Vozes Insolitas
Vozes Insolitas
Vozes Insolitas
e minorias na literatura e no
cinema contemporâneo
Ana Cristina dos Santos e Camila da Silva Alavarce (Orgs.)
representações de diversidades
e minorias na literatura e no
cinema contemporâneo
Ana Cristina dos Santos e Camila da Silva Alavarce (Orgs.)
2020
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Reitor
Ricardo Lodi Ribeiro
Vice-Reitora
Mario Sergio Alves Carneiro
Dialogarts
Coordenadores
Darcilia Simões
Flavio García
Conselho Editorial
Conselho Consultivo
Dialogarts
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Maracanã - Rio de Janeiro - CEP 20550-900
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Copyright© 2020 Ana Cristina dos Santos; Camila da Silva Alavarce (Orgs.)
Capa
Raphael Ribeiro Fernandes
Diagramação
Raphael Ribeiro Fernandes
Revisão
NuTraT – Supervisão de Tatiane Ludegards dos Santos Magalhães
André Luís Gomes de Jesus
Karen Paula Quintarelli
Thaiane Baptista
Thaiane dos Santos Magalhães
Produção
UDT LABSEM – Unidade de Desenvolvimento Tecnológico
Laboratório Multidisciplinar de Semiótica
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Vozes insólitas: representações de diversidades e minorias na literatura
e no cinema.
S237 Organização: Ana Cristina dos Santos; Camila da Silva Alavarce
A324 Edição: Flavio Garcia
Capa: Raphael Fernandes
Diagramação: Raphael Fernandes
Rio de Janeiro: Dialogarts
2020, 1a ed. (digital)
800 – Literatura
ISBN 978-65-5683-000-1
Estudos Literários. Gótico. Fantástico. Insólito.
Índice
APRESENTAÇÃO
Camila da Silva Alavarce 7
SEXISMO E RACISMO: MONSTROS PRESENTES NA
CONSTITUIÇÃO NARRATIVA DE ESTRELAS ALÉM DO TEMPO
Viviane Conceição Antunes
Elda Firmo Braga 14
A FANTÁSTICA E INQUIETANTE COTIDIANIDADE FEMININA
DE AUGUSTA FARO E RENAN ALVES MELO Liliane de
Paula Munhoz
Maria Aparecida de Castro 32
Corpo e identidade: o cabelo como símbolo de
resistência
Maria Inês Freitas de Amorim 45
DE MULHER FALADA À QUE FALA, NAS OBRAS DE
MACHADO DE ASSIS E PEPETELA
Daniella Moreira de Oliveira 58
E A NOIVA DE FRANKENSTEIN? REFLEXÕES SOBRE A
(DES)IMPORTÂNCIA
Rita de Cássia Silva Sacramento
José Carlos Felix 68
ENTRE O ANORMAL E O MONSTRUOSO: NOTAS SOBRE
O LIVRO CARRIE DE STEPHEN KING (1974) E O FILME
HOMÔNIMO DE BRIAN DE PALMA (1976)
Gabriela Müller Larocca 84
APRESENTAÇÃO
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morte da professora Ana Cristina dos Santos. Conheci Ana por intermédio
da professora Regina Michelli, que ouviu a minha fala numa Banca, em
Uberlândia, na UFU, e achou que seria frutífero academicamente me
apresentar à Ana. E foi: o resultado está bem aqui.
Sinceramente, não éramos próximas. Arrisco-me a dizer, entretanto,
baseada no que vi, naqueles dias durante o nosso simpósio, que a sua
morte deve ter sido vivida como uma contingência bastante dolorosa
por aqueles que, de fato, a acompanharam, quer em sua vida pessoal,
quer na caminhada acadêmica. Porque o que vi foi uma mulher
inteligente, aberta e generosa; vi uma professora acolhedora das
diversas vozes e abordagens que para nós se apresentaram, honrando
e respeitando a proposta principal daquele encontro, que não foi outra
senão a reunião de trabalhos sérios em torno do respeito à diversidade
e às minorias – caminho de pesquisa trilhado pela professora Ana e por
seu Grupo de pesquisa há muito tempo; o simpósio que coordenamos
juntas foi, portanto, um pequeno desdobramento da produtiva
caminhada acadêmica da Ana no sentido desses temas urgentes; e desse
desdobramento eu tive a grata oportunidade de fazer parte. É, pois, com
imenso respeito que me coloco aqui, objetivando finalizar um trabalho
que a professora Ana Cristina dos Santos iniciou e que, infelizmente,
não pôde concluir. Para tanto, contei com a ajuda do querido colega,
o Prof. Dr. André Luís Gomes de Jesus, a quem agradeço imensamente
pelo trabalho de organizar comigo este livro.
A proposta que norteou o Simpósio foi, em linhas gerais, a análise
da construção de personagens que, vivenciando a sua fragilidade como
minoria, se encontram à margem de um padrão comportamental eleito
como “melhor” e “correto” ou, ainda, como “superior”. As falas acolhidas
no simpósio nos trouxeram, pois, um pouco da vivência da exceção,
sobretudo nos espaços do homoerotismo, da negritude, do feminino e
da criança. Os trabalhos aqui apresentados, resultantes dessas falas, nos
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INTRODUÇÃO
Estrelas além do tempo (2016) baseia-se em um livro da autora afro-
americana Margot Lee Shetterly, resultado de pesquisas que faz com o
intuito de realizar um autêntico revisionismo histórico: resgatar e revelar
o protagonismo de inúmeras mulheres que atuaram, entre 1930 e 1980,
na NACA e NASA, no campo da matemática, da ciência, da engenharia e da
computação. O referido filme está ambientado, na maior parte do tempo,
no início dos anos 60, época na qual ainda vigorava a segregação racial e
a luta pelos direitos civis começava a se intensificar.
Neste momento, a corrida espacial entre os EUA e a, até então,
denominada URSS estava a todo vapor. No entanto, algumas pessoas,
mesmo executando tarefas estratégicas, tiveram seu talento invisibilizado
e ocultado pela história oficial. Dentro de tal contexto, havia uma
predominância de homens brancos que contavam com o “cérebro” de
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Além de não contar com apoio do marido, Mary Jackson ainda recebe
críticas suas pelo fato de, na visão dele, ela não cumprir com um papel
socialmente determinado para as mulheres: cuidar do lar e de sua família
ao insinuar que ela não se preocupava com a alimentação de seus filhos
porque estava ausente por causa de seu trabalho.
Para transpor a barreira judicial, Mary Jackson se vale de uma aguda
sagacidade feminina. Observemos a sua conversa com o Juiz durante a
audiência que julgará a sua Petição para estudar na Hampton High School.
Mary Jackson: “Excelência, você deveria entender a
importância de ser o primeiro.”
Juiz: “Como assim, Sra. Jackson?”
Mary Jackson: “Você foi o primeiro da [sua] família a
servir às Forças Armadas. O primeiro a ir a Universidade
George Mason. E o primeiro juiz estadual a ser
[renomeado] por três governadores consecutivos.”
Juiz: “Você andou pesquisando.”
Mary Jackson: “Sim, senhor.”
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no ano de 1926. Ela é a aluna mais nova da sala de aula em que estuda,
tendo adolescentes e jovens como seus colegas de turma. Devido a sua
extraordinária inteligência, seus professores incentivam os seus pais a
matriculá-la no Instituto da Virginia Ocidental, único colégio da região que
vai além do nono ano. Ali, Katherine teria direito a uma bolsa de estudo
integral, mas sua família precisaria se mudar para que a menina pudesse
aproveitar a oportunidade que surgiu.
Uma de suas professoras declara a família que, desde que começou
a lecionar, jamais viu uma aluna tão brilhante como Katherine. Ela diz
aos pais: “Vocês precisam ir. Precisam ver o que Katherine se tornará.”.
O coletivismo e a solidariedade se manifestam, seus professores fazem
uma arrecadação, entre si, de dinheiro para contribuir com a mudança e
o estabelecimento de Katherine e sua família mais perto da nova escola.
