Relatório Final

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O DONO DO ORI: RELIGIOSIDADES BRASILEIRAS

NOS ESTAMENTOS A E B

Autor: Pedro Lourenço de Luna Nogueira


Orientador: José Bizerril Neto

Faculdade de Psicologia
Brasília, 2o semestre de 2010
1
Resumo

Recentes estudos e censos indicam que membros dos estamentos sociais C e D, ou camadas
ditas populares, negras, historicamente identificados como praticantes de Candomblé, tem
alterado sua orientação religiosa ao aderir ao Neopentecostalismo, e que membros de
estamentos sociais A e B, as ditas camadas abastadas, brancas, historicamente identificados
com a prática do Catolicismo, tem feito o movimento inverso, ao ir de uma matriz religiosa
européia, católica, para uma matriz africana, ou para outras matrizes religiosas não-cristãs. A
proposta deste estudo é compreender esse movimento sócio-histórico ao fazer uma pesquisa
que busque na voz do sujeito de estamento A e B, adepto do Candomblé, as várias
experiências subjetivas que constroem sua vivência religiosa. Para tanto é feita uma
etnografia, em alguns terreiros de Candomblé Keto do Distrito Federal, que colhe em campo
as narrativas dos vários sujeitos e posteriormente, após o estabelecimento de um vínculo
etnográfico e em um segundo tempo do desenrolar da etnografia, lhes propõe perguntas
abertas, usando como roteiro de diálogo uma entrevista semi-estruturada, que aborda vários
temas que constroem o campo de sua experiência com sua religião, como a prática e pertença
ao Candomblé na atualidade, seu potencial terapêutico, a relação da prática com a raça, a
relação da prática com o nível educacional do participante, entre outros tópicos. Das
narrativas colhidas surge um panorama onde se encontram adeptos que articulam o
Candomblé habilmente como uma hermenêutica religiosa e prática, que se apoderam do
discurso das ciências sociais para resignificá-lo e estudá-lo, que encontram no Candomblé um
centro de produção de sentido, para a construção de uma identidade e um modo de ser no
mundo estabelecendo uma poderosa relação individual com o sagrado. Entre as narrativas
escutadas e registras, também se encontram respostas as perguntas que motivam a pesquisa,
por exemplo como o movimento sócio-histórico de revalorização da cultura negra, promovido
pela intelligentsia brasileira, que ocorre durante a década de sessenta, serve como meio de
promoção e estopim para novas adesões dos membros de estamentos A & B ao Candomblé.
As conclusões as quais se chegou são de que os adeptos não foram buscar o Candomblé, e sim
foram chamados por ele; que há uma grande produção e troca de sentidos entre a religião e
seus adeptos e sacerdotes; que o Candomblé é uma forma de resistência da cultura negra a
hegemonia cultural ocidental no Brasil; que a religião traz conforto e novas possibilidades de
configuração de sentidos para seus adeptos.

2
Sumário

1. História 4

2. Cosmologia e Ritual 14

3. Fundamentação Teórica 21

4. Etnografia 29

5. Considerações Finais 50

6. Referências 53

3
1. HISTÓRIA

“Na Terra criada por Obatalá, em Ifé,


os orixás e os seres humanos trabalhavam e viviam em igualdade.”
(PRANDI, Mitologia dos Orixás)

Falar de Candomblé é falar da história e povos de dois continentes, de velhos mitos


novos, de deidades1 sociais e telúricas vivas, que no transe de seus adeptos renovam seu
passado e lhes permitem colher a fortuna do futuro.

História de povos e impérios deslocados numa diáspora mercantil para suprir a mão de
obra de uma imensa colônia européia predominantemente agrícola e mineradora, o Brasil.
Diáspora que se dá duas vezes, durante o primeiro e segundo ciclo de cana de açúcar (séc.
XVII e XIX), com negros de diferentes etnias e civilizações, de diferentes cosmovisões e
organizações sócio-culturais que vinham desde a Costa da Guiné (Benin, Gâmbia, Nigéria,
Mali, Calabar), passando pelo centro da África (Angola) até sua costa oriental (Tanzânia)
(GOMES e FERREIRA, 2008). Em trocas comerciais, ou como resultado de pérfidas
engenharias sociais (como a catolização do reino do Congo, maior fornecedor de escravos ao
reino de Portugal, que ocorreu dos séculos XV a XVII) (VAINFAS & MELLO E SOUZA,
1998), ou simplesmente assaltos a vilarejos e cidades onde reis foram agrilhoados com
escravos, inimigos mortais de facções rivais, famílias e famílias, todos dividindo algumas
dezenas de centímetros do escuro e pestilento desespero do porão de um barco negreiro
português; desembarque entre mortos e mal nutridos para, logo depois, serem vendidos no
mercado segundo novas coordenadas socioeconômicas e identitárias. Da senzala dos
engenhos nasceu uma outra África: uma narrativa comum em busca de uma nova identidade
que surgiu em várias cabeças (ori)2, da imortalidade de várias almas (eledá)3, de onde veio o
sopro (emi)4 contido nas vozes que aqui, entre hostilidades várias, buscaram repensar seu lar.
1
Essas deidades são os Orixás, forças da natureza, antepassados comuns, heróis míticos e princípios ontológicos
que são representados como deuses antropomórficos.
2
Ori: palavra Iorubá que corresponde a cabeça mítica criada por Ajalá, o oleiro divino, sob pedido de Olórúm, O
Criador, para terminar o homem que havia sido construído por Oxalá, criador do homem, e ficara sem essa parte
essencial do corpo. (PRANDI, 1997)
3
Eledá: pode ser compreendido em duas instâncias, como alma imortal ou como guardião ancestral. (BASTIDE,
1978)
4
Emi: sopro vital, energia (axé) da qual é dotado todo ser humano, que dá poder e evocação e encantamento a
voz. (BASTIDE, 1978; BENISTE, 1996)
4
Assim negros de etnia Fon, Banto, Dan, Ewe, Adja, Iorubá5 para citar alguns pertencentes
àquelas áreas geográficas africanas já mencionadas, costuraram um novo tecido e trama social
que com perseverança e sigilo foi remendado às batinas e casacas que pretendiam
hegemonizar a vida sociocultural do Brasil.

Através dos processos de sincretismo, transculturalização e muitas vezes, justaposição


(AUGRAS, 2008) que ocorreram tanto em relação ao Catolicismo quanto no unir das várias
cosmologias negras importadas, o Candomblé foi se organizando em um conjunto de práticas
e experiências religiosas. No entanto não podemos falar de um único Candomblé, termo que
designa um conjunto de ritos com uma determinada ênfase cultural. Os babalorixás 6, ialorixás
e babalaôs7 não tiveram concílios de Nicéia, como a fé católica, onde seu conjunto ritual e
metafísico foi legitimado e normatizado. Dependendo da principal etnia dos escravos ou
quilombolas (comunidade de escravos fugidos, alforriados ou outros refugos sociais da
colônia), da população local e da vegetação nascia uma nação, definida primariamente pelo
conjunto de suas práticas: a nação Ketu, de origem iorubá, é a mais difundida e conhecida
pelo território brasileiro, tendo sua origem no Nordeste (Bahia e Pernambuco); a nação Jeje,
mais influenciada pela presença indígena no norte do Brasil, com o candomblé de caboclo,
tambor de mina e encantaria; no sudeste encontram-se cultos com influência Congo8 devido
ao conjunto de populações assim denominada pelos escravagistas, que chegaram no segundo
ciclo de cana de açúcar no século XIX, chamados de candomblé de Angola e candomblé de
Congo.

O candomblé, portanto, nasceu dos pontos em comum e justaposição das experiências


e práticas religiosas dessas várias etnias que foram importadas como mercadorias e agrupadas
erraticamente ou segundo uma lógica mercantil que não contemplou as tramas sociais e a
subjetividade da “mercadoria”. Assim foi que mitos de Deuses, heróis, ancestrais e impérios
5
Iorubá: grupo étnico formado por outros sub-grupos étnicos africanos que une, devido a similaridades
cosmológicas, lingüísticas, comerciais, culturais e de filiação ancestral, os reinos e povos de Ketu, Oyó, Ifé,
Ijexá, Ijebu e Egbá que se extendem desde a Costa do Benin até a Nigéria.(OLIVA, 2005)
6
Babalorixá e ialorixá: Sacerdotes que dirigem os terreiros de Candomblé, que detém a história oral de sua
nação, guardiões de certos objetos ritualístico, intérpretes dos Orixás por meio de uma prática oracular derivada
da de Ifé e adeptos que entram em transe.
7
Babalaô: sacerdote intérprete de um sistema oracular conhecido como o Oráculo de Ifá que permite ao adepto,
consulente ou sacerdote em si, interpretar a vontade e ação dos orixás e preparar o sacrifício propiciatório
relacionado a demanda.
8
Congo: grupos étnico encontrado dentro do agrupamento dos Iorubás e Nagôs, oriundos da Costa do Benin,
Áfica Ocidental.
5
se encontraram sob os despóticos auspícios da escravidão.

Durante alguns séculos a celebração dos cultos afro-brasileiros foi secreta devido a
ação da Inquisição, pelo Santo Ofício, que aqui teve três tribunais atuantes durante os séculos
XVII e XVIII, julgando judeus, a moral (ou negócio) de certos senhores de engenho e negros
hereges (MOURA, 2007 & AUGRAS, 2008). As deidades, os Orixás, eram justapostas a
figuras sagradas cristãs, os rituais escamoteados entre serviços religiosos católicos, ou muitas
vezes celebrados no engenho em si, longe do olhar os senhores, ou em quilombos, mas
sempre sendo na sombra projetada pela dominante minoria sócio-cultural proprietária. Só
veremos o Candomblé surgir publicamente com adesão dos republicanos aos ideais
abolicionistas que começam a se difundir e a ganhar força no começo do século XIX, ideais
promovidos pelo mundo ocidental devido ao advento das repúblicas por suas respectivas
revoluções e a crescente pressão da política externa imperial britânica sobre o Brasil. A
liberdade do negro que começa a se esboçar no horizonte de um país onde ele constitui mais
de dois terços da população total segundo os censos de 1850 e 1872.

Entre perseguições policiais, atestados de alienação, acusações de malefícios e


feitiçarias, preconceito e ignorância, começam a se registrar a atividade de casas de
candomblé desde 1807, no recôncavo baiano. Até 1888, noventa e cinco casas foram
registradas pela polícia maiormente devido ao fato de perturbarem a ordem e os afetos
públicos devido a sonoridade dos tambores, tocados durante os rituais, e a grande
aglomeração de negros (COSSARD, 2008). De 1868 até 1910 seriam fundados as quatro
casas de candomblé, em Salvador, que se tornariam referência e centros irradiadores da
tradição Ketu: o candomblé de Alaketo, a Casa Branca do Engenho Velho, o Gantois e o Ilê9
Axé Opô Afonjá (COSSARD, 2008).

“Negros libertos” não quis dizer uma mudança, ou modernização de caráter


positivista, na estrutura social brasileira. A ruptura das correntes que ligavam os negros aos
engenhos, minas, atividades agropecuárias, cidades e espaços domésticos, produziu um
contingente populacional que não foi absorvido, sequer prontamente, à estrutura produtiva do
império. Pelo contrário, em uma economia predominantemente rural e extrativista, que agora
buscava sua mão de obra barata entre os emigrantes europeus, os negros se encontraram
9
Ilê: palavra Iorubá para o espaço sagrado onde se desenvolve o culto aos orixás, popularmente chamado de
terreiro.
6
novamente em um estado de anomia. Assim começou um êxodo rural das populações libertas
em direção das grandes metrópoles, como o Rio de Janeiro, na busca de uma oportunidade de
trabalho na capitais.

Na antiga capital federal, negros vindos dos campos e aqueles recém chegados
acabaram sendo atraídos para o centro da cidade, o bairro da Saúde, no Morro da Conceição,
local de assentamento e influência de algumas famílias baianas e do quilombo10 Pedra de Sal
(AUGRAS, 2008). Do desenvolvimento posterior dos terreiros de Candomblé do Rio de
Janeiro nas próximas duas décadas, não sem tem muita informação, mas registros de uma
nova leva de sacerdotes baianos chegados ao Rio na década de trinta do século XX, fugindo
de perseguições religiosas, a população nordestina vinda em busca de trabalho, será a base
que irá expandir a presença, a prática, e novas vertentes do Candomblé no Rio de Janeiro.

