia uma máscara calando não só a minha voz, mas
minha existência. (RIBEIRO, 2018, p.15)

A criação de padrões resulta na ideia de que há características que


são consideradas bonitas e valorizadas e que todas aquelas que fogem
ao estipulado são feias e desprezadas. Mais do que uma determinação
estética, a criação de padrões estipula quem merece ser aceito e quem
merece ser apartado socialmente. Tentar modificar em si as características
que destoam do padrão é um passo para a aceitação social. Entretanto,
mesmo apagando determinados traços, é impossível ser aceito totalmente
no grupo social valorizado.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

As características corporais marcam e diferenciam os grupos sociais.


Tais diferenças determinam a maneira na qual a pessoa vai enfrentar a
vida em sociedade, como ela será vista, os espaços onde poderá circular.
As diferenças marcam profundamente a forma como serão as experiências
nas quais uma pessoa passará, as dificuldades que terá que superar, as
articulações de resistência das quais terá que se apropriar.
A exploração entre grupos sociais, que são vistos como diferentes, é
uma condição humana que remonta há séculos. E ao categorizar o “outro”
como um diferente, há uma hierarquização dessa definição, na qual o
“nós” é superiorizado quando comparado ao “eles”. Harari (2016, p.103),
ao analisar a relação do homo sapiens com os demais seres da natureza ao
longo da história afirma:
A maior parte das sociedades agrícolas começou
a tratar várias classes de pessoas como se fossem
também propriedades. No antigo Egito, na Israel
bíblica e na China medieval, era comum escravizar
humanos, torturá-los e executá-los até mesmo devido
a transgressões banais. Assim como camponeses não
consultam vacas e galinhas sobre como conduzir a
fazenda, governantes nem sequer sonhavam em pedir
aos camponeses suas opiniões quanto a como governar
o reino. E quando grupos étnicos ou comunidades
religiosas entravam em conflito, frequentemente se
desumanizavam reciprocamente. Descrever ‘os outros’
como animais sub-humanos era o primeiro passo para
tratá-los como tais.

Para o autor, o ato de desumanizar o “outro”, ao vê-lo como uma raça


inferior foi legitimado ao longo dos anos. Explorar um povo que é diferente
do seu foi, ao longo da história, não só oficializado, mas incentivado por
diversas estruturas sociais, como o Estado e a Igreja, que abençoava o ato
de “civilizar” povos “selvagens”.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Para Achille Mbembe tanto as categorias “branco” como “negro”


são resultados de uma “fantasia da imaginação europeia que o Ocidente
se esforçou para naturalizar e universalizar” (MBEMBE, 2018, p.88). Tais
categorias são reforçadas ao longo do tempo, na qual há o “branco”,
padrão, universal e sinônimo de “civilização” e há o “negro”, oposto a tudo
o que o padrão civilizatório determina. Por isso, precisa ser “civilizado”.
Longe de ser espontânea, essa crença foi cultivada,
alimentada, reproduzida e disseminada por um
conjunto de dispositivos teológicos, culturais, políticos,
econômicos e institucionais, cuja evolução e cujas
consequências ao longo dos séculos foram bem
retraçadas pela história e pela teoria crítica da raça
(MBEMBE, 2018, p.90)

Partindo desse princípio, todos os traços físicos que representam


negritude são estimulados a serem apagados. O padrão de beleza
construído hegemonicamente determina, portanto, que cabelos crespos
sejam alisados.
Na Literatura é possível encontrar narrativas que buscam quebrar tais
padrões e apresentar outras posições acerca do que é instituído. Sejam
obras de cunho realista, sejam obras com elementos fantásticos, a Literatura
atua como construtora de mundos ficcionais que contribuem para que o
mundo empírico e as narrativas construídas sobre as realidades sociais
sejam questionadas.
Na literatura brasileira contemporânea, autoras como Conceição Evaristo
e Cristiane Sobral constroem narrativas a partir de suas vivências enquanto
mulheres negras, apresentando em suas obras questionamentos sobre raça e
sobre a condição de mulher. Salgueiro (2004, p.119-20) ressalta que:
As escritoras afro-brasileiras, a partir de sua História
dentro de sua luta, retratam a razão e o coração da
mulher negra brasileira e se estabelecem com o tempo
como referência obrigatória no panorama da literatura

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

contemporânea de seu país. Sempre combativas contra


a discriminação, as escritoras afro-americanas e afro-
brasileiras adotam específicas e diferentes estratégias
de ação em sua luta. No entanto, com recorrentes
pontos em comum: em trajetórias próprias, porém
céleres e sólidas, que as consolidam e se desdobram
no cenário literário, ao, por exemplo, forçar uma
rediscussão do cânon, com a utilização da arte da
palavra – uma contribuição definitiva para a literatura
universal, para o movimento feminista e para a luta dos
direitos humanos.

Apresentar novas perspectivas a partir das vozes daquelas que são


silenciadas pela narrativa hegemônica é um espaço ocupado por essas
escritoras que contribuem para que a opressão seja compartilhada
e denunciada. No texto literário é possível se ver, entender que as
experiências de dor pelas quais se passa também são vivenciadas por
outras pessoas. E nesses compartilhamentos há a possibilidade de
transformação; de ver na experiência do outro a sua própria e que sua
voz, assim como a voz literária, também precisa ser entoada.
A multiplicidade de vozes silenciadas que essas narrativas apresentam
também despertam naqueles leitores que estão inseridos no “padrão”, no
lugar de privilégio em que habitam. Ao entrarem em contato com histórias
que expressam a dor e as inquietações daqueles que são vistos como o
“outro”, percebem a existência de padrões opressivos e que a naturalização
de tais padrões é nociva para a construção de uma sociedade que, de fato,
respeita a diversidade e, sobretudo, que respeita o “outro”. Que, de certa
forma, deixa de ser o “outro” e passa a ser visto como um semelhante.
A obra de Cristiane Sobral é marcada por relatos e compartilhamentos
de experiências nas quais o gênero e a raça são temas principais. Ela é
escritora, poeta, atriz, dramaturga, diretora e professora de teatro. Foi a
primeira atriz negra graduada em Interpretação Teatral pela Universidade

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

de Brasília. Publica desde 2000 na antologia Cadernos Negros, Ed.


Quilomhoje Literatura, e é autora de Uma boneca no lixo (teatro) - Prêmio
de montagem GDF; Dra. Sida (teatro) Prêmio do Ministério da Saúde;
Petardo, será que você aguenta? (teatro) - com Dojival Vieira; Não Vou Mais
Lavar os Pratos (poesia); Espelhos, miradouros, dialéticas da percepção
(contos); Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz (poesia); Não vou
mais lavar os pratos (poesia); O tapete voador (contos); Olhos de Azeviche
(contos e crônicas) e Terra Negra (poesia).
Conceição Evaristo é uma das principais autoras brasileiras
contemporâneas. Sua obra é amplamente estudada e traduzida para
diversos países. Ela é professora, escritora e poeta. É mestra em Literatura
Brasileira pela PUC-Rio, é doutora em Literatura Comparada pela
Universidade Federal Fluminense. Autora dos romances Ponciá Vicêncio,
Becos da Memória e Canção para ninar menino grande, das antologias de
contos “Insubmissas lágrimas de mulheres”, “Olhos d´água” e “Histórias de
leves enganos e parecenças” e do livro de poemas Poemas da recordação
e outros movimentos, além de ter publicado diversos textos em coletâneas
brasileiras e internacionais.
As obras dessas autoras são permeadas por suas experiências,
apresentando de que forma o entendimento imposto sobre a condição
de “ser mulher negra” interfere no modo como essas mulheres são,
efetivamente, vistas pela sociedade; essas autoras discutem, ainda, os
modos de resistir a essa visão. A escolha de temas, a forma como constroem
suas personagens e suas narrativas são propositalmente mecanismos de
questionamento e denúncia. Para Conceição Evaristo,
sendo as mulheres invisibilizadas, não só pelas páginas da
história oficial, mas também pela literatura, e quando se
tornam objetos da segunda, na maioria das vezes, surgem
ficcionalizadas a partir de estereótipos vários, para as
escritoras negras cabem vários cuidados. Assenhorando-

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

se “da pena”, objeto representativo do poder falocêntrico


branco, as escritoras negras buscam inscrever no corpus
literário brasileiro imagens de uma autorrepresentação.
Surge a fala de um corpo que não é apenas descrito mas
antes de tudo vivido. A escre(vivência) das mulheres
negras explicita as aventuras e as desventuras de quem
conhece uma dupla condição, que a sociedade teima em
querer inferiorizada, mulher e negra. (EVARISTO, 2005)

O conto “Pixaim” de Cristiane Sobral, publicado no livro O Tapete


Voador (2016), narra a história de uma menina, que aos 10 anos vê sua
“carapinha dura” ser alvo de diversos procedimentos para ficar “bonitinha
como as outras crianças”. A narradora do conto, em primeira pessoa, revela
aos seus leitores o quão difícil era deixar que suas “madeixas acinzentadas”
fossem manipuladas, uma vez que gostava do jeito que elas eram.
Os adultos foram os responsáveis por “violentar suas raízes”. A
narradora garante que sabia que a mãe a amava, apenas não entendia
suas diferenças. Aos poucos, ela passa a aceitas as mudanças impostas,
aos tratamentos a que é sujeitada: “Cresci muito rapidamente e, para
satisfazer aos padrões estéticos, não poderia usar o cabelo redondinho do
jeito que eu gostava, pois era só lavar e ele ficava todo fofinho parecendo
algodão” (SOBRAL, 2016, p.37-8).
Apesar de gostar dos seus cabelos e não entender o motivo de precisar
modificar seus traços, a menina é submetida a todos os tipos de procedimentos
para seus cabelos de crespos se tornarem lisos. Ou, como afirma: “Nesse
momento tive a certeza de que mamãe queria me embranquecer! Era a
tentativa de extinção do meu valor!” (SOBRAL, 2016, p.39).
Mais do que um simples procedimento estético, para a narradora
o alisamento dos cabelos representava o apagamento de quem ela era,
do que seus cabelos representavam. E na sua negação em se sujeitar à
transformação, o racismo das demais personagens que a circundavam se
tornava ainda mais evidente:

51
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Os vizinhos ficaram felizes com a confirmação da profecia.


Diziam que preto não prestava mesmo. Todo mundo se
sentia no direito de me dar uns tapas, para me corrigir,
para o meu bem. Eu era tudo de péssimo, ingrata, desgosto
da mãe, má, bruxa. Meus irmãos também colaboravam me
chamando de feia, bombril, macaca (SOBRAL, 2016, p.40)

Assumir sua identidade negra e, consequentemente, deixar que seus


cabelos sejam mantidos como eles são, do jeito que ela gosta, garantem a
personagem uma conquista da liberdade. Para ela:
O meu cabelo era a carapaça das minhas ideias, o
invólucro dos meus sonhos, a moldura dos meus
pensamentos mais coloridos. Foi a partir do meu pixaim
percebi todo um conjunto de posturas que apontavam
para a necessidade que a sociedade tinha de me
enquadrar num padrão de beleza, de pensamento e
opção de vida (SOBRAL, 2016, p.40-1)

Aceitar e lutar pela liberdade de seus cabelos acaba sendo uma forma
de representar a sua aceitação enquanto indivíduo, enquanto ser livre e
construtora da própria história. O conto termina com a afirmação: “A gente
só pode ser aquilo que é”. Valorizar seu cabelo representa a valorização
de si mesma.
Essa conquista da liberdade dialoga com o que defende Djamila
Ribeiro em seu texto “Mulata Globeleza: um manifesto”, publicado
originalmente no jornal Folha de São Paulo em 2016. Segundo a filósofa:
“Não aceitaremos mais nosso corpo narrado segundo o ponto de vista do
eurocentrismo estético, ético, cultural, pedagógico, histórico e religioso.
Não aceitaremos mais os grilhões da mídia sobre nosso corpo!” (RIBEIRO,
2018, p.144). Logo, aceitar e valorizar o corpo e ser, com liberdade, o que
se quer ser, é um grito de libertação e resistência.
No conto “Fio de ouro”, publicado no livro História de leves enganos e
parecenças, de 2016, a partir de elementos fantásticos, Conceição Evaristo

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

apresenta uma família em que a cada geração, uma mulher, ao chegar


a velhice, em sua cabeça crescem fios de ouro no lugar de seus cabelos.
Acompanhamos a trajetória de Halima, mulher escravizada e cujos cabelos
eram raspados pelos senhores que se achavam seus donos. Anos mais tarde,
começaram a nascerem fios de ouro de seus cabelos, que propiciaram a
compra de sua alforria e de diversas mulheres e homens escravizados.
No conto, Halima tem plena consciência do seu poder e de como em
algum momento, ele irá se manifestar. Em seu clã de origem, é nos cabelos
que são representados a posição social da pessoa: “A arte de tecer cabelos
era exercida por mulheres mais velhas que imprimiam aos penteados as
regras sociais do grupo” (EVARISTO, 2016, p.49).
Halima é vítima das violências infligidas a todas as mulheres
escravizadas: “Halima escravizada em trabalhos de plantio e de colheita.
Escravizada como brinquedo das crianças da casa-grande, como corpo
para o trabalho, para o prazer e para a reprodução de novos corpos
escravos” (EVARISTO, 2016, p.50).
Sobre a forma de tratamento que as escravas recebiam, Angela Davis
(2016, p.19) afirma que:
As mulheres também sofriam de forma diferente,
porque eram vítimas de abuso sexual e outros maus-
tratos bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas. A
postura dos senhores em relação às escravas era regida
pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como
se fossem homens, eram vistas como desprovidas de
gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e
reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas
eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas.

Nos corpos das mulheres escravizadas havia outra forma de posse e


de violência: o estupro. Angela Davis (2016, p.20) também afirma que “O
estupro, na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico
do proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

condição de trabalhadoras”. Além dos castigos que afligiam ambos os


sexos, a violência sexual assume, assim, outra marca de dominação.
Apesar de toda violência e privação, Halima resiste e tal resistência é
representada pelo crescer de seus cabelos:
Um dia Halima acordou e viu seus cabelos surgirem
imensos, tão imensos que ela pisava sobre eles. Foi como
se todos os fios perdidos (cortados à força) ao longo da
vida de Halima, procurassem a dona deles, a cabeça à
qual eles pertenciam, e viessem novamente para o lugar
original, o lugar de nascença (EVARISTO, 2016, p.50)

No conto de Conceição Evaristo há a marca da resistência, no apego


a ser quem se é e na sua origem. O legado de Halima é transmitido a seus
descendentes. E dessa forma, a força e a riqueza de suas características
também são transmitidos.
O fantástico, no conto de Conceição Evaristo, surge como uma resposta
à violência, é uma expressão de resistência à tentativa de esvaziamento
da humanidade de Halima, mulher escravizada. Para Arán (2014, p.69)
el hombre busca desde antiguo, e través de las narrativas
fantásticas capturar alguna forma de verdad alternativa
(aunque sea efímera) puesto que no le resultan
satisfactorias las construcciones admitidas sobre lo real,
sean jurídicas, científicas, religiosas o cualquier otro
tipo de legalidad, que siempre es cultural e histórica.
Y porque también esto incluye la pregunta sobre la
legalidad de su propria humanidad, las fronteras entre
lo humano y lo no humano.

Dessa forma, a criação de mundos imaginários, conjunturais, com


elementos fantásticos decorre da necessidade de romper com a estruturas
do mundo real, de apresentar uma possibilidade de transgressão das
amarras. Por isso, a construção da narrativa apresenta nos elementos
do fantástico uma forma de representar a força de Halima: o combate

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

o discurso opressivo a partir das possibilidades da personagem. Quem


escraviza Halima não sabe de seus “poderes” e, por isso, a vê como um
ser inferior, pois desconhece a força de seu ser, de sua ancestralidade e as
potencialidades de que é capaz.
Tanto no conto de Cristiane Sobral quanto no de Conceição Evaristo é
possível perceber que a luta pela liberdade perpassa pela resistência em
não permitir que suas características, que seus traços ancestrais sejam
apagados. Lutar contra um padrão calcado no racismo também é uma
forte característica das narrativas apresentadas.
Seja pelo relato realista de Cristiane Sobral, seja pela narrativa
fantástica de Conceição Evaristo, os cabelos são elementos que expressam
a resistência e a luta dessas mulheres em quebrar padrões e serem livres.
Mesmo sendo violentadas, agredidas ou depreciadas, a certeza de ser
quem são impulsiona as personagens em suas jornadas.
A ficção é um espaço de questionamento das estruturas sociais que
são vivenciadas no mundo empírico. Para alguns autores, as narrativas
fantásticas, devido a construção antimimética nas quais estão alicerçadas,
assumem um caráter de oposição a narrativas realistas. Entretanto, para Arán
(2014, p.70), corroborando com as ideias de Marcelo Cohen, ambas formas de
narrativa constroem mundos criativos, que se baseiam na realidade empírica
para a produção ficcional de suas histórias. A autora defende, portanto, que
a representação de determinadas realidades conferiria a textos literários
uma posição de “real incerto”, independente de a narrativa ser fantástica ou
realista. Para a autora, as obras do realismo incerto
están todas aquellas que ponen en tela de juicio
(aunque sea momentánea) los saberes, las creencias,
las normas y en definitiva, la legalidad de cierta orden
cultural conocido, mientras mantienen una relación
extrañada con el lenguaje porque – y vuelvo a Cohen
que ha iluminado muchas de mis reflexiones y por eso

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

‘De lo que menos seguro está el realismo inseguro es de


la índole de lo real: por eso lo realiza una vez tras otra’.
(ARÁN, 2014, p.70-1)

Pensar a realidade hoje é, sempre, pensá-la a partir da construção de


narrativas. Sejam pelos meios de comunicação, pelas tecnologias ou pela
própria ciência. É possível, pensar, portanto, que o mundo contemporâneo
é uma representação por si. Há conflitos de narrativas e tensões entre
forças. As literaturas, portanto, “son las que ‘fabrican presente’ igual que
la política y los medios, tales como autobiografías, crónicas, reportajes o
diarios íntimos, y en ellas los limites entre ficción y realidad son ambiguos”
(ARÁN, 2014, p.71). Por isso, narrativas fantásticas e realistas não possuem
fronteiras claras, mas ambas são formas de representação do mundo.
Apresentar formas de questionar a realidade empírica são a base
das narrativas dos contos “Pixaim” e “Fio de ouro”. As duas autoras, ao
construírem narradoras que, ao contarem suas histórias, expressam sua força
de resistência. O ato de narrar é a representação do não deixar esquecer,
da narrativa da luta por quebrar padrões opressivos, que impedem a livre
expressão do ser. Pois, como afirma Gloria Anzaldúa, em seu ensaio “Falando
em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo”:
Sua pele deve ser sensível suficiente para o beijo mais
suave e dura o bastante para protegê-la do desdém.
Se for cuspir na cara do mundo, tenha certeza de estar
de costas para o vento. Escreva sobre o que mais nos
liga à vida, a sensação do corpo, a imagem vista, a
expansão da psique em tranquilidade: momentos de
alta intensidade, seus movimentos, sons, pensamentos.
Mesmo se estivermos famintas, não somos pobres de
experiências. (ANZALDÚA, 2000, p.235)

Ao construir narrativas que apresentam um ponto de resistência, que


questionam os apagamentos do ser, as autoras defendem a diversidade e
buscam quebrar padrões socialmente construídos. Os cabelos assumem

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

um papel de representar a autonomia dessas mulheres de serem livres, de


mesmo experimentando o cativeiro, seja na condição de escravizada ou
como vítima de padrões sociais, elas podem se expressar e agir de acordo
com suas vontades. Elas representam a luta pela liberdade e a certeza de
que é possível ser quem se é.

REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Gloria. (2000). “Falando em línguas: uma carta para as mulheres
escritoras do terceiro mundo”. Édna de Marco (Trad.). Revista Estudos Feministas.
Florianópolis: UFSC, 8(1), 229-236.

ÁRAN, Pampa (2016). “Metamorfosis del fantástico literario”. In: GARCÍA, Flavio;
BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina (Orgs.). (Re)Visões do Fantástico: do
centro às margens; caminhos cruzados. Rio de Janeiro: Dialogarts. p.67-86.

DAVIS, Angela. (2016). Mulheres, Raça e Classe. Heci Regina Candiani (Trad.). São
Paulo: Boitempo.

EVARISTO, Conceição. (2016). “Fios de ouro”. In: ______. Histórias de leves


enganos e parecenças. Rio de Janeiro: Malês, p.49-52.

______ (2005). “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face”. In: MOREIRA,
Nadilza M. de Barros & SCHNEIDER, Liane. Mulheres no mundo – etnia, marginalidade,
diáspora. João Pessoa: Idéia/ Editora Universitária – UFPB, p.201-212.

HARARI, Yuval Noah. (2016) Homo Deus: uma breve história do amanhã. Paulo
Geiger (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.

MBEMBE, Achille. (2018). Crítica da Razão Negra. Sebastião Nascimento (Trad.).


São Paulo: n-1 edições.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

DE MULHER FALADA À QUE FALA, NAS OBRAS DE


MACHADO DE ASSIS E PEPETELA
Daniella Moreira de Oliveira

INTRODUÇÃO
Personagens monstruosos estão presentes no nosso legado narrativo
desde os primórdios. O que antes era representado através de deformações
físicas, como o personagem Quasímodo, do livro Notre-Dame de Paris
(1931), de autoria de Victor Hugo, ou mais distante ainda, através das figuras
mitológicas, hoje aparece metaforicamente figurado pelas minorias.
No ano em que a obra Frankenstein, de Mary Shelley, completa 200
anos, é importante refletir sobre como essa monstruosidade pode ser
representada na literatura, colocando o tema em pauta, a fim de fomentar
a discussão acerca dessas classes e as questões de poder ainda presentes
em nossa sociedade.
Para esta análise, serão comparadas duas personagens femininas, as
quais se opõem aos costumes da época em que estavam inseridas e que,
por isso, são alvos de julgamento: Capitu, personagem de Dom Casmurro
(Machado de Assis) e Marisa, de O tímido e as mulheres (Pepetela). Este
estudo propõe uma discussão acerca da figura da mulher na sociedade,
especialmente daquelas que se apresentam como vozes insólitas.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

CAPITU: A MULHER FALADA


Uma mulher silenciada pelo marido, refém de um ciúme doentio.
Poderia ser – infelizmente – tema de uma reportagem atual, mas trata-se
do casal Capitu e Bento Santiago, personagens do livro Dom Casmurro,
que tem como cenário o Rio de Janeiro do século XIX. Machado de Assis
nos apresenta uma história, contada a partir do ponto de vista de um
narrador-personagem nada confiável, pois tudo o que sabemos dos fatos
é contado por meio de seu ponto de vista.
Capitu é uma das maiores representantes das personagens femininas
machadianas, que carregam consigo a peculiaridade de, sem deixar
a feminilidade de lado, transitarem em espaços reconhecidos como
masculinos, o que as coloca no grupo de personagens que “assustam” a
maioria dos homens, uma vez que “transgridem os sistemas delimitadores
da cultura patriarcal, ao desafiarem as tradicionais instituições do
casamento e da família, sendo, portanto, consideradas símbolos de
desordem.” (PIETRANI, 2000, p.53). Nesse sentido, por ser uma mulher
que foge aos padrões comportamentais esperados pela sociedade, Capitu
representa uma figura insólita dentro da literatura nacional.
Assim como outras personagens femininas de Machado, Capitu
apresenta pouco – ou quase nenhum – poder de fala. Tudo o que se sabe
sobre ela foi narrado por um personagem masculino, criado por um homem
inserido num sistema patriarcal, o que pode favorecer o silenciamento da
voz feminina com uma força verossímil muito maior. Cabe ressaltar aqui
a importância de fomentar a literatura feita por mulheres; é preciso abrir
espaço para que vozes femininas ocupem lugares que, ainda hoje, costumam
ser destinados aos homens, como se atividades intelectuais tivessem relação
com gênero e à mulher coubesse, “[...] em seu papel natural de educadora,
criar o instinto da paz, sendo ela a principal responsável por essa tarefa de
transformação do indivíduo”. (WANDERLEY, 1999, p.75)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Tem-se, então, uma mulher emudecida pela sociedade, cujo código de


valor reprime o feminino; é possível pensar numa leitura dessa opressão
a partir de um traço importante da personagem Capitu: a dissimulação.
Esse mesmo regulador social é o que legitima o homem a falar da mulher,
rotulando-a de forma monstruosa, pelo simples fato de não submeter-se
a um sistema que a impede de gozar dos mesmos direitos de um homem,
indo de encontro à Declaração Internacional dos Direitos Humanos, cujo
primeiro artigo diz que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais
em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem
agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” (Assembleia
Geral da ONU, 1948 – grifo nosso)
O mistério feminino, enaltecido nas obras machadianas, ganha
notoriedade uma vez que há uma grande – por vezes, total – interferência
do narrador. Portanto, a mulher é retratada a partir de um local de fala
masculino patriarcal. Embora esse que fala reconheça a complexidade
feminina, ainda assim escolhe não dar voz às mulheres nas narrativas,
impondo sua ideia sobre o que desconhece. Sobre isso, Pietrani diz que
Capitu pensava com sua própria cabeça, a partir de
reflexões fundamentadas, em contraposição a Bentinho,
que se refugiava nos devaneios com o Imperador, por
exemplo. Suas “ideias atrevidas” (Assis, 1994, v.1, p.841)
eram resultado do “empenho, da palavra, da persuasão”
(Assis, 1994, v.1, p.829). (PIETRANI, 2000, p.70)

É interessante observar que tais palavras nunca foram ditas, pois foram
silenciadas pelo narrador, inclusive de forma metafórica ao cobrir os braços
da esposa, entendendo que, como proprietário dos membros de Capitu,
também o era, por extensão, ou por metonímia – de todo o restante.
Por tudo o que reconhecidamente Capitu era, “mulher por dentro e
por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde
os pés até a cabeça” (ASSIS, 2018, p.203), Bentinho – e a sociedade –

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

sabia que ela era uma ameaça aos padrões patriarcais e precisava ter sua
voz calada, seus olhos fechados, seu corpo banido. Dessa forma, Capitu é
retirada de cena, exilada, perde seu espaço na narrativa, assim como seu
direito de fala.