Depois disso, o filme dá um salto temporal para o ano de 1961. Em
uma estrada de Hampton, estado da Virgínia, estão Dorothy Vaughan,
Katherine Goble (depois que se casa pela segunda vez passa a se chamar
Katherine Jonhnson) e Mary Jackson com um carro avariado. As três são
amigas, cada uma, a sua maneira, demostra ser persistente e determinada,
além representar algum tipo de pioneirismo. Elas trabalham na sede
da NASA, em Tangley, que fica a 26 quilômetros de distância de onde
moram. Em uma conversa entre elas, aparecem opções que cotam para
se deslocarem: andar em um carro velho, ir a pé ou se sentar nos fundos
de um ônibus. Na última alternativa, aparece um primeiro indicativo,
nesta obra cinematográfica, da segregação racial existente na região
nessa época. No decorrer do filme, surgem outros flagrantes de racismo
institucionalizado ainda existente em algumas regiões dos EUA no início
dos anos 60.
A título de exemplificação, bebedouros, sendo que cada um traz um
registro para quem está destinado “White only” e “White colored”. Mostra-
se também a segregação racial dentro dos transportes coletivos, com
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de trabalho, ela foi confundida com uma faxineira por um dos seus futuros
colegas. Neste ambiente, se encontravam dezenas de homens, todos
brancos. A única mulher, além de Katherine, existente neste ambiente era
Ruth, a secretária de Harrison.
Apreciemos o primeiro diálogo entre as duas. Katherine diz: “Sou a
matemática do Sr. Harrison”. E Ruth responde: “Pegue a mesa dos fundos,
logo passarei o trabalho”. Outra vez, pelo fato de ser uma mulher negra,
teria de ir para os fundos. A segunda recomendação de Ruth foi: “Trabalhe
e mantenha a cabeça baixa.”. Katherine trabalhou intensamente, mas não
baixou sua cabeça, pelo contrário, lutou cotidianamente para conquistar o
devido respeito, como, por exemplo, poder assinar os cálculos e relatórios
que elaborava e receber café de um dos seus colegas.
O trabalho de Katherine foi fundamental para que a NASA pudesse
colocar o primeiro homem a orbitar no espaço. O astronauta John Glenn,
quem botou a sua vida nas mãos da matemática, disse que somente
decolaria depois que ela checasse todos os cálculos. Outro elemento que
merece destaque é o desenho feito por uma das filhas de Katherine. Nele,
a mãe é retratada dentro de um foguete, vista como uma astronauta.
Esta imagem antecipa uma façanha realizada em 1992 que teve
como protagonista Mae Jemison, a primeira astronauta negra da NASA2.
É importante ressaltar, ainda, que as conquistas das matemáticas da
NASA abriram um importante caminho tanto para mulheres de sua época
quanto as de períodos posteriores.
CONCLUSÃO
Ao transformar o impossível em possível, as protagonistas de Estrelas
além do tempo (2016), personagens reais, passaram a compor, também,
2 In https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2018/10/mae-jemison-conheca-
primeira-astronauta-negra-ir-para-o-espaco.html Acesso em Mar.2019.
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REFERÊNCIAS
CAÑAS, Francisco Chica; MARÍN, José Duván (2016). “La decolonización del saber
epistémico en la universidad”. Cuadernos de Filosofía Latinoamericana. 37(115), 285-302.
MELFI, Theodore (2016). Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures). EUA. 20th
Century Fox, (127 min).
RICOEUR, Paul (2005). A metáfora viva. Dion Davi Macedo (Trad.). São Paulo: Loyola.
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A FANTÁSTICA E INQUIETANTE
COTIDIANIDADE FEMININA DE AUGUSTA
FARO E RENAN ALVES MELO
Liliane de Paula Munhoz
Maria Aparecida de Castro
1. INTRODUÇÃO
Duas frases nos motivam as reflexões acerca dos textos de realismo
fantástico a que dedicamos nossa análise: “A boca de Dolores era limpa” (FARO,
1999, p.11) e “Virgínia esfrega seus seios contra a parede áspera, as pernas,
e desliza suas mãos imundas por todo o corpo” (MELO, 2012, p.50). Estas
passagens, extraídas dos contos “As formigas”, de Augusta Faro, e “Cavalos”,
de Renan Alves Melo, nos remetem ao universo feminino que ambos os
autores figurativizam nos livros A friagem (2001) e Mar escrito (2012).
Os contos destes autores goianos falam da sexualidade da mulher, numa
sociedade que, majoritariamente, a considera suja, maldosa, indecente e
obscena. Por um lado, a personagem Dolores, na meia idade, seria o que
poderíamos denominar “assexuada virtuosa”, cujo desejo sexual é interditado;
por outro, a jovem Virgínia, propriedade do pai, sofre com o abuso sexual
mais perturbador e inquietante que pode haver nesta nossa sociedade.
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2. O REALISMO FANTÁSTICO
Em Le récit fantastique: la poétique de l’incertain, Irène Bessière
chama atenção para o sujeito da narrativa fantástica. No relato,
diferentemente dos romances ou novelas realistas, o sujeito é passivo,
não está inserido numa contingência em que se interrogue a respeito
de si mesmo. Isto é, enquanto o sujeito de um romance como os de
Balzac pergunta-se sobre quem ele/ela é ou questiona-se acerca de
seu poder e valor pessoal, o sujeito da narrativa fantástica, em vez
disso, problematiza o enigma do acontecimento. Isto Tzevetan Todorov
(2007) já havia afirmado, mas Bessière avança na discussão do efeito do
fantástico sobre o sujeito.
O fantástico não é um gênero que privilegia o indivíduo. Os temas de
que tratam as narrativas fantásticas têm origem na alienação do sentido
das coisas banais, porque o sujeito está distante do mundo. Por isso, para
o sujeito, o espaço da narrativa não é um espaço para as ações, para a
atuação, mas para a percepção de que esse mundo estranho e, ao mesmo
tempo, cotidiano, se impõe. Não resta nada, a não ser sentir-se num jogo
de xadrez, em que a realidade o domina e lhe escapa.
Afirma Bessière que o relato fantástico surge do maravilhoso e
guarda desse gênero alguns traços, como a presença do sobrenatural e
o questionamento do acontecimento. Mas, enquanto no maravilhoso há
universalidade, porque ali estão representados o bem e o mal, com as devidas
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3. DOLORES E VIRGÍNIA
As personagens Dolores, de “As formigas”, e Virgínia, de “Cavalos”,
habitam em universos sombrios, angustiantes e carregados de uma
realidade fantástica, que transita entre o inverossímil e o real. Faro e
Melo se valem do insólito, do sobrenatural, para dar vida a duas mulheres
marcadas pelo desamparo e por uma dor psicológica pungente, que as
leva à loucura e no caso de Dolores, à morte.
O conto “As Formigas”, de Faro (2001), apresenta a ancestral
solidão de Dolores. Segundo Toledo (2001), a personagem Dolores
ganha vida num Goiás primordial, patriarcal, que remete ao cenário da
histórica Cidade de Goiás entre os séculos XVIII e XX. Dolores deseja
profundamente fugir da solidão, casar-se, ter um marido, relacionar-se
sexualmente, mas, para além de ter uma vida sexual ativa, Dolores quer
ser amada, quer ser feliz.
Dolores tem cinquenta longos anos vividos num intenso e doloroso
silêncio. Esse isolamento social, pode ser a explicação do porquê Dolores,
embora adulta, se mantenha na pré-adolescência, com desejos sexuais
reprimidos que a levam a ser consumida por formigas “imaginárias”.
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dominação que engole sua frágil e solitária vida, tira-lhe o sono agora
povoado por formigas.
Dolores não se sente amada, tem um “buraco” no peito, que poderia
ser preenchido por projetos de vida, por sonhos, esperanças e relações
de carinho e cuidado, mas não o é. O que preenche esse buraco são as
formigas que lhe devoram a vida.