Da década de trinta até os dias de hoje o Candomblé passou por muitas


transformações, desde a diversificação da sua prática em suas várias nações até sua
descriminalização e legitimação como culto religioso afro-brasileiro em alguns estados.
Assim, deixou o Candomblé de ser jurisdição da polícia, a quem devia pagamento de
obtenção de licença, pelo Decreto n. 25.095, da Lei 3.097, de 29/12/72, em 1976, no estado da
Bahia. Em 1978 ocorreria o mesmo no estado de Pernambuco.

Mas não só como marginal era visto esse culto. Sua prática inferia diretamente que o
praticante era portador de um sofrimento psíquico grave, já desde 1930 até quase o fim de
1970 era necessário estar inscrito, antes da obtenção da licença de funcionamento da
secretaria de Segurança Pública, no Serviço de Higiene Mental de Assistência de Psicopatas
(AUGRAS, 2008). Ao contrário da legítima experiência de epifania espiritual vivida pelo
adepto do catolicismo, o adepto do Candomblé nada mais tinha do que um surto psicótico
com conteúdos religiosos blasfemos.

Com o advento dos anos sessenta do séc. XX, devido ao crescimento econômico do
pós-guerra, e a expansão das zonas urbanas no sul e sudeste do pais, vemos o Candomblé
descer na mão de obra nordestina. Foram intelectuais, poetas, estudantes, escritores e artistas,
de uma classe média com boa condição econômica, historicamente identificada com o

10
Quilombo: comunidade e refúgio escondido nas matas formado por, e que abrigava, escravos negros
escapados, afro-descendentes e outros eventuais habitantes.
7
catolicismo, e de predominância branca, que buscavam aquilo que poderia ser visto como as
raízes originais da cultura brasileira (PRANDI, 1997), que propiciaram seu crescimento e
mesmo renascimento. O Candomblé também encontrou no território da Umbanda11 solo fértil
para o crescimento já que:

Neste movimento, a umbanda é remetida de novo ao candomblé, sua velha e "verdadeira"


raiz original, considerada pelos novos seguidores como sendo mais misteriosa, mais
forte, mais poderosa que sua moderna e embranquecida descendente (PRANDI, 1997, p. 5).

Graças a essa adesão persistente da classe social média e alta, economicamente ativa,
predominantemente branca e socialmente influente (CENSO, 1990 & 2000) tem-se visto
desde a década de sessenta, até os presentes dias, uma inserção cada vez maior do Candomblé
nos meios de comunicação (televisão e internet), como campo de estudo dentro das ciências
antropossociais e como referência histórico-social no cotidiano brasileiro. Como exemplo das
afirmações feitas acima, fundamentando esse processo contínuo e crescente de produção de
sentido sobre a religião em questão, podemos citar, respectivamente, a cinematografia com
filmes como A Idade da Terra, Cafundó, Besouro, A Dança das Cabaças – Exu no Brasil;
como campo das ciências antropossociais pode-se citar a produção de autores como Roger
Bastide, Pierre Verger, Reginaldo Prandi, Monique Augras, Gisèle Omindarewá Cossard, Nei
Lopes, José Beniste; e finalmente a referência histórico-social é encontrada, nas cada vez
mais presentes, ações e contribuições do Movimento Negro, com instituições como O
Instituto de Pesquisa e Cultura Negra (IPCN) no Rio de Janeiro, a Fundação Cultural
Palmares e o Observatório Afrolatino, a primeira sediada em Brasília e a outra sediada
virtualmente.
Assim, os adeptos das elites cederam seus poderes e prestígio social, sua formação
educacional privilegiada ao Candomblé. Embora isto tenha um efeito de legitimação da
tradição, não se deve minimizar todos os esforços dos adeptos tradicionais, negros e
analfabetos, no sentido de estabelecer sua legitimidade. Foi o trânsito da tradição para outro
estrato social que tornou possível ao Candomblé ser amplamente reconhecido como religião
sofisticada por exemplo com a transcrição do conhecimento oral do Candomblé, ato que
implicou um processo de compreensão do conteúdo desde um nível semântico até novas

11
Umbanda: religião autenticamente brasileira, que surge nos anos 30 do séc. XX, do encontro de símbolos,
práticas e rituais de três religiões – o Catolicismo, o Kardecismo e cultos afro-brasileiros.
8
possibilidades de interpretação simbólica que impactaram diretamente na produção do ritual
no terreiro (PRANDI, 1991). Como exemplo dos resultados paralelos desse movimento de
análise e compreensão surgem, e se fortalecem, novas representações sociais e sentidos sobre
o Candomblé como os cursos de Iorubá para aqueles que desejam ter uma compreensão mais
aprofundada dos cantos usados nos rituais, começa a haver uma maior projeção da relação
entre a cultura brasileira e africana ocidental, surgem subsídios para a construção de
identidades afro em movimentos políticos negros.

No entanto, simultâneo ao movimento de adesão exposto acima, o Candomblé também


experimentou uma retração em seu número de fiéis: as classes sociais pobres, de
predominância negra, historicamente identificadas com práticas religiosas de matriz africana,
que aderiram as igrejas pentecostais.

Em Expansão da Igreja Pentecostal no Brasil: o caso da Igreja Universal, artigo do


sociólogo Ricardo Mariano (2004), a trajetória de crescimento acentuado do pentecostalismo
é apresentada desde sua chegada ao Brasil há um século, com especial atenção ao
desenvolvimento de uma de suas vertentes após a década de setenta. Nas primeiras páginas
deste artigo o autor fornece uma série de informações que mapeiam o movimento de adesão
das classes pobres, predominantemente negras, ao ilustrar possíveis causas sócio-históricas e
as estratégias de adesão utilizadas pelas igrejas12.

Os movimentos de adesão e êxodo em ambas as religiões tornam-se mais concretos


quando vemos os números que os quantificam. Começando pela declaração religiosa, os
dados IBGE mostram que os pentecostais declarados vão de 6,6 milhões de brasileiros em
1980, para 9,0 em 1990 até chegar em 15,4 em 2000; já os afro-brasileiros (Candomblé e
Umbanda) declarados vão de 0,6 milhões em 1980, para 0,4 em 1990 até chegar a 0,3 em

12
“(...) as igrejas pentecostais souberam aproveitar e explorar eficientemente, em
benefício próprio, os contextos socioeconômico, cultural, político e religioso do último
quarto de século no Brasil. Nesse sentido, cabe destacar, em especial, a agudização das
crises social e econômica, o aumento do desemprego, o recrudescimento da violência e
da criminalidade, o enfraquecimento da Igreja Católica, a liberdade e o pluralismo
religiosos, a abertura política e a redemocratização do Brasil, a rápida difusão dos meios
de comunicação de massa.” (MARIANO, 2004, p. 122 & 123)

9
2000.

É importante lembrar que no censo de 1980 ainda não havia a distinção entre
Candomblé e Umbanda. Assim sendo os números que mostram a redução dos cultos afro-
brasileiros indicam uma redução nos adeptos de Umbanda (648.475 em 1991 para 571.329
em 2000) e o movimento contrário no Candomblé (106.957 e 1991 para 139.328 em 2000).
Poderia o aumento nas declarações ser devido a adesão dos estamentos A e B, que ao se
identificar com o Candomblé não sentem receio de ser relacionados com práticas
consideradas marginais e inerentes aos estamentos C e D?

Ao cruzar os dados da declaração religiosa com o nível sócio-econômico e


educacional da população em 1990 e 2000 surge um cenário descrito pelo sociólogo Reginado
Prandi em seu artigo As religiões afro-brasileiras e seus seguidores:

Uma das mais profundas mudanças observadas no candomblé nas últimas décadas do século
XX foi sua universalização, quando passou de religião étnica a religião de todos, com a incorporação,
entre seus seguidores, de novos adeptos de classe média e de origem não africana.(...)
Surpreendentemente, o censo de 2000 mostrou também que as religiões afro-brasileiras apresentaram
a segunda maior média de anos de escolaridade de seus seguidores declarados, ficando atrás apenas
do espiritismo kardecista, religião sabidamente de classe média e de seguidores com escolaridade
elevada. Para o ano 2000, a média de anos de escolaridade dos membros declarados do candomblé e
da umbanda foi de 7,2 anos, quando a média da população total do Brasil era igual a 5,9 anos, a dos
kardecistas 9,6 anos, a dos católicos 5,8 anos e a dos evangélicos pentecostais 5,3 anos. (PRANDI,
2003 , p. 31)

Portanto ao comparar os dados de 1980, 1990 e 2000 percebe-se o crescimento


assombroso do número de pessoas de estamentos C e D que se declaram pentecostais, com
uma redução daquelas, dos mesmos estamentos, que se declaram adeptas de cultos afro-
brasileiros. Por outro lado, também é perceptível o aumento dos estamentos A e B que aderem
ao Candomblé, na contracorrente dos dados para outras religiões afro-brasileiras, como a
Umbanda.

Paralelamente a ambos os processos histórico-demográficos descritos, voltando a década


de sessenta e setenta inaugurava-se um novo zeitgeist: a modernidade liquida (BAUMAN,
10
2000, 2001, 2006, 2008), momento histórico onde os parâmetros da modernidade começaram
a se liquefazer ante as novas configurações sociais e institucionais de uma realidade cada vez
mais veloz, atomizada, globalizada e dirigida pela lógica dos mercados e corporações que não
permite que seus membros consolidem hábitos, rotinas e formas de agir, ao menos não além
do hábito de consumir. Na modernidade líquida as meta-narrativas constituintes do estado
moderno perderam seu sentido, as instituições tradicionais (família, escola, trabalho, raça) se
vêem cada vez menos cristalizadas diante da crescente complexidade de um mundo da
compressão espaço-temporal, da pluralidade e da miríade de possibilidades de construção da
identidade (BAUMAN, 2005; HALL, 1996). O sujeito moderno era uma unidade
interiorizada e isolada, mas o sujeito pós-moderno, desprovido de essência, é cada vez mais
reconhecido por um conjunto de performances culturalmente inteligíveis, entre elas, o
consumo.

A aceleração dos ritmos do cotidiano, o isolamento, a perda de referenciais institucionais


para a construção de identidade tem seu preço sobre esse indivíduo resultando em uma
terrível angústia que se origina na impotência de articular relações mais duráveis e estáveis
com os membros da sociedade líquida moderna. No Brasil os parâmetros da modernidade
líquida podem ser vistos claramente nos estamentos A e B, aqueles que tem acesso ao
conteúdo das identidades globais devido a possibilidade de consumir transitórios bens que
possam dar subsídios a construção de uma ou mais identidades.

O Candomblé, além de ser um conjunto de práticas religiosas, também possui elementos


simbólicos, contidos em sua cosmologia, para a construção da identidade, vide a idéia de
orixá: divindade com uma biografia mítica. Seus devotos, a medida que se relacionam com
eles através de seu culto, passam por um processo de identificação onde se tornam cada vez
mais “parecidos” com seu orixá. Podemos encontrar uma análise dessa aquisição e
identificação com modelos ou arquétipos identitários nos trabalhos de Rita Segato (2005)13 e
Monique Augras (2008)14.
13
Discussão desenvolvida no livro Santos e Daimones onde a autora faz uma exegese recíproca dos modelos de
identidade propostos pelo Candomblé (orixás) e a psicologia analítica de Carl Gustaf Jung (arquétipos).
14
Discussão desenvolvida no livro O Duplo e a Metamorfose: Identidade Mítica em Comunidades Nagô onde a
autora, situando-se na confluência da psicologia da personalidade, da antropologia cultural e da fenomenologia
da experiência religiosa, fala sobre a identidade mítica e como esta constitui uma contribuição para compreensão
da
11
Não seria absurdo dizer que o Candomblé também pode ser considerado como uma
mercadoria a ser consumida na busca de subsídios para a construção de uma identidade.
Afinal, através do “consumo”, compra dos serviços de um babalorixá ou ialorixá, o indivíduo
obtém uma série de “bens” referenciais para a construção de sua identidade. Assim a lógica de
consumo que permeia e influencia as performances do sujeito pós-moderno pode ser
encontrada atuando na relação do adepto de estamento A e B com o Candomblé. Exemplos
disso são workshops oferecidos para se aprender a fazer ebós, usar o oráculo de cauris,
conduzir rituais ou aprender a usar a religião de modo “terapêutico”. Por contraste, a lógica
tradicional de desenvolvimento e obtenção de experiência no Candomblé é aquela da dádiva
(MAUSS, 1924), onde a troca ocorre para a produção de uma aliança, neste caso entre o
sagrado e os devotos. Portanto será somente ao estabelecer uma relação durável, generativa,
criadora de sociabilidade, onde o adepto se oferece ao culto, que haverá a manifestação, o
convívio, a aprendizagem e a redistribuição do sagrado. Como diria um espírito de umbanda
que fez parte extra-oficialmente deste relatório: “Meu senhor, tudo neste mundo é uma troca”.