MARISA: A MULHER QUE FALA


Uma mulher julgada pela sociedade, acusada – sem provas – de
assassinar o marido; evidências? Nenhuma. Exceto o fato de ser uma
mulher independente, fora dos padrões designados pelo sistema patriarcal
para o sexo feminino. Essa é mais uma obra de ficção que poderia ser
manchete de jornal.
O tímido e as mulheres (2013), escrito por Artur Carlos Maurício
Pestana dos Santos – o Pepetela – retrata a sociedade angolana na
atualidade, trazendo como temática central a figura da mulher dentro
da capital Luanda. A obra gira em torno de dois protagonistas – Heitor
e Marisa -, que têm suas histórias cruzadas por vários personagens,
formando uma teia onde, no fim, é possível perceber a relação intrínseca
entre cada um deles.
Na referida obra, há vários personagens que fogem aos padrões
determinados pela sociedade patriarcal, porém para o presente trabalho,
analisaremos apenas Marisa, a radialista que vive de sua fala e dá voz
às mulheres angolanas, além de, sutilmente, denunciar as irregularidades
e excessos da sociedade luandense. Negra, jovem, atraente, bem-
sucedida, ela vai de encontro ao que se espera de uma mulher, agindo
com autonomia e personificando o desejo de ser daquelas que ainda são
anuladas pela cultura do patriarcado.
Mesmo no matrimônio, modelo tradicional de união, Marisa apresenta-
se destoante. Ela é casada com Lucrécio, um homem que tem todos os
requisitos opostos à figura masculina numa perspectiva machista: portador

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

de uma deformidade física genética, preso a uma cadeira de rodas, mas


notável por sua inteligência; limitado fisicamente, porém com uma mente
brilhante, o que possivelmente atraíra a radialista, fazendo-a apaixonar-se
por ele, haja vista a forma como ela encarava o mundo. Marisa apaixonara-
se pelo que ele era, “[...] um homem que se moldou a si próprio, produto de
muito estudo e pensamento [...]” (PEPETELA, 2014, p.25)
Baseado no Dicionário dos Símbolos, de Chevalier e Gheerbrant, Pietrani
compara a união entre Marisa e Lucrécio com a figura do gavião, que
“simboliza o casal em que a mulher é o elemento dominante pelo fato de a
‘fêmea ser mais forte e hábil que o macho’.” (2000, p.55). É assim que eles são
vistos pela sociedade: é ela quem tem o controle, quem manda, quem está
na posição designada ao homem, incluindo a permissão – ou pelo menos a
justificativa – para seduzir e até mesmo ter relacionamentos extraconjugais.
Durante a narrativa, Marisa demonstra saber que atrai olhares e
comentários masculinos, que é desejada por eles, como quando, ao
perceber “os olhares dos homens colados à sua bunda” (PEPETELA, 2000,
p.271), propositadamente ela rebolava e acabava recebendo aplausos.
Dessa forma, toma para si a mesma permissão que é dada aos homens,
legitimada pelo discurso machista, que banaliza a traição masculina e
entende que objetificar o corpo feminino é “coisa de homem”.
Entretanto, diferente do que acontece com eles, Marisa não é vista
de forma positiva por apresentar tal comportamento, como é possível
perceber nos trechos:
Onde te estás a meter, uma miúda dessas, fogosa como
poucas, só pode acabar num frondoso par de cornos [...]
(PEPETELA, 2000, p.20)
Marisa é uma acendalha [...] uma substância que arde
com o primeiro fósforo e depois fica um tempo largo
a se consumir até o carvão pegar fogo. Bem, ela põe
um tipo em brasa, deixa-o arder, até ele estar pronto

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

a trepar as paredes. Aí deita-lhe um balde de água em


cima, vai para casa, acabou, eu não dessas que trai o
marido. (2000, p.40-41)

O comportamento de Marisa era tão contrário aos padrões sociais,


que Heitor – personagem aspirante a escritor – julgava poder narrar como
uma obra ficcional de grande imaginação e que ninguém acreditaria ser
baseada em fatos reais. (PEPETELA, 2000, p.184)
Cabe ressaltar que, embora Marisa represente essa mulher que
tem o poder de fala e que escolhe “jogar o jogo” dos homens, ela está
inserida numa sociedade patriarcal e, por isso, sofre sanções por seu
comportamento. Após o marido cometer suicídio, Marisa é apontada
como suspeita do assassinato. É presa e, mesmo sem provas, não ganha
liberdade, sendo silenciada – como Capitu – na forma de prisão domiciliar.
Nota-se, assim, que, em sociedades patriarcais, a mulher sempre sofrerá
algum tipo de resistência ao reivindicar seu espaço e exercer sua
liberdade. Eis a importância de se abordar o assunto, evidenciando o
termo “feminismo” pois, segundo Pateman
é urgente que se faça uma história feminista do conceito
de patriarcado. Abandonar o conceito representaria
[...] a perda, pela teoria da política feminista, do único
conceito que se refere especificamente à sujeição da
mulher, e que singulariza a forma de direito político que
todos os homens exercem pelo fato de serem homens.
(1993, p.39-40 Apud SAFFIOTI, 2015, p.58)

Tal proposição faz muito sentido quando observamos que a


historiografia oficial manteve esse apagamento feminino no olvido e sob
o silêncio; as histórias da literatura, igualmente, mantiveram em quase
total invisibilidade o protagonismo feminino, de tal sorte que somente
o resgate arqueológico empreendido pela crítica feminista, nas últimas
décadas do século XX, pôde restaurar a memória dessas lutas.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A MONSTRUOSIDADE METAFÓRICA NAS RELAÇÕES DE PODER


Tanto Capitu quanto Marisa foram alvos da monstruosidade imposta
pelo sistema patriarcal às mulheres. A “dissimulada”, além de não ter voz na
obra, foi exilada por Bentinho, tirando-lhe qualquer chance de posicionar-
se em sua defesa e perdendo seu lugar na narrativa. A “acendalha” foi
condenada (mesmo sem provas) à prisão domiciliar pela morte do marido,
que cometera suicídio.
Segundo Saffioti, considera-se violência a “ruptura de qualquer
forma de integridade da vítima: integridade física, integridade psíquica,
integridade sexual, integridade moral.” (2015, p.18). Dessa forma,
considerando o último ponto de ruptura, é possível dizer que Capitu e
Marisa sofreram grave violência, tendo sido vítimas do olhar monstruoso
da sociedade, que impõe um padrão a ser seguido, configurado para
silenciar a mulher e objetificar seu corpo. A autora diz ainda que o
sexismo é reflexo de uma estrutura de poder que coloca a mulher em
condição de inferioridade. (2015, p.37). Somado a isso, tem-se o assédio
sofrido pelas mulheres que chegam a exercer alguma função social
destinada a homens, como acontece com Marisa que, como radialista,
num ambiente majoritariamente masculino, está sempre sob a mira de
um olhar machista.
Metaforicamente, as mulheres têm sua liberdade amputada, não há
caminho livre para aquelas que buscam exercer o poder. Desde o início dos
tempos, a mulher foi ensinada a ser submissa, dócil, haja vista o mito de
Lilith, que fora substituída por Eva, uma vez que não aceitava ser inferior
a Adão. Em contrapartida, o homem sempre foi estimulado a comportar-
se de forma rude, agressiva, como sinônimo de força e coragem. Tal visão
torna-se monstruosa principalmente quando o homem usa dessa força
par impor de forma violenta sua supremacia.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A IMPORTÂNCIA DA REPRESENTATIVIDADE DAS MINORIAS NA


LITERATURA
No artigo Literatura e construção da identidade, Barone fala sobre a
importância da literatura “na construção e reconstrução da identidade e
realidade do sujeito” (2007, p.112). Nesse sentido, é importante pensar
sobre que sujeitos estão sendo representados nessas histórias e quais
experiências de vida estão presentes na literatura. Como as minorias
podem se reconhecer nos livros e fazer deles uma ferramenta de (re)
construção das suas identidades? Eis a importância de tirar esses grupos
das margens e trazê-las ao centro, permitindo que todos tenham o
direito de estabelecer ligações culturais para que, segundo Eco, possam
“manter em exercício a língua como patrimônio coletivo; criar identidade
e comunidade, bem como manter em exercício nossa língua individual”.
(2003, p.9-21 Apud BARONE, 2007, p.115)
Ademais, é imprescindível destacar a valiosa contribuição de Antônio
Cândido, que defende a literatura como um legítimo direito do homem,
afirmando que
assim como todos sonham todas as noites, ninguém
é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem
alguns momentos de entrega ao universo fabulado. [...]
Portanto, assim como não é possível haver equilíbrio
psíquico sem o sonho durante o sono, talvez não haja
equilíbrio social sem a literatura. Deste modo, ela é fator
indispensável de humanização e, sendo assim, confirma
o homem na sua humanidade, inclusive porque atua
em grande parte no subconsciente e no inconsciente”.
(2004, p.174-175 Apud BARONE, 2007, p.115)

Sendo a literatura tão significativa ao homem, é fundamental que


todos possam se sentir representados, caso contrário, esse direito
que Candido defende apenas será exercido por parte da população. A

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

representatividade na literatura é necessária para que não exista uma


única história, um único ponto de vista sobre diferentes pessoas, lugares,
crenças e sociedades. Essa oferta precisa ser eclética, para que não se
repitam os padrões impostos pela cultura de elite, excluindo quem
tangencia esse grupo. É preciso dar voz àqueles que vêm sendo silenciados
pelo sistema.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No confronto das duas Literaturas de Língua Portuguesa, Dom
Casmurro e O tímido e as mulheres foram observados tanto os aspectos
de aproximação quanto o de afastamento entre elas, em respeito ao
cumprimento e/ou distanciamento de padrões comportamentais para as
personagens femininas principais nos diferentes contextos nos quais se
subscrevem, a saber: Capitu na ambiência do Brasil pré-Republicano, de
meados a fins do século XIX, e Marisa, na Angola pós-independência. A
primeira foi acusada de adultério e não possui voz para desenvolver o seu
ponto de vista quanto à suspeita do marido. A segunda, por sua vez, é uma
radialista que vive de sua fala, mas que, mesmo assim, por estar inserida
em uma sociedade patriarcal, não foi capaz de se fazer ouvir.
Entendemos a alteridade no sentido da sociedade patriarcal que
previu o comportamento feminino fora dos padrões do ponto de vista
do desvio. Concebemos a personagem feminina do ponto de vista da
insubmissão franksteniana, que interroga padrões de conformação
comportamental no âmbito do feminino. No monstro, fronteiras se
tornam porosas, permeáveis e os trânsitos de intransitáveis se efetivam:
ao instaurar como sujeito da história o indivíduo do sexo masculino
heterossexual, o patriarcalismo relegou à instância monstruosa as
diferenças: o feminino, o homossexual – que, reprimidos, controlados,
provocam fascínio e terror.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Nesse sentido, evidencia-se a importância da representatividade


feminina não só na literatura, mas em todos os âmbitos sociais. É
preciso fomentar a discussão acerca da condição feminina, gerando um
processo de conscientização com o propósito de não permitir que as
monstruosidades contra a mulher continuem sendo parte do mundo real.

REFERÊNCIAS
Assembleia Geral da ONU. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Nações
Unidas, 217 (III) A, 1948, Paris, art. 1. In http://www.un.org/en/universal-
declaration-human-rights/ Acesso em 16.Mar.2019.

ASSIS, Machado de (2018). Dom Casmurro. 2.ed. São Paulo: Carambaia.

BARONE, Leda Maria Codeço (2007). “Literatura e construção da identidade”.


Revista Psicopedagogia, 24(74), 110-116.

PEPETELA (2014). O tímido e as mulheres. São Paulo: Leya.

PIETRANI, Anélia Montechiari (2000). O enigma da mulher no universo masculino


machadiano. Niterói: EdUFF.

SAFFIOTI, Heleieth (2015) Gênero, patriarcado e violência. 2.ed. São Paulo:


Expressão Popular: Fundação Perseu Abramo.

WANDERLEY, Márcia Cavendish (1999) “Lúcia Miguel Pereira: do conservadorismo


ao liberalismo”. In: Literatura e feminismo: propostas e reflexões críticas. Rio de
Janeiro: Elo, p.73-84.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

E A NOIVA DE FRANKENSTEIN?
REFLEXÕES SOBRE A (DES)IMPORTÂNCIA
Rita de Cássia Silva Sacramento
José Carlos Felix

O século XIX deu ao mundo, no campo literário, muitas obras importantes


que serviram como instrumento tanto para o entretenimento da população,
sobretudo a feminina, quanto para a difusão e consolidação de novos
conceitos e valores morais produzidos e estabelecidos pela classe burguesa
em seu processo de ascensão como classe dominante. Sob a forma de
romance, o gênero narrativo se consolidou e conquistou leitores do mundo
inteiro, firmando novas obras canônicas que, por sua vez, reconfiguraram
e deram nova forma à historiografia literária moderna. Com efeito, a
popularização do romance coincide com a época do apogeu da Revolução
Industrial inglesa, tempo em que a sociedade moderna efervescia-se com
a instalação e administração das fábricas, aumentando exponencialmente
seu enriquecimento e ao mesmo tempo engendrava uma nova rotina para
os lares burgueses. Isto é, embora o processo de industrialização do século
XIX seja comumente entendido como um fenômeno majoritariamente
urbano e de inflexão direta no universo masculino, as mulheres viram-se
diretamente afetadas ao serem tiradas muitas habituais atribuições sociais,
o que as obrigavam a procurar outra forma de passar o tempo. Sandra
Vasconcelos explica essa nova conjuntura social da seguinte maneira:

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A nova ordem econômica obrigou homens e mulheres


a se adaptarem às mudanças que se operavam na
sociedade. No caso delas, no entanto, a situação
complicou-se muito com a perda de espaços que haviam
sido seus no mundo do trabalho. Com a expansão
urbana, o crescimento da indústria, a crescente
especialização de habilidades, muitas das tradicionais
tarefas femininas estavam sendo assumidas pelas
novas classes profissionais. A fiação, a tecelagem, a
produção de alguns produtos de consumo (como pão,
cerveja e velas) deixaram de ser atividades domésticas,
de competência das mulheres da casa, para se
converterem em atividades industriais, desempenhadas
pelos homens nas fábricas. Se, por um lado, a liberação
dessas tarefas domésticas proporcionou às mulheres
maior tempo livre, que será principalmente ocupado
com a leitura de romances, também as expulsou do
mercado de trabalho, tornando-as mais dependentes
do casamento para sua sobrevivência. (VASCONCELOS,
2007, p.126-127)
Ao contrário ao que se poderia esperar dessa nova configuração
social, a liberação de certas tarefas domésticas e o consequente aumento
do tempo livre não se converteram em alavancas para catapultar a tão
almejada emancipação feminina. Ao invés disso, o tempo ocioso passou a
ser visto como um problema no sentido de que dava às mulheres tempo
suficiente para uma reflexão crítica de sua condição subalterna, algo que,
em pouco não demoraria, se converteria em uma avalanche de protestos
e movimentos ao redor do planeta reivindicando igualdade social. Nesse
sentido, no que se refere às mulheres, maior público leitor e consumidor
de ficção em prosa, o romance passou a ser utilizado como um potente
instrumento pedagógico, no sentido de que poderia instruir o público leitor
feminino a como se comportar com decoro e de acordo com as regras sociais,
particularmente no que se refere aos valores burgueses como casamento,
fidelidade, discrição e subserviência ao marido, entre tantos outros.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Por essa razão, a leitura de romances sempre foi vista como uma
atividade menor e circunscrita ao universo feminino, assim como,
posteriormente, os cursos das universidades relacionados às letras e ao
ensino. Estas atividades eram consideradas naturais para as mulheres, pois
os homens tinham que ser médicos, engenheiros, arquitetos e advogados,
profissões socialmente mais valorizadas. Mesmo com a luta das mulheres
para garantir seu espaço na sociedade, esta não era uma tarefa fácil. O
preconceito com que eram vistas – e que perdura até os dias de hoje – é uma
clara demonstração da falta de aceitação a que um lugar mais importante
lhes fosse e seja reservado. Com efeito, como atestam os inúmeros enredos
das narrativas romanescas, o explícito conteúdo moral legitimava o lugar
que a sociedade burguesa impunha às mulheres, ao mesmo tempo em
que também mostravam que as que se atreviam burlar ou subverter tais
princípios e valores eram punidas por sua infringência. A ênfase pedagógica
naquilo que seria um romance de formação da leitora foi tão contundente
que se tornou uma espécie de gênero dentro do próprio gênero romanesco,
o conto moral, ou cautionary tale, em inglês. Exemplos desse tipo de
narrativa são inúmeros e em várias línguas, indo de ficção de horror como
Drácula, do irlandês Bram Stocker, a romances clássicos como Madame
Bovary, do francês Gustave Flaubert e O Primo Basílio, do português Eça de
Queirós. A despeito das peculiaridades nas narrativas de cada romance, em
todos eles, o leitor, ou melhor a leitora, encontra exemplos de heroínas que
ousaram a romper com as regras morais e sociais de seu tempo, recebendo,
cada uma a seu modo, a punição a contento; nos três casos dos romances
acima mencionados como em tantos outros: a morte. Contudo, mesmo que
as protagonistas se conformassem com o papel que lhes era designado, as
mesmas não estavam livres de sofrerem injustiças e pagarem o preço por
serem a parte mais fraca e “dispensável” da sociedade. É o que nos mostra
Mary Shelley em seu romance mais famoso: Frankenstein, or the modern
Prometheus (1818), que completa duzentos anos de publicação.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Neste romance, mais uma vez, a despeito de o foco central recair sobre
as personagens masculinas, Victor Frankenstein e sua criação, o monstro,
as mulheres que povoam o enredo em Frankenstein desenham o panorama
social das famílias britânicas da época, tanto na classe burguesa quanto
daquelas pertencentes ao proletariado. Tais personagens femininas são
raramente lembradas ou notadas seja pela fortuna crítica da obra quanto
pelos próprios leitores e leitoras. Um caso a se observar inicialmente é da
personagem Margaret Saville, a grande leitora das cartas de Robert Walton e
do relato de Victor Frankenstein. Margaret é uma personagem absolutamente
necessária para que o leitor possa ter acesso à história. Nenhuma outra ação
cabe a Margaret a não ser a leitura, revelando e afirmando o status do mais
completo ócio desta mulher burguesa em relação à sua vida doméstica e sua
alienação no que se refere o mundo do trabalho.
Ele então me disse que começaria seu relato no
dia seguinte, quando eu tivesse um tempo livre.
Essa promessa arrancou-me os mais calorosos
agradecimentos. Resolvi que vou registrar, todas as
noites, quando não estiver ocupado, tudo o que ele me
relatou durante o dia, tanto quanto possível em suas
próprias palavras. Se eu estiver ocupado, farei pelo
menos algumas anotações. Esse manuscrito sem dúvida
lhe dará grande prazer; mas para mim, que o conheço e
que ouvi a história de seus próprios lábios, com quanto
interesse e simpatia não o lerei algum dia no futuro!
(SHELLEY, 2016, p.49)1

Como se percebe, Victor Frankenstein detalhou sua história para


Walton, que cuidou de a registrar e enviar os textos para sua irmã, Margaret.

1  He then told me, that he would commence his narrative the next day when I should be at
leisure. This promise drew from me the warmest thanks. I have resolved every night, when I
am not engaged, to record, as nearly as possible in his own words, what he has related during
the day. If I should be engaged, I will at least make notes. This manuscript will doubtless
afford you the greatest pleasure: but to me, know him, and who hear it from his own lips,
with what interest and sympathy shall I read it in some future day! (SHELLEY, 2016, p.48)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Esta ação não apenas visava manter o prazer de leitura da irmã, mas garantir
que a experiência de Victor ficasse registrada para leitura futura.
Outras personagens femininas que ganham visibilidade na história são
as jovens Justine Moritz, Agatha e Safie. Justine representa as jovens vindas
das classes sociais menos abastadas, cujo infortúnio lhes impossibilita
de conseguir apoio moral ou mesmo material dentro da própria família,
ficando à mercê da “compaixão” de uma família burguesa que lhes oferece
um refúgio e sobrevivência em troca de seu trabalho na criadagem. Mary
Shelley explora brilhantemente essa situação de subalternidade e de
estigma social vivido por Justine ao ser ainda acusada de um crime que não
cometeu, sendo julgada e condenada à morte. Parte considerável do motivo
da pena foi a desconfiança da sociedade em torno de alguém que estava na
família apenas como um serviçal, sem direito a nenhuma credibilidade.
‘Ela é inocente, minha Elizabeth’, disse eu ‘e isso será
provado. Nada tema, apenas permita que seu espírito
se anime com a garantia de sua absolvição’.
‘Como você é bondoso! Todo mundo acredita que ela
seja culpada, e isso me deixa infeliz, pois eu sei que é
impossível. E ver todo mundo com uma predisposição
desse tipo me deixa desesperada e sem qualquer
esperança.’ Ela se pôs a chorar. (SHELLEY, 2016, p.115)2

A família Frankenstein, apesar de ter perdido seu membro mais


jovem, confiava na inocência de Justine, pois seu jeito de ser não era
compatível com a violência cometida contra William, uma criança que ela
amava. Mas a sociedade já tinha feito um pré-julgamento, que era sentido
por Elizabeth. Este pré-julgamento e a pressão social influenciaram o mau
desempenho de Justine no depoimento e sua consequente condenação.
2  “She is innocent, my Elizabeth,” said I, “and that shall be proved; fear nothing, but let
your spirits be cheered by the assurance of her acquittal.”
“How kind you are! Everyone else believes in her guilt, and that made me wretched; for I
knew that it was impossible: and to see everyone else prejudiced in so deadly a manner,
rendered me hopeless and despairing.” She wept. (SHELLEY, 2016, p.114)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Em relação a Agatha, trata-se da jovem filha do velho De Lacey. A


família De Lacey é pobre e desassistida pela sociedade e dela isolada. Seus
membros passam privações, mas são unidos e felizes. A importância de
Agatha é a de inspirar amor no monstro para que ele desperte a vontade de
ter uma companheira e acessar uma das condições básicas de ser humano,
ou seja, a possibilidade de conseguir e dar amor e constituir uma família.
Em um dos cantos, junto a uma lareira pequena, estava
sentado um velho, com a cabeça apoiada nas mãos numa
atitude desconsolada. A moça estava ocupada arrumando
a casa, mas então tirou de uma gaveta alguma coisa em
que suas mãos passaram a se ocupar, e sentou-se ao lado
do velho que, pegando um instrumento, começou a tocar,
e a produzir sons mais doces que a voz do tordo ou do
rouxinol. Era uma cena adorável, até para mim, um pobre
desgraçado que nunca vira alguma coisa bela. Os cabelos
prateados e o semblante bondoso do velho morador do
chalé conquistaram o meu respeito, enquanto os modos
suaves da moça despertaram o meu amor. (SHELLEY,
2016, p.155;157)3

Com a família De Lacey, a criatura percebe a felicidade, a simplicidade,


a beleza e o amor. Ao colocar estes elementos em uma família pobre,
Shelley demonstra que estes sentimentos não são trazidos pela riqueza
e pelo luxo, mas pelo modo como as pessoas tratam umas às outras com
carinho e respeito.
Finalmente, a narrativa de Shelley traz à tona a personagem Safie. Esta
é uma jovem árabe que mantém um relacionamento amoroso com Felix De

3  In the corner, near a small fire, sat an old man, leaning his head on his hands in a
disconsolate attitude. The young girl was occupied in arranging the cottage; but presently
she took something out of a drawer, which employed her hands, and she sat down beside
the old man, who, taking up an instrument, began to play, and to produce sounds, sweeter
than the voice of the thrush or the nightingale. It was a lovely sight even to me, poor wretch!
Who had never beheld aught beautiful before. The silver hair and benevolent countenance
of the aged cottager, won my reverence; while the gentle manners of the girl enticed my
love. (SHELLEY, 2016, p.154;156)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Lacey e vai viver no seio da família De Lacey. Sua importância para a história
diz respeito à aprendizagem do monstro, pois sendo estrangeira, precisa
aprender a língua local assim como o monstro, que não sabe falar ou ler.
Eu passava os meus dias atento, para que pudesse
dominar mais depressa a linguagem. Posso orgulhar-
me de ter aprendido com mais rapidez do que a árabe,
que entendia muito pouco e falava com acentos
entrecortados, enquanto eu compreendia e podia
repetir quase toda palavra que era dita. Enquanto
progredia na fala, aprendi também a ciência das letras,
que era ensinada à estrangeira. Isso abriu diante de
mim um vasto campo de deslumbramento e prazer.
(SHELLEY, 2016, p.171)4