A personagem de Faro não tem voz, nem ação, fica sempre à mercê
de vozes masculinas que comandam sua vida e ditam quem ela é, e como
deveria ser. A voz do irmão define quem Dolores deveria ser: ela é culpada
por estar sozinha e infeliz e seu destino já está traçado: é enlouquecer
sozinha. “[...] - Que nada. Mulher que não casa, dá nisso. Tem que ter marido
e filho para cuidar, senão endoida, cada qual de um jeito” (FARO, 2001 p.17).
Dolores só poderia ter uma vida feliz, saudável física e mentalmente,
se estivesse casada. No universo da personagem, o equilíbrio emocional, a
felicidade está condicionada a uma figura masculina, o marido. É impossível
ser feliz sem se casar. E não se pode fazer sexo sem casar. Não se pode fazer
sexo sem a “benção” da Igreja. É pecado, é sujo. E Dolores não se casou, então
está condenada à infelicidade e a não vivenciar o sexo pelo resto da vida.
Todo esse quadro de fragilidade emocional, solidão e desamparo
levam Dolores a não mais dormir, a sentir-se rodeada por formigas
“monstruosas” das quais não há como escapar. O desejo sexual reprimido
de Dolores, uma mulher de 50 anos, que nunca beijou, nunca experimentou
uma relação íntima de afeto, oprime-a de tal forma, que ela sente sua
boca cheia de formigas:
Faziam caminhos da boca pro chão, do chão pra boca. E
elas riam com seu riso de formiga. Estalavam os lábios,
cerravam os dentes, trincando, trincando; o barulho
parecia mesmo serrinha de brinquedo e Dolores acordava
pingando mel, ia pro chuveiro, escovava os dentes muitas
vezes no meio da madrugada. (FARO, 2000, p.13)
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O incesto entre pai e filha é uma das faces do humano mais difíceis de
encarar, face essa, que geralmente fica oculta entre quatro paredes, em
segredo velado, por vergonha, dor, medo:
Nunca saíra do campo. Nunca. E a inocência, a partir dessa
sempre eternidade, faz-se arquitetura companheira
de Virgínia. O pai de nomeação desnecessária,
indiscutivelmente um homem estranho. Muito estranho.
Homem cujo instinto animal imita-lhe a concordância das
coisas, reprime a discordância das coisas. Impulsivo e
sempre, com seu acre semblante. [...] Todos os dias liberta
fumaças escuras de seu cachimbo misturadas às suas
frases curtas, também com bordados de obscuridade.
(MELO, 2012, p.45)
Coisa é o que Virgínia é. “[...] Não tem sentimentos. Pior, não possui nem
a dúvida de ter lágrimas guardadas para algum instante” (MELO, 2012, p.46).
Certa vez, não faz muito tempo, tornou-se moça. Seu
quarto manchou-se até as medianas da parede pálida.
Sentia-se atraída pela coloração rubra e se pintara dela.
Camuflou todo o corpo de sangue. [...] Foi quando seu
pai, ao trazer a lavagem diária para Virgínia, estatificou-se
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A frase “[...] – Está vendo, menina, o que me faz fazer! (MELO, p.48) é
paradigmática para compreender a relação de violência (física e psicológica) e de
abuso entre pai e filha. A culpa é da vítima, a culpa é de Virgínia. A monstruosidade
da culpabilização da vítima, que se vê ferida, destroçada, não só pela violência,
mas também pela culpa, um dado intrínseco da violência sexual.
Numa matinal visita, seu pai, na ânsia por bucólica
orgia, não tranca a porta ao sair. Virgínia, depois de
algum tempo, se atreve a fugir de seu desmundo. É dia
de folga dos empregados e o ermo corre para quaisquer
horizontes. Tudo é novo, estranho, belo. Tudo é árvore.
Sai da Casa Grande Solavac e respira toda imensidão de
verde, de árvores. (MELO, p.50-51)
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O fantástico que permeia os contos de Augusta Faro e Renan Alves
Melo é o pano de fundo para uma reflexão sobre dramas humanos, dramas
femininos, atemporais e universais, que dialogam com a monstruosidade
em sua forma mais perversa, revestida de naturalização da violência
física, psicológica e sexual contra as mulheres, violência essa, sempre
revestida de segredo obscuro e cometida no âmbito doméstico, pelas
figuras masculinas mais íntimas. Os textos “As formigas”, de Augusta Faro
e “Cavalos”, de Renan Alves Melo, não são contos de fada, com finais
felizes. São contos que tratam de pesadelos monstruosos, calcados na
vida real e, por isso, muito próximos do universo dos/as leitores/as.
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REFERÊNCIAS
AUERBACH, Erich. (2011). Mimesis. São Paulo: Perspectiva.
LOPES, Yuri (2012). “Renan Alves Melo fala de temas fortes em livro de estreia”.
A redação. In https://www.aredacao.com.br/cultura/22284/renan-alves-melo-
fala-de-temas-fortes-em-livro-de-estreia Acesso em 12.Out.2018.
MELO, Renan Alves. (2012) Mar escrito: contos. Goiânia: R&F Editora.
PESSOA, Fernando. (1986). Livro do desassossego. V.6. São Paulo: Martins Fontes,
TOLEDO, Roberto Pompeu de. (2001). “Nota”. In: FARO, Augusta. A friagem:
contos. São Paulo: Global.
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Corpo e identidade:
o cabelo como símbolo de resistência
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Aceitar e lutar pela liberdade de seus cabelos acaba sendo uma forma
de representar a sua aceitação enquanto indivíduo, enquanto ser livre e
construtora da própria história. O conto termina com a afirmação: “A gente
só pode ser aquilo que é”. Valorizar seu cabelo representa a valorização
de si mesma.
Essa conquista da liberdade dialoga com o que defende Djamila
Ribeiro em seu texto “Mulata Globeleza: um manifesto”, publicado
originalmente no jornal Folha de São Paulo em 2016. Segundo a filósofa:
“Não aceitaremos mais nosso corpo narrado segundo o ponto de vista do
eurocentrismo estético, ético, cultural, pedagógico, histórico e religioso.
Não aceitaremos mais os grilhões da mídia sobre nosso corpo!” (RIBEIRO,
2018, p.144). Logo, aceitar e valorizar o corpo e ser, com liberdade, o que
se quer ser, é um grito de libertação e resistência.
No conto “Fio de ouro”, publicado no livro História de leves enganos e
parecenças, de 2016, a partir de elementos fantásticos, Conceição Evaristo
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REFERÊNCIAS
ANZALDÚA, Gloria. (2000). “Falando em línguas: uma carta para as mulheres
escritoras do terceiro mundo”. Édna de Marco (Trad.). Revista Estudos Feministas.
Florianópolis: UFSC, 8(1), 229-236.
ÁRAN, Pampa (2016). “Metamorfosis del fantástico literario”. In: GARCÍA, Flavio;
BATALHA, Maria Cristina; MICHELLI, Regina (Orgs.). (Re)Visões do Fantástico: do
centro às margens; caminhos cruzados. Rio de Janeiro: Dialogarts. p.67-86.
DAVIS, Angela. (2016). Mulheres, Raça e Classe. Heci Regina Candiani (Trad.). São
Paulo: Boitempo.
______ (2005). “Gênero e etnia: uma escre(vivência) de dupla face”. In: MOREIRA,
Nadilza M. de Barros & SCHNEIDER, Liane. Mulheres no mundo – etnia, marginalidade,
diáspora. João Pessoa: Idéia/ Editora Universitária – UFPB, p.201-212.
HARARI, Yuval Noah. (2016) Homo Deus: uma breve história do amanhã. Paulo
Geiger (Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.
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INTRODUÇÃO
Personagens monstruosos estão presentes no nosso legado narrativo
desde os primórdios. O que antes era representado através de deformações
físicas, como o personagem Quasímodo, do livro Notre-Dame de Paris
(1931), de autoria de Victor Hugo, ou mais distante ainda, através das figuras
mitológicas, hoje aparece metaforicamente figurado pelas minorias.