Partindo do princípio que seus adeptos estejam buscando algo mais que simples e
transitórias peças para um bricolage identitário, surge a pergunta: o que buscam nesta
religião? Quem são esta pessoas? O que as atraiu? Buscam uma reetnização? O exótico? Em
ambas as possibilidades, não seria a aderência uma maneira de resgatar laços sociais de ordem
comunitária, cada vez mais frágeis, e sanar angústias decorrentes das incertezas de um mundo
moderno líquido? Considerando que o transe é o modo de experiência religiosa central nesta
tradição, como se dá a construção da relação com a entidade? Que reconfigurações subjetivas
resultariam desse contato na construção da subjetividade do indivíduo?

Este relatório irá contar com mais quatro capítulos, nos quais respectivamente, será
apresentada a cosmologia do candomblé, será feita uma discussão sobre o método etnográfico
utilizado na observação feita nos terreiros visitados, serão apresentado trechos da etnografia
que sejam considerados como relevantes para a discussão que será feita no quarto capítulo
buscando responder as perguntas que foram suscitadas neste primeiro, com um encerramento
da pesquisa nas considerações finais do quinto capítulo.

12
2. COSMOLOGIA E RITUAL

“No começo, o mundo era todo pantanoso e cheio d’água,


um lugar inóspito, sem nenhuma serventia.
Acima dele havia o Céu, onde viviam Olorum e todos os orixás,
que às vezes desciam para brincar nos pântanos insalubres.
Desciam por teias de aranha penduradas no vazio.
Ainda não havia terra firme, nem o homem existia.”
(PRANDI, Mitologia dos Orixás)

13
Ao contrário dos estereótipos que ainda circulam acerca do Candomblé, que supõem
ser esta uma religião de um animismo simples, obscuro e até certo ponto moralmente
reprovável, é considerável a surpresa ao se descobrir um sistema religioso complexo, que em
nada lembra o judaico-cristão na sua compreensão da dinâmica de integração entre o
indivíduo e a transcendência.

Devido a referida complexidade do sistema, irei me ater somente a certos conceitos


que são fundamentais para compreender essa dinâmica, falarei portanto do Orún e do Aiê (a
estrutura do universo), dos orixás (deidades) e do Axé (as forças que animam as relações do
sistema). Os rituais serão abordados a medida que sejam expostos os conceitos, já que estes
são os meios de manutenção e manipulação da relação entre o mundo dos humanos e dos
deuses e onde o indivíduo irá desempenhar “seu papel como elemento integrante da
representação mítica” (AUGRAS, 2008, p. 55).

No Candomblé, o universo é constituído de nove espaços. Os quatro acima são o


Orún, o Céu ou o Sobrenatural; o do meio, Aiê, é a Terra; e os outros quarto inferiores
também fazem parte do Orún, apesar de ser abaixo da terra, abrigando os espíritos dos mortos
e outras entidades sobrenaturais. Atravessando estes nove espaços há uma coluna que os
comunica e que permite o trânsito entre mundos: é o meio pelo qual as oferendas dos
humanos chegam aos orixás, é como estes participam da vida na terra e como os mortos
retornam da terra, como ancestrais reconhecidos, para dar conselho a seus descendentes.

Mas o universo nem sempre foi assim, como podemos encontrar em um dos mitos de
Oxalá15. Antes era possível atravessar os limites entre o Orún e o Aiê. Foi devido a
transgressão de um humano, que resultou na consumação de um tabu, que Oxalá enfurecido
bateu com seu opaxorô16 no chão, dividindo o universo em nove espaços. O espaço vazio que
ficou entre o Céu e a Terra foi preenchido pelo sopro divino de Olorún17, meio que une os
15
Oxalá: orixá responsável pela criação de certos elementos do mundo, entre eles os homens. Apresenta-se de
duas maneiras: como Oxalufã, homem velho, branco e recurvado que anda com um Báculo; como Oxaguiã (que
também é visto como seu filho), jovem guerreiro, trajado de branco com detalhes azul claro que anda munido de
uma mão de pilão, escudo e espada.
16
Opaxorô: báculo usado por Oxalá, simboliza a criação do mundo, do homem e a sapiência dos anciãos,
servindo de apoio para locomoção deste orixá que é o mais velhos de todos e considerado o pai da criação.
17
Olorun: Dono do Céu, criador do Orún e do Aiê. É o Criador de Tudo e de Todos. Após a criação distanciou-
se do Aiê e delegou parte de seus poderes a Oxalá. Olorún não possui templo e não é reverenciado diretamente.
14
dois mundos. A separação, no entanto, não foi uma cisão completa das relações entre o divino
e a humanidade. O senhor do Céu pode ter se distanciado e se tornado inacessível aos fiéis,
mas sua vontade ainda se manifesta por duas vias: através da consulta do oráculo de
Orunmilá Ifá18 e através da vontade dos orixás.

Ao contrário da concepção judaico-cristã tradicional de vida terrena que prega uma


existência centrada na obtenção do acesso ao Reino do Senhor, na expiação de um pecado
original e um certo destacamento da vida material (manifesto, por exemplo, in extremis no
voto de pobreza), no Candomblé, vemos uma preocupação quase exclusiva com a vida
terrena, material.

O bem estar oriundo da fartura tanto material quanto espiritual é o objetivo da relação
com o sagrado e é obtido através de rituais como a consulta do oráculo, feito pelo babalaô ou
babalorixá. É no jogar (após certo procedimento que invoca o sagrado, literalmente lançar
sobre uma determinada superfície sacralizada) e leitura do opelê19, ikins20 ou dos cauris21, que
surgirá e será interpretado um odú22, que pode ter relação com o conteúdo de um ou mais
itans23. Dependendo do odú que surja da interpretação, serão prescritos os ebós24, ofertas que
servirão para propiciar oportunidades de sucesso, afastar influências nocivas ou indicar
remédios para curar aflições oriundas da ação do sagrado (Olorún e orixá) ou fortalecer
dinâmicas desse sagrado que existem no consulente25.
18
Orunmilá Ifá: tem duas concepções utilizadas para compreender este personagem, que são o orixá que obteve
o instrumento e código de interpretação do destino traçado por Olorún e que passou a técnica divinatória aos
babalaôs e babalorixás, ou “uma forma de energia que traz consigo o conhecimento e a sabedoria” (COSSARD,
2008, p. 16).
19
Opelê: colar aberto composto de um fio trançado de palha da costa ou fio de algodão, que tem pendentes oito
metades de favas de opele; o colar também pode ser encontrado composto por correntes de metal, como
sementes outras ou pedras preciosas.
20
Ikins: vinte e uma nozes de dendezeiro.
21
Cauri: dezesseis pequenas conchas, sem fundo.
22
Odú: o conhecimento de Orunmilá, ou os caminhos do destino indicados pelo oráculo (COSSARD, p. 15).
23
Itan: as lendas que contam as vidas dos orixás.
24
Ebó: oferenda ritual que pode desempenhar a função de remédio espiritual, alimento para a cabeça (ori), e
alimento para orixá ou egun (espírito de morto). Os elementos das oferendas variam, vão desde animais de duas
a quatro patas – galinhas e cabras, respectivamente – até uma série de grãos, frutas, legumes e outros produtos
preparados das mais diversas maneiras.
25
Consulentes: é importante destacar que entre as pessoas que recorrem aos terreiros teremos dois tipos gerais,
aqueles que fazem uso dos serviços espirituais de babalorixás e ialorixás sem no entanto pertencer ao
Candomblé, e os Abiãs, frequentadores assíduos de terreiro que ainda não formalizaram sua adesão à
comunidade.
15
O que seriam essas dinâmicas do sagrado? Seriam os desdobramentos da influência
que um ou mais orixás exercem sobre a vida do adepto ou consulente. Mas o que é um orixá?
Misto de personagem histórico, mítico, arquétipo26, manifestação de uma determinada força,
elemento da natureza ou dinâmica social, o orixá é o nome dado ao conjunto de divindades
cultuadas pelos Iorubá e brasileiros. Hoje em dia temos uma média 27 de dezesseis orixás
cultuados, dos quais quatorze serão apresentados na ordem do xirê28:

a) Exu: personificação do princípio de transformação, é parte de tudo que existe.


Relacionado a imprevisibilidade da vida e a sexualidade (virilidade) não é sequer
considerado como orixá em algumas tradições, e sim como o mensageiro e guardião
entre o mundo o Orún e o Aiê. Exu vigia a encruzilhada, ou os caminhos e como
senhor deles pode enredá-los ou desenredá-los, por isso é importante obter o seu favor
já que é um trickster29, com moral duvidosa e imprevisível, um terrível brincalhão.
Suas cores são o branco, vermelho e preto.
b) Ogum: senhor da forja, do ferro e da agricultura – ou seja, da técnica - Ogum é um
orixá inquieto e belicoso que também mora na encruzilhada. Assimilado com São
Jorge no Rio de Janeiro, também é visto como um terrível e formidável guerreiro,
protetor inabalável de quem buscar sua graça. Ogum “representa o poder masculino
naquilo que tem de agressivo e exclusivo (…) é o representante da lei dos machos e
das sociedades de guerreiros” (AUGRAS, 2008, p. 104). Sua cor é o azul escuro.
c) Odé: rei da mata, deus da caça, protetor de todos aqueles que tiram o seu sustento da
floresta e irmão de Ogum, com quem compartilha várias características. É o orixá que
reside nas florestas e que vela por aqueles que delas tiram seu sustento, mas também

26
Arquétipo: palavra usada para designar um modelo imaterial de algo existente, podendo ser desde um
fenômeno social até mesmo um acidente geográfico, ou palavra que também designa, de acordo com a
psicologia analítica de C.G. Jung, uma “imagem primordial”.
27
Dependendo da região do Brasil e da cosmologia da nação – que além de Ketu pode ser Jeje ou Congo Angola
– o número de orixás cultuados varia, por exemplo em Pernambuco ou na Bahia, onde variações da manifestação
do transe de Xangô tornam-se orixás em si ou onde Nanã Buruku pode vir a não ser cultuada devido a uma
relação que foi estabelecida entre ela e Iku, a Morte.
28
Xirê: “brincar; no Candomblé, ritual em que os filhos e filhas-de-santo (adeptos) cantam e dançam numa roda
para todos os orixás em uma determinada ordem estabelecida pelos itans.
29
Trickster: divindade que quebra as regras dos deuses ou da natureza, às vezes mal-intencionada, mas,
normalmente, ainda que involuntariamente, em última análise, com efeitos positivos. Freqüentemente, a quebra
das regras toma a forma de um "truque" (daí o termo, "trickster", que significa "pregador de peças").
16
as protege daqueles que não tem o devido preparo para penetrá-las. Apesar de ser
rude, sisudo e cauteloso, como todo caçador consumado, Odé é um protetor constante
de seus devotos. Sua cor é o azul claro.
d) Logum Edé: filho de Odé com Oxum – a sedutora senhora dos rios - também é um
caçador, como seu pai, no entanto ainda não é um homem maduro, e sim uma criança.
Mesmo sendo um orixá alegre, mimoso e brincalhão, por ser criança, ainda
compartilha da rudeza de caráter e virilidade de seu pai. Suas cores são o azul claro e
amarelo.
e) Ossaim: senhor detentor dos segredos do ewê30, é o responsável por todas as plantas
que crescem selvagens, estado em que possuem poder medicinal e força sagrada,
representando assim os mistérios e virtudes da vida vegetal. Suas cores são o marrom,
verde e amarelo.
f) Nanã Buruku: mãe de Obaualê e Oxumarê, é a mais antiga divindade das águas,
responsável pelas lagoas, fontes, lama, terra, as grutas. Acalenta e protege aqueles que
já morreram e um dia podem retornar a terra. Nanã também é aquela que protege todos
os segredos no seio da terra, por isso é chamada para testemunhar compromissos e seu
cumprimento e exige muita honestidade de seus devotos e aqueles que a invocam.
Suas cores são o branco e o preto.
g) Obaluaê: deus da varíola e da febre que, de tão temido e respeitável, não se pronuncia
seu nome. Apesar de ser terrível, provocando epidemias durante sua cólera, também é
responsável pela cura das doenças. Suas cores são o branco e o preto.
h) Oxumarê: “(…) é o arco-íris, grande cobra que se enrosca em volta da terra e do céu,
assegurando a perenidade do mundo e sua renovação. Filho da terra, tira dela a água
que leva para o céu, para que volte a cair sob forma de chuvas fecundas” (AUGRAS,
2005, p. 122). Dizem que seus devotos tem o dom da vidência. Suas cores são o verde
e o amarelo.
i) Euá: primeira mulher de Xangô, é trocada por Oxum após ter sido traída pela mesma,
terminando por ser expulsa da casa do rei do trovão. Como Nanã, também é a senhora
das fontes, mas seu espaço sagrado é no cemitério. “Ela representa a amargura da
vida, as esperanças perdidas, as decepções amorosas”(COSSARD, 2008, p. 51). Tem
30
Ewê: folha em Iorubá, elemento vegetal fundamental no Candomblé já (...)que servem para preparar todas as
infusões e macerações feitas no terreiro e são utilizadas para purificar as más influências, curar e renovar as
forças de uma pessoa, provocar o estado de transe que permite ao orixá se manifestar” (COSSARD, p. 45).
17
as cores de seu ex-marido Xangô, vermelho e branco.
j) Xangô: deus do trovão, cuspidor de fogo e Rei de Oió31, Xangô é o orixá mais
venerado no Brasil. Notável por seu implacável sentido de justiça, sua tremenda força
física e por ser muito sedutor e ardiloso, seus devotos geralmente são reconhecidos
pelo físico com barriga avantajada, ombros largos e risada retumbante. Seu prato
favorito é o amalá32. Suas cores são vermelho e branco.
k) Iansã: terceira e mais importante esposa de Xangô. De caráter livre e violento, é a
senhora dos ventos e tempestades. Como seu marido também é cuspidora de fogo e
detém os segredos do trovão. Invoca-se a sua proteção durante a gravidez de risco, e
caso a criança nasça incólume, Iansã quase certamente virá a ser sua protetora. Sua cor
é o vermelho vivo.
l) Oxum: segunda esposa de Xangô, é a orixá que personifica a beleza, a sensualidade,
encantadora com seu charme. Senhora da água doce e cachoeiras, na beira dos rios ela
se penteia, se enfeita com jóias ou se banha. Oxum adora e traz aos seus devotos luxo,
riqueza, belos tecidos, ouro e amor. Sua cor é o amarelo dourado.
m) Iemanjá: orixá do rio Níger, dona das águas, senhora do mar, mãe dos orixás. Ela
representa a maternidade, a fecundidade, dá saúde, fartura e riqueza para todos. Mas
como o mar Iemanjá pode ser violenta, traiçoeira e imprevisível. Sua cor, como a de
Oxalá, é o branco, mas podendo representá-la com contas transparentes.
n) Oxalá: o mais velho dos orixás seu nome quer dizer, literalmente, o Rei do Pano
Branco. Divindade responsável pela Criação, é exclusivamente responsável pela
criação do homem e devido a essa função veio a ser considerado como o maior dos
orixás.