Como se observa, o monstro possui uma maior capacidade de


aprendizagem do que a estrangeira. Esta diferença não acontece pelo fato
de Safie ser mulher, mas porque ela não é um monstro, sua capacidade
intelectual está dentro da normalidade.
Contudo, o papel de destaque às duas mulheres que influenciam
decisivamente a narrativa em Frankenstein são conferidos a Caroline
Beaufort e Elizabeth Lavenza. Ambas evidentemente advindas de famílias
burguesas respectivamente. No primeiro caso, Caroline é uma jovem
rica cujo pai vai à falência e, dois anos após a morte deste, casa-se com
Alphonse Frankenstein, ascendendo novamente à burguesia. Elizabeth é
uma jovem que se torna órfã de mãe e, tendo seu pai italiano decidido
constituir nova família, entrega a filha para ser criada pelo tio no país de
origem da mãe para que esta criança, oriunda de uma outra relação, não
atrapalhe o novo casamento que pretende construir.
4  “My days were spent in close attention, that I might more speedily master the language;
and I may boast that I improved more rapidly than the Arabian, who could understood very
little, and conversed in broken accents, whilst I comprehended and could imitate almost
every word that was spoken.
“While I improved in speech, I also learned the science of letters, as it was taught to the stranger;
and this opened before me a wide field for wonder and delight.” (SHELLEY, 2016, p.170)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Caroline e Elizabeth convertem-se como peças fundamentais para a


estrutura narrativa do romance de Mary Shelley, particular e curiosamente
após suas trágicas mortes. Em vida, são mulheres comuns e respeitadas
dentro de sua família (Frankenstein): a primeira como mãe e a segunda
como parente e futura esposa de Victor. Na morte, Caroline se torna
importante sendo parte da motivação de Victor para a fabricação do
monstro, uma vez que ele o faz visando dar cabo das doenças que assolam
as pessoas. Mas a vaidade pessoal que emerge da grandiosidade do seu
feito o leva ao projeto máximo de derrotar a morte.
Quando cheguei à idade de dezessete anos, meus pais
resolveram que eu devia ingressar na universidade de
Ingolstadt. Até então eu tinha frequentado as escolas
de Genebra, mas meu pai julgou necessário, para
completar a minha educação, que eu me familiarizasse
com outros costumes que não os de meu país natal.
Marcou-se então a minha partida para uma data
próxima, mas antes que o dia determinado chegasse,
ocorreu o primeiro infortúnio de minha vida – como se
fosse um presságio da minha futura desgraça.
[...]
A princípio, ela rendeu-se aos nossos pedidos; mas quando
soube que sua favorita estava se recuperando, já não pôde
mais ficar longe dela, e entrou em seu quarto muito antes
de ter passado o perigo do contágio. As consequências
desta imprudência foram fatais. No terceiro dia, minha
mãe adoeceu; sua febre era muito maligna, e os olhares
das pessoas que atendiam prognosticavam o pior. Em
seu leito de morte, a fortaleza e a bondade dessa mulher
admirável não a abandonaram. (SHELLEY, 2016, p.63)5
5  When I had attained the age of seventeen, my parents resolved that I should become a
student at the university of Ingolstadt. I had hitherto attended the schools of Geneva; but
my father thought it necessary, for the completion of my education, that I should be made
acquainted with other customs than those of my native country. My departure was therefore
fixed at an early date; but, before the day resolved upon could arrive, the first misfortune of
my life occurred – an omen, as it were, of my future misery.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A morte de Caroline acontece tempos depois que Victor toma


conhecimento dos escritos de personagens como Cornélio Agripa e
Paracelso, estudos considerados ultrapassados e não científicos, que levam
em seu bojo sugestões de experiências consideradas como quimeras. Com
este primeiro desastre, a ida de Victor para a universidade acontece com
o objetivo de colocar em prática algumas destas experiências, visando
também o reconhecimento público de seu feito.
A morte de Elizabeth é a última parte do relato que Victor faz para
Walton. Ela acontece na noite de núpcias dos dois e deixa Victor sem
nenhum parente vivo. É nesse quesito que Elizabeth se torna o tour de
force que impulsiona Victor à decisão de, de uma vez por todas, caçar e
matar o monstro que criou, ainda que tardiamente.
Ao deixar Genebra, minha primeira providência foi
conseguir alguma pista que me permitisse traçar os
passos do meu diabólico inimigo. Meu plano, porém,
era incerto, e vaguei muitas horas pelos confins
da cidade sem saber bem que caminho tomar. Ao
se aproximar a noite, encontrei-me na entrada do
cemitério onde repousavam William, Elizabeth e meu
pai. Entrei e me aproximei da tumba onde estavam
suas sepulturas. Tudo era silêncio, exceto pelo
murmúrio das folhas das árvores que se agitavam
suavemente com o vento. A noite estava quase escura
e o cenário parecia solene e comovente, mesmo para
um observador desinteressado. As almas dos que
partiram pareciam esvoaçar ao redor, e lançar uma
sombra que não era vista, mas podia ser sentida, em
torno da cabeça daquele que os pranteava.

[…] She had, at first, yielded to our entreaties; but when she heard that her favourite was
recovering, she could no longer debar herself from her society, and entered the chamber
long before the danger of infection was past. The consequences of this imprudence were
fatal. On the third day my mother sickened; her fever was very malignant, and the looks of
her attendants prognosticated the worst event. On her death-bed the fortitude and benignity
of this admirable woman did not desert her. (SHELLEY, 2016, p.62)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O profundo pesar que essa cena a princípio provocara,


logo deu lugar à raiva e ao desespero. Estavam mortos
e eu vivo; seu assassino vivia também e para destruí-lo
deveria prolongar minha miserável existência. (SHELLEY,
2016, p.289)6

Seja pelas funções exercidas ao longo da narrativa ou pelo destino


(trágico) de cada personagem feminina criada por Mary Shelley em
Frankenstein, a despeito do fato de nenhuma delas apresentarem algum
tipo de falha de caráter ou de retidão moral, fica evidente a impossibilidade
de protagonismo das mesmas. Cada uma a seu modo assinala o rígido
status social da mulher na sociedade industrial europeia do século XIX.
Com efeito, o romance – dada sua função pedagógica no sentido de
manutenção do status quo entre homens e mulheres – não apenas se
ocupa da mera função representativa, ou seja, um lócus de espelhamento
das relações sociais como muitos quiseram atribuir ao romance realista,
mas, para além de uma função meramente representativa, coube a ele o
poderoso papel de instrumento consolidador na manutenção do tecido
social de sua época. E a história e as monstruosidades continuam...
Outro romance importante para analisar o papel das mulheres
na sociedade é Poor things (1992), escrita pelo autor escocês Alasdair
Gray. Trata-se de uma reescrita do clássico Frankenstein enfocando a
monstruosidade feminina, que se configura não apenas pelo aspecto físico,

6  When I quitted Geneva, my first labour was to gain some clue by which I might trace the
steps of my fiendish enemy. But my plan was unsettled; and I wandered many hours around
the confines of the town, uncertain what path should pursue. As night approached, I found
myself at the entrance of the cemetery where William, Elizabeth, and my father, reposed.
I entered it, and approached the tomb which marked their graves. Everything was silent,
except the leaves of the trees, which were gently agitated by the wind; the night was nearly
dark; and the scene would have been solemn and affecting even to an uninterested observer.
The spirits of the departed seemed to flit around, and to cast a shadow, which was felt but
seen not, around the head of the mourner.
The deep grief which the scene had at first excited quickly gave way to rage and despair. They
were dead, and I lived; their murdered also lived, and to destroy him I must drag out my
weary existence. (SHELLEY, 2016, p.288)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

mas pelo desejo e atividade sexual e pela capacidade intelectual. Em Poor


things, Alasdair Gray recria a experiência científica de Victor Frankenstein
por meio da personagem Godwin “God” Baxter, um estudante igual ao
primeiro, mas que atua de forma mais madura e responsável em relação
à criatura que criou. A narrativa escrita por Gray segue o mesmo estilo
epistolar utilizado por Mary Shelley, porém há diferenças importantes
em relação ao trabalho de Shelley: é que Gray utiliza-se de recurso
performático e se torna uma personagem da história que teve acesso ao
livro pronto de Archibald McCandless e o editou e publicou, tornando-
se coautor. Além disso, as narrativas que compõem o livro de Gray são
propositalmente contraditórias a fim de criar uma tensão no que tange
ao estabelecimento e consolidação de uma verdade absoluta sobre os
fatos e sobretudo sobre o éthos das personagens femininas, um recurso
estético-narrativo distante do Zeitgeist de Shelley.
Na estrutura narrativa de Poor things, Mary Shelley funciona como uma
espécie de autora compiladora, uma vez que tem acesso ao material escrito
por Robert Walton (cartas), e contado por Victor a Walton (relato), Alphonse
Frankenstein e Elizabeth Lavenza (cartas), reúne-o e o publica como o livro
chamado Frankenstein, or the modern Prometheus. Porém, o modo como
este acesso aconteceu não se revela na narrativa, nem tampouco a figura da
autora. Alasdair Gray, no entanto, aparece na história recebendo o material
já pronto. Após leitura, decide corrigir o título original Episodes from the early
life of a Scottish public health officer para Poor things, bem como modificar
os títulos dos capítulos, que considera muito extensos e desestimulantes
à leitura. Além disso, ele acrescenta ao término da narrativa de Archibald
McCandless, a carta deixada por Victoria McCandless, que contesta partes
importantes do livro do marido.
Logo no início da narrativa, fica marcada a intenção do escritor escocês
de recriar a narrativa de Mary Shelley por meio de uma desmontagem
da estrutura narrativa, ou seja, trata-se de uma desleitura ou reescrita.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Atos de (des)leitura e (des)escrita permitem e mesmo fomentam as


adaptações, de um modo geral, e as traduções e as recriações, enfocando
estes novos textos como o lócus da convergência entre os atos de
leitura e escritura, processo pelo qual (de)escrevem-se textos (e formas,
materialidades) canônicos. Desta maneira, a releitura é pensada como
poiesis - ato criativo, em que se atualiza(m) a(s) potencialidade(s) do texto,
particularmente do literário e a escrita como desleitura na acepção de
Bloom (1995): da apropriação desviante do outro e do texto do outro –
texto escrevível, a ser lido sempre na perspectiva de uma abordagem
comparada e em diálogo com outros textos. Como o próprio termo indica,
a reescrita de um texto canônico como gesto de desleitura pretende
compreender a função do autor e o papel do leitor na contemporaneidade
a partir do conceito de desescrita, cunhado por Bloom (1991; 1995),
enfocando, particularmente, como as categorias autor/leitor e escritura/
leitura convergem e, ao convergir, são postas em xeque particularmente
na literatura contemporânea pelas novas configurações dos lugares
e práticas de leitura e escrita e, do mesmo modo, compreender como
esses novos lugares e práticas desconstroem o conceito de obra literária,
questionando o que Foucault (2001) definira como características do
discurso autoral – o nome do autor e a propriedade de atribuição.
Nesse sentido, partindo do conceito de desleitura, entendemos o
romance Poor things, de Alasdair Gray, como um gesto de desescrita
de Frankenstein, ao reescrever o romance de Mary Shelley alterando
significativamente a estrutura da narrativa, particularmente no que
tange à temporalidade do romance reescrito. Assim, as cartas de Walton
no romance de Shelley datam os acontecimentos que são narrados em
algum momento do século XVIII, enquanto a narrativa de McCandless/
Gray diz respeito a acontecimentos que ocorreram entre o final do século
XIX e o início de século XX. A datação de Gray é de grande importância
porque ela centra a narrativa num momento em que as mulheres já

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

estão mobilizadas para conquistarem um novo lugar na sociedade.


A personagem principal Victoria Blessington/Bella Baxter/Victoria
McCandless representa justamente os dois comportamentos possíveis
para as mulheres: no caso de Victoria Blessington, a representação
é referente às mulheres que se reprimem e são reprimidas devido às
convenções sociais impostas às mulheres na instituição matrimonial.
Com enfeito, Victoria Blessington é plenamente humana, burguesa
e infeliz. Por não suportar as restrições e a infelicidade impostas pelo
marido, dá cabo da própria vida atirando-se no rio Clyde, na Escócia.
O corpo retirado é levado por Godwin Baxter para seu laboratório,
após não ter sido reclamado por nenhum familiar. No laboratório, é
constatado que a falecida estava em avançado estado de gravidez. God
então decide retirar o corpo do bebê e dele aproveita apenas o cérebro
e o coloca na mãe, em seguida, dá-lhe novamente a vida.
Diferentemente de Victor Frankenstein que abandona o monstro que
criou e o deixa solto em meio a situações desfavoráveis que lhe causam
revolta e desejo de vingança, Godwin Baxter dá ao monstro feminino criado
por ele o nome de Bella, seu próprio sobrenome e uma história familiar
para construir um passado. Além disso, ele jamais o abandona, dando-lhe
educação e refinamento para poder estar integrado à sociedade sem ser
reconhecido como monstro que é.
A fabricação de Bella Baxter, portanto, consistiu apenas da substituição
do cérebro de Victoria pelo do bebê que ela carregava. Isto aconteceu
não porque era impossível recuperar o cérebro de Victoria, mas por um
desejo longamente cultivado por God: “[...] Por anos eu vinha planejando
pegar um corpo e um cérebro descartados de nosso monte de lixo social
e uni-los em uma nova vida. Agora eu realizei... eis, daqui para a frente,
Bella”. (Tradução nossa)7. O ato de God representa a vontade do mundo

7  “[…] For years I had been planning to take a discarded body and discarded brain from our
social midden heap and unite them in a new life. I now did so, hence Bella.” (GRAY, 1992, p.33-34)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

masculino de estar sempre infantilizando as mulheres para não levá-las a


sério e não deixar que ocupem o lugar que merecem.
No entanto, a monstruosidade de Bella Baxter não se resume ao
aspecto físico. Ela se revela especialmente na esfera comportamental,
uma vez que Bella leva a vida que Victoria gostaria de levar, mas não
tinha coragem e nem liberdade para tanto. Sendo um monstro, os desejos
sexuais que Bella herdou de Victoria são multiplicados – e realizados!
Enquanto Victoria tinha desejo por seu marido e este preferia matar o
fervor sexual fora do casamento, Bella pode ter desejo pelos homens que
quiser e levar os homens à exaustão.
Outra característica da monstruosidade de Bella Baxter é sua
capacidade intelectual. O cérebro de bebê implantado nela de início
revela um desenvolvimento um pouco acima do normal, levando-a a
falar após três meses de idade. A narrativa de Gray mostra os estágios
do desenvolvimento cerebral de Bella, que se acelera gradativamente,
levando ao desenvolvimento pleno quando o órgão está com apenas três
anos de implantado.
Como se observa, a reescrita de Alasdair Gray valoriza o papel social e a
capacidade intelectual da mulher. Ele não busca mostrar a vida das mulheres
e o confinamento pessoal a que são submetidas por conta dos ditames do
mundo logocêntrico, onde o lugar da mulher é abaixo do homem, embora
apresente uma mulher que está presa a esta situação, e a única solução
vislumbrada para erradicar o seu problema seja a morte. A morte de Victoria
Blessington é um símbolo de que a mulher acorrentada pelas convenções
sociais precisa morrer para que nasça uma nova mulher. Bella Baxter aparece
não só pelo desejo de God de criar um indivíduo, mas pela necessidade social
de que este indivíduo não esteja ao alcance das exigências sociais.
Em Poor things, a última versão da mulher-monstro é Victoria
McCandless. Ela representa tanto a mulher que venceu, quanto a que se
conformou com as convenções sociais após chegar ao topo. Sua vitória é

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

incontestável. Victoria torna-se a primeira mulher formada em Medicina,


tem militância político-social e, apesar de ter constituído família, não
se prende aos afazeres domésticos e consegue alcançar mais sucesso
profissional e pessoal do que seu marido, Archibald McCandless.
Além disso, Victoria se mostra mais forte e desafiadora do que
Archibald ao contestar a versão dele para sua vida em Poor things, o que
vem a ser mais uma das principais divergências da escrita de Gray em
relação à de Shelley: enquanto no Frankenstein os narradores convergem
para complementar a narrativa do outro, em Poor things eles divergem
frontalmente. Há, no livro de Gray duas discordâncias importantes: a
carta de Bella Baxter que dá uma outra versão para os fatos narrados na
carta de Duncan Wedderburn e a carta de Victoria McCandless, na qual a
autora lembra de sua vida de solteira, analisa a vida de casada e disseca
sua relação com Archibald e God, contradizendo trechos importantes do
livro de Archibald McCandless.
Por tudo isso, o leitor de ambos os livros percebe um ganho de
importância da mulher em Poor things. Nenhum demérito à grande
obra de Mary Shelley, cujo romance serve para despertar no leitor uma
consciência em relação às injustiças sofridas pelas mulheres. O tempo
testemunhado por Mary Shelley é muito diferente do tempo em que vive
e escreve Alasdair Gray. Cada romance, ao seu modo, fornece ao leitor
contemporâneo um panorama diferente do que era, do que é e do que
ainda pode ser a vida da mulher.

REFERÊNCIAS
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Rio de Janeiro: Imago.

______ (1991). A angústia da influência. Arthur Nestrovski (Trad.). Rio de Janeiro:


Imago, 1991.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

FLAUBERT, Gustave (2011). Madame Bovary. Mário Laranjeira (Trad.). São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras.

FOUCAULT, Michel (2001). “O que é um autor”. In: Ditos e Escritos: Estética –


literatura e pintura, música e cinema vol. III. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
p.264-298.

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QUEIRÓS, Eça. O primo Basílio. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.

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STOKER, BRAM. Dracula. San Diego: Canterbury Classics. 2012.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. A formação do romance inglês. São Paulo:


Aderalvo & Rothschild; FAPESP, 2007.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

ENTRE O ANORMAL E O MONSTRUOSO: NOTAS


SOBRE O LIVRO CARRIE DE STEPHEN KING (1974)
E O FILME HOMÔNIMO DE BRIAN DE PALMA (1976)
Gabriela Müller Larocca

INTRODUÇÃO
Partindo dos conceitos de anormalidade de Michel Foucault e
monstruosidade-feminina de Barbara Creed, o presente capítulo analisa
a obra literária Carrie, a Estranha publicada em 1974 por Stephen King
e sua versão cinematográfica homônima de 1976 dirigida por Brian de
Palma. Ambas narram a história da adolescente Carrie White, uma tímida
garota, alvo de inúmeras humilhações por parte de seus pares escolares
e de sua própria mãe. O grande diferencial da personagem e o leitmotiv
das narrativas é que ela possui poderes telecinéticos, fortalecidos com a
chegada de sua menarca. Desta forma, nota-se uma associação entre o
feminino e o monstruoso pautada precisamente nas funções corporais e
reprodutoras das mulheres.
A concepção do feminino como monstruoso e anormal é antiga
e comum em diversas sociedades, evocando o medo da diferença
corporal e da sexualidade feminina, como se existisse algo intrínseco no

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

sexo feminino que o tornaria perigoso e abjeto. Um bom exemplo são


as narrativas da mitologia clássica, povoadas por inúmeros monstros
femininos como as sereias e a Medusa. Desta forma, ao longo deste
trabalho analisamos o livro e a produção cinematográfica partindo dos
conceitos de anormalidade, monstruosidade-feminina e abjeção. Ademais,
refletimos como o feminino-monstruoso e anormal reforça definições
patriarcais, perpetuando uma visão de que as mulheres, por natureza, são
instáveis e perigosas. Sendo assim, é possível alegar que a presença da
monstruosidade e anormalidade feminina no horror busca, muitas vezes,
reforçar a diferença e a marginalização das mulheres, apresentando
questões associadas aos medos e inseguranças masculinas e sendo alheia
aos desejos e subjetividades femininas.

A MONSTRUOSIDADE-FEMININA NO HORROR
A experiência emocional do horror e do medo está presente em
praticamente todas as sociedades e culturas humanas. O que atualmente
consideramos histórias de horror destinadas ao entretenimento não são uma
exclusividade da literatura ou do cinema, mas fazem parte de uma antiga
tradição que incorpora crenças e práticas religiosas, mitologia, folclore e
diversas outras formas culturais. O horror artístico, aquele que atravessa
diversas formas de arte e mídia, é conduzido, na grande maioria das vezes, por
um elemento ameaçador, impuro e/ou repugnante: o monstro, personagem
mutável, cuja forma é histórica e culturalmente construída.
É inegável que o grande antagonista do gênero de horror é o monstro,
categoria extremamente ampla e complexa que engloba personagens
que não se encaixam ou violam algum esquema de ordem cultural, social
e natural, ameaçando uma suposta normalidade, devendo ser excluídos
ou contidos (CARROLL, 1999). Desta forma, alguns monstros podem
ser vistos como a personificação de ameaças ou medos particulares

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

(WORLAND, 2007, p.9). Para alcançar popularidade e interesse, o


antagonista, seja ele qual for, deve causar algum grau de ressonância
em seus espectadores e leitores.
Desde os seus primórdios, situados na literatura gótica do século
XVIII, o horror1 lida tematicamente com as complexas questões de
morte, salvação e sexualidade (HOGAN, 1997). Abrangendo diferentes
temáticas, enredos e monstros, o gênero é conhecido por sua capacidade
de inovação, apresentando, ao longo de mais de um século de existência,
uma ampla gama de subgêneros.2 Apesar de sua enorme diversidade,
é impossível negar que se encontra, desde muito cedo, intimamente
preocupado com as questões de diferença sexual, relações de gênero,
sexualidade e com o corpo feminino, ao qual frequentemente direciona
uma violência extrema.
Contudo, a ansiedade causada pelo corpo e sexualidade femininos
não é nenhuma novidade. Segundo o historiador Thomas Laqueur, as
diferenças biológicas, que conhecemos por meio do saber científico, são
baseadas no modelo dos dois sexos, que constrói homens e mulheres como
opostos e essencialmente diferentes (2001). Laqueur aponta que este
conhecimento corresponde a uma construção relativamente moderna,
surgida ao final do século XVIII, quando o sexo feminino é inventado pela
ciência biológica, principalmente pelos saberes médicos da ginecologia e
obstetrícia, como o completo oposto do masculino (2001). Na tentativa
de explicar a singularidade da anatomia e fisiologia feminina, a medicina
1  Ao longo deste trabalho, utilizamos o termo “horror” e não “terror” para discutir tanto
o gênero literário quanto o cinematográfico. A distinção reside no fato de que o terror
evolui de uma construção cuidadosa do suspense, perturbando ao criar apreensão de que
alguma coisa horrível pode acontecer. Já o horror é uma forma emocional que não produz
apenas ansiedade, mas também repulsa, se tratando de algo que literalmente aconteceu. O
terror faz o espectador/leitor se preocupar com o que pode acontecer, enquanto o horror
concretiza este medo (WORLAND, 2007, p.10-11).
2  Subgêneros são semelhanças na forma e estrutura narrativa de determinados filmes,
como o subgênero dos monstros da Universal nos anos 1930 e os filmes slasher/stalker dos
anos 1970 e 1980.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

aprofundou-se na questão da função reprodutiva, de forma que o sexo e a


menstruação se tornaram determinantes para a definição de feminilidade,
estabelecendo-se assim um universo feminino completamente diferente
da racionalidade masculina (MARTINS, 2004). Desta forma, o destino das
mulheres passou a ser ligado à materialidade de seus corpos e não a seus
desejos e subjetividade (MARTINS, 2004, p.13).
Esse estranhamento perante o feminino teve alcance até os séculos XX
e XXI, sendo que o horror, seja ele cinematográfico ou literário, incorpora
e dissemina o discurso de que mulheres e homens são profundamente
diferentes, utilizando imagens e narrativas chocantes para evocar o medo
perante a diferença corporal. É recorrente no cinema de horror narrativas
que sugerem uma complexa associação entre a Mulher e o monstruoso
(MARTINS, 2011, p.159). De tal maneira, muitos são os filmes povoados
por monstros femininos que reafirmam a representação do feminino
como ser ameaçador e anormal.3 Segundo Barbara Creed, devemos
prestar atenção ao fato de que a concepção do feminino-monstruoso é
comum em inúmeras sociedades (1993). O monstro feminino horroriza
de forma diferente do masculino, pautando-se na diferença sexual e nos
fluídos corporais femininos, representando uma visão essencialista de
que as mulheres, devido a seus corpos e natureza diferentes, são mais
frágeis e perigosas.
Logo, o conceito de feminino-monstruoso está intimamente ligado a
questões de diferenciação sexual. Creed recorreu ao conceito de abjeto,
desenvolvido por Julia Kristeva, para entender o monstro feminino no
horror, o problematizando como algo que desrespeita limites, posições,
regras e perturba identidades, sistemas e ordens (KRISTEVA, 1984).
As definições de monstruoso disseminadas pelo horror se mostram