No ano em que a obra Frankenstein, de Mary Shelley, completa 200
anos, é importante refletir sobre como essa monstruosidade pode ser
representada na literatura, colocando o tema em pauta, a fim de fomentar
a discussão acerca dessas classes e as questões de poder ainda presentes
em nossa sociedade.
Para esta análise, serão comparadas duas personagens femininas, as
quais se opõem aos costumes da época em que estavam inseridas e que,
por isso, são alvos de julgamento: Capitu, personagem de Dom Casmurro
(Machado de Assis) e Marisa, de O tímido e as mulheres (Pepetela). Este
estudo propõe uma discussão acerca da figura da mulher na sociedade,
especialmente daquelas que se apresentam como vozes insólitas.
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É interessante observar que tais palavras nunca foram ditas, pois foram
silenciadas pelo narrador, inclusive de forma metafórica ao cobrir os braços
da esposa, entendendo que, como proprietário dos membros de Capitu,
também o era, por extensão, ou por metonímia – de todo o restante.
Por tudo o que reconhecidamente Capitu era, “mulher por dentro e
por fora, mulher à direita e à esquerda, mulher por todos os lados, e desde
os pés até a cabeça” (ASSIS, 2018, p.203), Bentinho – e a sociedade –
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sabia que ela era uma ameaça aos padrões patriarcais e precisava ter sua
voz calada, seus olhos fechados, seu corpo banido. Dessa forma, Capitu é
retirada de cena, exilada, perde seu espaço na narrativa, assim como seu
direito de fala.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
No confronto das duas Literaturas de Língua Portuguesa, Dom
Casmurro e O tímido e as mulheres foram observados tanto os aspectos
de aproximação quanto o de afastamento entre elas, em respeito ao
cumprimento e/ou distanciamento de padrões comportamentais para as
personagens femininas principais nos diferentes contextos nos quais se
subscrevem, a saber: Capitu na ambiência do Brasil pré-Republicano, de
meados a fins do século XIX, e Marisa, na Angola pós-independência. A
primeira foi acusada de adultério e não possui voz para desenvolver o seu
ponto de vista quanto à suspeita do marido. A segunda, por sua vez, é uma
radialista que vive de sua fala, mas que, mesmo assim, por estar inserida
em uma sociedade patriarcal, não foi capaz de se fazer ouvir.
Entendemos a alteridade no sentido da sociedade patriarcal que
previu o comportamento feminino fora dos padrões do ponto de vista
do desvio. Concebemos a personagem feminina do ponto de vista da
insubmissão franksteniana, que interroga padrões de conformação
comportamental no âmbito do feminino. No monstro, fronteiras se
tornam porosas, permeáveis e os trânsitos de intransitáveis se efetivam:
ao instaurar como sujeito da história o indivíduo do sexo masculino
heterossexual, o patriarcalismo relegou à instância monstruosa as
diferenças: o feminino, o homossexual – que, reprimidos, controlados,
provocam fascínio e terror.
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REFERÊNCIAS
Assembleia Geral da ONU. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Nações
Unidas, 217 (III) A, 1948, Paris, art. 1. In http://www.un.org/en/universal-
declaration-human-rights/ Acesso em 16.Mar.2019.
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E A NOIVA DE FRANKENSTEIN?
REFLEXÕES SOBRE A (DES)IMPORTÂNCIA
Rita de Cássia Silva Sacramento
José Carlos Felix
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Por essa razão, a leitura de romances sempre foi vista como uma
atividade menor e circunscrita ao universo feminino, assim como,
posteriormente, os cursos das universidades relacionados às letras e ao
ensino. Estas atividades eram consideradas naturais para as mulheres, pois
os homens tinham que ser médicos, engenheiros, arquitetos e advogados,
profissões socialmente mais valorizadas. Mesmo com a luta das mulheres
para garantir seu espaço na sociedade, esta não era uma tarefa fácil. O
preconceito com que eram vistas – e que perdura até os dias de hoje – é uma
clara demonstração da falta de aceitação a que um lugar mais importante
lhes fosse e seja reservado. Com efeito, como atestam os inúmeros enredos
das narrativas romanescas, o explícito conteúdo moral legitimava o lugar
que a sociedade burguesa impunha às mulheres, ao mesmo tempo em
que também mostravam que as que se atreviam burlar ou subverter tais
princípios e valores eram punidas por sua infringência. A ênfase pedagógica
naquilo que seria um romance de formação da leitora foi tão contundente
que se tornou uma espécie de gênero dentro do próprio gênero romanesco,
o conto moral, ou cautionary tale, em inglês. Exemplos desse tipo de
narrativa são inúmeros e em várias línguas, indo de ficção de horror como
Drácula, do irlandês Bram Stocker, a romances clássicos como Madame
Bovary, do francês Gustave Flaubert e O Primo Basílio, do português Eça de
Queirós. A despeito das peculiaridades nas narrativas de cada romance, em
todos eles, o leitor, ou melhor a leitora, encontra exemplos de heroínas que
ousaram a romper com as regras morais e sociais de seu tempo, recebendo,
cada uma a seu modo, a punição a contento; nos três casos dos romances
acima mencionados como em tantos outros: a morte. Contudo, mesmo que
as protagonistas se conformassem com o papel que lhes era designado, as
mesmas não estavam livres de sofrerem injustiças e pagarem o preço por
serem a parte mais fraca e “dispensável” da sociedade. É o que nos mostra
Mary Shelley em seu romance mais famoso: Frankenstein, or the modern
Prometheus (1818), que completa duzentos anos de publicação.
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Neste romance, mais uma vez, a despeito de o foco central recair sobre
as personagens masculinas, Victor Frankenstein e sua criação, o monstro,
as mulheres que povoam o enredo em Frankenstein desenham o panorama
social das famílias britânicas da época, tanto na classe burguesa quanto
daquelas pertencentes ao proletariado. Tais personagens femininas são
raramente lembradas ou notadas seja pela fortuna crítica da obra quanto
pelos próprios leitores e leitoras. Um caso a se observar inicialmente é da
personagem Margaret Saville, a grande leitora das cartas de Robert Walton e
do relato de Victor Frankenstein. Margaret é uma personagem absolutamente
necessária para que o leitor possa ter acesso à história. Nenhuma outra ação
cabe a Margaret a não ser a leitura, revelando e afirmando o status do mais
completo ócio desta mulher burguesa em relação à sua vida doméstica e sua
alienação no que se refere o mundo do trabalho.
Ele então me disse que começaria seu relato no
dia seguinte, quando eu tivesse um tempo livre.
Essa promessa arrancou-me os mais calorosos
agradecimentos. Resolvi que vou registrar, todas as
noites, quando não estiver ocupado, tudo o que ele me
relatou durante o dia, tanto quanto possível em suas
próprias palavras. Se eu estiver ocupado, farei pelo
menos algumas anotações. Esse manuscrito sem dúvida
lhe dará grande prazer; mas para mim, que o conheço e
que ouvi a história de seus próprios lábios, com quanto
interesse e simpatia não o lerei algum dia no futuro!
(SHELLEY, 2016, p.49)1
1 He then told me, that he would commence his narrative the next day when I should be at
leisure. This promise drew from me the warmest thanks. I have resolved every night, when I
am not engaged, to record, as nearly as possible in his own words, what he has related during
the day. If I should be engaged, I will at least make notes. This manuscript will doubtless
afford you the greatest pleasure: but to me, know him, and who hear it from his own lips,
with what interest and sympathy shall I read it in some future day! (SHELLEY, 2016, p.48)
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Esta ação não apenas visava manter o prazer de leitura da irmã, mas garantir
que a experiência de Victor ficasse registrada para leitura futura.