Existem três maneiras de se determinar qual é o orixá do devoto que freqüenta o


Candomblé antes de consagrá-lo a uma função dentro de um Ilê: através de uma análise da
fisionomia e gestualidade do devoto que se assemelhe a fisionomia e gestualidade de um
determinado orixá; através do jogo de búzios onde o orixá “dono da cabeça” manifestará sua
identidade; e finalmente caso o adepto entre em transe durante uma celebração, dependendo
do orixá cultuado no instante do transe, existirá uma boa possibilidade que esse devoto seja

31
Oió: capital do império Iorubá (1440-1835) que hoje é a Nigéria ocidental.
32
Amalá: prato apimentado de frango com quiabo.
18
seu filho.

Será o Axé, a força mágico-sagrada contida em todos os seres e componentes da natureza


e que flui através de cada um dos orixás, e no Orún, que irá se manifestar no corpo do adepto
em transe. Mas, para que o adepto possa ser o recipiente da força ou energia, e sua
manifestação, é necessário que ele seja identificado como “rodante”, ou passível de estados de
transe e iniciado nos rituais e liturgias do culto. Para tanto será a “feitura de santo” - iniciação
que inclui um determinado período de reclusão em um espaço sagrado, uma dieta específica
que prepare o corpo para receber o Axé, uma rotina repetitiva de instrução em cantos, súplicas
e cosmologia do Orún e Aiê, e uma série de transes que irão se intensificar a medida que o
corpo esteja mais preparado – que fixará o Axé do orixá no corpo do Iaô33.

No entanto essa energia, apesar de imaterial, está sujeita as mesmas leis físicas que
governam o mundo material, pois ela é parte inextricável dele, por exemplo: a intensidade
dessa energia varia, aumentando ou diminuindo devido a vários fatores, entre eles o tempo,
sendo sujeita portanto à entropia; também é possível, através de certos ritos, transferir,
manter, adquirir ou aumentar essa força. Assim é fundamental lembrar que a força mágico-
sagrada é o elemento que infunde vida ao mundo e que o Candomblé irá buscar manipular
essa força para o benefício da comunidade que abriga e freqüenta o terreiro e seus adeptos ao
fixá-la e desenvolvê-la em seus rituais.

33
Iaô: esposa jovem; filha ou filho-de-santo; grau inferior de carreira iniciática dos que entram em transe de
orixá. (PRANDI, p. 566)
19
3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

“Kosi ewê, kosi orixá.”


(Ditado Iorubá: sem folha, não há orixá.)

Sem campo, não há etnografia. O campo, espaço social, é onde se fia o tecido social,
onde emerge o sujeito que é elemento constituinte desse espaço, elemento que possui e faz
uma história, que percebe e constrói um mundo de maneira única, que sente, vive, fala, “(...)
um elemento gerador de novos sentidos subjetivos que são parte inseparável da produção
subjetiva desse espaço” (GONZÁLEZ REY, 2007, p. 145)34.
34
Em Pesquisa Qualitativa e Subjetividade (2005), Fernando González Rey propõe uma
epistemologia qualitativa que é articulável com o método etnográfico. Ao repensar os
paradigmas da pesquisa qualitativa em psicologia, o autor propõe que nela não existem
categorias universais de conhecimento, que não se deveria apreender a realidade
através de construções teóricas simplificadas ou arbitrárias ou fragmentá-la em
“variáveis suscetíveis de procedimentos estatísticos e experimentais de verificação
(GONZÁLEZ REY, 2005, p.7)” já que assim o pesquisador se afastaria da organização
complexa da realidade estudada. Assim sendo, tais procedimentos não possuiriam o
menor valor heurístico para produzir ‘zonas de sentido’ que são “espaços de
inteligibilidade que se produzem na pesquisa científica e não esgotam a questão que
significam (...), abrem a possibilidade de seguir aprofundando um campo de construção
20
No exercício da etnografia é fundamental notar que o que se registra é o tecido social,
sujeito e espaço, em uma produção simultânea de sentido que posteriormente será reproduzida
em um relato etnográfico. Portanto, além do sentido gerado no campo haverá uma produção
posterior de sentido quando o pesquisador irá se debruçar sobre a experiência registrada e a
interpretará.

A começar pela experiência de campo, esta é fundamentalmente dependente de um


método de observação e compreensão, portanto inserida em um horizonte teórico específico.

Pode-se dizer que a experiência ocorre em dois planos: o discursivo, construído sobre
um sistema simbólico que forma uma linguagem onde a interpretação permitirá apreender os
sentidos nela contidos; e o performático, onde corpos são atravessados pelos mais diversos
agenciamentos que não são apreensíveis pela razão mas, como o discurso, também estão
repletos de sentido que pode ser observado, experimentado, vivido.

Ao se estabelecer um vínculo etnográfico (BIZERRIL, 2004) com o espaço social e


sujeitos que se pesquisa, o etnógrafo é gradualmente apresentado e aprende a transitar nesse
espaço com esses sujeitos. Assim compreende através do exercício de uma antropologia
semiótica (GEERTZ, 1999) os símbolos que produzem os mais diversos discursos sócio-
culturais como também, através de uma antropologia fenomenológica (CSORDAS, 2008)
busca produzir sentidos a partir da observação das performances dos sujeitos e eventual
participação nestas performances no campo.

A despeito do aparente paradoxo entre o paradigma semiótico e o performático, o


antropólogo Thomas Csordas, em CORPO/SIGNIFICADO/ CURA, (2008) constrói uma

teórica” (GONZÁLEZ REY, 2005, p.6). A etnografia, como descrição e pesquisa metódica
qualitativa do campo, tampouco pode se ater a categorias universais, fazer uso de
construções teóricas simplificadas ou fragmentos de realidade que serão
instrumentalizados para sua verificação. Como disse o antropólogo Clifford Geertz (1989),
a etnografia deve ser uma ‘descrição densa’ da realidade encontrada no campo: “O que o
etnógrafo enfrenta, de fato (...) é uma multiplicidade de estruturas conceptuais
complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são
simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma
forma, primeiro apreender e depois apresentar” (GEERTZ, 1989, p.7). Assim, ao possuir
afinidade devido a abordagem interpretativa e construtiva do conhecimento – ao dizer
que “o conhecimento é uma construção, uma produção humana, e não algo que está
pronto para conhecer uma realidade ordenada de acordo com categorias universais do
conhecimento” (GONZÁLEZ REY, 2005, p.6) - tanto o método etnográfico quanto a
epistemologia qualitativa se tornam articuláveis devido aos seus procedimentos e
concepções de pesquisa.
21
perspectiva metodológica consistente para abordar fenômenos religiosos, buscando resolver o
paradoxo, a partir do paradigma da corporeidade. Assim propõe a possibilidade de, ao se
apoderar das propostas de colapso da dualidade entre mente corpo feita nas obras
Fenomenologia da Percepção (1962), de Maurice Merleau-Ponty e Esboço de uma Teoria da
Prática de Pierre Bourdieu (1977), situar o corpo como o sujeito da cultura, sua base
existencial.

Csordas começa a construção de sua perspectiva metodológica ao usar a


fenomenologia de Merleau-Ponty que propõe uma superação do paradigma dualista sujeito-
objeto e mente-corpo na percepção do mundo ao definir o corpo como um “contexto em
relação ao mundo”, sendo assim a consciência é o corpo que se projeta no mundo. A
percepção do objeto cessa de ser o resultado de um pensamento secundário reflexivo que
busca apreender, pela mente, o objeto e passa a terminar nos objetos já que a nível de
percepção “não existem objetos, nós simplesmente estamos no mundo”(CSORDAS, 2008, p.
106). Dessa perspectiva a distinção sujeito-objeto realmente não faz sentido já que os objetos
se tornam o resultado final da percepção, o produto posterior a uma experiência perceptiva
pós-abstrata, e não uma realidade prévia à percepção que seria captada passivamente pelos
sentidos.

Assim torna-se necessário buscar o lugar onde começa a percepção já que “a


fenomenologia é uma ciência descritiva dos processos existenciais, não de produtos culturais
já constituídos”(CSORDAS, 2008, P. 107). O lugar é o corpo que está no mundo e o conceito
desenvolvido para esse lugar, na perspectiva de Merleau-Ponty, é o pré-objetivo “aquele
momento de transcendência no qual a percepção começa, e, em meio à arbitrariedade e à
indeterminação, constitui e é constituída pela cultura” (CSORDAS, 2008, P. 107), instante
que a antropologia fenomenológica da percepção busca apreender. O conceito de pré-
objetivo, por conseguinte, permite a possibilidade de análise do processo de conferir
significado cultural, ou ao processo de objetificação de uma seqüência contínua de fatos.

Continuando a superação do paradoxo semiótico-performático na construção de um


paradigma da corporeidade, Csordas faz uso do conceito de habitus como empregado por
Pierre Bourdieu35: um “sistema de disposições duráveis, princípio inconsciente e
35
O primeiro autor da antropologia a usar o conceito de habitus é Marcel Mauss em seu ensaio As Técnicas do
Corpo (1937) onde define o conceito como a soma total dos usos culturalmente padronizados do corpo em uma
22
coletivamente inculcado para a geração e a estruturação de práticas e representações”
(BOURDIEU, apud CSORDAS, 2008, p. 109) o que é uma definição de interesse para a
construção do horizonte teórico dessa pesquisa já que “focaliza o conteúdo psicologicamente
internalizado do ambiente comportamental” (CSORDAS, 2008, p. 109). Em outras palavras,
habitus é o processo cognitivo e avaliativo - que gera e dá unidade a todas as práticas – em
conjunção com a realidade objetiva, suas aspirações e práticas completamente compatíveis
com tal realidade. Como diz Csordas usando como referência Bourdieu: “Na sua relação com
estruturas objetivas é o princípio gerador de práticas, enquanto na sua relação com um
repertório total de práticas sociais, é o princípio unificador”(CSORDAS, 2008, p. 110). Esse
processo avaliativo e cognitivo também pode ser chamado de corpo socialmente informado
pois esse corpo será o sujeito da prática, da performance. Assim Bourdieu colapsa o dualismo
corpo-mente ao analisar o fato social não como categoria e sim como processo de
categorização.