3  Em seu livro, The Monstrous-Feminine, Barbara Creed cita diversos exemplos de


arquétipos de monstros-femininos presentes no horror, como: a mãe primitiva, o corpo
possuído, o útero monstruoso, a vampira, a bruxa e a mãe castradora (CREED, 1993).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

intimamente ligadas à noções antigas de abjeção, como perversões


sexuais, alteração corporal, morte, sacrifício humano, cadáveres, fluídos
corporais, incesto e o corpo feminino (CREED, 1996, p.37). É inegável
que o horror constrói diversos enredos e imagens abjetas que ameaçam
desestabilizar uma suposta normalidade.
Segundo Kristeva, o feminino é recorrentemente vinculado a
objetos poluídos, divididos em duas categorias principais: excrementos
e sangue menstrual (KRISTEVA, 1984). Fluídos corporais, como sangue,
menstruação, vômito e pus são centrais para a construção cultural e
social do horror, apontando para a fragilidade do corpo, especialmente o
feminino. Existe assim uma complexa ligação entre o feminino-monstruoso
e o estabelecimento de uma suposta diferença feminina, principalmente
em relação às suas funções reprodutivas e maternas.
Um bom exemplo de construção desse feminino-monstruoso é a
representação do útero, que desde os tempos clássicos foi associado
ao reino animal, dotado de chifres em inúmeras representações. No
horror, é frequentemente abordada a conexão entre feminino, útero e
monstruoso4, assim como as supostas emoções destrutivas das mulheres,
caracterizadas como instáveis (CREED, 1993, p.45). Em muitas narrativas,
a capacidade feminina de gestar e dar à luz, assim como sua fisiologia, são
construídas como aterrorizantes, associadas ao mundo animal e aos ciclos
de nascimento e morte.5 O útero caracterizaria uma das formas extremas
de abjeção, trazendo contaminação como sangue, fezes, lóquios e outros
produtos do nascimento. O corpo feminino é, desta forma, marcado e
representado como impuro e pertencente ao mundo natural, reforçando

4  Um bom exemplo dessa conexão é o filme Os Filhos do Medo (1979) do diretor canadense
David Cronenberg.
5  Essa associação não é novidade, já que por muito tempo, devido à alta quantidade
de mulheres que morriam ao dar à luz, a maternidade esteve associada à morte, criando
a ambiguidade de que o feminino poderia fornecer a vida e também anunciar a morte
(FISCHER, 1996).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

uma rígida separação entre o feminino, natural e materno e o mundo


masculino, regulado pela civilização e normalidade. A habilidade feminina
em dar à luz se estabelece, portanto, como uma área demarcadora da
diferença, convencionalmente assinalada como portadora de influências
malignas e ocultas: “[...] o útero de uma mulher – junto com seus outros
órgãos reprodutivos – significa diferença sexual e como tal possui o poder
de horrorizar o oposto sexual feminino” (CREED, 1993, p.57).
Sendo assim, o útero-monstruoso exemplifica como a imagem da
figura feminina vinculada à geração de vida é ressignificada, passando a
evocar sentimentos de ameaça e repugnância. O feminino-monstruoso
aparece de diversas formas no horror, contribuindo para construir as
mulheres enquanto diferenças sexuais, como um Outro imaginário que
precisa ser controlado para assegurar uma ordem social:
Mas o feminino não é monstruoso por si só, ao contrário,
é construído como tal dentro de um discurso patriarcal
que revela uma grande quantidade de desejos e medos
masculinos, mas não nos conta nada sobre o desejo
feminino em relação ao horrível. (CREED, 1996, p.63)

É possível notar como o horror frequentemente reforça o


estranhamento perante o feminino, representando uma suposta ameaça
emanada pela sexualidade feminina e pelo poder da diferença sexual que
a molda (HOLLINGER, 1996). Logo, vemos como a imaginação narrativa e
cinematográfica estabelece o corpo feminino como local privilegiado de
horror, medo e dor. Ao analisarmos o horror como um todo, fica claro que
este atualiza e revela medos e desejos universais, presentes em diferentes
indivíduos e sociedades, como o medo da dor, do ataque ao corpo, da
desintegração e da morte. Porém, existe também a representação de
medos especificamente generificados: anseios masculinos em relação
ao poder reprodutivo feminino ou a uma emancipação feminina nos
espaços políticos e econômicos, além de medos tipicamente femininos

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

relacionados à agressividade e violência sexual. Desta forma, é possível


afirmar que o horror, talvez mais do que qualquer outro gênero ou estilo,
está diretamente interessado em questões de diferença sexual e mais
disposto a explorar as ansiedades masculinas e femininas em relação ao
Outro e seu corpo (CREED, 1993, p.152).

DO MONSTRO AO ANORMAL
O feminino é constantemente imaginado como monstruoso, seja em
produções cinematográficas mais antigas como Sangue de Pantera (Jacques
Tourneur, 1942) e A Mulher Vespa (Roger Corman, 1959) ou mais recentes,
como a série de filmes Alien iniciada em 1979. Desta maneira, representações
negativas do feminino geralmente ganham vida pela figura do monstro.
Entretanto, apesar deste ser crucial para o desenvolvimento de todo o
gênero, literário ou cinematográfico, no caso de algumas personagens, surge
outro conceito que se mostra igualmente central: o de anormalidade.
A noção de anormalidade é interessante para explicar personagens
femininas que não se caracterizam completamente como monstruosas.
Apesar de serem enquadradas como perigosas, elas não são seres
fantásticos, sendo inteiramente humanas e não possuindo nenhuma
deformidade ou característica intersticial visível. Ao contrário dos monstros
clássicos, cuja monstruosidade é manifestada fisicamente, assemelham-se a
mulheres comuns (LAROCCA, 2016). Sendo assim, uma das características
que as tornam ameaçadoras, originando o horror e as aproximando da
categoria de monstro, é a loucura ou o despertar da sexualidade, como
veremos a seguir em Carrie. Como Michel Foucault afirmou, o anormal é um
monstro cotidiano, um monstro banalizado (2014, p.49).
De acordo com Foucault, a problematização do que é o anormal
perpassa importantes questões como sexualidade, monstruosidade
e loucura. No que tange a questão do monstro humano, uma das três

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

figuras que habita o terreno da anormalidade, o autor procura entender


como a ideia de monstruosidade, antes entendida como a transgressão
dos limites naturais, das classificações e leis – exatamente como o cinema
de horror clássico a desenha e exibe – acabou saindo do domínio da
alteração somática e natural para o domínio da criminalidade (2014, p.63).
A espécie de uma “grande monstruosidade excepcional” foi dividida em
pequenas anomalias, por meio de personagens que são, ao mesmo tempo,
anormais, familiares e próximos do cotidiano, como é o caso de inúmeras/
os personagens dentro do gênero de horror.
Logo, o grande vetor do problema da anomalia será fixado pela
psiquiatria, que estabelece um elo fundamental entre a loucura e o crime,
por meio da ideia do instinto. Considera-se assim que os atos monstruosos
e sem razão de certos criminosos não eram produzidos a partir de uma
lacuna assinalada pela ausência temporária de razão, mas sim por uma
dinâmica dos instintos. Isso possibilitou a difusão do “grande monstro”
para o “pequeno perverso” e também a transformação científica da
ausência de razão em um ato patológico. De tal forma, surgem novos
personagens cujas discrepâncias devem ser investigadas em relação a
uma norma, ou seja, a uma regra de conduta que se opõe à irregularidade,
desordem, excentricidade e discrepância (FOUCAULT, 2014).
Personagens como Carrie White, sua mãe e inúmeras outras que
habitam a literatura e o cinema, não possuem qualidades físicas que as
categorizem unicamente como monstruosas, sendo, também inseridas
dentro do domínio da anormalidade. De tal forma, podemos considerar
a ideia de um instinto feminino, ou seja, de que as mulheres, devido a
uma pretensa, unitária e instável natureza feminina, são mais propensas
à loucura e acabam por cometer atos violentos, insanos e sem explicação
aparente (LAROCCA, 2016). O/A anormal não é caracterizado/a pelo lapso
de razão em seu comportamento, mas sim por um estado permanente,
que o/a relega ao estatuto definitivo de aberração.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A partir do século XIX, segundo Foucault, criou-se uma pequena


“população de anormais”, elaborando-se também a noção de estado. O
estado seria a base da anormalidade, um fundo causal permanente e unitário
a partir do qual são desenvolvidos processos e episódios marcados como
patológicos e desviantes. Muitas personagens femininas da literatura e do
cinema de horror não possuem comportamentos considerados perigosos
devido a algum lapso ou circunstância temporária, mas sim por possuírem
uma característica ou estado permanente que é conectado a uma condição
essencial: serem mulheres (LAROCCA, 2016). Podemos, então, considerar
diversas personagens como “anormais” por se encontrarem num estado
que é permanente, marcado pelo fato de serem mulheres e relacionado
a questões como suas funções corporais, o exercício da sexualidade e
maternidade (LAROCCA, 2016).
Os estudos sobre anormalidade e sexualidade sempre caminharam
muito próximos. Posteriormente, num movimento de intertextualidade,
a literatura e o cinema também passaram a representar e associar a
anormalidade a uma sexualidade desenfreada e perigosa, principalmente
por meio de personagens femininas. De tal maneira, junto com o conceito
de feminino-monstruoso, inúmeras personagens consideradas “anormais”
são transformadas em antagonistas. No caso do horror, um bom exemplo
desta união entre sexualidade, monstruosidade e anormalidade é vista na
personagem Carrie White.

O CASO DE CARRIE WHITE: ANORMAL E MONSTRUOSA


Carrie, a Estranha foi publicado originalmente em 1974, o primeiro
livro vendido comercialmente pelo escritor estadunidense Stephen
King. Dois anos depois, em 1976, a história foi levada para as telas do
cinema, dirigida por Brian De Palma e alcançando um grande sucesso

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

comercial e de críticas.6 Ambas as histórias se passam na cidade fictícia de


Chamberlain, no estado estadunidense de Maine e narram a história de
uma tímida adolescente, Carrie White, de 16 anos, desajustada e excluída
socialmente, que usa seus recém-descobertos poderes telecinéticos para
se vingar de todos seus colegas em um baile da escola, causando um
desastre de enormes proporções. Acerca de seu livro, King afirmou que
“Carrie, a Estranha é muito mais sobre como as mulheres encontram seus
próprios canais de poder, e sobre o que os homens temem nas mulheres
e em sua sexualidade” (2013, p.197).
A obra literária, dividida em três partes, não recorre a uma narrativa
linear, sendo composta e intercalada por notícias de jornais, cartas, artigos
sobre telecinesia, depoimentos, trechos de relatórios e livros que abordam
o “Caso de Carrie White”. Logo nas primeiras páginas o leitor já é notificado
do fim trágico da personagem principal, assim como de sua mãe e colegas,
ficando ciente de que não existe um desfecho feliz (LAROCCA, 2016, p.108).
Outro detalhe interessante do livro é a referência a uma Comissão White,
reunida para averiguar o que aconteceu na noite do baile, mostrando
que Carrie virou objeto de estudo e tema acadêmico. Nota-se, portanto,
a intenção de não deixar a história adstrita ao plano ficcional fantasioso,
aproximando-a do leitor como se realmente tivesse acontecido.
No filme, Carrie (Sissy Spacek) é retratada como uma menina de
16 anos, desengonçada e tímida, magra e com longos cabelos loiros
embaraçados e jogados em cima de seu rosto cheio de sardas. Já no
livro, é descrita como uma adolescente acima do peso, com um corpo
“indeterminado” e cheio de espinhas, distante de um padrão de beleza
dominante. Além de ser ridicularizada devido à sua aparência, Carrie
também é alvo de inúmeras maldades, como pichações no muro da
escola com os dizeres: “Carrie White come cocô” (KING, 2009, p.40). A
6  O filme recebeu duas indicações ao Oscar em 1977, de Melhor Atriz para Sissy Spacek
e Melhor Atriz Coadjuvante para Piper Laurie. Além da versão de 1976, o livro contou com
mais três adaptações cinematográficas e foi transformado em musical na década de 1980.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

personagem inspira uma mistura de ódio, repulsa, exasperação e pena,


sendo ignorada, empurrada e intimidada por seus colegas. Porém, o que
irá diferenciá-la do resto das adolescentes de sua idade são seus poderes
telecinéticos, fortalecidos com a chegada de sua primeira menstruação.
A menarca de Carrie é capturada pelas câmeras logo nos minutos
iniciais, chegando tardiamente e de forma extremamente traumática.
Enquanto a adolescente se encontra no chuveiro, ensaboando-se e
conhecendo o próprio corpo, a cena é brutalmente interrompida pelo
sangue menstrual que começa a descer por suas pernas. Sem saber o que
estava acontecendo, devido à falta de conhecimento, Carrie entra em
desespero e acredita estar ferida e morrendo. Ao sair do chuveiro e implorar
pela ajuda de suas colegas, ela vira motivo de piada das adolescentes, que
riem de seu medo e jogam absorventes em seu corpo encurralado em um
dos chuveiros. A “brincadeira” apenas se encerra quando a personagem
é resgatada pela professora de Educação Física que tenta acalmá-la a
qualquer custo.7 Enquanto Carrie continua inconsolável nos braços da
professora, sem entender o que estava acontecendo, uma lâmpada do
vestiário misteriosamente estoura, indicando o fortalecimento de seus
poderes, que até então permaneciam latentes. Conforme o desenrolar da
história, estes são revelados de forma trágica no clímax, durante o baile
da escola, transformando Carrie em uma mulher monstruosa e anormal.8
Além de Carrie, outra personagem importante é sua mãe, Margareth
White, uma mulher extremamente religiosa, obcecada por questões de

7  Apesar de ser uma personagem marginal nos enredos, a professora possui um papel chave
ao incentivar Carrie a se arrumar e ir ao baile. Sendo assim, oferece um caminho para atingir
uma feminilidade tradicional e culturalmente construída por meio da vaidade, com dicas de
postura, maquiagem e cabelo. Agindo como um modelo para Carrie, ela constrói um caminho
para um mundo adulto diferente das repressões impostas pela mãe (LAROCCA, 2016).
8  Existe um incidente no livro onde Carrie, ainda criança, espia uma vizinha que tomava
sol no quintal ao lado e quando punida por sua mãe faz pedras caírem do céu, atingindo
somente a casa em que as duas moravam. A referência à uma manifestação precoce dos
poderes telecinéticos não foi abordada na narrativa cinematográfica.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

pecado e salvação, frequentemente descrita como sofrendo ataques


violentos de autoflagelação. O pai de Carrie é mencionado pouquíssimas
vezes, falecendo meses antes da filha nascer.9A Sra. White afirma que
o casal teria se conhecido em uma campanha religiosa, vivendo sem
pecado e sem a “maldição da cópula”. No filme, sua primeira aparição
ocorre quando percorre a vizinhança com o propósito de disseminar a
palavra de Deus, distribuindo livros e panfletos. Margareth (Piper Laurie)
é caracterizada como uma mulher na casa dos quarenta anos, com
cabelos ruivos e vestida inteiramente de preto, carregando uma sacola
repleta de materiais religiosos. Desde o início, ela inspira desconforto em
seus vizinhos, sendo evitada por suas excentricidades. Ao longo do filme,
nota-se que a personagem traja apenas roupas pretas, aproximando sua
imagem à de uma bruxa perversa, estereótipo feminino muito comum no
cinema de horror.
O mais interessante, entretanto, é como a Sra. White reforça um
medo e desconfiança associados historicamente ao corpo e à sexualidade
feminina, provenientes principalmente da narrativa judaico-cristã,
que constrói uma imagem ambígua da mulher associada ao pecado,
oscilando entre a figura negativa de Eva e a redenção utópica por meio da
Virgem Maria (MARTINS, 2011). A personagem se insere nesta tradição,
acreditando que a menstruação é uma maldição hereditária entre as
mulheres, responsáveis pelo pecado original e que a sexualidade feminina
é responsável pela queda do ser humano da graça de Deus.10 Sendo assim,
procura controlar a filha e salvá-la dos pecados femininos e corporais,
recorrendo a agressões físicas, abusos verbais e omitindo questões de
sexualidade e reprodução, o que leva Carrie a acreditar que está morrendo
nos eventos iniciais do vestiário.
9  Na versão cinematográfica, é mencionado rapidamente que havia fugido com outra mulher.
10  No filme, a imagética religiosa é muito importante. A casa da família White é repleta
de velas, imagens de santos, crucifixos, imagens e livros religiosos, o que transmite uma
tentativa desesperada de salvação, mas também de culpa.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

No livro, o desejo sexual é denominado diversas vezes como a Coisa,


sendo concebido como perigoso e demoníaco, sendo que o ato sexual
é frequentemente nomeado de forma depreciativa. Além do mais,
Margareth recorre à história bíblica de Adão e Eva para reforçar a ideia de
que as mulheres são culpadas pelos males do mundo. Para a personagem,
Deus criou Eva a partir da costela de Adão, afirmando que agora que Carrie
tinha se “transformado” em mulher deveriam orar e pedir perdão por
suas “almas fracas de mulher, perversas e pecadoras” (KING, 2009, p.75).
Diz também que Eva foi fraca e libertou o pecado sexual, sendo punida
primeiro pela maldição do sangue, depois pela do parto e por último pela
do assassinato (KING, 2009, p.76-77).
A feminilidade é assim associada reiteradamente ao pecado e ao Diabo,
sendo os desejos sexuais considerados perversos e anormais. Além do mais,
em ambas as narrativas, as personagens femininas são frequentemente
associadas ao mundo animal, reforçando a separação histórica entre o mundo
feminino, natural e materno e o masculino regido pela normalidade. No livro,
Carrie é descrita como “um porco no matadouro” e com comportamento
“igual aos cachorros”. Quando conta que foi convidada para o baile da
escola, desafiando a autoridade materna, Margareth tenta impedi-la e
afirma furiosamente que agora os meninos viriam atrás de sua filha como
verdadeiros animais, sentindo o cheiro do sangue de sua menstruação:
“Meninos. É, depois vêm os meninos. Atrás do sangue vêm os meninos.
Como cães farejadores, rindo e babando, tentando descobrir de onde vem
o cheiro. Aquele...cheiro!” (KING, 2009, p.123). Novamente, o feminino é
associado ao animalesco, já que Carrie é comparada a uma cadela no cio.
No filme, na cena em que seus colegas vão atrás do sangue de porco para
usar no baile, um deles afirma: “uma vez saí com uma garota que era uma
verdadeira porca!”. De acordo com Barbara Creed, mulheres e porcos são
constantemente relacionados nos mitos e na linguagem. Um exemplo é que
no grego e latim as genitálias femininas são referenciadas como pig (1993).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Logo após os eventos no vestiário do colégio, uma das colegas de


Carrie, Sue Snell, tenta se redimir pelo incidente, desistindo de ir ao baile
e pedindo que seu namorado a convidasse para a festividade.11 Na noite
do baile, Carrie traja um vestido de cor rosada, se arrumando em “um
misto de vergonha e assanhamento”, finalmente conhecendo seu corpo
e sexualidade. Sua mãe a repreende pela suposta vaidade, afirmando
que vermelho e seus similares seriam a cor do pecado. Além do mais, se
refere aos seios da filha como travesseirosimundos, afirmando que todos
poderiam vê-los a partir do seu decote. Desta forma, a história trabalha
com a existência de uma suposta “culpa feminina”, onde o corpo ocupa
um lugar de transgressão, perigo e punição (LAROCCA, 2016, p.112).
Inicialmente, o baile parece a realização de um conto de fadas,
onde a personagem finalmente se encaixaria no ambiente escolar e na
“normalidade”. Porém, a felicidade de Carrie dura pouco, sendo novamente
humilhada quando sobe ao palco para ser coroada rainha do baile, tradição
tipicamente estadunidense das high schools, e um balde com grande
quantidade de sangue de porco é virado em cima de sua cabeça.
É a partir desse momento que Carrie sofre uma metamorfose e
inicia a destruição. Desesperada e humilhada, a personagem, coberta de
sangue de porco, entra em uma espécie de estado catatônico. Sua imagem
angelical e inocente é substituída por um ser demoníaco e destruidor: “[...]
uma parte de sua mente carpia sua própria destruição [...] seu coração
batia, sobrecarregado. As veias de seu rosto e de seu pescoço estavam
dilatadas” (KING, 2009, p.240). No filme, seus olhos tornam-se arregalados
e sem vida, sua boca retorcida, seu corpo rígido e imóvel e suas mãos
adquirem uma fisionomia de garras. Sua imagem angelical e inocente é
substituída por uma de um ser anormal e abjeto. É justamente no corpo
adolescente e feminino de Carrie que encontramos o estabelecimento de

11  Para uma análise aprofundada de Sue e de outras personagens femininas do filme, ver
LAROCCA, 2016.

97
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

um lugar no qual a figura do anormal e do monstruoso convergem com a


figura da vítima (LAROCCA, 2016).
Sendo assim, a personagem inicia uma vingança implacável.
A fotografia do filme abusa da cor vermelha, lembrando o sangue
menstrual de Carrie e também o animalesco sangue de porco. O sangue
de porco simboliza o sangue menstrual, aproximando metonimicamente
o animal do feminino, descendo lentamente pelo corpo da adolescente,
exatamente como aconteceu nos momentos iniciais, quando teve sua
menarca (LAROCCA, 2016). O sangue menstrual é assim metaforicamente
associado aos sentimentos de horror, repulsa, vergonha e humilhação.
A partir disso, a personagem inicia uma chacina, matando praticamente
todos que ali se encontravam, causando um incêndio de grandes
proporções. Ainda em transe, ela caminha tranquilamente entre os
destroços e as chamas, saindo ilesa do ginásio, aniquilando todos que
cruzam seu caminho.12
As duas obras, utilizando seus recursos narrativos próprios, são
notadamente marcadas pela imagética menstrual e referência às cores.
Enquanto a cor branca é associada à pureza e castidade, a vermelha e a
rosa são associadas ao sangue menstrual, ao pecado, abjeção e sexualidade
desenfreada. A história se inicia com a menarca da personagem e
atinge seu clímax com o sangue de animal derramado em seu corpo. O
simbolismo do sangue é marcante, incorporado como sangue menstrual,
de porco, nascimento, contaminado por pecado, morte e vergonha,
sendo até mesmo associado à cor do vestido da personagem. A história se
mostra assim saturada por uma noção negativa e abjeta da menstruação,
propagada por inúmeros mitos e religiões. Em diversas histórias, sejam
elas mitológicas, cinematográficas ou literárias, os poderes sobrenaturais
femininos são relacionados intrinsicamente ao seu sistema reprodutor,

12  No livro, a personagem sai do ginásio às pressas e utiliza seus poderes para trancar
todos no local, provocando um incêndio que termina explodindo a escola.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

particularmente à menstruação, que também é vista como sinal de


pecado, causando inúmeras interdições (CREED, 1993, p.77).
De tal forma, podemos afirmar que os poderes de Carrie, que a
constroem como anormal e monstruosa, são iniciados e fortalecidos pelo
sangue menstrual, simultaneamente fonte de sua humilhação e de sua
imponente vingança (LAROCCA, 2016). O sangue, poderoso e mágico, é o
responsável por “transformá-la” em mulher e em personagem negativa.
Carrie não é retratada apenas como um monstro, como é o caso de outros
personagens do cinema e literatura, como a criatura de Frankenstein
ou Drácula, mas sim como um ser anormal, cuja diferença sexual é
fundamental para o horror que causa. Sua anormalidade e seus poderes
telecinéticos são explicitamente associados à sua primeira menstruação e
ao despertar de sua sexualidade, ambas representadas como canais para
o Mal. A personagem serve também como um alerta para os perigos e
estragos que o desejo sexual feminino pode causar, tendo em vista que
seus poderes se apresentam como uma inscrição violenta e ameaçadora
de seus desejos, reprimidos principalmente por sua mãe.
Carrie exemplifica bem o que Foucault (2010, p.242) afirmou ser o
“jogo entrecruzado do instinto e da sexualidade”, em que o instinto
sexual se mostra o elemento de formação de todas as doenças mentais
e desordens de comportamento. O instinto sexual aparece como o
mais impetuoso, imperioso e dominador dos instintos. É inegável que
a anormalidade da adolescente está conectada ao despertar de sua
sexualidade, fortalecida após a menarca, aparecendo como um bom
exemplo de que “a sexualidade vai permitir tudo o que, de outro modo,
não é explicável” (FOUCAULT, 2014, p.210).
É evidente que o corpo feminino, principalmente quando definido
em relação à suas funções reprodutoras e maternas, possui fortes
associações com o monstruoso, animalesco e anormal, como podemos
notar claramente por meio da personagem título. Por meio do corpo

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

adolescente, a suposta diferença feminina é retratada como aberração,


sendo que seus fluídos, sua capacidade reprodutora e sexualidade se
tornam a verdadeira fonte de horror da história. Ao longo do enredo
somos encorajados a nos identificar e criar simpatia com Carrie,
uma adolescente aterrorizada pelo despertar da sexualidade e sua
consequente incapacidade de manter-se inserida nos rígidos padrões
impostos culturalmente à feminilidade, tentando em vão reprimir seus
desejos e poderes (LAROCCA, 2016). Entretanto, seu desfecho trágico,
que dialoga com um discurso médico, sugere claramente que as mulheres,
principalmente após a puberdade, encontram-se constantemente
“ameaçadas” por forças que as podem levar à loucura.
Após os eventos catastróficos do baile, a personagem retorna para
casa procurando uma reconciliação com a mãe, que atinge o ápice da
insanidade e tenta purificar a filha em um ato de sacrifício, acreditando
que a morte possibilitaria o alcance do perdão. Sendo assim, Margareth
também encarna uma anormalidade, vinculada à loucura e a uma
maternidade disfuncional. Em um momento de raiva, Carrie revida e
mata a mãe, utilizando seus poderes para fazer seu coração parar de
bater. No filme, numa cena emblemática, ela comanda mentalmente uma
quantidade de facas e objetos afiados, que atingem a mãe e a penduram
na parede em uma pose muito similar a de Jesus Cristo crucificado. Nas
cenas finais, a personagem retira o corpo sem vida da mãe, pregado na
parede, e retorna ao armário embaixo da escada – o mesmo em que foi
trancada para rezar e pedir perdão por ter nascido mulher – onde as
duas são engolidas pela casa que pega fogo e vem abaixo devido aos
poderes descontrolados de Carrie.
Contudo, a obra de King narra um final levemente diferente. Antes
de morrer, Carrie protagoniza uma cena importante quando conduz
mentalmente Sue, a garota que a incentivou a ir ao baile, ao seu encontro.
É interessante notar que previamente é sugerida uma possível gravidez