Outras personagens femininas que ganham visibilidade na história são
as jovens Justine Moritz, Agatha e Safie. Justine representa as jovens vindas
das classes sociais menos abastadas, cujo infortúnio lhes impossibilita
de conseguir apoio moral ou mesmo material dentro da própria família,
ficando à mercê da “compaixão” de uma família burguesa que lhes oferece
um refúgio e sobrevivência em troca de seu trabalho na criadagem. Mary
Shelley explora brilhantemente essa situação de subalternidade e de
estigma social vivido por Justine ao ser ainda acusada de um crime que não
cometeu, sendo julgada e condenada à morte. Parte considerável do motivo
da pena foi a desconfiança da sociedade em torno de alguém que estava na
família apenas como um serviçal, sem direito a nenhuma credibilidade.
‘Ela é inocente, minha Elizabeth’, disse eu ‘e isso será
provado. Nada tema, apenas permita que seu espírito
se anime com a garantia de sua absolvição’.
‘Como você é bondoso! Todo mundo acredita que ela
seja culpada, e isso me deixa infeliz, pois eu sei que é
impossível. E ver todo mundo com uma predisposição
desse tipo me deixa desesperada e sem qualquer
esperança.’ Ela se pôs a chorar. (SHELLEY, 2016, p.115)2
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3 In the corner, near a small fire, sat an old man, leaning his head on his hands in a
disconsolate attitude. The young girl was occupied in arranging the cottage; but presently
she took something out of a drawer, which employed her hands, and she sat down beside
the old man, who, taking up an instrument, began to play, and to produce sounds, sweeter
than the voice of the thrush or the nightingale. It was a lovely sight even to me, poor wretch!
Who had never beheld aught beautiful before. The silver hair and benevolent countenance
of the aged cottager, won my reverence; while the gentle manners of the girl enticed my
love. (SHELLEY, 2016, p.154;156)
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Lacey e vai viver no seio da família De Lacey. Sua importância para a história
diz respeito à aprendizagem do monstro, pois sendo estrangeira, precisa
aprender a língua local assim como o monstro, que não sabe falar ou ler.
Eu passava os meus dias atento, para que pudesse
dominar mais depressa a linguagem. Posso orgulhar-
me de ter aprendido com mais rapidez do que a árabe,
que entendia muito pouco e falava com acentos
entrecortados, enquanto eu compreendia e podia
repetir quase toda palavra que era dita. Enquanto
progredia na fala, aprendi também a ciência das letras,
que era ensinada à estrangeira. Isso abriu diante de
mim um vasto campo de deslumbramento e prazer.
(SHELLEY, 2016, p.171)4
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[…] She had, at first, yielded to our entreaties; but when she heard that her favourite was
recovering, she could no longer debar herself from her society, and entered the chamber
long before the danger of infection was past. The consequences of this imprudence were
fatal. On the third day my mother sickened; her fever was very malignant, and the looks of
her attendants prognosticated the worst event. On her death-bed the fortitude and benignity
of this admirable woman did not desert her. (SHELLEY, 2016, p.62)
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6 When I quitted Geneva, my first labour was to gain some clue by which I might trace the
steps of my fiendish enemy. But my plan was unsettled; and I wandered many hours around
the confines of the town, uncertain what path should pursue. As night approached, I found
myself at the entrance of the cemetery where William, Elizabeth, and my father, reposed.
I entered it, and approached the tomb which marked their graves. Everything was silent,
except the leaves of the trees, which were gently agitated by the wind; the night was nearly
dark; and the scene would have been solemn and affecting even to an uninterested observer.
The spirits of the departed seemed to flit around, and to cast a shadow, which was felt but
seen not, around the head of the mourner.
The deep grief which the scene had at first excited quickly gave way to rage and despair. They
were dead, and I lived; their murdered also lived, and to destroy him I must drag out my
weary existence. (SHELLEY, 2016, p.288)
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7 “[…] For years I had been planning to take a discarded body and discarded brain from our
social midden heap and unite them in a new life. I now did so, hence Bella.” (GRAY, 1992, p.33-34)
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REFERÊNCIAS
BLOOM, Harold (1995). Um mapa da desleitura. Thélma Médici Nóbrega (Trad.).
Rio de Janeiro: Imago.
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FLAUBERT, Gustave (2011). Madame Bovary. Mário Laranjeira (Trad.). São Paulo:
Penguin Classics Companhia das Letras.
QUEIRÓS, Eça. O primo Basílio. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2015.
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INTRODUÇÃO
Partindo dos conceitos de anormalidade de Michel Foucault e
monstruosidade-feminina de Barbara Creed, o presente capítulo analisa
a obra literária Carrie, a Estranha publicada em 1974 por Stephen King
e sua versão cinematográfica homônima de 1976 dirigida por Brian de
Palma. Ambas narram a história da adolescente Carrie White, uma tímida
garota, alvo de inúmeras humilhações por parte de seus pares escolares
e de sua própria mãe. O grande diferencial da personagem e o leitmotiv
das narrativas é que ela possui poderes telecinéticos, fortalecidos com a
chegada de sua menarca. Desta forma, nota-se uma associação entre o
feminino e o monstruoso pautada precisamente nas funções corporais e
reprodutoras das mulheres.
A concepção do feminino como monstruoso e anormal é antiga
e comum em diversas sociedades, evocando o medo da diferença
corporal e da sexualidade feminina, como se existisse algo intrínseco no
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A MONSTRUOSIDADE-FEMININA NO HORROR
A experiência emocional do horror e do medo está presente em
praticamente todas as sociedades e culturas humanas. O que atualmente
consideramos histórias de horror destinadas ao entretenimento não são uma
exclusividade da literatura ou do cinema, mas fazem parte de uma antiga
tradição que incorpora crenças e práticas religiosas, mitologia, folclore e
diversas outras formas culturais. O horror artístico, aquele que atravessa
diversas formas de arte e mídia, é conduzido, na grande maioria das vezes, por
um elemento ameaçador, impuro e/ou repugnante: o monstro, personagem
mutável, cuja forma é histórica e culturalmente construída.
É inegável que o grande antagonista do gênero de horror é o monstro,
categoria extremamente ampla e complexa que engloba personagens
que não se encaixam ou violam algum esquema de ordem cultural, social
e natural, ameaçando uma suposta normalidade, devendo ser excluídos
ou contidos (CARROLL, 1999). Desta forma, alguns monstros podem
ser vistos como a personificação de ameaças ou medos particulares
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4 Um bom exemplo dessa conexão é o filme Os Filhos do Medo (1979) do diretor canadense
David Cronenberg.
5 Essa associação não é novidade, já que por muito tempo, devido à alta quantidade
de mulheres que morriam ao dar à luz, a maternidade esteve associada à morte, criando
a ambiguidade de que o feminino poderia fornecer a vida e também anunciar a morte
(FISCHER, 1996).
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DO MONSTRO AO ANORMAL
O feminino é constantemente imaginado como monstruoso, seja em
produções cinematográficas mais antigas como Sangue de Pantera (Jacques
Tourneur, 1942) e A Mulher Vespa (Roger Corman, 1959) ou mais recentes,
como a série de filmes Alien iniciada em 1979. Desta maneira, representações
negativas do feminino geralmente ganham vida pela figura do monstro.
Entretanto, apesar deste ser crucial para o desenvolvimento de todo o
gênero, literário ou cinematográfico, no caso de algumas personagens, surge
outro conceito que se mostra igualmente central: o de anormalidade.
A noção de anormalidade é interessante para explicar personagens
femininas que não se caracterizam completamente como monstruosas.
Apesar de serem enquadradas como perigosas, elas não são seres
fantásticos, sendo inteiramente humanas e não possuindo nenhuma
deformidade ou característica intersticial visível. Ao contrário dos monstros
clássicos, cuja monstruosidade é manifestada fisicamente, assemelham-se a
mulheres comuns (LAROCCA, 2016). Sendo assim, uma das características
que as tornam ameaçadoras, originando o horror e as aproximando da
categoria de monstro, é a loucura ou o despertar da sexualidade, como
veremos a seguir em Carrie. Como Michel Foucault afirmou, o anormal é um
monstro cotidiano, um monstro banalizado (2014, p.49).