Caso não fossem utilizados ambos os paradigmas, surgiria a possibilidade de se fazer


uma etnografia incompleta devido ao fato de que o Candomblé, como qualquer outro
fenômeno social, se desenrola em ambas as esferas, tanto a discursiva quanto a performática.
Ao utilizar unicamente o paradigma semiótico, este somente poderia abarcar a produção
discursiva da religião, seu conhecimento oral, itans, odús, rezas, simbologia divina e o
conhecimento matemático oracular. Assim sendo seria mais difícil dar conta do fenômeno do
transe, eixo central na produção performática de sentido no Candomblé: é no transe que o
orixá se manifesta recriando no movimento do corpo do adepto, na dança durante o xirê, sua
identidade mítica; também é ao agenciar um corpo, muitas vezes despido de consciência de
seus atos, que o orixá traz e fixa o Axé no Ilê, nos adeptos que o freqüentam ou a comunidade
na qual se localiza. Mas as performances durante o transe só fazem sentido porque são parte
do habitus daquela comunidade, imprimido durante a iniciação e recorrência dos rituais,
socializando o transe, atribuindo-lhe significado. Essa codificação do transe ocorre através da
regulação do corpo no espaço ritual, na construção de um repertório dotado de músicas e
ritmos que capturam a percepção pré-objetiva do adepto resultando no orixá, reconhecido
como produto da ação do sagrado pela comunidade religiosa daquele adepto.

Como contribuição ao projeto de uma antropologia fenomenológica também é

cultura (CSORDAS, 2008).


23
interessante citar a etnografia feita pelo antropólogo americano Paul Stoller, em Fusion of
Worlds (1989), sobre os ritos de possessão da sociedade Songhay36 e o crescimento de seu
panteão de deuses a medida que fatores sócio-históricos influenciaram o cotidiano da
população. Em referida obra o autor mostra como um dos cultos mais recentes a certos deuses
novos ao panteão Songhay (Os Hauka37 e as Sassale38, cuja existência está diretamente ligada
a colonização anglófona e francófona da África ocidental) são reflexos das novas
configurações perceptivas e sociais acerca da realidade colonial (de 1890 até 1970) a qual se
encontravam submetidos os Songhay.

Os Hauka surgiram como meio de resistir a dominação colonial com seus projetos de
reeducação de uma parte da população local (pequena elite evolué que manteria o povo
submisso aos colonizadores) e controle militar e econômico da parte restante, ao produzir no
transe de seus médiuns, durante os rituais de evocação dos deuses, uma performance
exageradamente caricata, cômica e satírica imitando certos europeus. As performances dos
espíritos são violentas, babam e espumam incessantemente por uma boca fixada a uma
máscara facial que mostra espanto, raiva e escárnio. Ao se comunicar são mal educados,
xingando com freqüência e falando em uma mistura de songhay e dialetos de francês e inglês,
modos de linguagem pouco apreciados pelos colonizadores já que são utilizados pelas
populações colonizadas ou sujeitos marginais a sociedade (ladrões, por exemplo). Assim
viam os Songhay seus colonizadores, como diria Stoller, um burlesco aterrorizante 39
(STOLLER, 1989).

36
Songhay: Os Songhay são um grupo étnico da África Ocidental relacionado com o povo Mandê. Sua origem é
o Império Songhay que foi um estado pré-colonial africano e grande civilização da África ocidental, em Mali.
Do início dos século XV até o final do século XVI, Songhay foi um dos maiores impérios africanos da história.
Este império tinha o mesmo nome de seu grupo étnico dominante, os Songhay. Sua capital era a cidade de Gao,
onde um pequeno estado Songhay já existia desde o século XI. Sua base de poder era sobre a volta do rio Níger
nos dias atuais Níger e Burkina Faso. A palavra também é o nome da língua por eles usada.
37
Hauka: deidades que começam a ser cultuadas em 1925 no Níger, dizem-se espíritos que representam
determinados personagens do drama social que foi a colonização francesa do Mali, Níger e Burkina Faso. Os
Hauka também encarnam a “força” física, tecnológica, que veio com os colonizadores e subjugou os aguerridos
Songhay. Os indivíduos que estão sujeitos ao transe dessas deidades encarnam personagens tais como
comandantes, capitães, generais, governadores coloniais, médicos ou aristocratas europeus – atores sociais do
regime colonial - que, uma vez mortos, retornam para, através de seu culto, mediar as relações entre o mundo
social e aquele dos espíritos. Essa mediação também serve como meio possibilidade de significar e resistir a
colonização através de sua relação com o sagrado.
38
Sassale: espíritos femininos, [incluir o caráter sexual, licencioso do panteão] similares aos Hauka, que também
ajudam os Songhay a entender as novas dinâmicas sociais nas quais foram inseridos.
39
“(...) a terrifying burlesque” tradução minha, STOLLER, 1989, p. 156.
24
Por conseguinte o transe pelos Hauka pode ser considerado, em parte, resultado da
política colonial francesa, que ao subverter drasticamente o cotidiano de suas colônias
impondo seu modelo de sociabilidade estrangeiro, produz uma crise social que possibilita o
surgimento de novas formas de produção de sentido, através de performances várias (nesse
caso performance ritual) que vem auxiliar os indivíduos colonizados na mediação de suas
subjetividades com as novas formas indesejáveis de poder, sociabilidade e dominação.

Neste caso o transe pelo Hauka pode ser visto como uma expressão das práticas de
colonização na memória coletiva, representações sociais e sentidos gerados durante o
processo sócio-histórico colonial que ganharam uma corporificação, ou seja, performances
que foram absorvidas pelo habitus dos Songhay permitindo a produção de novos sentidos
acerca da experiência de colonização.

O transe no Candomblé também pode ser visto como uma expressão da memória
coletiva dos negros que foram trazidos a estas terras. Pois é nesse espaço de inconsciência que
surge no transe, que se recupera toda uma memória musical – com seu conhecimento oral – e
memória motora – com os ritmos e posturas que movem a performance – que traz à luz a
sombra de africanidade da cultura brasileira. No transe o adepto brasileiro recupera uma de
suas matrizes identitárias, a africana, ao receber o orixá, deidade oriunda desse continente.
Dessa forma mantém-se viva a memória de outros lugares, outros costumes, outros povos que
foram subjugados e silenciados por uma expansão colonial que quase os aniquilou, mas
conseguiram sobreviver em seus deuses que tomam os corpos de seus descendentes
espirituais. De algum modo a possessão pelo orixá contradiz a auto-representação dominante
da sociedade brasileira como parte da civilização ocidental.

Logo, fica clara a necessidade do uso de ambos os paradigmas na construção de uma


etnografia que busque abarcar a maior parte possível do fenômeno vivenciado em campo.

Uma vez desenvolvido o vínculo etnográfico com o espaço social, podendo-se


transitar com certa liberdade pelo tecido social. Será através de eventuais conversações,
desenvolvidas sobre um modelo de entrevista semi-estruturada, com determinados sujeitos,
escolhidos ou que se apresentam, que certos tópicos de interesse para a pesquisa serão
abordados. A conversação é um instrumento fundamental para se especificar a compreensão
sobre determinadas áreas de interesse etnográfico, já que no seu desenrolar emergirão
25
sentidos subjetivos tanto do etnógrafo quanto do sujeito, oriundos da contraposição de ambas
as experiências que irão gerar tensões e dúvidas. Dessas dinâmicas surgirá uma riqueza de
informações como argumentos, fortes emoções, sentidos extraverbais, entre outras
possibilidades dialógicas, que a posteriori serão organizadas dentro do horizonte ou
arcabouço teórico que será utilizado pelo pesquisador na interpretação das impressões
colhidas (GONZÁLEZ REY, 2005).

Portanto, terminada a experiência de campo, o trabalho etnográfico será a


interpretação das impressões colhidas em campo. Nesta parte da pesquisa o marco teórico é a
Teoria da Subjetividade Social de Fernando González Rey.

A idéia de subjetividade possui uma longa história na cultura ocidental. Podemos


atribuir a Danus Scotus e Spinoza as primeiras conceitualizações do que posteriormente seria
a subjetividade, quando o frade escocês e o filósofo judeu falaram, respectivamente, de uma
essência hecceidade e de corpos pensantes.

Desde então a idéia se desenvolveu a medida que o tecido social mudava com o passar
do tempo e o fazer da história. O conceito de “subjetividade” que está sendo articulado aqui
surge na obra de González Rey (2003, 2004, 2005) como um desenvolvimento da idéia de
personalidade presente na psicologia. No entanto o conceito transcende uma simples
ressignificação conceitual, já que a palavra “personalidade” traz consigo todo um arcabouço
semântico oriundo das teorias psicodinâmicas que aceitam a constituição do sujeito pelo
espaço social, mas pressupõem a imanência de uma essência ou funcionamento psíquico não
alterável pelo ambiente. Já a subjetividade segundo González Rey (2005) se constitui tanto no
sujeito individual, quanto nos diversos espaços sociais em que vive, ambos, sujeito e espaço,
sendo os constituintes da subjetividade. Assim sendo:

o sujeito individual está inserido, de forma constante, em espaços da subjetividade social, e


sua condição de sujeito atualiza-se permanentemente na tensão produzida a partir das contradições
entre suas configurações subjetivas individuais e os sentido subjetivos produzidos em seu trânsito pelas
atividades compartilhadas nos diferentes espaços sociais. (González Rey, 2005, p. 25)

Portanto se utiliza o conceito de subjetividade para poder interpretar o processo de


produção de sentido do sujeito, no campo, sujeito que está sendo agenciado permanentemente
26
por novos sentidos subjetivos durante seu trânsito no espaço social.

Já o sentido subjetivo surge indiretamente na qualidade da informação colhida, nas


mais diversas maneiras do sujeito se expressar, como emprega uma determinada palavra em
sua narrativa, no nível de elaboração dos vários tópicos abordados, como se emociona diante
de um momento ou aspecto de sua narrativa. (GONZÁLEZ REY, 2005). Assim, ao se
interpretar as impressões colhidas em campo, ocorrerá um processo que é qualificado como
construtivo-interpretativo. Construtivo porque o pesquisador se tornará um núcleo ativo
gerador de pensamentos e de construção teórica sobre a experiência vivida em campo, e
interpretativo porque será através da sua produção de sentido subjetivo que o outro, o sujeito
no campo, será significado á luz de suas construções teóricas.

Por conseguinte, ao retomar o termo “sujeito”, vemos como este ganha uma dupla
importância como marco teórico para a presente pesquisa: além de ser o eixo interpretativo do
relato etnográfico, simultaneamente descreve a situação de alguns indivíduos de estamento A
& B, inseridos em um espaço social tradicionalmente pertecente a outros estamentos, sendo
postos em situações de tensão permanente produzidas a partir das contradições sócio-
históricas identitárias, descritas no primeiro capítulo, enquanto transitam pelo Candomblé.

No entanto é importante lembrar que seria ingênuo considerar todo adepto do


Candomblé um “nativo” amorfo e homogêneo, onde mediante um processo de essencialização
representacional (CLIFFORD, 2000) esse sujeito seria a representação de um povo, ou
cultura, como um todo. Como diria CLIFFORD (2000): “Muitos desses interlocutores,
indivíduos complexos, forçados a falar em nome do conhecimento "cultural", revelam ter suas
próprias propensões "etnográficas" e histórias interessantes de viagens”(p.53). Portanto é
fundamental: “que assumir a tese da construção cultural da realidade aumenta a necessidade
de explorar empiricamente o grau de padronização na esfera da cultura e a diversidade de
fontes desses padrões. (BARTH, 2000, p. 120).

27
4. ETNOGRAFIA:

“(...) Obatalá modelou em barro os humanos,


e o sopro de Olodumaré os animou.
O mundo agora se completara.
E todos louvaram Obatalá”.
(PRANDI, Mitologia dos Orixás)

Neste capítulo se fará o relato etnográfico: uma apresentação do trabalho de campo


que será, ao mesmo tempo, a descrição da etnografia feita com a inclusão de certas narrativas
dos sujeitos observados (aquelas pertinentes ao objetivo desse projeto) e uma análise dessas
narrativas baseada na fundamentação teórica proposta. Pelas próprias características do
método utilizado nesta pesquisa, não é possível desvincular descrição de campo e análise.
Além disso, por ser uma metodologia de caráter construtivo-interpretativo, a etnografia não
corresponde a protocolos rígidos de pesquisa e justifica alterações e correções de estratégias
investigativas e de interpretações provisórias do material de campo durante a própria
experiência de campo.