100
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

de Sue, sendo indicado que sua menstruação, sempre certeira, estava


atrasada. Porém, quando ela encontra Carrie à beira da morte, o sangue
menstrual começa a descer de suas coxas, insinuando um suposto
abortamento espontâneo causado pelos poderes destruidores de Carrie
(LAROCCA, 2016, p.113). A última página do livro traz uma carta datada
de 1988, anos depois dos eventos principais, em que uma dona de casa
do estado do Tennessee relata que sua filha de dois anos consegue mexer
com a mente as bolas de gude do irmão mais velho, igual sua bisavó.
De tal forma, encerra-se a narrativa com a sugestão de que Carrie não
foi um caso isolado, existindo outros ao redor do mundo, com o Mal, a
monstruosidade e a anormalidade sempre se manifestando em mulheres,
que surgem como seres perigosos e desviantes da norma.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os temas centrais de ambas as narrativas são a sexualidade, o corpo
feminino e os perigos que emanam das mulheres e de suas funções
reprodutoras. Ao longo da história somos confrontados com uma associação
entre a figura feminina e forças sobrenaturais, onde o corpo, especialmente
o adolescente, é o lugar de embate entre o Bem e o Mal, possuindo fortes
associações com o desviante, o monstruoso e o anormal. Além disso, tanto
a narrativa literária quanto a cinematográfica são repletas de estereótipos
femininos famosos como a heroína virginal ou que possui a sexualidade
sob controle; a vítima; a mãe e a antagonista com poderes sobrenaturais
fora do controle. Concomitantemente, a narrativa oferece uma visão de
puberdade, corpo e maternidade abjetas e desviantes.
O desfecho trágico de Carrie sugere sutilmente que as mulheres,
principalmente após a puberdade, encontram-se em um estado perigoso,
constantemente ameaçadas por forças que podem levá-las a cruzar
a fronteira entre o normal e o anormal, cometendo atos violentos e

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

perigosos. Contudo, essa não é uma novidade inventada pelo horror. Uma
das grandes preocupações dos livros de medicina dos séculos XVIII e XIX
eram as jovens mulheres, como Carrie. Acreditava-se que, no momento
de puberdade, ou seja, de passagem para o corpo apto para a reprodução,
diversos acidentes poderiam comprometer a mente e o comportamento
(MARTINS, 2004).
De tal forma, a história de Carrie White, seja em sua versão literária ou
cinematográfica, trabalha com questões há muito tempo discutidas sobre
as diferenças anatômicas entre mulheres e homens, empregando temas
antigos acerca da sexualidade e do corpo, assim como o inconsciente
medo e desconfiança em relação à figura feminina. Sendo assim, é
possível ter um vislumbre de como o cinema e a literatura dialogam com
questões muito amplas, demonstrando como ocorrem apropriações,
trocas e ressignificações culturais entre contextos históricos e linguagens
diferentes e distantes.
Recorrendo à linguagem do fantástico e do horror, o livro e o
filme abordam fantasias e medos históricos em torno do feminino,
associando-o à violência, monstruosidade, contágio, loucura e morte. É
interessante questionar como fantasias e medos claramente masculinos,
relacionados à uma suposta diferença corporal feminina, constroem a
Mulher como perigosa, anormal e abjeta. A representação do feminino
anormal e monstruoso, se insere assim em um projeto muito mais amplo,
que procura perpetuar a crença de que a pretensa natureza unitária
das mulheres é profundamente conectada à sua caracterização como
diferente sexual do homem.
O objetivo deste trabalho foi discutir os conceitos de monstruosidade-
feminina e anormalidade, entrelaçando-os com questões de gênero,
sexualidade e corpo. Por meio da análise de Carrie procuramos demonstrar
como tais conceitos podem enriquecer as discussões sobre cinema e
literatura de horror, principalmente na análise e problematização das

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

personagens femininas. Notamos assim, como a suposta diferença do


corpo feminino é retratada como a verdadeira monstruosidade, de forma
que os fluídos, a capacidade reprodutora e a sexualidade são a fonte de
horror da trágica história de Carrie White.

REFERÊNCIAS
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(98min), sonoro, legenda, color., 35mm.

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103
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

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LAQUEUR, Thomas (2001). Inventando o Sexo: Corpo e Gênero dos Gregos a


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WORLAND, Rick (2007). The Horror Film: An Introduction. Australia: Blackwell


Publishing.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O PALÁCIO DE TOCHTLI COMO O ESPAÇO DE


MONSTRUOSO DE SUA INFÂNCIA
Hiolene de Jesus M. O. Champloni

Tochtli o pequeno narrador de Festa no Covil (2012), do autor mexicano


Juan Pablo Villalobos, retrata a violência atrelada à inocência e, ao
mesmo tempo, à incompreensão da realidade que subjaz à sua existência
de apenas oito anos de idade, mas repleta de experiências insólitas. A
narrativa retrata o cotidiano do narcotráfico e o staff que caracteriza o
“bando” conduzido por um chefe estreitamente relacionado com as altas
esferas da política mexicana, portanto alguém com alto poder de decisão
sobre os seus comandados. Yolcaut é o poderoso chefão e pai do menino
Tochtli e ambos vivem em uma mansão construída no meio do nada e
vigiada por homens armados, que para o menino é tão corriqueiro que se
torna entediante.
A monstruosidade em questão reside no fato de essa criança conviver
com as atrocidades desse “bando” sem desconfiar da organização
criminosa da qual ela faz parte, assim como também não desconfia que
esteja sendo preparada para assumir o comando do negócio em um futuro
próximo. Nesse sentido, a morte de homens e mulheres é mostrada à
criança, apenas como o ato de transformar pessoas em cadáveres, que
tanto pode ser por meio de tiros, quanto por outras formas de tortura.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Quartos de armas, zoológico particular, preceptor, capangas, jardineiro


surdo-mudo, viagens de fuga, falsificação de documentos e troca de
identidade, são alguns dos elementos da narrativa que compõem o dia
a dia de uma vida marginal totalmente camuflada para que o menino
crie a ilusão de uma vida normal e confortável, haja vista desconhecer os
motivos da reclusão que lhe é imposta.
Para a sustentação teórica da discussão, sob a perspectiva da
violência que progride para a monstruosidade, serão utilizados alguns dos
apontamentos da moderna teoria social proposta por Percy Saul Cohen,
da Universidade de Londres. De acordo com o sociólogo inglês, o autor
contemporâneo tem se utilizado das teorias sociais para refletir acerca
das tragédias humanas, que muitas vezes ocorrem longe dos olhares e da
supervisão da sociedade, como é o caso do menino Tochtli.
Luxo, solidão e medo que, neste caso são os coadjuvantes da
monstruosidade travestida em estilo de vida, podem ser apenas mais um
dos agravantes para uma existência que, no futuro, se supõe ainda mais
terrível levando-se em conta o cotidiano do covil travestido de palácio
no qual a narrativa se desenvolve. A voz infantil do narrador se converte
no insólito e no monstruoso nesse contexto em que homens cruéis
são devastadores de vidas e de sonhos. O narcotráfico, aqui, é o tema
central da narrativa na qual o autor visa chamar a atenção para questões
e fenômenos sociais que têm acometido o homem contemporâneo
com agudeza e celeridade devastadoras, em se tratando do índice de
desenvolvimento humano. A literatura, como objeto estético, tem se
colocado como a materialidade imagética desses fenômenos, para
denunciar, refletir e colocar na ordem do dia os fatos e consequências
vivenciados pelos atores sociais do narcotráfico.
A narcoliteratura ou a literatura do narcotráfico tem sido desenvolvida,
sobremaneira no México, cujos autores vêm retratando o submundo
do tráfico sob as mais diversas perspectivas, dentre as quais ressalto a

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

monstruosidade cometida pelos chefões cujas famílias, geralmente alijadas


da sociedade, são as principais vítimas da criminalidade. Nesses clãs,
crianças iguais a Tochtli, precocemente amadurecidas, acreditam viverem
normalmente, tão inseridas e adaptadas se encontram nesse contexto, em
que champanhe, caviar, modelos internacionais e autoridades se misturam
aos gângsteres e seus staffs, tudo isso adornado com vultosas somas de
dinheiro, armas e muito conforto nos covis, muitas vezes denominados de
palácios, diante da suntuosidade dessas construções. Ao descrever o seu
palácio Tochtli menciona os diversos e magníficos aposentos, dentre os
quais os quartos de armamentos com entrada proibida, sem se dar conta
da importância dessas armas nos negócios do pai. Para ele, aquelas armas
seriam apenas mais uma das coleções do seu excêntrico pai.
Estas são algumas das características da narrativa de Festa no Covil,
em que o menino Tochtli, ainda não é capaz de dimensionar o absurdo de
sua vida, que transcorre no meio do nada e longe de tudo, inclusive de sua
mãe, de quem não se menciona sequer o nome, e, ao leitor, não é dada
nenhuma explicação. Embora a criança viva ilhada, seus desejos podem
ser prontamente atendidos. Em linguagem condizente com a faixa etária
de Tochtli, Villalobos vai descortinando a rotina de um arranjo familiar
proveniente de um segmento do crime organizado em torno do tráfico de
drogas e de armas. A violência que está implícita em todas as ações é o
primeiro passo para a monstruosidade que vai se delineando ao longo da
narrativa, principalmente no momento em que “por ser macho” e não um
“maricas”, o menino é obrigado a assistir ao abate dos dois hipopótamos
anões da Libéria, seus objetos de desejo. Fato que pode ser considerado
como uma espécie de “iniciação” de Tochtli no violento mundo do crime
organizado e verificável no excerto abaixo:
Aí ele pediu para eu sair do depósito com Franklin
Gómez. Eu não quis, porque sou um macho e os machos
não têm medo. E além do mais os bandos tratam de

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

não esconder coisas e de ver as verdades. Aí Winston


López deu a ordem para John Kennedy Johnson: matar
os nossos hipopótamos anões da Libéria. Franklin
Gómez tentou protestar para que eu não visse aquilo,
ele falou para Winston López não ser tão cruel, que
eu era pequeno para ver uma coisa dessas. Winston
López simplesmente mandou ele calar a maldita boca.
(VILLALOBOS, 2012, p.59)

Este é apenas o início da parte em que Tochtli vivencia um dos momentos


mais difíceis de sua vida e é, neste ponto da narrativa, que se pode
observar o caráter insólito e monstruoso desse cotidiano ao mesmo
tempo incrível e infernal do ponto de vista do leitor empírico. Também
é, nesse momento de tensão entre os fatos narrados e a recepção destes
pelo leitor, que se pode inserir alguns tópicos do pensamento de Percy
Saul Cohen acerca da abordagem da ação como parte integrante da Teoria
da ação conforme citação a seguir:
A teoria da ação consiste num número de pressupostos,
abaixo discriminados, que prescrevem um modo
de análise para a explicação da ação ou conduta de
indivíduos típicos em situações típicas. Referimo-nos a
esses indivíduos típicos como atores sociais. 1- O ator
possui objetivos e suas ações são efetuadas na busca
deles; 2- A ação frequentemente envolve a escolha de
meios para a consecução dos objetivos; 3- Um ator
sempre possui muitos objetivos; suas ações, efetuadas
na busca de qualquer um deles, influenciam suas ações
efetuadas na perseguição de outros objetivos e são
influenciadas por elas. (COHEN, 1970, p.85)

Após uma análise das ações e reações dos atores envolvidos na narrativa
de Villalobos, é possível identificar o fato do abate dos animais como sendo
uma conduta de certos indivíduos, no caso contrabandistas, foras da lei
que burlam normas, em uma situação atípica para o cidadão comum, mas
que para um bando de facínoras acostumados a toda espécie de crime, foi

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

somente uma atitude necessária e prática para a resolução de um problema


que se apresentou em seu percurso e que talvez não tivesse sido previsto.
Nesse caso, a execução dos animais foi a ação que envolveu o uso de meios
para a consecução dos objetivos, ou seja, livrar o bando de problemas com
o transporte dos bichos, uma vez que os mesmos haviam contraído uma
doença grave.
Dito isso, voltemos para o caráter violento e insólito da cena do abate
ocorrido no cais do porto onde os animais já se encontravam embarcados
e prontos para seguirem viagem para o México, cujo destino final seria o
jardim zoológico de Tochtli. No momento atual, em que a sociedade tem
acompanhado tantos acontecimentos monstruosos, do ponto de vista da
crueldade de que é capaz o ser humano, pode-se dizer que o insólito, no
texto, se dissolve na rotina e na banalidade dos crimes, que acaba por gerar
apenas um efeito do fantástico ou do insólito. Nesse caso, o fantástico
contemporâneo auxilia na naturalização desses eventos nos quais é possível
identificar reações tais como dúvida, pavor, angústia e medo. Pode-se
afirmar que, no caso de Tochtli, essas reações foram potencializadas
pelo fato de que o menino já estava se sentindo a mais feliz e realizada
das crianças da face da terra. O sentimento de perda e o confronto com
a realidade, ao se tornar testemunha ocular do crime, o transformaram,
de um momento para o outro, no ser humano mais apavorado, medroso e
fraco, como jamais se suporia ficar.
Está claro para o leitor que não existe nenhum elemento sobrenatural
em Festa no Covil capaz de classificar a narrativa como sendo fantástica
dentro dos padrões estabelecidos por Todorov. Entretanto, Remo Ceserani,
crítico literário italiano estudioso do Fantástico, defende que:
O fantástico surge de preferência considerado não
como um gênero, mas como um “modo” literário, que
teve raízes históricas precisas e se situou historicamente
em alguns gêneros e subgêneros, mas que pôde ser

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

realizado - e continua a ser, com maior ou menor


evidência e capacidade criativa – em obras pertencentes
a gêneros muito diversos. Elementos e comportamentos
do modo fantástico, desde quando foram colocados à
disposição da comunicação literária, encontram-se com
grande facilidade em obras de cunho mimético-realista,
aventuresco, patético-sentimental, fabuloso, cômico-
carnavalesco, entre outros. (2006, p.12)

De acordo com a citação acima, a narrativa de Villalobos pode ser


adequada ao fantástico modal, principalmente quando Ceserani adverte
que “o modo fantástico é usado para organizar a estrutura fundamental da
representação e para transmitir de maneira forte e original experiências
inquietantes à mente do leitor” (CESERANI, 2006, p.12). É justamente
a experiência do pequeno narrador Tochtli o elemento inquietante
e desestabilizador que conduz o leitor a compartilhar os anseios, os
sofrimentos e o cotidiano nada convencional da personagem. Para Sartre
(2005), o fantástico contemporâneo é povoado por seres humanos e
naturais. Entretanto, se trata de um mundo absurdo, onde o homem se
encontra preso a uma luta incessante e infrutífera, denotando o impossível
e o contraditório. Dessa forma, o homem absurdo seria o homem fantástico
contemporâneo. Logo, Tochtli e o clã absurdo que o rodeia pode pleitear
uma indicação para a galeria do fantástico contemporâneo.
Em comunhão com a proposição de Sartre, Remo Ceserani complementa:
O fantástico operou, como todo o verdadeiro e grande
modo literário, uma forte reconversão do imaginário,
ensinou aos escritores caminhos novos para capturar
significados e explorar experiências, forneceu novas
estratégias representativas. Justamente porque se
trata de um modo, e não simplesmente de um gênero
literário, ele se caracteriza por um leque bastante amplo
de procedimentos utilizados e por um bom número de
temas tratados em outros modos e gêneros da literatura
(CESERANI, 2006, p.103)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Para Todorov (2012), o fantástico contemporâneo “é um mundo em


que manifestações absurdas figuram a título de conduta normal”. Para
Filipe Furtado (1980), “o modo fantástico abrange pelo menos a maioria
do imenso domínio literário e artístico que, longe de se pretender realista,
recusa atribuir qualquer prioridade a uma representação mimética do
mundo objetivo”. Diante dessas reflexões de reconhecidos teóricos e
críticos da literatura, é que se torna pertinente defender a hipótese de
que a narrativa de Festa no Covil se adequa ao modo fantástico do fazer
literário, a despeito das críticas que consideram a produção literária que
trata do narcotráfico como literatura menor.
Apesar disso, grandes editoras europeias têm aberto sucursais no
México visando essa fatia do mercado editorial cada vez mais promissor.
Vale ressaltar que esse tipo de criação artística, antes considerada
marginal, ganha status de obra literária na qual os autores mexicanos
tomam para si a tarefa de representar literariamente o narcotráfico, pois,
após anos de convívio com essa violência, esses autores decidem sair
de sua condição de observadores. Para sistematizar essas observações
é que podemos utilizar a teoria social com a finalidade de compreender
a banalização de fatos outrora considerados horrendos. Dessa maneira,
é possível analisar as ações dos narcotraficantes mexicanos como
um fenômeno social da América Latina. Para Mikhail Bakhtin (2017),
a ciência da literatura, antes de qualquer coisa, deve estabelecer um
estreito vínculo com a história da cultura.
Nesse sentido, é possível afirmar que os autores mexicanos, ao se
comprometerem com a denúncia ou com a difusão de um grave problema
social de seu país, se adequam à referida proposição bakhtiniana. Para
o filósofo russo, “a literatura é parte inseparável da cultura, não pode
ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época”.
Ainda de acordo com Bakhtin, não se pode separar a literatura do resto
da cultura para ligá-la a fatores socioeconômicos, haja vista que esses

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

fatos agem sobre a cultura de modo geral. O prejuízo se dá pelo fato de


que somente pela cultura e através dela que a literatura é influenciada
e produzida. Vale ressaltar que, apesar de estarmos tratando do caráter
insólito da narrativa em Festa no Covil, o caráter cultural é muito evidente
na forma como a questão social do narcotráfico é mostrada, para que
venha a ser configurada como abjeta e monstruosa em face de sociedades
menos atingidas por esse tipo de violência.
No excerto abaixo, no qual Tochtli narra um dos jogos que costuma
brincar com o seu pai, é possível identificar um tipo de banalização que
em qualquer outro contexto social seria completamente inaceitável,
podendo, pois, ser considerado uma monstruosidade:
Uma das coisas que aprendi com o Yolcaut é que às vezes
as pessoas não viram cadáveres com uma bala. Às vezes
precisam de três balas ou até de catorze. Tudo depende
de onde você atira. Se você atira duas balas no cérebro,
com certeza elas morrem. Mas você pode atirar até mil
vezes no cabelo que não acontece nada, apesar de que
deve ser bem divertido de ver (VILLALOBOS, 2012, p.14)

Mais adiante, na passagem transcrita abaixo, pode-se confirmar


o caráter banal dos acontecimentos monstruosos que acontecem no
palácio-covil de Tochtli, conforme já mencionado:
Outro dia apareceu no nosso palácio um homem que eu
não conhecia, e o Yolcaut quis saber se eu era macho ou
não era macho. O homem estava com o rosto sujo de
sangue e na verdade olhar para ele dava um pouquinho
de medo. Mas eu não falei nada, porque ser macho
quer dizer que você não tem medo e se você tem medo
é um maricas. Fiquei bem sério enquanto o Miztli e o
Chichilkuali, que são os vigias do nosso palácio, davam
uns golpes fulminantes nele. O homem acabou sendo
dos maricas, porque começou a chorar e a gritar: não
me matem! Não me matem! Ele até urinou nas calças.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O bom dessa história é que eu provei que sou macho,


sim, e o Yolcaut me deixou sair antes que o maricas
virasse cadáver. Com certeza que o mataram, porque
depois vi a Itzpapalotl passar com o balde e o esfregão
(VILLALOBOS, 2012, p.16)

Nesse trecho, estão bem configuradas as primeiras intenções deste


trabalho, nas quais de maneira bem condensada, foram trazidas as
principais características do caráter violento e monstruoso do narcotráfico
representado no texto e, sobretudo, do processo de iniciação dessa
criança de apenas oito anos de idade, nesse contexto em que a morte é
apenas uma consequência do fato de ser ou não ser macho no submundo
do crime. É nesse espaço em que temos a emergência do insólito.
Entretanto, o ponto crucial da narrativa, o momento em que o menino
Tochtli é levado a presenciar o abate dos hipopótamos, é que realmente o
leitor se vê diante de uma situação desestabilizadora.
Tal constatação se dá quando o sofrimento e as manifestações
fisiológicas de uma criança, brutalmente arrancada de seu mundo quase
inocente, provocam no leitor uma sensação de inoperância e perplexidade
que se transforma em ojeriza, monstruosidade e terror diante de tanta
insensibilidade e de tanta maldade em um contexto em que a violência e
a morte são apenas consequências de atitudes que precisam ser tomadas.
Para que possamos configurar e adequar a narrativa de Villalobos aos
moldes da ficção fantástica, transcrevo abaixo mais alguns trechos de Festa
no Covil que podem ser lidos dentro das proposições do fantástico modal, o
qual se encontra muito bem delineado pelo crítico literário português Filipe
Furtado, 2009, no E- Dicionário de Termos Literários de Carlos Ceia.
Martin Luther King Taylor foi até as jaulas armado com
seu rifle. Foi primeiro até a jaula da direita e colocou
a arma no coração de Luís XVI. O barulho do tiro ficou
ecoando nas paredes do depósito com os gemidos
horríveis do hipopótamo anão da Libéria. Mas quem

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

chorava era Maria Antonieta da Áustria, que tinha se


assustado com o barulho. Luís XVI já estava morto.
Minhas pernas ficaram bambas. Esperamos até Maria
Antonieta parar de gemer e Martin Luther King Taylor
fez o mesmo com ela. Só que ela não morreu com um
tiro só. Ela não parava quieta e os tiros não acertava
o coração. Ela só parou com o quarto tiro. Aí parece
que deixei de ser macho e comecei a chorar feito
um maricas. Também fiz xixi nas calças. Eu gritava
tanto como se fosse um hipopótamo anão da Libéria
querendo que quem me escutasse preferisse morrer
para não me escutar. Eu tinha vontade de levar oito
tiros na próstata para virar cadáver. Também queria
que todo o mundo fosse à extinção. Franklin Gómez
veio me abraçar, mas Winston López gritou pra ele me
deixar em paz. Quando me acalmei, senti uma coisa
muito estranha no peito. Era quente e não doía, mas
me fazia pensar que eu era a pessoa mais patética do
universo (VILLALOBOS, 2012, p.59-60)

Apesar de longa, esta citação se justifica pelo motivo de ser o fio


condutor que vai nortear para a sua parte conclusiva. É exatamente este
o momento crucial da narrativa, no qual o leitor sentir-se-á tocado pela
brutalidade, pela violência e pela total falta de sensibilidade dos adultos
que rodeiam o menino Tochtli, naquele instante tão terrível em que fora
obrigado a presenciar o abate dos seus sonhados hipopótamos. O leitor
comovido certamente dará outro sentido à narrativa e, desse modo,
estará cumprindo com a missão a qual se propôs o autor, ou seja: difundir,
disseminar, problematizar e levar ao conhecimento do maior número
de pessoas o outro lado da moeda da vida dos poderosos chefões, suas
famílias e de todos os envolvidos nos esquemas do narcotráfico.
Antes de adentrar no terreno do Fantástico, a fim de se fazer a
correlação da narrativa de Villalobos com essa corrente literária, haja vista
a sua vasta aplicação à literatura por seu caráter imaginário, não se pode

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

negar que, por mais que retrate a realidade está limitado ao fantasioso,
ao ficcional. Vale lembrar que para Todorov, “o fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de
um acontecimento aparentemente sobrenatural”. Esta é a concepção do
fantástico que se aplica ao irreal, ao imaginário, aos elementos fictícios
das obras literárias. Entretanto, há também o efeito fantástico na ficção
contemporânea. Para melhor esclarecimento acerca dessa questão, Filipe
Furtado faz uma esclarecedora reflexão no já citado E-dicionário no qual
em certa medida faz uma advertência conclusiva: “perante o grande
número e a heterogeneidade dos textos, convém examinar com alguma
atenção aquilo que invariavelmente surge em qualquer deles e justifica,
portanto, a sua subsunção no modo fantástico”.
Para concluir, o que Furtado deixa transparecer é que, apesar de
muito presente, a expressão “modo fantástico” produz óbices quanto
ao uso e adequação por parte dos elementos narrativos que se querem
considerados como tal. Em Festa no Covil, conforme já enfatizado, o
autor contemporâneo busca trazer, à luz da literatura, as ocorrências e
consequências de um fenômeno social, moral e governamental presente
no mundo da pós-modernidade e que tem assolado as bases da estrutura
social dessa sociedade, na qual todos fazemos parte.

REFERÊNCIAS
BATALHA, Maria Cristina; GARCIA, Flávio (Org.) (2012). Vertentes teóricas e
ficcionais do insólito. Rio de janeiro: Editora Caetés.

BAKHTIN, Mikhail (2017). Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas;


Paulo Bezerra (Trad. Org.); Serguei Botcharov (Notas da edição russa). São Paulo:
Editora 34.