De acordo com Foucault, a problematização do que é o anormal
perpassa importantes questões como sexualidade, monstruosidade
e loucura. No que tange a questão do monstro humano, uma das três
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7 Apesar de ser uma personagem marginal nos enredos, a professora possui um papel chave
ao incentivar Carrie a se arrumar e ir ao baile. Sendo assim, oferece um caminho para atingir
uma feminilidade tradicional e culturalmente construída por meio da vaidade, com dicas de
postura, maquiagem e cabelo. Agindo como um modelo para Carrie, ela constrói um caminho
para um mundo adulto diferente das repressões impostas pela mãe (LAROCCA, 2016).
8 Existe um incidente no livro onde Carrie, ainda criança, espia uma vizinha que tomava
sol no quintal ao lado e quando punida por sua mãe faz pedras caírem do céu, atingindo
somente a casa em que as duas moravam. A referência à uma manifestação precoce dos
poderes telecinéticos não foi abordada na narrativa cinematográfica.
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11 Para uma análise aprofundada de Sue e de outras personagens femininas do filme, ver
LAROCCA, 2016.
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12 No livro, a personagem sai do ginásio às pressas e utiliza seus poderes para trancar
todos no local, provocando um incêndio que termina explodindo a escola.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os temas centrais de ambas as narrativas são a sexualidade, o corpo
feminino e os perigos que emanam das mulheres e de suas funções
reprodutoras. Ao longo da história somos confrontados com uma associação
entre a figura feminina e forças sobrenaturais, onde o corpo, especialmente
o adolescente, é o lugar de embate entre o Bem e o Mal, possuindo fortes
associações com o desviante, o monstruoso e o anormal. Além disso, tanto
a narrativa literária quanto a cinematográfica são repletas de estereótipos
femininos famosos como a heroína virginal ou que possui a sexualidade
sob controle; a vítima; a mãe e a antagonista com poderes sobrenaturais
fora do controle. Concomitantemente, a narrativa oferece uma visão de
puberdade, corpo e maternidade abjetas e desviantes.
O desfecho trágico de Carrie sugere sutilmente que as mulheres,
principalmente após a puberdade, encontram-se em um estado perigoso,
constantemente ameaçadas por forças que podem levá-las a cruzar
a fronteira entre o normal e o anormal, cometendo atos violentos e
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perigosos. Contudo, essa não é uma novidade inventada pelo horror. Uma
das grandes preocupações dos livros de medicina dos séculos XVIII e XIX
eram as jovens mulheres, como Carrie. Acreditava-se que, no momento
de puberdade, ou seja, de passagem para o corpo apto para a reprodução,
diversos acidentes poderiam comprometer a mente e o comportamento
(MARTINS, 2004).
De tal forma, a história de Carrie White, seja em sua versão literária ou
cinematográfica, trabalha com questões há muito tempo discutidas sobre
as diferenças anatômicas entre mulheres e homens, empregando temas
antigos acerca da sexualidade e do corpo, assim como o inconsciente
medo e desconfiança em relação à figura feminina. Sendo assim, é
possível ter um vislumbre de como o cinema e a literatura dialogam com
questões muito amplas, demonstrando como ocorrem apropriações,
trocas e ressignificações culturais entre contextos históricos e linguagens
diferentes e distantes.
Recorrendo à linguagem do fantástico e do horror, o livro e o
filme abordam fantasias e medos históricos em torno do feminino,
associando-o à violência, monstruosidade, contágio, loucura e morte. É
interessante questionar como fantasias e medos claramente masculinos,
relacionados à uma suposta diferença corporal feminina, constroem a
Mulher como perigosa, anormal e abjeta. A representação do feminino
anormal e monstruoso, se insere assim em um projeto muito mais amplo,
que procura perpetuar a crença de que a pretensa natureza unitária
das mulheres é profundamente conectada à sua caracterização como
diferente sexual do homem.
O objetivo deste trabalho foi discutir os conceitos de monstruosidade-
feminina e anormalidade, entrelaçando-os com questões de gênero,
sexualidade e corpo. Por meio da análise de Carrie procuramos demonstrar
como tais conceitos podem enriquecer as discussões sobre cinema e
literatura de horror, principalmente na análise e problematização das
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REFERÊNCIAS
CARRIE, a Estranha (1976). Direção Brian de Palma. Califórnia: United Artists.
(98min), sonoro, legenda, color., 35mm.
HOGAN, David J (1997). Dark Romance: Sexuality in the Horror Film. North
Carolina: McFarland & Co Inc Pub.
KING, Stephen (2009). Carrie: A Estranha. Adalgisa Campos da Silva (Trad.). Rio
de Janeiro: Objetiva.
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______. (2004). Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004.
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Após uma análise das ações e reações dos atores envolvidos na narrativa
de Villalobos, é possível identificar o fato do abate dos animais como sendo
uma conduta de certos indivíduos, no caso contrabandistas, foras da lei
que burlam normas, em uma situação atípica para o cidadão comum, mas
que para um bando de facínoras acostumados a toda espécie de crime, foi
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negar que, por mais que retrate a realidade está limitado ao fantasioso,
ao ficcional. Vale lembrar que para Todorov, “o fantástico é a hesitação
experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, em face de
um acontecimento aparentemente sobrenatural”. Esta é a concepção do
fantástico que se aplica ao irreal, ao imaginário, aos elementos fictícios
das obras literárias. Entretanto, há também o efeito fantástico na ficção
contemporânea. Para melhor esclarecimento acerca dessa questão, Filipe
Furtado faz uma esclarecedora reflexão no já citado E-dicionário no qual
em certa medida faz uma advertência conclusiva: “perante o grande
número e a heterogeneidade dos textos, convém examinar com alguma
atenção aquilo que invariavelmente surge em qualquer deles e justifica,
portanto, a sua subsunção no modo fantástico”.
Para concluir, o que Furtado deixa transparecer é que, apesar de
muito presente, a expressão “modo fantástico” produz óbices quanto
ao uso e adequação por parte dos elementos narrativos que se querem
considerados como tal. Em Festa no Covil, conforme já enfatizado, o
autor contemporâneo busca trazer, à luz da literatura, as ocorrências e
consequências de um fenômeno social, moral e governamental presente
no mundo da pós-modernidade e que tem assolado as bases da estrutura
social dessa sociedade, na qual todos fazemos parte.
REFERÊNCIAS
BATALHA, Maria Cristina; GARCIA, Flávio (Org.) (2012). Vertentes teóricas e
ficcionais do insólito. Rio de janeiro: Editora Caetés.
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SARTRE, Jean- Paul (2005). Situações I. Cristina Prado (Trad.). São Paulo: Cosac Naify.
VILLALOBOS, Juan Pablo (2012). Festa no Covil. Andreia Moroni (Trad.). Adam
Thirlwell (Posf.). São Paulo: Companhia das Letras.
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1. INTRODUÇÃO
Este artigo funda o início do nosso trabalho de analisar a novela
“Poética de las sirenas” do livro Diez poemas sobre el amor (2017),
escrito pela argentina Teresa de Mira Echeverría, como corpus literário. Já
produzimos para o Congresso Brasileiro de Cibercultura (ABCIBER 2018),
no artigo “Sereias hackers na literatura ciborgue: três ficções científicas
hispanófonas” (no prelo), uma visão comparatista de três obras, incluindo
a referida de Echeverria. No entanto, se ali houve um diálogo com a
cibercultura, agora fabricamos um conteúdo que inaugura outra etapa, a
qual se propõe a iniciar uma radicalização na compreensão de “Poética de
las sirenas” como único texto literário. Pontuamos aqui, então, a abertura
para um aprofundamento desta obra por outra perspectiva, a da reflexão
sobre ela como máquina de criação monstruosa – contra a tradição
(GLISSANT, 2019) - de multiplicidade.