O capítulo será apresentado seguindo uma narrativa que iniciará com a descrição e
contextualização de alguns terreiros que foram freqüentados em busca dos sujeitos de

28
estamento A e B, grupo sócio-econômico contemplado por esta pesquisa, passando por uma
descrição de ritual, terminando com os relatos de certos sujeitos cujas experiências foram
registradas em entrevistas feitas após o estabelecimento de um vínculo etnográfico e cujo
conteúdo será articulado com a fundamentação teórica desta pesquisa buscando responder as
perguntas que foram feitas no objetivo.

Ao relato e sua análise:

O que mais impressionou quando nos aproximamos do terreiro de R.O. é o Morro da


Capelinha, um monte no meio de um vale árido de cerrado, as cores laranja, ocre e marrom
impressas na terra por um céu cobalto e um sol dourado. Esse terreiro fica ao lado de dois
marcos religiosos de outros credos: o Morro da Capelinha, onde ocorre todo ano a Via Sacra,
e a comunidade espírita do Vale do Amanhecer. A terra onde está esse terreiro não podia ser
mais apropriada, é dupla, e com o terreiro, triplamente sagrada.

O local onde este terreiro está localizado foi uma quebra perceptiva com o que eu
tinha me acostumado a ver: terreiros localizados dentro de perímetros urbanos, geralmente em
periferias, longe do centro das cidades. Nesta etnografia fui a três terreiros, dois deles ficam
em cidades satélites, um em Sobradinho II e outro na Ceilândia (o terceiro já sabemos onde
fica) ou seja, sequer se encontram em Brasília40. Várias hipóteses surgem para buscar entender
essa característica de localização periférica. Por um lado, após pensar brevemente no assunto,
poderia se dizer que é devido ao fato de que muitos rituais são conduzidos noite adentro,
ditados pelos ritmos pervasivos41 e magnéticos dos tambores, perturbando a ordem pública.
Isso se torna problemático em zonas densamente povoadas em que é vigente, como em todo
território nacional, a lei do silêncio que proíbe barulho após as dez da noite. É uma
interpretação que tem seu valor imediato, mas é muito superficial. Afinal, cultos
neopentecostais, carismáticos, espíritas e mesmo algumas casas de Umbanda localizadas em
zonas urbanas centrais, que também se valem de música alta, exclamações de louvor e dança
(em alguns casos) não se sentem nem um pouco intimidados pela lei do silêncio.

É necessário ir um pouco mais a fundo. Acredito que a palavra que guie a análise de

40
Brasília representa ambas as Asas, ambos os Lagos, o Cruzeiro Velho e Novo, Sudoeste, Noroeste, Vila
Planalto e Telebrasília.
41
Pervasivo: anglicismo que se origina da palavra inglesa pervasive e significa, que se infiltra, que penetra;
espalhado, difuso; penetrante.
29
localização dos terreiros seja “marginal”. Representante e reduto de resistência da memória
africana no Brasil, o Candomblé ainda é visto como uma prática obscura, legal somente em
dois estados cuja população é predominantemente negra (Pernambuco e Bahia), e até certo
ponto vista como moralmente reprovável por um parte significativa da sociedade brasileira
que se identifica primariamente com o arcabouço cultural herdado da Europa. O espaço
público do centro da cidade é reservado para centros comerciais, sedes dos poderes do Estado,
igrejas oficiais do Estados laico, centros de difusão da cultura nacional e para ver e ser visto
por aqueles que detém o poder. Portanto faz sentido que os terreiros estejam longe dos centros
urbanos que encarnam um ideal de civilização que se constrói sobre os ideais de urbe
herdados dos europeus. Exemplo disso são os terreiros que se apinham nos morros do Rio de
Janeiro ou que se comprimem entre os barracos de compensado nas favelas de São Paulo,
apesar da enorme densidade demográfica.

No Distrito Federal, capital construída sobre o ideal de consolidação e progresso do


estado moderno, que surgiu na Europa a partir do século XIX, não podia ser diferente: o
Candomblé se encontra na periferia. Mas há uma perversa ironia nesse fato, já que a capital
do Brasil deveria ser a representação da totalidade dos povos que geraram este país. Vejamos
bem, a população que conforma a maioria de Brasília é de estamento A ou B42, população que
é historicamente identificada com as práticas religiosas cristãs ou kardecistas, de
predominância branca e que possui uma série de representações sociais sobre o Candomblé e
a cultura afro-brasileira que são derrogativas. Afinal, após séculos de exclusão econômica e
social e intolerância racial construiu-se o estereótipo de que negro é pobre, pobre é favelado e
favelado é ladrão, violento e ignorante. Sob certa perspectiva que ainda acredita em políticas
públicas de sanitarização do espaço público, torna-se inevitável pensar que indivíduos do
gênero devem ser mantidos a margem da “civilização”.

Vejo que a primeira explicação para o caráter periférico da localização dos terreiros na

42
Afirmação feita em base aos dados obtidos no site do Governo do Distrito Federal onde Brasília possui os
mais altos índices de renda domiciliar – 23,53 salários mínimos - , renda per capita – 7,55 salários mínimos -,
expectativa de vida – 77, 17 anos – e o mais alto índice de desenvolvimento humano – 0.94 – do Distrito
Federal. Por outro lado, importante perceber que os índices de desenvolvimento humano representam uma
fictícia média per capita, que pode ocultar uma profunda desigualdade social. Se o alto escalão do funcionalismo
público federal ou certo setor empresarial possui a maior renda, ao mesmo tempo as periferias, em particular o
chamado Entorno, estão em condições precárias em termos de infraestrutura urbana, renda, condições de vida,
etc.

30
realidade acaba por ficar em um último plano.

Mas não só de exclusão é definida a localização dos terreiros. Também é necessário,


sempre que possível, que estes tenham acesso a matas virgens onde possam retirar as folhas
que são fartamente utilizadas no culto, pois como já disse anteriormente, kosi ewê, kosi orixá
(sem folha, não há orixá), fazendo com que, sempre que se possa, o terreiro seja localizado
em algum terreno onde ainda haja preservada alguma mata. Como é difícil adquirir um espaço
de terra com essa característica, somente os terreiros mais tradicionais e alguns poucos mais
abastados estão ligados a esta última explicação da localização periférica. O que não quer
dizer que outros terreiros não tenham acesso as folhas necessárias, há um enorme mercado,
formal e informal, que supre sua demanda.

Voltando as imediações do Morro da Capelinha, o terreiro começou com a


necessidade de R.O. ter um espaço para guardar os assentamentos de seus orixás, os ibás43,
depois de ter deixado o terreiro onde foi iniciado. R.O. conta que o abandono foi devido a
uma decepção muito grande com seu ex-babalorixá, que ele preferiu não explicitar, falando
por alto de questões de falha de comunicação e relações interpessoais dúbias. Tendo sido feito
de santo há cinco anos, R.O. não hesitou em buscar um novo local para seus assentamentos,
ficando alguns anos com eles em casa antes de finalmente conhecer o B.O.. que, estando sem
terreiro devido a uma trajetória de vida religiosa muito incomum, se dispôs a cuidar dos
assentamentos de R.O. e tocar um pequeno Candomblé num condomínio rural próximo a
Planaltina.

Antes de falar sobre a experiência de R.O., e dos outros dois sujeitos cujas narrativas
foram escolhidas como eixos argumentativos para articular as perguntas propostas no
objetivo desta pesquisa, preciso esclarecer que nenhum terreiro de Candomblé é igual ao
outro. Tudo varia, desde como o espaço é ocupado e organizado até como o Candomblé é
tocado.

Começarei pelo terreiro do L.O., que se situa em Sobradinho II. Espaço grande que lhe
foi presenteado por um adepto abastado e inserido no mundo político em troca de uma série

43
Ibá: conjunto de pratos e elementos rituais decorativos dispostos em forma de pétalas dentro de uma bacia de
ágata que tem em seu centro o otá, ou a pedra onde está concentrada uma certa quantia de energia do orixá e
serve como seu ponto de referência no mundo profano. O ibá também pode ser compreendido como uma
metáfora para a cabeça do iaô.
31
de trabalhos espirituais, o ilê segue as regras do que se esperaria ver em um espaço sagrado
Ketu. Ao entrar no terreiro percebi que é mais do que um simples local reservado para a
louvação dos orixás, é uma verdadeira comunidade. Além dos espaços, casas ou pequenas
choupanas, onde estão contidos desde os assentamentos dos vários adeptos da casa - cada
espaço sendo dedicado a um orixá e disposto segundo a ordem do xirê, começando pelo
espaço de Exu, na entrada do terreno, e terminando com o de Oxalá, mais no fundo do terreno
– há vários outros espaços, também construções, que servem funções que vão desde acomodar
os adeptos e babalorixá que lá vivem, até servir como locais onde se recebe o público durante
festas, onde são feitas consultas aos cauris, onde se toca o xirê (geralmente sob a cumeeira em
cuja base está plantado o axé da casa que é feito de um conjunto de ervas, sementes e objetos
sacralizados que são enterrados abaixo da cumeeira e estabelecem a qualidade44 da energia do
terreiro) ou onde se recolhem adeptos que estarão se iniciando.

Assim a vida social nesse terreiro é intensa, quase sempre há um grupo de adeptos de
preceito fazendo sua iniciação e, para tanto, há sempre um grupo de adeptos mais graduados
(ogãs, ekedjis que juntos somam ao redor de vinte pessoas) que, ao viver no terreiro, dão
suporte as atividades rituais desenvolvidas pelo babalorixá. Geralmente os adeptos residentes
são oriundos de estamentos C e D, membros de comunidades próximas ou do bairro onde o
terreiro se encontra, que ao ter ingressado na religião encontram em seu cotidiano um meio de
sobrevivência ao prestar serviços ao babalorixá, que por sua vez os remunera monetariamente
e lhes fornece um local para viver. Noto que este terreiro serve a uma ampla gama de adeptos
de estamentos sociais diferentes.

Finalmente, por seu tamanho e devido ao fato de que antes de ser um terreiro o terreno
era tomado pela mata, somente parte desse mato foi desbastado para a construção das casas, o
resto foi preservado como fonte de algumas ervas e folhas que são necessárias ao culto.

Ao andar nesse ilê muitas vezes me lembro das fotos que vi em vários livros sobre
tradicionais cidades e aldeias africanas ocidentais no Benin. Percebi que na disposição dos
espaços no terreiro, de acordo com a ordem do xirê, ou das disposições espaciais ditadas pelo
sagrado, há um distante eco das disposições do espaço urbano africano, o que faz sentido se

44
Qualidade se refere ao mesmo tempo as características simbólicas que aqueles elementos irão conferir ao axé
do terreiro e irá conectar o terreiro a uma linhagem de axé passada por sucessivas gerações de babalorixás ao
longo do tempo.
32
for levar em conta que a estruturação do cosmos pela religião era um dos referenciais
utilizados pelos povos antigos na construção de suas cidades (ELIADE, 2001). Roger Bastide,
em seu O Candomblé na Bahia (1978) também discute a estruturação do espaço do ilê no
Brasil, porém através da oposição do espaço profano e do espaço sagrado como elemento
estruturador da disposição arquitetônica das construções no terreiro. É dele uma citação
importante que fundamenta a impressão que tive da recriação de espaço africano no Brasil:

Assim, a primeira oposição entre o sagrado e o profano é oposição entre África e Brasil; por
conseguinte, o sagrado não poderia existir na Bahia, como nas outras cidades brasileiras, senão na
medida em que a África for previamente transportada de um lado a outro do oceano. É a primeira
consagração de que devemos nos ocupar (havendo em seguida outras, mas que pressupõem esta
primeira): a africanização da pátria de exílio, ou, de preferência, o candomblé como um pedaço da
África. (BASTIDE, 1978, p. 73)

Mas esse não é o caso do terreiro em Sobradinho II. O ilê na Ceilândia reverbera
muito mais as disposições de um mundo moderno, urbanizado. Em seu espaço se repetem as
disposições espaciais ditadas pela ordem do xirê, mas o terreiro não possui um terreno grande
com mata que pode ser considerada virgem e tampouco possui espaços específicos para cada
orixá o que implica em juntar orixás em um mesmo quarto de santo de acordo com seus laços
biográficos míticos (por exemplo as mulheres de Xangô, Oxum e Iansã, podem ficar junto a
Xangô, mas Obá não pode ficar no mesmo quarto já que Oxum foi quem a tirou de Xangô,
sendo a ela reservado um outro quarto, geralmente com Nanã, ambas relacionadas ao fim da
vida no aiyê). O chão de concreto predomina no cenário, a não ser em determinados espaços
(dentro de algumas salas dedicadas aos orixás) onde é necessário se ter terra batida para que
haja contato com o axé do aiyê. As plantas que lá se encontram estão em vasos e são usadas
para propósitos decorativos ou medicinais, não como elementos de transmissão, acúmulo ou
permutação de axé. No entanto as folhas necessárias são obtidas nas feiras permanentes de
várias cidades satélites, são compradas em casas comerciais especializadas em sua venda ou
são trazidas pelos adeptos que as obtém por fontes particulares.