CESERANI, Remo (2006). O Fantástico. Nílton Cezar Tridapalli (Trad.). Curitiba:


Ed. UFPR.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

COHEN, Percy S. (1970). Teoria Social Moderna. Christiano Monteiro Oiticica


(Trad.). Rio de Janeiro: Zahar Editores.

FURTADO, Filipe (1980). A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros


horizonte.

MANNA, Nuno (2014). A tessitura do fantástico: narrativa, saber moderno e


crises do homem sério. Bruno Souza Leal (Pref.). São Paulo: Intermeios.

SARTRE, Jean- Paul (2005). Situações I. Cristina Prado (Trad.). São Paulo: Cosac Naify.

TODOROV, Tzvetan (2007). Introdução à literatura fantástica; Maria Clara Correa


Castello (Trad.). São Paulo: Perspectiva.

VILLALOBOS, Juan Pablo (2012). Festa no Covil. Andreia Moroni (Trad.). Adam
Thirlwell (Posf.). São Paulo: Companhia das Letras.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O MÚLTIPLO CRIA A LITERATURA VIVA


Marcella de Paula Carvalho

1. INTRODUÇÃO
Este artigo funda o início do nosso trabalho de analisar a novela
“Poética de las sirenas” do livro Diez poemas sobre el amor (2017),
escrito pela argentina Teresa de Mira Echeverría, como corpus literário. Já
produzimos para o Congresso Brasileiro de Cibercultura (ABCIBER 2018),
no artigo “Sereias hackers na literatura ciborgue: três ficções científicas
hispanófonas” (no prelo), uma visão comparatista de três obras, incluindo
a referida de Echeverria. No entanto, se ali houve um diálogo com a
cibercultura, agora fabricamos um conteúdo que inaugura outra etapa, a
qual se propõe a iniciar uma radicalização na compreensão de “Poética de
las sirenas” como único texto literário. Pontuamos aqui, então, a abertura
para um aprofundamento desta obra por outra perspectiva, a da reflexão
sobre ela como máquina de criação monstruosa – contra a tradição
(GLISSANT, 2019) - de multiplicidade.
“Poética de la sirenas” (2017) apresenta uma escrita não
convencional, “ciencia ficción pura, los híbridos entre lo futurista y lo New
Weird (ECHEVERRÍA, 2018)”. Dessa forma, e também devido aos jogos
metaficcionais (BERNARDO, 2010), lança-se para um limiar estético, busca
tocar o fora (LEVY, 2011). Afinal, poesia e ciência, segundo Flusser, (2007)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

compartilham o mesmo eixo das ordenadas rumo à autenticidade, em


direção a uma apreensão mais fértil da realidade.
A temática do amor presente no livro funciona como um tabuleiro
armado para que cada um enfrente seus preconceitos (JURADO Apud
ECHEVERRÍA, 2017). Há “relaciones intersexuales o interespecie, amor
entre clones, criaturas schrödingerianas” (ECHEVERRÍA, 2018), como
podemos observar na imagem feita para a capa da obra:

Figura 1- Imagem da capa do livro Diez variaciones sobre el amor1

Nosso enfoque é desenvolver uma trajetória que destaque a


importância da multiplicidade e de devires (DELEUZE, 2012) que desatem
as capturas do fascismo e construam novos horizontes. Além disso, não
foi verificado um estudo sobre Echeverría.

2. PROBLEMA
Trazemos aqui umas questões preliminares desta pesquisa que
estamos iniciando. a) Como a monstruosidade da poesia genética – fusão
entre arte e ciência da biologia – presente na obra produz literatura viva?
1  Ilustração de Cecilia García (JURADO, 2019)

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Que poética é a das sereias entre canto e silêncio? Como é montada?


Como funciona? Como ela produz um devir-monstruoso em direção
ao descentrado, ao diverso, contra a tradição e o mesmo (GLISSANT,
2019)? Como reflete e analisa a criação literária? Qual é a simbologia
da metáfora das sereias, bem como dos elementos alquímicos do livro,
fontes de magnetismo? b) Como funcionam as ferramentas estéticas
da autora quando engendram devires, multiplicidades, um corpo sem
órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 2012), de simulacros (DELEUZE, 2015) e
vida? (DELEUZE, 2011) c) Como essa estrutura sinalizada produz mudança
na contemporaneidade, continuidade ficção-realidade? c) Como a obra
agencia outras sexualidades na obra (LOURO, 2004), desconstruindo a
heteronormatividade? d) Como a escrita de ficção científica/ new weird
é uma crítica epistemológica à sociedade ocidental formada por Platão/
Descartes (FOUCAULT, 2010)? A alusão da novela à Ada Byron traz a
história de um prisma científico feminino, cujo desejo era criar uma ciência
poética (LEÓN, 2015), abalando os paradigmas do conhecimento.

3. CORPUS LITERÁRIO E TEÓRICOS DA ANÁLISE


Objetiva-se estudar um texto de literatura menor (DELEUZE, 2017),
no qual os gêneros ficção científica e new weird são minoritários no
idioma espanhol, cuja escrita ganha um status político, uma ação coletiva
antihegemônica, operando como um simulacro (DELEUZE, 2015, p.259)
do cânone -escolha platônica de obras. Provoca, então, a interiorização
da dissimilitude, da diferença (DELEUZE, 2015, p.263) e a multiplicidade,
engajamento com o diverso, amplificado pelos significados da leitura. Na
descrição do perfil do Twitter da autora (2018): “Science Fiction Writer
(Hard - Fantasy - New Weird - Queer) - PhD in Philosophy” Echeverría
define-se como sintetizadora de uma estética queer, perpassada por uma
discordância profunda com a repressão das sexualidades e subjetividades,
convergindo no cultivo do múltiplo.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O propósito da utilização do aporte teórico de Deleuze deve-se ao seu


projeto de reversão do platonismo (2015, p.259), retomada das indagações
espinosianas sobre o corpo (2012), uma rede de conceitos coaguladores do
irracional oculto. Outros referenciais teóricos são o dicionário de símbolos
(GHEERBRANT; CHEVALIER, 1982) e de mitos (GRIMAL, 2005) para avaliar a
composição absorvedora e destruidora de seu espaço intertextual (KRISTEVA,
2012, p.254) da obra com mitos: de Pigmaleão, Eros e Psiquê, Lúcifer, pedra
filosofal, os quatro elementos, Orfeu, sereias. Para compreender os jogos
ficcionais, usaremos O livro da Metaficção (BERNARDO, 2010).
Por efeito da arrebatadora presença de seres híbridos na trama – trans
rompedores de dualidades – iremos ocupar-nos com a crítica à normatização
da sexualidade. Queer é o estranho, raro, esquisito, as sexualidades desviantes,
(LOURO, 2004, p.7), cuja escrita de Echeverría abre trajetórias de liberdade.
É inevitável, ainda, trazer elementos da filosofia nietzschiana como: a) O
dionisíaco (2007) patente no canto desestabilizador da sereia e sua catábase
(FERNANDES, 1995) vertiginosa às profundezas das águas– da imaginação,
da realidade, da vida. b) Na relação amorosa e metaficcional entre criador
e criatura, é inevitável uma transformação do criador e de seu o leitor,
mergulhando em uma superação de si e na experimentação da vida como
obra de arte (2010). c) A arte é um caminho para o super-homem (NIETZSCHE,
2016), insinuado pela metáfora do ovo.
Outro filósofo que iremos consultar é Flusser, pois sua cartografia
dos limites da linguagem (2007, p.222) mapeia a dialética entre língua e
silêncio, sendo este parte da catábase (FERNANDES, 1995) empreendida
pelos personagens, identificável como a figura do monstro (GHEERBRANT;
CHEVALIER, 1982, p.644), guardador de algo de sagrado que precisa ser
mostrado e ultrapassado. Efetuando um balanço da contemporaneidade,
queremos investigar como a obra de Echeverría pode ser um contraveneno
ao biopoder e suas tecnologias do eu (AGAMBEN, 2010) ao possuir um ímpeto
dionisíaco, rasgando o véu de Maia do controle.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA


Segundo Deleuze (FOUCAULT, 2015, p.129), a prática “é um conjunto
de revezamentos de uma teoria e a teoria um revezamento de uma prática
à outra. Nenhuma teoria pode se desenvolver sem encontrar uma espécie
de muro e é preciso a prática para atravessar o muro.” Considerando
este estudo teórico, o exercício de busca por hipóteses é essa prática
que cria poros na teoria, gerando uma multiplicidade (FOUCAULT, 2015,
p.130) teórico-prática. Almejamos não sobrepor uma à outra, mas usar o
referencial como caixa de ferramentas (FOUCAULT, 2015, p.130).
Reconhecemos a necessidade de ser moderno na projeção da
apoteose poética na negação da poesia -criação na destruição- no qual
Rimbaud (PAZ, 2015) foi o primeiro a condenar poesia e sociedade como
forma infernal ou circular do movimento. Echeverría (2017) lida com essa
herança, inspecionando o silêncio nessa direção da catábase (FERNANDES,
1995), no corpo a corpo erótico de criadores e criaturas, no qual a língua
se desfaz e a vida deriva no limite em pura imagem. É o apontamento para
a possibilidade radical de “transformação da sociedade em comunidade
criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem
encarnada”, uma poesia prática (PAZ, 2015).
No início da obra, há uma citação de Kafka (ECHEVERRÍA, 2017) afirmando
que é possível vencer o canto da sereia, mas não seu silêncio. Que silêncio
é esse? Percebemos uma dialética, um fluxo ininterrupto entre linguagem/
silêncio, apolíneo/dionisíaco, discurso/imagem, narrativa-história/mito,
ciência arte-erotismo-alquimia, criador/ criatura, leitor/ leitura, política/
poesia, ar/fogo/água/ar, masculino/ feminino, lógica/ símbolo que não deve
ser resolvida, pois a aventura exploratória é estar ali no entre, como a própria
definição de rizoma e devir (DELEUZE, 2012, p.11 e 17).
O nome Diez variaciones sobre el amor (ECHEVERRÍA, 2017) nos remete
a um leitmotif, repetição que se desenvolve na diferença (DELEUZE, 2015,

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

p.263). Levando em conta que Platão fundou a sociedade ocidental e o amor


idealizado (PLATÃO, 2009), escolher a temática do amor é ir ao ponto de um
dos temas mais importantes da vida. O número dez também é uma crítica aos
dez mandamentos, doutrina impositiva oposta à pluralidade de La vuelta al
día en ochenta mundos (2010) de Cortázar, cuja literatura fantástica fabrica
uma perspectiva rica para ver a realidade, como em Echeverría.
A novela começa com Rickman Eleazar ensinando em jardins belos,
edênicos, como criar seres. Seu sobrenome refere-se a Abraham Eleazar,
alquímico do século XVIII. Em espanhol, tal sobrenome é a junção do artigo
“el” e a palavra “azar”, cujo significado é “acaso”, que não apenas não pode
ser abolido (MALLARMÉ, 2015), como é um caminho alquímico. O nome
do personagem remete à riqueza do seu talento, um aberto ao acaso da
criação. A seguir, na Figura 2, temos imagens2 de uma obra de Eleazar (1760).

Figura 22 – Imagens da obra de Eleazar (1760)

Na Figura 2(a), vemos dois ouroboros: o de cima é feito por dois


dragões envolvidos nos símbolos dos quatro elementos; o de baixo contém
apenas um dragão e um símbolo do fogo. O primeiro representa a relação
amorosa entre Eleazar e Ada, que geraram Connelly e, posteriormente,
quando ele está adulto, deste último com o Benjamín. Esses quatro
personagens representam os quatro elementos e a fonte de criação, de
vida. O segundo ouroboros é um emblema da relação da pessoa consigo

2  Todas as imagens estão no livro de Abraham Eleazar (1760).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

mesma. O último conto de Diez variaciones sobre el amor (2017) chama-


se Como a sí mismo, mostrando a necessidade de, a partir do amor-
próprio, recriar-se pelo fogo, como fênix. Se Echeverría se utiliza de
metáforas advindas da alquimia, o percurso da vida é aquele em busca de
transformação pessoal. A produção de “ouro” por meio de outros metais,
isto é, a síntese de amor, passa pelo modelo desses dois ouroboros, na
intimidade com o infinito.
A figura 2(b) é composta por um conjunto de figuras geométricas,
predominando o triângulo, o qual simboliza a proporção, a harmonia da
criação (CHEVALIER; GHEERBART, 1982, p.968) que se projeta eternamente.
Do mesmo modo, a novela de Echeverría é plasmada por invenções múltiplas
dentro da história, por mise en abyme (BERNARDO, 2010, p.32). Embaixo do
diagrama, há uma esfera com uma paisagem. Na novela, Ada visualiza aquilo
que ela vai conceber em uma esfera. Na figura 2(c), temos um triângulo que
une corpo, alma e espírito. Essa harmonia vem da conjunção entre os quatro
elementos (no quadrado). A alquimia pode ser interpretada, então, como
uma via de desenvolvimento pessoal que inclui o corpo, a matéria.
As figuras 2(d) e 2(e) expressam o movimento existencial de catábase
(FERNANDES, 1995), de mergulho, presente no relacionamento erótico
entre os dois pares: potente, profundo, desestabilizador, arriscado,
dionisíaco, união impossível com o silêncio, poética das sereias em seu
clímax, em seu estatuto ambíguo e multívoco de significado (KRISTEVA,
2012, p.255), genuína destruição criadora. Em 5, há a imersão no cadinho,
retratando o meio no qual se dão as experiências herméticas (CHEVALIER;
GHEERBART, 1982, p.21). Em 6, vemos a sereia, símbolo alquímico de
submersão em metamorfose (CHEVALIER; GHEERBART, 1982, p.21), dada
sua característica híbrida.
Em vista da importância da temática alquímica, analisaremos o poema
El alquimista, de Borges (2018): Nesta poesia, um jovem está absorto em
reflexões, usando instrumentos alquímicos, sendo o ouro compreendido

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

como um material de metamorfose – como Proteu. O caminho é pó, como


a natureza mortal do homem, embora haja um esforço focado como arco e
flecha, a técnica. O eu-lírico visualiza um ser latente em um sonho, no qual
tudo é água, assim como a existência do personagem Connelly da obra.
Voltando à narrativa, Eleazar estava lecionando a criação de seres,
quando surge Ada Blenders. Ela é heterogênea, uma mulher-poema,
concebida com base na poesia She walks in beauty de Byron, uma
referência à filha do poeta. É interessante observar que assim como a
figura histórica, Blenders quer empoderar-se, ter um elo profundo com a
busca pelo conhecimento, com a invenção. Ambas saem da categoria de
mulheres subalternas, filhas, criaturas, para a de cientistas poetas (LEÓN,
2015), transdisciplinares. O nome Ada já nos lembra ADN em espanhol e
Blenders, mistura, combinação.
Existe um vínculo mítico com a história de Pigmaleão e Galateia
(GRIMAL, 2005, p.373), já que se trata de um nexo entre um cientista e
uma criatura, ainda que Ada não tenha sido fabricada por Eleazar, mas
por Vásquez. Contra todas as expectativas, eles têm uma relação sexual e
geram uma vida, Connelly, um bebê-sereia, em um ovo.
Ada é marcada por outras simbologias. Vásquez a engendrou para ser
uma pedra filosofal (ECHEVERRÍA, 2017), cujo nome é Phosporus, o que
“porta a luz”, denominação dada na Antiguidade ao planeta Vênus, quando
este aparecia antes do sol nascer (UNESP, 2018). O fósforo foi uma substância
descoberta na urina e é capaz de atingir 44º C (UNESP, 2018), como Ada.
Como Lúcifer-nome latino de fósforo- e Mefistófeles (GRIMAL, 2005, p.286),
ela traz a gnose, uma Eva que decai no jardim edênico do laboratório, não se
contentando em viver de forma passiva. No corpo a corpo com ela, Eleazar
entrará em contato com outra dimensão de sabedoria.
Há neles uma associação com a história de Eros e Psiquê (PESSOA,
2018). Ela é mais alma que corpo (ECHEVERRÍA, 2017), ele é uma espécie de

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

demiurgo do amor, da beleza, sendo que sua ligação com Ada é um modo
de chegar a si mesmo. Em Continuidad de los parques (CORTÁZAR, 2011),
a continuidade é transmitida entre a ficção e o leitor, que estabelece um
movimento de catábase (FERNANDES, 1995) com a ficção, como fez Orfeu
(GRIMAL, 2005, p.340) seduzindo as sereias e os monstros nos Infernos.
É como a leitura encanta o fora (LEVY, 2011) em revelação. Conforme lê,
mergulha na narrativa, está dentro dela. Eleazar, com Ada, uma criatura,
entra, analogamente, em uma história dentro do enredo principal,
rompendo com a estrutura tradicional de escrita. Podemos extrapolar a
conexão dele com Ada com a correspondência entre leitor e obra, coautor e
criatura, marcada pelo amor, tal qual expõe o conto Felicidade Clandestina
(LISPECTOR, 1998), cuja leitura gera uma felicidade, uma desterritorialização,
um devir (DELEUZE, 2012, p.11) transgressor e prazeroso.
Essa dupla captura desenha uma conjunção apolíneo-dionisíaca capaz
de autonomizar Eleazar e o leitor- os dois são análogos, humanos em
contato com ficção- como uma obra de arte (NIETZSCHE, 2007, p.28). Se
o aspecto apolíneo cria as formas, como a estrutura narrativa de “Poética
de las sirenas”, o dionisíaco as rompe, destrói o princípio de individuação
(2007, p.24). Dessa maneira, o leitor passa a sentir-se parte do todo, a
embriagar-se nele.
Ada estava entristecida por crer que Rickman não a desejava. Ela sai
do laboratório e passa a caminhar pelo mundo, onde encontra um casal
de namorados e os inveja, embora o rapaz, mais à frente, vá se relacionar
com seu próprio filho. O que ela anseia pode virar realidade, assim como
um poema (FLUSSER, 2007). Antes de Ada e Eleazar permanecerem juntos e
terem um bebê-sereia, ela visualizava essa criatura, sem entender, em uma
esfera idêntica àquela existente no quadro metaficcional de Escher (2018),
Hand reflecting sphere. Ela ainda não conhecia seu poder de criação.
Voltando à cena, a mulher-poema observa que sua sombra possuía
escamas brilhantes e dizia “Seré tu sombra, hecha de silencios y espera.”.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Eleazar explica que esse discurso e a sombra são inspirados nos cadernos de
Ada, nos começos de seus sonhos, mas com a interpretação dele, afirmando
que, nessa apropriação da sombra, identifica-se com esta (ECHEVERRÍA,
2017). Assim, o homem que geria o laboratório, demiurgo, passa a desejar
ser uma sombra de um poema-mulher. Os críticos literários e leitores
também anseiam ser a sombra de um poema, observar seus silêncios.
Eleazar, isso posto, declara: “Ada, tengo frío”. Logo, é ele quem se
ampara, se refugia nela, invertendo a posição convencional do homem
na sociedade machista. Ada, por sua vez, reconhece-se com “un
mundo interior más vasto que la realidad misma”. O casal, à vista disso,
compreende que produzirá uma obra conjunta, “una creación poético–
genética diseñada, a partes iguales, entre Ada y Eleazar”, engendrando o
primeiro ser nascido da união de um humano e um poema (ECHEVERRÍA,
2017), fusão de literatura e vida.
Eleazar afirma para Ada: “Tú eres el poema que crea poemas. La
personificación del verso primordial que nos ha creado a nosotros, los
humanos. Nosotros los nacidos de la poesía y no al revés… Como tal vez haya
sido desde siempre.” Desse modo, Ada, ao permitir relacionar-se com um
criador, aponta para os humanos sua origem remota proveniente da poesia,
do verbo. Ela é a Eva, pedra filosofal, portadora de luz, que nos enreda como
o quadro Drawing hands de Escher (BERNARDO, 2010, p.107), no qual não
apenas a realidade cria ficção, mas também a ficção cria realidade.
Um ouroboros é articulado, portanto, não apenas entre os dois
personagens, mas também entre a história e o leitor – aquele que percebe
como esse resgate ao mítico é um apelo para um povo nômade e uma língua
estrangeira (DELEUZE, 2012, p.14). É a atitude de risco e de resistência
de escavar sulcos na língua, fabricando espaços-tempos alternativos ao
poder, sempre inacabados. Assim, transgride-se a visão dominante da
sociedade capitalista, cria-se interstícios, vazios na linguagem atravessada
pelo fascismo e pela sociedade de controle (DELEUZE, 2010, p.223-230).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

É necessário atacar a língua (DELEUZE, 2011, p.15) para combater clichês,


o senso comum, os tentáculos dos meios de comunicação em massa e
abrir novas portas, em contato com o fora (LEVY, 2011), produzidas
por monstros, seres híbridos, Ada e Connelly que apontam para a
multiplicidade da própria realidade.
Para Deleuze (2010, p.216), se o capitalismo está sempre ampliando
seus limites, a arte é o instrumento de resistência em sua perspectiva de
reconfiguração do real. Nesse sentido, arte e alquimia se equivalem, pois
ambas efetuam uma operação simbólica de transformação (CHEVALIER;
GHEERBART,1982, p.21). Logo, a torção da linguagem comum, visando
um devir-revolucionário, produz saúde, vida (DELEUZE, p.14), alternativas
ao sistema. Para Levy (2011), a literatura que experencia o fora promove
nova ética e relações com o real, pois restabelece nosso vínculo com o
mundo enquanto possibilidades. Essa é a poética das sereias desenvolvida
na novela, uma linguagem no limite entre o simbólico e o silêncio,
reconectando o homem com uma dimensão mítica e alquímica da
existência, com a viabilidade de transmutar-se testando formas.
Podemos pensar, ainda, que as fissuras na linguagem às quais Deleuze
se refere (2011 p.16) são povoadas de silêncios, entendidos como um
prelúdio de abertura à revelação (CHEVALIER; GHEERBART,1982, p.883).
Nas tradições antigas, geralmente há um silêncio que precede a criação,
preenchendo tudo de uma grandeza (CHEVALIER; GHEERBART,1982,
p.883). O silêncio precede a novela com a citação de Kafka, mencionado
por seu caráter irresistível. É esse vazio, essa lacuna, que evoca a criação.
Com Ada, Phosphorus, se logra “lire dans l’obscurité” (HISTOIRE DE LA
LUMINESCENCE, 2018), propriedade dessa substância reconhecida pelo
cientista que a descobriu. Essa leitura no escuro nos leva a enxergar
veredas para a criação.
Em árabe, “Al-Kimiya”, signifie ‘pierre philosophale’”, cujo objetivo
seria “la préparation de la panacée ou remède universel” (FUTURA-

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

SCIENCES, 2018). Tanto literatura quanto alquimia possuem um trabalho


com a materialidade – da língua e da química – para transmutar a linguagem
e as substâncias banais em algo mais complexo, mais elaborado, que
carregue saúde (DELEUZE, 2011, p.14) e transforme a realidade.
Ada é capaz de unir os processos bioquímicos com o literário na
criação, como constata esta declaração de Eleazar: “Ada mía! Yo, como
humano, solo puedo hacer poesías vivas; pero tú, como una… poesía
encarnada… tú puedes engendrar un verso genético como si fuera
un hijo” (ECHEVERRÍA, 2017). Assim, ironizando a ação do biopoder
(AGAMBEN, 2010), há a produção de uma “bioliteratura”. A personagem,
ao estar ligada ao fósforo, vincula-se à geração da vida, pois este é “um
elemento essencial aos organismos vivos” (UNESP, 2018), compondo
inclusive DNAs e RNAs.
A poética genética produzida pelos personagens precisa ser
compreendida como uma analogia entre a concepção do texto literário
e o processo de transcrição e tradução dentro de uma célula. Verifique
a imagem a seguir: Há algo codificado, secreto, a origem mesma das
coisas, é o próprio fora, simbolizado pelo DNA (LEVY, 2011). O RNA
buscaria essa informação fundamental, daria a ela mobilidade, para
que fosse traduzida e ganhasse forma na realidade, a confecção de
proteínas. Se compararmos esse modelo ao de Flusser de apreensão
do real, percebemos que há um “nada”, um fora, composto por dados
brutos e palavras (2007, p.40). Há dois polos do “nada” (2007, p.222),
um com silêncio autêntico que se abre a esse fora (oração e poesia)
e outro inautêntico, permeado por palavras fragmentadas, que não
conseguiram gerar sentido. Em ambos, como no signo literário, o fora
precisa ser codificado e traduzido para emergir, existir.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Figura 3 - Genética3

Por que essa metáfora biológica é usada em “Poética de las sirenas”?


Respondemos a partir de uma citação do blog da autora: “Volver a Crear
el Cosmos. Esta idea implica no sólo ordenar el caos sino volver a hacer
surgir cosas nuevas desde su seno y, sobre todo, volver a crearse uno
mismo”. Essa recriação alquímica de si e da própria literatura parece ser
um dos principais objetivos da autora. Note a citação da obra de Echeverría
(2017), ilustrando essa biopoiesis: “Lentamente, el bulto que copiaba el
color malva del tapizado, así como los diseños borgoña, ocres y verdes
de los almohadones, comenzó a definirse. Era como si alguien estuviese
bocetando una figura en la misma sustancia de la realidad”.
Qual é, desse modo, a relação entre a poética genética e a das sereias?
Proteu, deidade do mar, emblema da metamorfose, originou a palavra
proteína. As proteínas têm com função (FUTURA SANTÉ, 2018): “un rôle
structural, un rôle  enzymatique, un rôle hormonel, un rôle moteur”, os
quais podem ser entendidos, do ponto de vista da criação literária, como
elementos estéticos de composição, de estruturação, funcionamento do
texto. Além disso, poética nucleica e sereias são marcadamente híbridos,
queer, um entre-lugar (LOURO, 2004, p.8), cuja estranheza nos provoca e
3  USP (2018).