“Poética de la sirenas” (2017) apresenta uma escrita não
convencional, “ciencia ficción pura, los híbridos entre lo futurista y lo New
Weird (ECHEVERRÍA, 2018)”. Dessa forma, e também devido aos jogos
metaficcionais (BERNARDO, 2010), lança-se para um limiar estético, busca
tocar o fora (LEVY, 2011). Afinal, poesia e ciência, segundo Flusser, (2007)
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2. PROBLEMA
Trazemos aqui umas questões preliminares desta pesquisa que
estamos iniciando. a) Como a monstruosidade da poesia genética – fusão
entre arte e ciência da biologia – presente na obra produz literatura viva?
1 Ilustração de Cecilia García (JURADO, 2019)
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demiurgo do amor, da beleza, sendo que sua ligação com Ada é um modo
de chegar a si mesmo. Em Continuidad de los parques (CORTÁZAR, 2011),
a continuidade é transmitida entre a ficção e o leitor, que estabelece um
movimento de catábase (FERNANDES, 1995) com a ficção, como fez Orfeu
(GRIMAL, 2005, p.340) seduzindo as sereias e os monstros nos Infernos.
É como a leitura encanta o fora (LEVY, 2011) em revelação. Conforme lê,
mergulha na narrativa, está dentro dela. Eleazar, com Ada, uma criatura,
entra, analogamente, em uma história dentro do enredo principal,
rompendo com a estrutura tradicional de escrita. Podemos extrapolar a
conexão dele com Ada com a correspondência entre leitor e obra, coautor e
criatura, marcada pelo amor, tal qual expõe o conto Felicidade Clandestina
(LISPECTOR, 1998), cuja leitura gera uma felicidade, uma desterritorialização,
um devir (DELEUZE, 2012, p.11) transgressor e prazeroso.
Essa dupla captura desenha uma conjunção apolíneo-dionisíaca capaz
de autonomizar Eleazar e o leitor- os dois são análogos, humanos em
contato com ficção- como uma obra de arte (NIETZSCHE, 2007, p.28). Se
o aspecto apolíneo cria as formas, como a estrutura narrativa de “Poética
de las sirenas”, o dionisíaco as rompe, destrói o princípio de individuação
(2007, p.24). Dessa maneira, o leitor passa a sentir-se parte do todo, a
embriagar-se nele.
Ada estava entristecida por crer que Rickman não a desejava. Ela sai
do laboratório e passa a caminhar pelo mundo, onde encontra um casal
de namorados e os inveja, embora o rapaz, mais à frente, vá se relacionar
com seu próprio filho. O que ela anseia pode virar realidade, assim como
um poema (FLUSSER, 2007). Antes de Ada e Eleazar permanecerem juntos e
terem um bebê-sereia, ela visualizava essa criatura, sem entender, em uma
esfera idêntica àquela existente no quadro metaficcional de Escher (2018),
Hand reflecting sphere. Ela ainda não conhecia seu poder de criação.
Voltando à cena, a mulher-poema observa que sua sombra possuía
escamas brilhantes e dizia “Seré tu sombra, hecha de silencios y espera.”.
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Eleazar explica que esse discurso e a sombra são inspirados nos cadernos de
Ada, nos começos de seus sonhos, mas com a interpretação dele, afirmando
que, nessa apropriação da sombra, identifica-se com esta (ECHEVERRÍA,
2017). Assim, o homem que geria o laboratório, demiurgo, passa a desejar
ser uma sombra de um poema-mulher. Os críticos literários e leitores
também anseiam ser a sombra de um poema, observar seus silêncios.
Eleazar, isso posto, declara: “Ada, tengo frío”. Logo, é ele quem se
ampara, se refugia nela, invertendo a posição convencional do homem
na sociedade machista. Ada, por sua vez, reconhece-se com “un
mundo interior más vasto que la realidad misma”. O casal, à vista disso,
compreende que produzirá uma obra conjunta, “una creación poético–
genética diseñada, a partes iguales, entre Ada y Eleazar”, engendrando o
primeiro ser nascido da união de um humano e um poema (ECHEVERRÍA,
2017), fusão de literatura e vida.
Eleazar afirma para Ada: “Tú eres el poema que crea poemas. La
personificación del verso primordial que nos ha creado a nosotros, los
humanos. Nosotros los nacidos de la poesía y no al revés… Como tal vez haya
sido desde siempre.” Desse modo, Ada, ao permitir relacionar-se com um
criador, aponta para os humanos sua origem remota proveniente da poesia,
do verbo. Ela é a Eva, pedra filosofal, portadora de luz, que nos enreda como
o quadro Drawing hands de Escher (BERNARDO, 2010, p.107), no qual não
apenas a realidade cria ficção, mas também a ficção cria realidade.
Um ouroboros é articulado, portanto, não apenas entre os dois
personagens, mas também entre a história e o leitor – aquele que percebe
como esse resgate ao mítico é um apelo para um povo nômade e uma língua
estrangeira (DELEUZE, 2012, p.14). É a atitude de risco e de resistência
de escavar sulcos na língua, fabricando espaços-tempos alternativos ao
poder, sempre inacabados. Assim, transgride-se a visão dominante da
sociedade capitalista, cria-se interstícios, vazios na linguagem atravessada
pelo fascismo e pela sociedade de controle (DELEUZE, 2010, p.223-230).
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Figura 3 - Genética3
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5. CONCLUSÃO
“Poética de las sirenas” (2017) é uma contundente novela que discute
temas caros à atualidade. Cumpre com sua função social, ampliando
nossos horizontes, dissolvendo preconceitos, iluminando, como o fósforo,
a busca de si e do outro, da arte, do fora (LEVY, 2011), do amor, da
imaginação, da grandeza, da transmutação da literatura em realidade,
da multiplicidade sexual e de escrita – transdisciplinar graças à ficção
científica. Sai-se da leitura com o real revirado devido ao risco existente
na sondagem do silêncio e do canto, cuja sedução transforma o leitor em
um ser híbrido, fabricado de código genético e literário. É ingerido pela
ficção e a deglute, leitor e poesia elixires da criação estética e da vida.
REFERÊNCIAS
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Autêntica.
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LEVY, Tatiana (2011). Salem. A experiência do fora. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
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história menos direta – no que pese o fato de que não deveria ser muito
difícil de se perceber algo que salta aos olhos desde a revista número 1. Nas
palavras de um roteirista que passou pelas páginas mutantes:
As metáforas contidas dentro do conceito dos X-Men
deveriam ser óbvias. Na verdade, elas são para serem
óbvias. Mutantes são diferentes. Mutantes são odiados
e temidos. Mutantes são uma minoria. Mutantes são
discriminados pelo que eles são. Soa familiar? Aplique
a metáfora mutante a qualquer minoria, qualquer um
que se sente sozinho... E funciona. Para mim, isso faz dos
mutantes uma metáfora extremamente potente. (CASEY,
1999, Apud DALTON, 2011, p.83 - Tradução nossa)
Com toda essa ligação com aspectos do mundo real desde a sua
criação, é natural também que o principal tema abordado nas páginas das
revistas mutantes seja um tema extremamente caro para os grupos aos
quais os heróis fazem referência, ou seja, o preconceito para com o outro,
com o diferente. Nas palavras de um de seus criadores sobre o que o levou
a abordar tais temas nas revistas dos X-Men:
Vamos deixar as coisas claras, preconceito e racismo estão
entre as mais mortais doenças sociais que atormentam
o mundo hoje. Porém, diferentemente de um grupo de
supervilões fantasiados, elas não podem ser paradas com
um soco no focinho, ou a energia de uma arma de raios.
A única maneira de destruí-las é as expondo – revelando
o mal insidioso que elas realmente são. (LEE, 1968, Apud
DALTON, 2011, p.83 – Tradução nossa.)