Neste terreiro não se pode falar de uma comunidade residente, já que são poucas
pessoas que lá vivem: o babalorixá, um babalorixá auxiliar (babá kekerê, ou pai pequeno) e
dois ou três ogãs e ekedjis que podem variar em número (sempre menos) dependendo de sua
disponibilidade, fato que não implica pouco movimento: quase sempre há um grupo de

33
adeptos sendo recolhido para os rituais de iniciação. Os adeptos que lá freqüentam também
variam muito de estamento social não havendo a predominância de um determinado
estamento. Um dos informantes dessa pesquisa é oriundo desse terreiro.

Apesar das diferenças entre os dois ilês, ambos tem uma característica em comum,
fazem muito trabalho social, tendo uma enorme projeção em ambos os bairros que estão
localizados. O trabalho social feito por terreiros é uma função praticada com freqüência por
grandes e médios terreiros de Candomblé como estratégia para estabelecer alianças, angariar
adeptos, visibilidade e propor outras formas de superar a exclusão social sofrida pelas
comunidades em que exercem seu culto. Assim são respeitados e abrigados com orgulho pelas
comunidades em que estão situados.

O terreiro de R.O. em nada se parece com os dois citados anteriormente, a não ser pela
sempre presente estruturação do espaço segundo a ordem do xirê. Situado em um condômino
que se assemelha mais a um núcleo rural próximo a Planaltina (Distrito Federal) o terreiro
consiste em uma pequena casa, murada, com uma sala, três quartos, um banheiro, cozinha,
área de serviço e um quintal de no máximo vinte metros quadrados. B.O., pai de santo que
zela pelos assentamentos de R.O. e usa o espaço disponibilizado por R.O. para desenvolver
um pequeno Candomblé, reside em um dos três cômodos da casa, os outros dois sendo
dedicados respectivamente a armazenar os ibás e recolher eventuais adeptos a serem iniciados
ou iaôs que podem estar sendo recolhidos por várias razões rituais. O Candomblé é celebrado
na sala, espaço retangular vazio, de chão em concreto com uma cumeeira, viga de madeira
simples em seu centro.

Os adeptos que freqüentam o terreiro são, em sua maioria, pessoas de fora da


comunidade em que se encontra o ilê. Grupo composto por filhos de santo de B.O., são
oriundos de diferentes estamentos e de diferentes parte do Distrito Federal, e congregam-se no
terreiro devido a sua filiação espiritual. A comunidade ao redor do terreiro também goza dos
serviços de B.O. e seu ebé (família de santo), mas não são todos da comunidade que recorrem
ao terreiro. Os serviços dos quais gozam podem ser considerados como trabalho social no
instante em que, ao celebrar o Candomblé ou um bori45, o axé do Olorún é distribuído entre os
indivíduos da comunidade, que participaram da festa, fazendo com que a dádiva divina seja
45
Ritual em que comida é oferecida ao ori, cabeça do adepto, para fortalecê-la, lhe trazer um bom caminho e
fortalecer sua relação com o orixá.
34
levada a comunidade. Outras iniciativas por parte dos membros do terreiro também podem ser
indicadas como trabalho social que beneficia a comunidade na qual se encontra o terreiro,
como por exemplo, ao montar o barracão46 R.O. percebeu que não havia sequer um telefone
público no condomínio. Por ter sido ex-empregado da Brasil Telecom, R.O. pôde articular a
instalação de um telefônico público na rua do terreiro, que ajudou em muito a vida dos
residentes do condomínio ao facilitar seu acesso a um meio de comunicação imprescindível
que não lhes havia sido fornecido pela agência imobiliária que havia feito a loteamento do
terreno.

Voltando ao tema da variabilidade entre os terreiros e falando especialmente de suas


práticas rituais e cosmologia, esta se torna compreensível se pensarmos a religião construída
sobre o conhecimento que reside na memória oral e na manifestação corporal do sagrado.

O conhecimento oral, onde se gera e se reitera o discurso da cosmologia, está sujeito


não só ao simples esquecimento por desuso, como também aos agenciamentos que articulam
esse discurso. Assim o panteão de orixás de cada casa de santo pode variar dependendo de
alguns fatores, como o fato de que alguns orixás sejam mais ou menos prestigiados pelo povo
de santo47; a manutenção de certos orixás cujo culto se fortaleceu a medida que iniciações a
outros orixás foram se tornando cada vez mais raras, relegando-os ao esquecimento; ou que,
na incessante reinterpretação do conhecimento oral, foram ganhando novas feições, mudando
de características e assim foram transformando o panteão ao qual pertencem.

Várias podem ser as razões dessas variações de panteão entre terreiros, desde a origem
histórica do terreiro – por exemplo, em Pernambuco, Xangô é o orixá principal devido as
populações de origem Ketu em cuja história Xangô figurava como um rei/antepassado
importante da cidade de Oyó, capital do Iorubás – até razões políticas como o interesse de um
pai de santo que seu orixá seja o mais importante da casa para lhe conferir um status ainda
mais elevado em seu terreiro. Assim surgem as mais inesperadas reinterpretações dos mitos
para justificar os mais variados agenciamentos do discurso cosmológico, como por exemplo
itans em que aspectos da vida sexual de um determinado orixá podem até ser modificados por
completo para torná-lo em algo diferente: é caso de Xangô novamente, que em certos terreiros

46
Edificação onde será tocado o Candomblé, guardados os assentamentos, iniciados novos membros.
47
Povo de santo: expressão para designar o conjunto de adeptos, sacerdotes e auxiliares iniciados que
constituem a comunidade que pratica Candomblé.
35
se aceita que tenha tido relações incestuosas com sua mãe Iemanjá e já em outros essa parte
de sua biografia é desconhecida e negada devido a violência e criminalidade atribuída ao seu
ato.

A variabilidade de práticas também se estende para além da reinterpretação discursiva,


já que a manifestação do orixá também está sujeita às características subjetivas do corpo no
qual se manifesta. Cada corpo é um corpo, socialmente informado por instâncias coletivas
mas que se faz-no-mundo de maneira única. Portanto, o transe pelo orixá se torna ao mesmo
tempo uma reiteração da biografia mítica do orixá, através da repetição de certos gestos que o
identificam, e a reatualização da memória coletiva da comunidade que celebra o Candomblé,
ambas passando pelo corpo do adepto que possui seu próprio repertório de práticas corporais.
Será assim que determinado transe por um orixá poderá variar não só devido as características
do orixá, ou do habitus da comunidade na qual ocorre o ritual, como também devido a
singularidade do corpo no qual se manifesta. É importante salientar que o habitus comunitário
encontrado na gestualidade de cada orixá é devido a “educação corporal” que o orixá recebe
em um ritual chamado de perfuré: instante em que o babalorixá ou ialorixá ensinará o orixá a
dançar e reproduzir aqueles gestos que irão identificá-lo perante o povo de santo, socializando
um transe que antes era bruto, uma parálise do corpo e inconsciência que indicava a presença
do santo mas não sua identidade. Ao circular pelos terreiros percebi isso claramente ao me dar
conta de que, apesar da padronização dos gestos de cada orixá recriando sua identidade
mítica, eu observava divergências entre transes que eram devidas as diferenças, não somente
entre orixás ou instantes de sua biografia que estavam sendo representadas, como também ao
repertório de práticas inerente ao corpo do adepto e suas disposições corporais (características
físicas como tamanho, peso, sexo ou idade).

Assim foi quando fui chamado para assistir a um xirê para Oxum no terreiro de L.O.
em Sobradinho II no mês maio desse ano (2010). Oxum é a orixá de cabeça deste pai de santo
que é feito de orixá a quarenta anos, portanto eu sabia que a festa em seu terreiro seria, no
mínimo, belíssima. Muito vaidoso e escrupuloso, como seu orixá, L.O. e seus filhos de santo
haviam preparado o terreiro para comemorar seus quarenta anos de devoção a Oxum.

Chegando no terreiro, acompanhado de uma amigo, percebi uma grande


movimentação. Várias pessoas do bairro chegavam a pé e num espaço do terreiro separado

36
para estacionar carros, não haviam vagas. Tivemos que sair do terreiro e estacionar nas
imediações. O clima no ilê era de festa, todas as luzes estavam acesas e várias casas, ou
choupanas, de orixá haviam sido repintadas, reformadas ou estavam suntuosamente
decoradas. A casa podia ser dirigida por Oxum, mas os outros orixás não eram menos
importantes e também mereciam ser agradados.

A caminho do barracão várias árvores e arbustos desprendiam fragrâncias sutis no ar


da noite, a que predominava vinha de uma arbusto conhecido como dama da noite, com seu
cheiro doce, envolvente e sensual, como a mãe Oxum. Entre cheiros, conversas e o admirar
das roupas e feições dos convivas, chegamos no fundo do terreiro: o teto do barracão estava
enfeitado de bandeirolas amarelas e brancas que se dispunham como uma teia cujo centro era
a cumeeira. No fundo do barracão estavam os três atabaques, atracados com laços brancos e
dourados, com os três ogãs que os tocariam noite adentro entoando com as pessoas presentes
vários cantos de louvação a Oxum. As ekedjis e ogãs que dariam apoio aos adeptos e ao pai
de santo em transe, estavam em volta do círculo onde os rodantes dançariam até tarde da
noite. Atrás deles estávamos nós, o público, composto por adeptos e simpatizantes das mais
diferentes origens sócio-econômicas.

A festa foi maravilhosa, mas para propósitos desse relato, irei me ater a observação
que é pertinente ao que foi discutido no parágrafo anterior: uma vez que entrou o pai de santo,
e os adeptos, que iriam receber Oxum, os atabaques se fizeram ressoar pela noite.
Confirmando a propriedade da casa, L.O. foi o primeiro a ser possuído por seu orixá, todos os
outros rodantes sendo possuídos a medida que os ritmos dos tambores foram se
intensificando. Uma vez possuído o rodante é levado para um quarto que fica atrás do
barracão e que pode ser usado também como quarto de iniciação. Lá, o orixá é paramentado,
ou vestido com os trajes rituais que simbolizam uma série de qualidades do orixá, para
retornar em seguida ao barracão e começar a dançar as toadas do xirê.

Como as mansas águas douradas pelo sol que correm nos rios, os turbulentos
redemoinhos das corredeiras ou o véu de gotículas que envolvem as bases das cachoeiras,
assim dançavam os corpos possuídos de homens e mulheres, tomados por Oxum. Apesar dos
corpos estarem representando Oxum em diferentes instantes de sua biografia mítica, portanto
desenvolvendo coreografias diferentes, eu percebia que as disposições corporais

37
influenciavam o desenrolar da coreografia. Como exemplo da influência da disposição
corporal e repertório de práticas do corpo, cito o caso de um iaô (com poucos anos de
feitura), de meia idade, que estava um tanto acima do peso: a gestualidade de sua Oxum era
muito mais insegura do que a das rodantes, e sua corpulência e possivelmente idade, faziam
com que, em alguns instantes de dança mais rápida, o orixá tivesse que parar para descansar e
repor as energias do corpo tomado. Já a Oxum do pai de santo, que também tem sua idade e é
uma pessoa sedentária, desenvolvia a mesma coreografia com uma graça, vigor e economia
nos movimentos. Vi na performance do pai de santo, e seu orixá, quarenta anos de informação
social do corpo. Um transe tão socializado, devido a reprodução sistemática de sua
performance, que os gestos se reduziriam, se simplificaram, aos mínimos movimentos que
representam com a maior clareza a presença da orixá Oxum e recontam minuciosamente sua
biografia mítica. A antropóloga Rita Segato, em seu livro Santos e Daimones (2005), também
faz essa observação ao discutir a qualidade muito mais tosca e caricata do transe de um adepto
recém iniciado versus a performance consumada de pais e mães de santo em um terreiro de
Xangô no Recife.