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

nos leva a subtrair o paradigma do uno no múltiplo (N-1) (DELEUZE, 2015,


p.19-21). A sereia (CHEVALIER; GHEERBART,1982, p.688) é uma metáfora
para a sedução mortal ante o desconhecido, a escrita genética, um
deparar-se com “Lo que se mueve entre extremos…La Nada y el Todo.’’
(ECHEVERRÍA, 2018), o contato com a própria feitura da vida.
O aspecto alquímico da narrativa é também provido de uma sedução
mortal, com um ritmo (CHEVALIER; GHEERBART, 1982, p.688) que se move
entre duas fases opostas, coagulação e solução, vida e destruição. Ada
representa o elemento fogo, dada a sua característica inflamável em contato
com o ar (UNESP, 2018), enquanto Eleazar seria o próprio ar, ao entrar em
combustão com ela. O ar é uma metonímia do personagem, pois ele é definido
por sua voz: “El sonido de su voz era amaderado y profundo, como el de un
fagot” (ECHEVERRÍA, 2017). Dessa reação química, surge Connelly.
O bebê-sereia só se alimenta de ficção. Como é filho de uma mulher-
poema, suas necessidades não são mais biológicas, mas antropofágicas,
intertextuais. Para Kristeva (2012, p.252), os modernos devoram os textos
com os quais dialogam, criticando-os. O tritão chega à vida adulta, depois
de comer a quantidade suficiente de seres fictícios de confeccionados
por seus pais, passa a ter a autonomia de produzir suas obras e ingeri-
las. Depois, encontra Benjamín, jornalista que vai entrevistá-lo, um
humano, e fica fascinado pela criatura. É ele então que se arrisca, em
um transcurso de catábase (FERNANDES, 1995), cai no tanque onde vivia
Connelly, embora pensasse que poderia pôr-se em perigo. Há, então, uma
referência ao cadinho (ELEAZAR, 1760) onde simbolicamente ocorriam os
procedimentos alquímicos. O jornalista é humano, possui uma profissão
arraigada na terra, veste um terno marrom. Como há quatro personagens
principais e uma das temáticas da obra é alquimia, deduzimos que ele
representa o elemento terra e Connelly, a água.
Segundo o dicionário de Chevalier e Gheerbart (1982, p.21), a alquimia
é uma ação especificamente sexual entre o enxofre e o mercúrio, cujo efeito

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

é o nascimento dos minerais na matriz terrestre, ocasionando uma volta


ao estado embrionário, uma recuperação do vazio, do estado primordial
do homem. É o encontro da pedra filosofal, do absoluto e da gnose. A
conexão com Benjamín é justamente essa troca, vinda de uma sexualidade
outra. Connelly pode ser considerado como trans não só por ser híbrido,
há momentos da narrativa em que ele é aludido como sereia e em outros é
tritão. Essa oscilação do significante contribui para relativizar a importância
da definição do sexo. O casal, portanto, relaciona-se um ingerindo o
pequeno pedaço do outro, que reconhecem como um elixir alquímico.
Connelly, quando fala, arrasta as pessoas ao seu redor para o mundo
que emerge daquilo que ele expressa: “Tú vuelves realidad tus poemas para
quienes te escuchan. Eres una verdadera sirena, mi vida, un ser mágico que
puede encantar” (ECHEVERRÍA, 2017). É uma capacidade da literatura de
encantar, retomando sua origem oral. Benjamín percebe a condição sedutora
de Connelly,vê que o elixir de seu corpo vicia como seus poemas (ECHEVERRÍA,
2017). O jornalista mergulha no mundo do tritão quando este evoca “Ven
comnmigo”, adentrando “un laberinto vegetal sin caminos aparentes.”
Novamente como Drawing hands (BERNARDO, 2010, p.107) de Escher,
há uma captura mútua, um devir (DELEUZE,2012, p.11) amoroso entre
ambos, pois Benjamin também canta para ele, também assinala seu mundo.
Esta mecânica é mais uma vez a Continuidade de los parques de Cortázar
(2011, p.391-392), a comunicação e indeterminação entre ficção e realidade,
arte e vida. Nessa “promiscuidade”, contato livre, no qual “descender es
ascender, y ascender es descender… Mineros, tesoros”, a riqueza do retorno
à terra – matriz do caos primordial – e da submersão na água, – fonte de
vida, purificação e revivificação (GHEERBRANT; CHEVALIER, 1982, p.345) é a
geração de um ovo, onde está Connelly, mas agora adulto.
Apoiando-nos no Dictionnaire de Symboles de Gheerbrant e Chevalier
(1982, p.689-691), mapeamos os diversos sentidos que a figura do ovo pode
abarcar, enumerando visões de diferentes povos. O ovo pode significar o

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

nascimento de um mundo, a manifestação do verbo, do homem originário,


o ovo cósmico nascido das águas primordiais, o absoluto à espera da
frutificação dos germes e sua diferenciação progressiva, a multiplicidade
intrínseca, o prelúdio da organização do caos -plasmando formas-, os cinco
(na China) elementos da natureza -ou quatro no ocidente. Há também uma
simbologia na qual acredita-se produção de um centro sonoro vibratório
que levará ao processo de concentração e talha. É isso que Connelly
faz, ele evoca palavras dentro do ovo e essa vibração direcionará ele e
Benjamín para outros mundos. É importante ressaltar, também, que Eros
nasceu de um ovo, filho de Hermes e Afrodite, aquele mensageiro entre
os deuses e os homens e esta deusa do amor e da beleza (GRIMAL, 2005,
p.148). Assim, o ovo é o nascimento da comunicação com o fora (LEVY,
2011), com o divino, e com as formas belas.
A novela termina com a frase: “ambos desaparecieron en el interior
de una esfera autocontenida.”. Há uma referência de novo ao quadro
Hand reflecting sphere de Escher (2018) e ao processo de metaficção
(BERNARDO, 2010). Ovo e esfera, além dos significados antes mencionados,
revelam – baseando-nos ainda no dicionário – uma abertura à renovação
periódica, ao flerte à imortalidade, à transfiguração espiritual, e na
tradição alquímica, a um ovo filosófico, emblema da transformação.
É interessante pensá-lo, ainda, como enigma para uma força de
expansão - vontade de poder, “força vital, criadora” (NIETZSCHE, p.118),
um eterno retorno (NIETZSCHE, 2016, p.318) – ampulheta que gira
perpetuamente para que se viva com o amor fati trágico (NIETZSCHE,
2007, p.160). Nasce, assim, o grande “sim” à vida. É como se o ovo
proclamasse:” E a própria vida me confiou este segredo (...) eu sou o
que deve ser superior a si mesmo”. (NIETZSCHE, 2016, p.118). Essa auto
superação (NIETZSCHE, p.32-37) é, claro, uma metamorfose, como na
alquimia, ilustrada pelas metáforas do camelo – vontade de verdade e
submissão –, do leão – criadora da liberdade para a nova criação – e da

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

criança – esquecimento, recomeçar, “sim” para o jogo da criação. Se Ada


inicia a novela como um camelo, submissa aos poetas genéticos, criatura;
logo ela quebra com as expectativas para combater o niilismo das verdades
instituídas e afirmar a sua capacidade de criação. Gera, portanto, Connelly
que – em eterno retorno –fabricará também mundos com um humano,
refundando a rodada inventiva.
“Poética de las sirenas” (2017), dessa maneira, não se fecha em
um fim, o ovo, com sua casca franqueável, é o ícone dessa reabertura à
ficção como um manancial. Para entender essa engrenagem imaginativa,
analisaremos uma definição de metaficção, procedimento fundamental
de superação do real e das crenças pré-estabelecidas, já que funciona
como a criança de Nietzsche (2016, p.34), em vias de refabricação do
mundo: “Trata-se de um fenômeno estético autorreferente através do
qual a ficção se duplica por dentro, falando de si mesma ou contendo a
si mesma” (BERNARDO, 2010, p.9). Essa multiplicidade criadora, que se
dobra sobre si mesma, contém a própria ficção, ou seja, esta nos mostra
suas fronteiras, rompendo com o ilusionismo. Assim, afirma-se o amor fati
(NIETZSCHE, 2016, p.160) à vida sem verdades eternas, ao ciclo apolíneo-
dionisíaco (NIETZSCHE, 2007, p.24) de gênese-destruição. Por isso
Phosforos é a pedra filosofal, pois o fundamento está no fogo renovador.
A novela acaba na esfera escheriana (ESCHER, 2018), exibindo as
bordas da criação, como no quadro Perspicácia (BERNARDO,2010, p.86)
de Magritte. O artista belga pinta a si mesmo pintando um pássaro, mas a
posição do enquadramento é de que ele olha para um ovo. “É a imagem
dentro da imagem, seguida da imagem dentro da imagem”, verdadeiras
“reviravoltas aninhas.” (BERNARDO, 2010, p.86), vertigem produzida por
essa poética das sereias, que fabulam novas sereias.
O ovo, de mais a mais, pode ser confrontado por meio do conceito de
corpo sem órgãos do Deleuze (2012, p.11):

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Por isto tratamos o CsO como o ovo pleno anterior à


extensão do organismo e à organização dos órgãos, antes
da formação dos estratos, o ovo intenso que se define
por eixos e vetores, gradientes e limiares, tendências
dinâmicas com mutação de energia, movimentos
cinemáticos com deslocamento de grupos, migrações,
tudo isto independentemente das formas acessórias.

Desse modo, podemos compreender a metaficção presente em


Echeverría, essa ficção germinativa fervilhante, como a liberdade de
escrever sem a limitação de um organismo, mas com intensidades
monstruosas, energias e gradientes que dispensam o engessamento em
uma forma, como é o new weird. É a multiplicidade que afirma o simulacro,
a diferença (DELEUZE, 2015, p.259).

5. CONCLUSÃO
“Poética de las sirenas” (2017) é uma contundente novela que discute
temas caros à atualidade. Cumpre com sua função social, ampliando
nossos horizontes, dissolvendo preconceitos, iluminando, como o fósforo,
a busca de si e do outro, da arte, do fora (LEVY, 2011), do amor, da
imaginação, da grandeza, da transmutação da literatura em realidade,
da multiplicidade sexual e de escrita – transdisciplinar graças à ficção
científica. Sai-se da leitura com o real revirado devido ao risco existente
na sondagem do silêncio e do canto, cuja sedução transforma o leitor em
um ser híbrido, fabricado de código genético e literário. É ingerido pela
ficção e a deglute, leitor e poesia elixires da criação estética e da vida.

REFERÊNCIAS
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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O CONFLITO DE UMA RAÇA: QUANDO O MONSTRO


AMA E O HOMEM MATA
Gabriel Braga Ferreira de Melo

Habitando uma sociedade em que eles são identificados como


diferentes e uma ameaça ao grupo considerado normal; uma sociedade
que ficaria contente em vê-los mortos para livrar o mundo desse erro,
presos para se livrar do convívio com tal perversão, exilados para que
não se precise presenciar essa afronta no dia-a-dia, ou, simplesmente,
controlados em uma situação de submissão que não ameace posições
e privilégios. Como bem aponta Morrison (2015, p.205), essa descrição
poderia estar se referindo a “adolescentes, gays, negros [...] podiam
representar qualquer minoria, repercutir o que se sentia renegado”.
Contudo, nada mais é do que a realidade de um grupo de super-heróis
criado em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby: os X-Men.
Dotados de uma mutação genética que se manifesta, geralmente,
durante a adolescência e que pode conceder poderes, alterar a aparência
física ou ambos, os X-Men são um grupo de mutantes que juraram proteger a
todos os integrantes de uma sociedade que os teme e odeia. São, desde sua
origem, a representação mais básica e óbvia das minorias nos quadrinhos.
Não à toa, os X-Men sempre foram a alegoria Marvel para cada uma das
classes minoritárias, ou em posição minoritária, quando se desejava uma

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

história menos direta – no que pese o fato de que não deveria ser muito
difícil de se perceber algo que salta aos olhos desde a revista número 1. Nas
palavras de um roteirista que passou pelas páginas mutantes:
As metáforas contidas dentro do conceito dos X-Men
deveriam ser óbvias. Na verdade, elas são para serem
óbvias. Mutantes são diferentes. Mutantes são odiados
e temidos. Mutantes são uma minoria. Mutantes são
discriminados pelo que eles são. Soa familiar? Aplique
a metáfora mutante a qualquer minoria, qualquer um
que se sente sozinho... E funciona. Para mim, isso faz dos
mutantes uma metáfora extremamente potente. (CASEY,
1999, Apud DALTON, 2011, p.83 - Tradução nossa)

Com toda essa ligação com aspectos do mundo real desde a sua
criação, é natural também que o principal tema abordado nas páginas das
revistas mutantes seja um tema extremamente caro para os grupos aos
quais os heróis fazem referência, ou seja, o preconceito para com o outro,
com o diferente. Nas palavras de um de seus criadores sobre o que o levou
a abordar tais temas nas revistas dos X-Men:
Vamos deixar as coisas claras, preconceito e racismo estão
entre as mais mortais doenças sociais que atormentam
o mundo hoje. Porém, diferentemente de um grupo de
supervilões fantasiados, elas não podem ser paradas com
um soco no focinho, ou a energia de uma arma de raios.
A única maneira de destruí-las é as expondo – revelando
o mal insidioso que elas realmente são. (LEE, 1968, Apud
DALTON, 2011, p.83 – Tradução nossa.)

Com anos de publicação, 56 anos mais precisamente, é natural que


muitos roteiristas e muitas visões do que são os X-Men já tenham existido.
Entretanto, esse papel de grupo representante de uma alteridade e a luta
contra o preconceito sofrido por ser diferente é uma constante em todos
os autores, incluindo no roteirista que mais se destacou escrevendo tais
personagens: Chris Claremont.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Chris Claremont é, provavelmente, o nome mais associado aos X-Men.


O simples fato de ter sido o roteirista dos mutantes por 17 anos – de 1975
a 1991 –já o qualificaria para esse posto. Contudo, as histórias criadas
por ele são a base e o parâmetro para qualquer coisa que se crie com os
mutantes desde sua passagem pelas revistas. Em uma lista de histórias
consideradas clássicas com os personagens, uma boa parcela terá o nome
de Claremont como roteirista.
Com tamanho sucesso, muitas seriam as histórias de Claremont que
se poderia abordar nesse trabalho. Porém, uma das que mais merece
destaque veio na forma de uma graphic novel no ano de 1982: “X-Men:
Deus ama, o homem mata”. Antes de focar na obra, é preciso entender
em que contexto essa história surge.
Assim como quando surgiram na década de 1960, essa história
dos X-Men chega ao público em um mundo onde negros ainda lutam
por seus direitos, a sociedade ainda não aceita integralmente pessoas
homossexuais e o medo do comunismo ainda impera. Contudo, o
mundo em que “Deus ama, o homem mata” é publicado, é um mundo
onde a sociedade estadunidense, após um período com um presidente
democrata, vê o republicano Ronald Reagan assumir o poder com o
projeto de resgatar o conservadorismo “perdido”. Nesse momento,
pastores começam a ter espaço na TV – os chamados televangelistas – e
começam a chamar a atenção da família estadunidense para a, segundo
eles, urgência de resgatar os valores tradicionais que se perderam desde
a independência da nação. De acordo com tais religiosos, apenas através
do resgate da família da fé que a sociedade poderá ser novamente
conduzida ao rumo correto, isto é, de forma rígida e séria e através dos
preceitos religiosos. Para isso, tais líderes estão dispostos a lutar contra
todos aqueles que não os seguem, se preciso for. É nesse cenário que
Chris Claremont e Brent Anderson trazem o enredo de “Deus ama, o
homem mata”.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A história começa à noite com 2 crianças negras, o garoto com 11 anos


e a garota com 9, eles estão correndo de algo e não podem parar. Até que
o garoto é atingido e ambas as crianças são encurraladas no parquinho de
uma escola por adultos que se autodenominam “Purificadores”. Eles as
matam e as acorrentam no balanço com uma placa que justifica o motivo
de terem sido mortas: “Mutunas” – termo pejorativo usado para se referir
aos mutantes no Universo Marvel.
A cena corta para o Reverendo Stryker que lê a Bíblia e se prepara para
um debate na rede ABC. Mais um corte e temos Kitty Pryde, uma jovem
mutante, brigando fisicamente com um adolescente. Piotr e Illyana, dois
mutantes, chegam para separar a briga e Stevie, uma professora de dança,
também. O garoto, que não sabe que Kitty é uma mutante – vale ressaltar
que muitos mutantes são indistinguíveis por não terem sua aparência
física alterada – diz que a garota ficou louca só porque ele estava falando
do bem que a Cruzada Stryker vai fazer para a humanidade e que ele e uns
amigos são membros. Kitty fala para ele esclarecer como Stryker pretende
salvar a humanidade da raça mutante desprovida de Deus e ele diz que
“mutunas” são maus e que merecem o que quer que aconteça com eles
e pergunta o que ela pretende fazer contra isso se ela é tão amante de
“mutunas”. Piotr, Illyana e a professora apaziguam a situação, mandam
o garoto embora e, depois, Stevie tenta acalmar Kitty dizendo que ela
não deveria se chatear com o que foi dito, pois são apenas palavras. Kitty
questiona se ela pensaria o mesmo se fossem ofensas raciais, posto que
a professora é negra. Kitty sai correndo e Piotr e Illyana vão atrás dela.
Stevie fica sozinha e percebemos que ela está sendo observada por dois
Purificadores. Um deseja matar ela e diz que ninguém perceberia, mas o
outro o convence de não agir porque eles estão ali apenas para observar
e, uma vez que eles acabem com os “mutunas” do planeta, aí poderão
se voltar para os traidores que consideram que mutantes merecem ser
tratados igualmente.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Na mansão de Charles Xavier – professor de uma escola só para


mutantes e ele também um mutante –, os heróis se preparam para assistir
ao debate entre Stryker e o professor Xavier. O debate ocorre e, como
analisa um dos operadores da TV, Xavier está se mostrando o mais sensato,
porém ninguém vai escutar o que ele diz, pois Stryker conhece a televisão e
está sabendo falar para a audiência e que, apesar do reverendo aparentar
ser um cara simpático, sua mensagem é assustadora. Opinião similar à do
mutante Ciclope, que acompanhava o professor no debate, e percebe que,
enquanto Xavier estava tentando alcançar as pessoas através dos ideais,
Stryker as alcançava apelando para o sentimento de medo e que, por isso,
Stryker teria vencido o debate. Não pelos pensamentos expostos, mas por
saber como alcançar mais gente.
É após o debate que começamos a perceber a verdade sobre o
Reverendo Stryker, pois ele arma uma emboscada para Xavier e outros dois
mutantes que o acompanham e simula a morte deles enquanto os sequestra,
na verdade. É nesse momento que descobrimos que Stryker é o líder dos
Purificadores. Outras ações que os Purificadores tomam é sequestrar a mais
nova dos moradores da mansão Xavier: Illyana e tentar matar Kitty, que só
não morre graças à intervenção de Magneto, um mutante antigo rival dos
X-Men. Enquanto os X-Men e Magneto unem forças a fim de descobrir para
onde os Purificadores levaram Illyana e os outros mutantes, descobrimos o
plano de Stryker para os mutantes sequestrados. Através de uma tecnologia
que, ao mesmo tempo em que amplifica os poderes, também tortura quem
é posto dentro dela; Stryker pretende usar Xavier para, com uma rajada
psíquica do professor, matar todos os mutantes do planeta. Ciclope e
Tempestade foram sequestrados para serem usados como cobaias, afinal,
se ele conseguir fazer o Professor Xavier matar dois de seus alunos, matar
mutantes desconhecidos não será problema.
Após esses fatos, somos apresentados ao passado de Stryker e a origem
de sua cruzada anti-mutante. Vemos o então sargento Stryker dirigindo seu

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

carro com sua esposa grávida. Um acidente ocorre, ambos escapam, mas
sua mulher entra em trabalho de parto. Stryker a ajuda e vê que o filho
deles é um mutante – provavelmente por ser um dos mutantes que nasce
com sua forma alterada. Ele, encarando o que ele chama de aberração,
imediatamente mata o filho e, quando sua esposa pergunta pelo bebê, ele
a abraça e quebra seu pescoço pelo que ela tinha acabado de fazer, isto é,
ter gerado um mutante. Ao procurar respostas para o ocorrido, Stryker se
convence de que aquele pecado não era dele, mas, sim, de sua esposa e que
ela era o veículo usado por Deus para mostrar a ele o plano mais insidioso
do demônio contra a humanidade: os mutantes. E toma para si o dever de
salvar a todos do que ele considera um terrível mal.
Somos, então, levados ao Madison Square Garden, onde o Reverendo
Stryker anunciou que fará o sermão mais importante de sua carreira –
e somos informados de que é apenas um teatro para o uso de Xavier
como arma para assassinar todos os mutantes. Os X-Men ficam indecisos
se devem entrar ou não, pois atacar Stryker seria mostrar a todos que
ele tinha razão ao dizer que os mutantes são uma ameaça. Magneto,
menos preocupado com os meios, invade o Garden, onde uma multidão
já se encontrava, e ataca Stryker. Usando de Xavier, o reverendo quase
nocauteia Magneto e este cai no meio da multidão que pretende linchá-
lo, o que só não acontece graças à intervenção policial. Aproveitando da
distração de Magneto, os X-Men entram nos bastidores para liberar Xavier
da máquina que, a essa altura, já está causando sangramento e tontura
em todos os mutantes. Os X-Men conseguem livrar Xavier e destruir a
máquina, mas não antes de Anne, a Purificadora mais fiel de Stryker,
começar a sangrar e não entender o porquê. Horrorizado, Stryker revela o
motivo e a joga do alto do palco em frente às câmeras de TV para a morte
quando ela quebra o pescoço na queda.
Vendo a morte de Anne, Magneto questiona se essa é a palavra divina,
mas a maior parte da multidão pouco se importa com o ocorrido e diz que

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

isso é culpa dos mutantes e partem pra cima dele. Os policiais impedem
uma vez mais. Os X-Men chegam e contam para Stryker que o plano
dele falhou e Ciclope entra no debate sobre a humanidade ou não dos
mutantes. Stryker aponta para Noturno, um mutante com uma aparência
demoníaca, e questiona se aquilo pode ser chamado de humano. Quando
Kitty defende a humanidade do amigo, Stryker aponta a arma para ela.
Um tiro é escutado e vemos Stryker sangrar após ser atingido no ombro
por um policial. A multidão se revolta com o policial e, confrontada pelo
resto da polícia com o fato de que ele só atirou pelo fato de o Stryker estar
ameaçando com uma arma uma garota que nada fez, apenas questiona o
que os policiais vão fazer com os “mutunas”. A polícia diz que o mesmo que
farão com a multidão: nada, pois nada chegaram a fazer de fato, apenas
Stryker será preso. A história segue por umas poucas páginas onde vemos
Stryker tentando argumentar que estava sofrendo perseguição religiosa
e descobrimos também que muitos de seus súditos argumentam agora
que a ideia de Stryker estava certa, apenas os métodos errados. Alguns
desfechos mais acontecem, mas nada relevante para o nosso tema.
Muitas poderiam ser as abordagens em relação aos tópicos
apresentados na história. Entretanto, focaremos em como, na história,
são retratadas diferentes faces da sociedade estadunidense, tanto a que
abraça a multiculturalidade quanto a que pretende plasmar as diferenças
em um projeto de igualdade que castra as individualidades que destoam
do que julgam ser o ideal, e o caminho que o embate entre tais facetas
pode nos revelar.
Começando pelas minorias enquanto grupo social, é importante
estabelecer quais são as três maneiras que Claremont usa para conceder
uma maior verdade e representatividade no retrato dos mutantes como
metáfora das minorias.
O primeiro deles é o fato óbvio de que, uma vez que eles são diferentes
da norma e que seu número é menor do que o da quantidade de seres

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

humanos, os mutantes são, por definição, uma minoria. Entretanto, pessoas


com poderes incríveis devido a uma alteração genética, teoricamente, não
se encontrariam em posições de inferioridade. Para balancear esse ponto,
surgem os outros dois pontos muito presentes nas equipes mutantes:
estrangeiros e mulheres. Tradicionalmente, as equipes mutantes são
compostas por personagens femininas fortes e, não raro, estrangeiros.
Dois grupos sociais que, no mundo real, vivem uma constante batalha em
busca de ter seus direitos reconhecidos e respeitados.
A formação mutante de “Deus ama, o homem mata” conta com dois
russos, uma queniana, um alemão, um canadense e dois americanos.
Um grupo de clara diversidade cultural, uma vez que é composto por
imigrantes dos mais variados cantos do globo. Desses sete componentes,
três são mulheres. Mais do que isso, mulheres que estão presentes para
uma função maior do que ser a namorada do herói ou a donzela em
perigo. Não é por acaso que é Kitty Pryde a personagem central dessa
história em plena década de 1970. Para entender a radicalidade de tal fato
nos quadrinhos, basta pensar que estamos falando de uma indústria que
só na entrada deste século começou a realmente valorizar e se abrir para
a presença feminina dentro e fora do universo das páginas desenhadas.
Esta variedade de culturas dentro de um grupo faz dos X-Men um
complexo quebra-cabeça de inúmeras identidades que estão em constante
embate na formação do que são, assim como acontece em maior escala
com a sociedade estadunidense no mundo real. Nas revistas, o grupo
precisa encontrar uma maneira de se unir, mesmo com pontos de vista tão
diferentes entre seus membros, pois não apenas a localização geográfica
é diversificada no grupo, mas também outras questões mais pessoais
como a origem social – com o grupo sendo composto desde camponeses
russos a uma garota de rua do Quênia a uma estadunidense de família
abastada e um estadunidense menos privilegiado nesse ponto – ou a
orientação religiosa – possuindo desde ateus russos e uma pagã queniana