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carro com sua esposa grávida. Um acidente ocorre, ambos escapam, mas
sua mulher entra em trabalho de parto. Stryker a ajuda e vê que o filho
deles é um mutante – provavelmente por ser um dos mutantes que nasce
com sua forma alterada. Ele, encarando o que ele chama de aberração,
imediatamente mata o filho e, quando sua esposa pergunta pelo bebê, ele
a abraça e quebra seu pescoço pelo que ela tinha acabado de fazer, isto é,
ter gerado um mutante. Ao procurar respostas para o ocorrido, Stryker se
convence de que aquele pecado não era dele, mas, sim, de sua esposa e que
ela era o veículo usado por Deus para mostrar a ele o plano mais insidioso
do demônio contra a humanidade: os mutantes. E toma para si o dever de
salvar a todos do que ele considera um terrível mal.
Somos, então, levados ao Madison Square Garden, onde o Reverendo
Stryker anunciou que fará o sermão mais importante de sua carreira –
e somos informados de que é apenas um teatro para o uso de Xavier
como arma para assassinar todos os mutantes. Os X-Men ficam indecisos
se devem entrar ou não, pois atacar Stryker seria mostrar a todos que
ele tinha razão ao dizer que os mutantes são uma ameaça. Magneto,
menos preocupado com os meios, invade o Garden, onde uma multidão
já se encontrava, e ataca Stryker. Usando de Xavier, o reverendo quase
nocauteia Magneto e este cai no meio da multidão que pretende linchá-
lo, o que só não acontece graças à intervenção policial. Aproveitando da
distração de Magneto, os X-Men entram nos bastidores para liberar Xavier
da máquina que, a essa altura, já está causando sangramento e tontura
em todos os mutantes. Os X-Men conseguem livrar Xavier e destruir a
máquina, mas não antes de Anne, a Purificadora mais fiel de Stryker,
começar a sangrar e não entender o porquê. Horrorizado, Stryker revela o
motivo e a joga do alto do palco em frente às câmeras de TV para a morte
quando ela quebra o pescoço na queda.
Vendo a morte de Anne, Magneto questiona se essa é a palavra divina,
mas a maior parte da multidão pouco se importa com o ocorrido e diz que
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isso é culpa dos mutantes e partem pra cima dele. Os policiais impedem
uma vez mais. Os X-Men chegam e contam para Stryker que o plano
dele falhou e Ciclope entra no debate sobre a humanidade ou não dos
mutantes. Stryker aponta para Noturno, um mutante com uma aparência
demoníaca, e questiona se aquilo pode ser chamado de humano. Quando
Kitty defende a humanidade do amigo, Stryker aponta a arma para ela.
Um tiro é escutado e vemos Stryker sangrar após ser atingido no ombro
por um policial. A multidão se revolta com o policial e, confrontada pelo
resto da polícia com o fato de que ele só atirou pelo fato de o Stryker estar
ameaçando com uma arma uma garota que nada fez, apenas questiona o
que os policiais vão fazer com os “mutunas”. A polícia diz que o mesmo que
farão com a multidão: nada, pois nada chegaram a fazer de fato, apenas
Stryker será preso. A história segue por umas poucas páginas onde vemos
Stryker tentando argumentar que estava sofrendo perseguição religiosa
e descobrimos também que muitos de seus súditos argumentam agora
que a ideia de Stryker estava certa, apenas os métodos errados. Alguns
desfechos mais acontecem, mas nada relevante para o nosso tema.
Muitas poderiam ser as abordagens em relação aos tópicos
apresentados na história. Entretanto, focaremos em como, na história,
são retratadas diferentes faces da sociedade estadunidense, tanto a que
abraça a multiculturalidade quanto a que pretende plasmar as diferenças
em um projeto de igualdade que castra as individualidades que destoam
do que julgam ser o ideal, e o caminho que o embate entre tais facetas
pode nos revelar.
Começando pelas minorias enquanto grupo social, é importante
estabelecer quais são as três maneiras que Claremont usa para conceder
uma maior verdade e representatividade no retrato dos mutantes como
metáfora das minorias.
O primeiro deles é o fato óbvio de que, uma vez que eles são diferentes
da norma e que seu número é menor do que o da quantidade de seres
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“real”, num contexto específico, permite que esse mesmo real – agora
questionado – passe a ser visto de modo incongruente, estilhaçado e
inconstante. Dessa forma, dentro dos enredos ficcionais, é aquilo que
salta aos olhos do leitor para provocar questionamentos vários sobre os
acontecimentos narrativos, os temas escolhidos, e, ainda, os efeitos de
sentido criados, na narrativa, a partir da construção do fenômeno.
Ao pensarmos no público para quem Lygia Bojunga escreve, nos
deparamos com crianças e adolescentes em sua maioria, ou seja, um
público acostumado a lidar com temas que sejam “condizentes” com a
sua idade; ou, pelo menos, condizentes com o que a sociedade acredita
ser adequado para essa faixa etária. Contudo, a literatura surge com
outra perspectiva de lidar com a realidade, através de críticas diretas e
indiretas sobre os mais diversos assuntos, uma vez que, por mais que seja
delicado aceitar, a nossa realidade comunga de dores, perdas e situações
complexas independente da idade que temos.
A autora trabalha principalmente com a morte, na infância, e com os
traumas que esta pode proporcionar. Na obra Corda bamba, vemos o tempo
todo ponderações sobre o real e o sonho a partir de situações vividas pela
protagonista Maria: uma garotinha de apenas dez anos que presencia a
morte de seus pais, durante um espetáculo na corda, em um circo. Maria
cria uma travessia rumo ao seu inconsciente ao tentar lidar com todas as
atribulações e aflições que pairam em sua vida a partir de então.
O fato de Maria presenciar a morte dos pais durante o espetáculo
circense corresponde a um “fato” narrativo; no entanto, entre a experiência
desse fato e a sua elaboração, na cabecinha da menina, há um difícil caminho.
É exatamente nesse limite entre o “real” e a sua representação que o insólito
ganha força e espaço. Lygia Bojunga consegue representar – por meio de sua
escrita plurissignificativa – o tamanho da dor da protagonista, a personalidade
autoritária e individualista da avó materna (personagem que cria Maria) e a
ânsia de liberdade da menina, fazendo com que alcancemos a realidade vivida
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por Maria ao nos depararmos, por exemplo, com a amnésia da garotinha após
o trágico falecimento dos pais. O trauma da menina está diretamente ligado
a esse acontecimento insólito, visto que ele faz com que ela tente lidar, de
alguma forma, com tantas dores, diariamente.
Lygia ainda apresenta personagens marginalizados pelo sistema, como
Márcia, Marcelo, Barbuda, Foguinho e a Velha que representam a minoria
que não possui voz em nossa sociedade. Mas também apresenta aqueles
que oprimem e impõem suas ações, como a avó e a professora particular
de Maria. Não podemos deixar de observar a nossa protagonista – outra
figura marginalizada pelo sistema – afinal, é uma criança órfã que além de
não ser ouvida é subjugada às vontades da avó.
Na narrativa Corda bamba, Lygia, ao dar vida à garotinha Maria,
faz com que entendamos de maneira espetacular – através de seus
enfrentamentos cotidianos – que a morte e a dor têm espaço, sim, na
infância. Diante do exposto, vemos que muito embora as crianças tenham
força para lidar com essas situações, os acontecimentos mantêm o seu
caráter insólito, numa perspectiva contextual, pois não é esperado que
em tal fase da vida elas vivam essa realidade tão dolorosa; em outras
palavras, o romance foge de uma rotina esperada pela sociedade, abrindo
um leque de possibilidades outras – todas elas factíveis – que nos fazem
lembrar que o existir é invariavelmente contingente.
Sabemos que não é comum uma criança perder a mãe e o pai ao
mesmo tempo, e menos comum ainda, é que isso ocorra num espetáculo
de circo, local de contemplação da arte e da beleza. Mas – sim – isso
ocorre com a protagonista Maria, e ela presencia toda a tragédia no auge
de sua infância, aos dez anos de idade, quando – como criança e, portanto,
representante de uma minoria – ainda é tão difícil ter voz, especialmente
num momento em que a sua fragilidade inerente – como criança – está
potencializada pela experiência do trauma resultante da morte, em
espetáculo, de sua mãe e de seu pai.
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