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

até um católico alemão e uma judia estadunidense. Através da formação


de um grupo tão diverso e do convívio entre eles, suas concordâncias
e discordâncias, mas sempre respeitando um as questões do outro, os
mutantes se mostram como um exemplo de uma postura e caminho a
serem seguidos pela sociedade do mundo real. A postura de quem abraça
o multiculturalismo em que se encontra, não colocando ninguém acima
ou abaixo devido à cultura que possui, é capaz de encontrar um caminho
para uma sociedade mais igual. Porém, não é apenas enquanto grupo que
os mutantes se destacam, mas também dentro de suas individualidades.
Nesta história em especial, os destaques ficam em Noturno e Kitty Pryde.
O primeiro é perseguido pelo seu corpo. Sua aparência o associa
imediatamente a uma figura demoníaca e bestial e tudo o que tal
associação pode trazer no que diz respeito à irracionalidade e violência.
Somado ao fato, seu tom de pele azul e rabo ajudam a compor um visual
que torna fácil se esquecer que ele é, de fato, um ser humano. Tal fato é
explorado pelo reverendo Stryker que o usa como um exemplo visual de
como mutantes não deveriam ser considerados humanos, já que não se
parecem como tais. Contudo, não se sentindo preso a uma identidade que
lhe é imposta pela expectativa dos outros devido à sua forma, Noturno se
mostra capaz de escolher sua própria identificação e, através de sua fé, se
revela o integrante mais humano e pacifista do grupo.
Kitty Pryde, por sua vez, se vê confrontada com inúmeras identidades
que diferentes pessoas esperam dela: para alguns, ela é uma mutante, para
outros, “apenas” uma mulher; há quem a veja como uma estadunidense
de classe média-alta e existem os que enxergam nela apenas a sua faceta
de judia; há, ainda, quem a veja como uma novata no grupo. Kitty, por sua
vez, não se submete a nenhuma dessas identidades, isoladamente, e usa a
combinação de todas e quais deseja de acordo com seu pensamento, livre
para se reconfigurar a hora em que achar que precisa para se manter fiel
a si mesma.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Alinhados com a ideia de Bauman ([2000] 2001) de que, na modernidade


líquida, não existe espaço para se prender a uma identidade apenas – e muito
menos àquelas que são impostas externamente –, mas, sim, a identificações
que podem ser ganhas, perdidas e, portanto, alteradas a todo o momento, os
X-Men não se limitam a apenas um papel e um modo de ver o mundo e, dessa
forma, sinalizam para uma realidade mais tolerante com a diversidade, posto
que eles mesmos estão em constante processo de diversificação.
Ilustrando o que Stuart Hall ([2003] 2009, p.30) analisa de que “nossas
sociedades são compostas não de um, mas de muitos povos. Suas origens
não são únicas, mas diversas”, os X-Men representam, em suas fileiras,
o perfeito ideal de um Estados Unidos de igualdade, fraternidade e que
abraça o multiculturalismo de sua formação e existência. Abarcando desde
seus membros mais privilegiados até os menos afortunados em igualdade
de posição e importância para o grupo como um todo.
Contudo, sabemos que esse ideal não é tão real quanto gostaríamos e
temos em Stryker e seus Purificadores o retrato fiel dos efeitos do medo dos
bárbaros sobre o qual nos alertava Todorov (2010). Incapazes de habitar uma
sociedade plural regida por leis comuns, incapazes de reconhecer o outro
como um semelhante, Stryker e seus seguidores apelam para a violência
de discurso e física, negando a humanidade do diferente e pregando a sua
morte. Esse não-reconhecimento do outro como ser humano é o que acaba
por afastar o indivíduo da civilização e o aproximar da barbárie que ele
tanto teme que o outro traga para a sua vida.
Através do embate desses dois grupos – os Estados Unidos abertos
ao outro representado pelos X-Men e os Estados Unidos que rejeitam
reconhecer a humanidade do outro representado por Stryker e seus
Purificadores – o leitor é convidado a analisar em que grupo se inserem
o seu modo de vida e o de sua sociedade e a se colocar, ainda, como
policiais da história que, no momento de maior tensão, se veem forçados
a deixar de ser meros espectadores e agir.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Obviamente, a ação de cada leitor e como a história vai tocar quem


a lê é individual. Porém, no que se limita à história, é através da ação
heroica de um ator improvável – um policial sem nome que parecia
estar ali apenas para assistir enquanto heróis e vilões batalhavam em
um épico confronto final – que a vitória dos mutantes se desenha. Pois,
como Todorov (2010, p.19) aponta: “renunciar à intolerância não significa
forçosamente tolerar tudo; para ser crível, um apelo à tolerância deve
partir de um consenso intransigente sobre o que, em uma sociedade, é
considerado como intolerável.”. E, enquanto os mutantes se furtavam
de agir com medo do que a opinião pública pensaria, um componente
da sociedade que poderia ser qualquer leitor ponderou e decidiu o que
é intolerável e, renunciando a tal ato, se livra do caminho da barbárie
de Stryker e abre a possibilidade para um caminho de maior aceitação e
compreensão das questões do outro.
É do confronto entre os dois Estados Unidos – em que os X-Men
saem com um tipo de vitória – que se espera que a leitura com a qual nos
afinizamos é a que Rushdie (1991, p.27) já dizia de que “não é porque os
indivíduos se conduzem de forma diferente que deixam de ser humanos”.
Fica a lição de maior tolerância e, com isso, esses personagens nos trazem
mais perto da civilização mais aprofundada que nos desenha Todorov
(2010) em que pessoas com culturas e costumes diferentes e sociedades
organizadas de modo diferente dos nossos serão aceitas como humanas
como nós. Uma civilização em que ser diferente não significará um
confinamento eterno.
A vitória parcial dos X-Men é a vitória do multiculturalismo sobre a
intolerância e a barbárie. É a vitória que ilumina o ambiente para vermos
que, por vezes, o monstro que o outro aparenta ser – como o demoníaco
Noturno – esconde a mais doce das criaturas, enquanto a figura humana
que se parece comigo pode esconder a verdadeira besta feroz e inumana.
Contudo, Todorov (2010) já dizia que a barbárie está em toda sociedade

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

e indivíduo, não há ninguém imune a ela. A barbárie resultaria de uma


característica do ser humano e, por isso, “aparentemente, seria ilusório
esperar que, um dia, ela possa ser definitivamente eliminada.” (TODOROV,
2010, p.31). É por isso que o caminho para uma sociedade verdadeiramente
multicultural é uma luta diária e eterna, com apenas vitórias parciais, pois,
quando o novo dia amanhece, a luta é reiniciada. E é por isso que a vitória
dos mutantes não vem completa e que amanhã continuarão a mesma luta
de ontem e de hoje.

REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt ([2000] 2001). Modernidade líquida. Plínio Dentzien (Trad.).
Rio de Janeiro: Zahar.

CLAREMONT, Chris; ANDERSON, Brent Eric (1982). X-Men: God Loves, Man Kills.
New York: Marvel Comics.

DALTON, Russel W. (2011). Marvelous Myths: Marvel Superheroes and Everyday


Faith. Missouri: Chalice Press.

HALL, Stuart ([2003] 2009). Da diáspora. Identidades e Mediações Culturais. Liv Sovik
(Org.). Adelaide La Guardia Resende et alii (Trad.). Belo Horizonte: Editora UFMG.

MORRISON, Grant (2012). Superdeuses. São Paulo: Seoman.

RUSHDIE, Salman (1991). Imaginary Homelands: Essays and Criticism. London:


Granta.

TODOROV, Tzvetan (2010). O medo dos bárbaros. Para além do choque das
civilizações. Rio de Janeiro: Vozes.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

A TESSITURA DO INSÓLITO EM TORNO DE MARIA:


A MINORIA E A MORTE (EM) CENAM EM A CORDA
BAMBA, DE LYGIA BOJUNGA
Ana Paula Caixeta de Brito
Camila da Silva Alavarce

Este trabalho é parte de uma pesquisa sobre o insólito ficcional no


romance Corda Bamba, de Lygia Bojunga. As teorizações em torno do
conceito de insólito são desenvolvidas em um capítulo da dissertação de
mestrado intitulada “Representação do Insólito como tensão: as artesanias
de Rowling e Bojunga tecendo olhares dissonantes” No capítulo em questão,
voltamos nosso olhar para a compreensão de um conceito mais abrangente
de insólito, que apresentaremos, em linhas mais gerais, a seguir.
Assim, para que possamos mostrar que o insólito é sempre definido
a partir de um contexto, iniciaremos nossa análise pelo romance Corda
bamba, de Lygia Bojunga, não com o objetivo de classificá-lo como um
gênero pertencente ao “fantástico” ou ao “maravilhoso”, mas sim com a
intenção de compreender os processos insólitos que compõem o enredo,
os temas escolhidos pela escritora para a irrupção desse insólito e, ainda, os
efeitos de sentido criados, na narrativa, a partir da construção do insólito.
Entendemos o insólito não pelo viés do metaempírico, mas sim como
um acontecimento que, em dissonância com certo entendimento de

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

“real”, num contexto específico, permite que esse mesmo real – agora
questionado – passe a ser visto de modo incongruente, estilhaçado e
inconstante. Dessa forma, dentro dos enredos ficcionais, é aquilo que
salta aos olhos do leitor para provocar questionamentos vários sobre os
acontecimentos narrativos, os temas escolhidos, e, ainda, os efeitos de
sentido criados, na narrativa, a partir da construção do fenômeno.
Ao pensarmos no público para quem Lygia Bojunga escreve, nos
deparamos com crianças e adolescentes em sua maioria, ou seja, um
público acostumado a lidar com temas que sejam “condizentes” com a
sua idade; ou, pelo menos, condizentes com o que a sociedade acredita
ser adequado para essa faixa etária. Contudo, a literatura surge com
outra perspectiva de lidar com a realidade, através de críticas diretas e
indiretas sobre os mais diversos assuntos, uma vez que, por mais que seja
delicado aceitar, a nossa realidade comunga de dores, perdas e situações
complexas independente da idade que temos.
A autora trabalha principalmente com a morte, na infância, e com os
traumas que esta pode proporcionar. Na obra Corda bamba, vemos o tempo
todo ponderações sobre o real e o sonho a partir de situações vividas pela
protagonista Maria: uma garotinha de apenas dez anos que presencia a
morte de seus pais, durante um espetáculo na corda, em um circo. Maria
cria uma travessia rumo ao seu inconsciente ao tentar lidar com todas as
atribulações e aflições que pairam em sua vida a partir de então.
O fato de Maria presenciar a morte dos pais durante o espetáculo
circense corresponde a um “fato” narrativo; no entanto, entre a experiência
desse fato e a sua elaboração, na cabecinha da menina, há um difícil caminho.
É exatamente nesse limite entre o “real” e a sua representação que o insólito
ganha força e espaço. Lygia Bojunga consegue representar – por meio de sua
escrita plurissignificativa – o tamanho da dor da protagonista, a personalidade
autoritária e individualista da avó materna (personagem que cria Maria) e a
ânsia de liberdade da menina, fazendo com que alcancemos a realidade vivida

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

por Maria ao nos depararmos, por exemplo, com a amnésia da garotinha após
o trágico falecimento dos pais. O trauma da menina está diretamente ligado
a esse acontecimento insólito, visto que ele faz com que ela tente lidar, de
alguma forma, com tantas dores, diariamente.
Lygia ainda apresenta personagens marginalizados pelo sistema, como
Márcia, Marcelo, Barbuda, Foguinho e a Velha que representam a minoria
que não possui voz em nossa sociedade. Mas também apresenta aqueles
que oprimem e impõem suas ações, como a avó e a professora particular
de Maria. Não podemos deixar de observar a nossa protagonista – outra
figura marginalizada pelo sistema – afinal, é uma criança órfã que além de
não ser ouvida é subjugada às vontades da avó.
Na narrativa Corda bamba, Lygia, ao dar vida à garotinha Maria,
faz com que entendamos de maneira espetacular – através de seus
enfrentamentos cotidianos – que a morte e a dor têm espaço, sim, na
infância. Diante do exposto, vemos que muito embora as crianças tenham
força para lidar com essas situações, os acontecimentos mantêm o seu
caráter insólito, numa perspectiva contextual, pois não é esperado que
em tal fase da vida elas vivam essa realidade tão dolorosa; em outras
palavras, o romance foge de uma rotina esperada pela sociedade, abrindo
um leque de possibilidades outras – todas elas factíveis – que nos fazem
lembrar que o existir é invariavelmente contingente.
Sabemos que não é comum uma criança perder a mãe e o pai ao
mesmo tempo, e menos comum ainda, é que isso ocorra num espetáculo
de circo, local de contemplação da arte e da beleza. Mas – sim – isso
ocorre com a protagonista Maria, e ela presencia toda a tragédia no auge
de sua infância, aos dez anos de idade, quando – como criança e, portanto,
representante de uma minoria – ainda é tão difícil ter voz, especialmente
num momento em que a sua fragilidade inerente – como criança – está
potencializada pela experiência do trauma resultante da morte, em
espetáculo, de sua mãe e de seu pai.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

O tambor começa. Marcando bem o movimento de


Márcia e Marcelo. Maria para de chamar. Espera. O
tempo passa devagar. Ela se vira, olha: que alto que eles
estão! A mãe é bonita, assim de malha prateada, o cabelo
feito o dela, um arco maior que o dela com flor de tanta
cor, opa! (era a mãe fazendo um volteio), coisa mais linda!
Como ela fazia isso bem. A malha que o pai usa é preta
só, e aqui debaixo ele parece ainda mais alto: o arco
que ele segura só tem flor amarela, puxa, que pirueta!
o pai é mesmo uma cobra, o público até se assustou. Vai
ver susto é bom: todo mundo bate palma. Quanto mais
Maria olha pra Márcia e Marcelo, mais vai esquecendo
que queria ir embora; Márcia tem tanta graça! mesmo
não fazendo nada difícil, a gente não quer deixar de olhar,
imagina quando o pai estender o arco para ela passar,
pronto! estendeu. Ela se abaixa e passa de novo. E de
novo. Cada vez diferente. Cada vez mais depressa. Cada
vez, que é isso!! o arco de cor se embaraça no amarelo;
cai. Márcia falseia o pé, o corpo vira, o pai quer pegar um
braço, um cabelo, um resto dela, mas tudo escapa, ela
já vem vindo, ele se vira todo, já vem também, o tambor
parou, ninguém diz ai, só tem silêncio, que depressa que
gente cai!! (BOJUNGA, 2016, p.134-135)

Nesse contexto, evidenciamos a presença do incomum saltar


aos nossos olhos de maneira poética, o que faz com que pensemos na
profundidade contextual que o insólito é capaz de atingir neste enredo;
afinal, Lygia Bojunga trabalha a morte em um âmbito completamente
singular: durante a infância e ligada à arte de um espetáculo circense.
Dessa forma, encontramos em Corda bamba, um insólito ou, porque não
dizer, vários insólitos, ao olharmos para o estilhaçamento da realidade
dessa garotinha.
Em meio a tantos estilhaços, vemos a normalidade e a calmaria
de uma infância feliz abrir espaço para o caos e para a turbulência de
uma mesma infância traumática. Maria agora deverá enfrentar o luto

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

diariamente e atrair para sua nova rotina as memórias perdidas na noite


em que ocorreu a morte de sua família; a negação da tragédia ocorrida
com seus pais e a vida solitária que leva precisam ser superadas. Contudo,
inconscientemente, ela não dá conta de sua nova rotina, assim como não
consegue lidar de modo tranquilo com os obstáculos que surgem para
tumultuar o que antes soava costumeiro e “normal” (convivência com
seus pais, brincadeiras com os amigos do circo, etc.).
O professor Carlos Reis (2012) pontua que quando um acontecimento
não ocorre como é esperado e começamos a nos questionar sobre o
porquê de determinados fatos ocorrerem, temos um exemplo de insólito
no enredo:
Negamos a rotina, sendo essa negação – que corresponde
à afirmação do insólito – capaz de surpreender e de
levantar interrogações acerca do mundo e daquilo que
nele com surpresa observamos, ao arrepio da realidade
trivial das coisas, tal como esperaríamos que elas
acontecessem. (2012, p.57)

Claro que esperávamos a felicidade de Maria em comunhão com


seus pais, mas a morte faz-se presente muito cedo e é com ela que
teremos de lidar, na narrativa, ao lado de Maria. Assim, a protagonista,
não dando conta de sua realidade, passa a negar seu presente por meio
do esquecimento. Após o trauma, ela perde a memória e, então, começa
inconscientemente a criar mecanismos para a recuperação da mesma, ao
fazer uma viagem ao inconsciente para conseguir fragmentos importantes
de sua infância.
Nesse ponto evidenciado pela autora, devemos nos ater ao fato de
que Maria passa por um luto que a faz enfrentar seu consciente, e que
tal enfrentamento ocorre através do principal objeto de trabalho de seus
pais: a corda, que, da mesma maneira que a vida de Maria, é bamba,
repleta de incertezas e de medos. Observamos que a corda é bastante

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

significativa dentro da obra de Lygia, ao pensarmos que a função de tal


objeto é “acordar” a menina; fazer com que ela elabore a realidade em
que está inserida ao repetir a ação de atravessá-la várias vezes.
Temos aqui a repetição da cena dramática, o reconhecimento quase
palpável do luto, a instabilidade da vida. A corda torna-se uma metonímia
do trauma de Maria – a morte de seus pais. Maria precisa recriar a cena
da morte para reelaborá-la com um cenário. Essa ressignificação da cena
e do objeto central faz com que observemos, ainda, o signo presente no
interior da palavra “corda”; o signo cor – CORda que nos remete à CORação
e a aCORdar, justificando, portanto, a possibilidade de recuperação da
razão e do recomeço.
E, no enredo, esse acordar começa a acontecer para nossa
protagonista, quando Maria vislumbra no prédio, que fica em frente
ao seu quarto, uma janela diferente, a única janela de formato circular
existente no edifício, e isso atiça sua curiosidade.
Então, a garotinha amarra uma corda até a janela do prédio vizinho e
começa a se equilibrar para efetuar a travessia, entrando pela única janela
de formato circular que tanto chama sua atenção. A janela em forma
de arco na parte superior faz com que ela a associe ao arco de flor que
possui, à altura e ao trapézio, elementos circenses que os pais, trapezistas
de circo, utilizavam ao realizar o espetáculo. Ou seja, a protagonista
recompõe uma cena, independentemente de ela o fazer imaginária – pois
esta janela representará uma espécie de portal para outra dimensão, a
do inconsciente de Maria que a levará a um corredor de portas coloridas
capazes de abrigar ambientes da infância de Maria e episódios decisivos
na vida de seus pais e de sua avó – ou factualmente.
Podemos afirmar que o desequilíbrio durante a travessia da corda
ocorre na vida de Maria e isso já é sugerido ao leitor no próprio título
da obra Corda bamba afinal, não é ao acaso que a corda está oscilante;

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

a vida da protagonista encontra-se completamente instável e a corda


representa tal instabilidade, pois além de ser o objeto que provocou a
morte dos pais da protagonista é o que a garota usa para realizar sua
travessia. Maria estica a corda como se tentasse metaforicamente esticar
a própria vida. A corda representa, acima de tudo, a ambiguidade; cria e
mantém esse efeito de sentido. Por outro lado, a corda bamba também
pode representar a própria indecisão a que nós leitores somos acometidos:
esses acontecimentos são reais ou irreais? Isto aconteceu apenas no
sonho da garotinha ou em sua imaginação? A corda também é bamba
para o leitor! Assim como para Maria, corremos o risco de sucumbir
subjetivamente no confronto com a “verdade”, diariamente.
Tais questionamos durante toda a leitura fazem parte de um jogo
da autora. Bojunga joga com os leitores de maneira espetacular para
alinhavarmos os acontecimentos a partir de possibilidades diferentes.
Mas, mesmo se considerarmos que a travessia aconteceu somente nos
sonhos da menina, o insólito ganha força, afinal, ela se lembrará de
acontecimentos anteriores ao seu nascimento, os quais não conseguimos
justificar através da razão, pois possuem tamanha riqueza de detalhes que
nos perguntamos se, de fato, ela não estaria presente em cada um deles.
Ou seja, a protagonista recompõe uma cena, independentemente de ela
o fazer imaginária ou factualmente.
A corda simboliza a “corda bamba” da vida, ela é a responsável por
ligar o “real” ao imaginário e por rememorar fases passadas da vida de
Maria e libertá-la de seus traumas, edificando a seu presente. O real é
representado por Lygia, no decorrer da obra, pela situação da garotinha
– órfã de pais, com dificuldade de relacionamento com os parentes
que eram distantes quando os seus pais estavam vivos, sem memória e
afastada dos amigos próximos, que viviam com ela no circo. Já o insólito é
evidenciado nas decisões, bem como no enfrentamento de tais obstáculos
por uma criança de apenas dez anos de idade. A corda, neste cenário,

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

liga, portanto, um contexto sólito a um contexto insólito, propiciando à


garotinha possibilidades para aprender a lidar com o luto inevitável.
Ao repensarmos na abrangência dos conceitos de insólito abordados
até agora e na protagonista de Lygia, vemos que eles se aplicam
integralmente à Maria, pois ela se recria diariamente diante de uma
realidade dolorosa e inaceitável: a morte das pessoas que mais amou
na vida. Única e exclusivamente por eles, ela não hesita em enfrentar
os riscos de uma travessia perigosa, riscos emocionais, inclusive, pois
acredita que encontrará alguma esperança do outro lado da corda ou até
mesmo alguma motivação para continuar seus dias sem a companhia de
seus pais. A travessia é a força que Maria busca para encarar os medos
que perpassam sua nova realidade e o insólito é uma maneira metafórica
de lidar com tudo que a envolve.
Toda a construção desse espaço – prédio e circo – bem como a
utilização dos objetos citados desencadeiam um entrelugar criado por
Maria para conseguir lidar com a mudança drástica em sua infância;
mas, ao mesmo tempo, mostra a coragem e a vontade de viver de nossa
protagonista que diariamente enfrenta a vida com uma força sobre-
humana e nos mostra ser uma personagem densa, profunda e forte. Na
narrativa, tais espaços abrigam o insólito.
Concluímos, vendo a representação da contingência na infância
soando muito insólita no livro através do empoderamento da avó, que
por ser rica, acredita que tudo pode ser comprado, inclusive as pessoas
(filha, genro, maridos, Velha e neta). Os amigos de Maria, pessoas simples
e do circo, representando a classe mais humilde de uma sociedade
capitalista, ou seja, pessoas que não são bem tratadas nem bem vistas,
pessoas marginalizadas pelo sistema. E, por fim, a imposição e opressão
do sistema de ensino na época da Ditadura, representadas aqui pela
professora particular de Maria.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

Assim, experimentamos a dor que uma morte provoca, a exposição a


que minoria é submetida cotidianamente e o olhar para o mundo que nos
cerca, muitas vezes, doloroso, impositivo e cruel; mas capaz de fazer com
que o ser humano encontre meios para atravessá-lo dia após dia, como
Maria em sua corda sempre bamba.
Nesta narrativa, Lygia dá vida à garotinha Maria e faz com que entendamos
de maneira espetacular através de seus enfrentamentos cotidianos que a
morte e a dor têm espaço, sim, na infância; e que muito embora as crianças
tenham força para lidar com essas situações, os acontecimentos mantêm o
seu caráter insólito, numa perspectiva contextual, pois não é esperado que
em tal fase da vida elas vivam essa realidade tão dolorosa, isto é, estamos
fugindo de uma rotina esperada pela sociedade.
Afinal, ao compreendermos que o insólito está relacionado a uma
ampliação do entendimento de verdade/experiência ou, ainda, de
real, como conceitos invariavelmente compreendidos a partir de uma
relativização, podemos afirmar que o entendimento de verdade determina
que o insólito também seja relativo, devendo ser, portanto, considerado
dentro de um contexto, uma vez que não se pode dissociar a experiência
humana do insólito. Essa maneira mais abrangente de entender o insólito
ficcional também é abordada pelo professor Carlos Reis (2008), que
entende que, ao tentarmos modelizar as singularidades do ser humano,
criamos certo equívoco, visto que todos os exemplos não caberão na
mesma caixa classificatória.
Por isso acreditamos que o insólito assim compreendido amplia as
possibilidades de chegarmos mais perto das contingências humanas tecidas
na narrativa literária. O estudioso diz que “[...] é no decurso dessa busca e para
ilustrar que às vezes sobrevêm estranhezas várias e que dão pelo nome de
insólito.” (p.68). É visível, então, que para considerarmos um acontecimento
insólito, precisamos contrastá-lo em relação a um contexto considerado de
“normalidade” ou de “realidade” – contexto este sempre movediço.

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Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura e no cinema contemporâneo

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