Uma vez feita a discussão preliminar sobre os terreiros freqüentados, contextualizando


seus espaços e práticas e tendo descrito um ritual, passarei aos relatos individuais que buscam
elucidar as perguntas feitas no objetivo desta pesquisa.

R.O. é o sujeito principal da pesquisa. Vindo de uma família carioca, de classe média,
católica, sua história pode responder a algumas das perguntas que fiz no início do projeto:
como quem seriam os adeptos dos estamentos A & B que freqüentam o Candomblé, o que
buscam e como foram atraídos ao Candomblé.

R.O. sempre fora católico, engajado, inserido em sua comunidade religiosa, até que, já
em seus 30 anos de idade, numa viagem absolutamente rotineira de trabalho, teve um sonho.
Pessoas de branco dançavam em círculo ao som de tambores, e ele mesmo, todo de branco
assistia calmamente o desenrolar da ação. Acordou incomodado e um pouco assustado, aquilo
não fazia parte do seu cotidiano. Nesse ponto de sua narrativa e anteriormente, já havia dito
algumas vezes e repetiu, que sua formação católica o havia influenciado profundamente, tinha
feito parte de grupos jovens no seio de sua comunidade, tinha passado pelos sacramentos,
freqüentava regularmente a missa com sua mãe. Portanto não havia dúvida, muito

38
impressionado e incomodado, concluiu que tinha sonhado com “coisas do Diabo”.

Com o passar daquele dia, o sonho perdeu sua força mas continuou rondando suas
idéias. Ao chegar a noite e a sua hora de dormir, pediu: “não quero mais sonhar com isso,
afaste isso de mim, sempre estive tão perto do Divino por favor me deixe nesse caminho”.
Sonhou com uma senhora negra, toda de branco, com adjá48 na mão, cabeça coberta pelo ojá49
que lhe dizia que era hora de buscar sua família, de voltar para onde vinha. Terminado o
recado, a senhora saiu da sua frente, e onde antes havia pessoas dançando, agora ali dançavam
todos os Orixás. R.O. nunca havia sido familiarizado com a simbologia ou estética do
Candomblé, e ao vê-los paramentados e em movimento, entendeu ainda menos o que assistia,
o que produziu um terrível mal estar.

Era necessário resolver esse problema. O sonho se repetia, sem violência, sem
intrusão, mas constante. R.O. recorreu à sua mãe, que havia sido Kardecista durante algum
tempo antes de se refugiar no catolicismo. Esta se lembrou de que uma tia sua, que morava no
Rio de Janeiro, era uma pessoa muito espiritualizada, estudava muitas religiões, sabia de
muita coisa. R.O. entrou em contato com sua familiar. Esta teve uma postura extraordinária:
ouviu tudo o que seu sobrinho tinha a dizer, sem interrompê-lo. “Tia, o que é isso que tá
vindo pra mim?” Esta pensou e respondeu: “você já perguntou ao seu padre?”

De volta a sua cidade natal (Brasília), o encontro ocorreu e os estereótipos


derrogativos do catolicismo acerca do Candomblé se repetiram: era “coisa do Diabo” mesmo,
e era culpa dele que havia se desviado do caminho virtuoso. Não era isso que R.O. estava
esperando. Buscou argumentar, disse que não era possível que a culpa fosse sua, afinal, era
um praticante constante e dedicado. Nada demoveu o padre de sua posição, inclusive pediu a
R.O. que este se afastasse da comunidade que ia ao culto, com medo que esta pudesse vir a
ser contaminada pelo Demônio.

Percebi o peso e a ironia na voz de meu informante que disse que ficou abismado
naquele instante: onde estava a rede de apoio? Onde estava a comunidade onde cada membro

48
Adjá: é uma sineta de metal, utilizada pelos sacerdotes do candomblé durante as festas públicas
acompanhando o toque e nas oferendas, com a finalidade de chamar os Orixás, ou provocar o transe. O objeto
pode ser de uma, duas ou três sinetas, e o cabo é do mesmo material que pode ser de bronze, metal dourado ou
prateado.
49
Ojá: tipo de torço ou turbante usado na cabeça nas religiões afro-brasileiras.
39
zelava pela saúde e espiritualidade dos outros? (Agora sendo do Candomblé, repetia que o
mesmo é construído em torno da unidade familiar, não à toa que a hierarquia é feita de pais,
mães, irmãos e irmãs, o ebé ou família, é a dinâmica que dá vida ao Ilê, na igreja sua
“família”e seu “pai”o haviam abandonado).

Transtornado, tornou a ligar para sua tia, que após ter ouvido a reação do padre,
decidiu orientá-lo e lhe disse que seu sonho era um “chamamento” do Candomblé. R.O. tinha
sido interpelado por uma mãe de santo e os Orixás. Agora sabia o que o chamava, de fato, o
chamava pelo nome e conversava, argumentava com ele: uma voz, ou a voz de seu Exú
Legba, exu pessoal que desempenha a função de guardião. Começou assim, uma relação com
divino, que em seus primórdios parecia ter alguns dos sintomas do que ele próprio definiu
como uma esquizofrenia. Meu informante dizia que a voz se fazia cada vez mais presente, em
todos os lugares, em instantes diferentes. Uma noite, desesperado com a voz incessante,
tentou “auto-exorcizar-se” numa discussão aos gritos que parecia ser consigo mesmo. Não
venceu a discussão.

Era necessário fazer alguma coisa, e sua tia lhe havia dado uma pista. Mas como
poderia confirmar que o que ocorria era de fato uma manifestação de caráter espiritual? Como
se podia acessar o divino no Candomblé? Ao buscar alternativas por intermédio de várias
fontes de informação, soube que através do sistema oracular dos búzios, ou cauris, poderia
dialogar com os Orixás. Mas, como teria certeza!? Como saberia que de fato, a pessoa que lhe
fizesse o jogo, estaria sendo honesta com ele? “Minta”, disse a voz. “Como assim? Mentir?!”
A estratégia seria simples, pesquisar quais eram as pessoas que poderiam produzir algum
sentido e pedir que “jogassem búzio” para uma queixa inexistente. Diria que tinha um irmão
gêmeo (mentira), que era muito mais educado do que ele, que só havia feito o secundário e
sempre tinha sido humilhado e frustrado por causa disso (mentira), e que agora seu pai havia
morrido deixando uma herança imensa para seu irmão e nada para ele (mentira). Caso o
interpelador dos Orixás dissesse que efetivamente aquilo era verdade, que seriam necessários
vários ebós, bom, aquela não seria a pessoa certa para ajudar R.O. O que ocorreu com
freqüência, até que meu informante se consultou com G.O.., que disse não ver nada daquilo
(irmão, pai, fortuna) no seu jogo, pedir desculpas, argumentar que talvez estivesse pouco
sintonizado com as energias no dia e que devolveria seu dinheiro. R.O., impressionado,
começou a pedir desculpas e a explicar o que o havia levado à casa de G.O..
40
Nesta narrativa surge um elemento importante, eixo que será utilizado para discutir
boa parte das perguntas que foram feitas ao se montar este projeto: o chamado. R.O. foi
interpelado por uma agência que não fazia parte de seu cotidiano, que surgiu num sonho,
experiência inconsciente, não racional, e indicou um nova possibilidade de estruturar sua
percepção acerca de sua experiência religiosa e subjetiva construindo-se sobre outros moldes
de diálogo e comunhão com o sagrado. Ao relatar sua aproximação com o Candomblé, R.O. é
claro: a religião de matriz africana não fazia parte de seu cotidiano, inclusive era vista como
uma ação de forças maléficas que buscavam corrompê-lo ou afastá-lo de sua comunidade
religiosa católica.

Vejo nesse apelo onírico o ressurgimento de uma memória africana que foi
sistematicamente marginalizada pela hegemonia da cultura européia na formação cultural
brasileira. A despeito da origem de classe média, sua filogênese caucasiana e educação
religiosa católica, a memória cultural africana escamoteada na construção da identidade
brasileira se apodera de um espaço de inconsciência, onde razão e consciência estruturadas
por um habitus ocidental não possuem força, onde o outro silenciado pelo estigma de
colonização e marginalização pode se manifestar.

Como na inconsciência do transe, é nos bastidores da consciência, o sonho, que a


memória cultural africana encontrou espaço para vir à tona e produzir um diálogo com o
sujeito, para resistir ao esquecimento e fazer ouvir sua voz relegada a subalteridade. Apesar
de não ser negro e não ter sido criado dentro de um ambiente onde a relação com o sagrado
era mediada por práticas religiosas de matriz africana, R.O. é brasileiro, sua identidade está
profundamente permeada por elementos culturais trazidos por populações do continente
africano. Seria uma ficção perversa imaginar uma identidade brasileira Feryriana onde a
cultura africana se “doou” à mestiçagem e se fundiu homogeneamente no projeto de uma
identidade formada por índios, europeus e negros. Pelo contrário, como os Hauka para os
Songhay, os orixás podem ser interpretados como uma forma de resistência das raízes
africanas desse país a hegemonia da cultura européia no Brasil.

Inclusive, ao me valer de um artigo da antropóloga Rita Segato, intitulado Raça é


Signo (2005), onde a autora esclarece os fundamentos para o estabelecimento de cotas raciais
nas universidades e discute o racismo na sociedade brasileira, torna-se possível ampliar a

41
discussão de estratégias de resistência da memória e cultura africana no Brasil, ao se
considerar uma observação feita pela autora sobre o Candomblé: a “(...) política inclusiva do
Candomblé, uma tradição africana que atraiu e incluiu eficientemente a população branca em
suas fileiras, constituiu uma estratégia decisiva de suas lideranças históricas para garantir sua
sobrevivência – crescer a expensas do Branco significou sobreviver (Segato, 1998, p.3)”. No
caso de R.O. essa política inclusiva transcende ao espaço social onde se produz o ato político
para reproduzir esse mesmo ato no espaço inconsciente regido pelos processos oníricos, onde
também estão contidos elementos de estruturação cognitiva da subjetividade.

Portanto, longe de ser uma busca pelo exótico, ou de uma reetnização ficcional, R.O.
foi levado ao Candomblé por forças que não são movidas pela necessidade de identificação
com uma comunidade. Como vinha de uma comunidade religiosa anterior a sua família de
santo, R.O. não se encontrava em uma situação onde a aderência seria uma maneira de
resgatar laços sociais de ordem comunitária, cada vez mais frágeis, e sanar angústias
decorrentes das incertezas de um mundo moderno líquido. Não, o Candomblé o chamou e não
o contrário.

O chamado também ocorreu com dois outros informantes dessa pesquisa, mas de
maneiras diferentes, estruturando duas experiências bastante diversas.

A primeira dessas experiências que gostaria de relatar é da adepta P.P., jovem mulher
de trinta e poucos anos, branca, com nível superior, casada e de estamento B. Diferente de
R.O. ou L.G., informante cuja história será analisada depois da de P.P., esta já vinha de uma
família de praticantes de Umbanda e Candomblé, religiões de matriz africana. Sua mãe é a
ialorixá de um terreiro onde foram feitos de santo boa parte dos membros da família P,
inclusive habilitando alguns desses membros a abrir seus próprios terreiros, um dos quais é o
ilê no qual a informante desenvolve suas atividades espirituais.

P.P. freqüentou, desde muito nova, várias designações religiosas. Ia a missas da Igreja
Católica com alguns membros de sua família, a Igreja Batista com outros e ajudava sua mãe e
irmãos nos afazeres do terreiro. Em sua adolescência começou a se aproximar mais da Igreja
Batista, até o instante em que lhe foi demandado renunciar aos outros cultos que freqüentava e
assumir Jesus Cristo como seu único salvador. Esse foi o momento em que sentiu o chamado
do Candomblé. Percebendo em si a impossibilidade se entregar a Jesus Cristo, negando as
42
raízes de sua família e seu amor pelos orixás, parou de ir a Igreja Batista e durante um toque
de Candomblé no terreiro de sua mãe, passou mal e teve tonturas durante um toque para
Oxum.

Mal sabia P.P. que seu parto havia sido repleto de complicações e que sua mãe havia
pedido a Iansã que não perdesse sua filha, prometendo ao orixá sua cabeça caso esta nascesse
incólume. Essa é uma prática comum, mulheres com problemas durante a gestação que
possam impedir o nascimento da criança, a oferecem a Iansã, senhora dos eguns, para que
estes não atrapalhem a vinda de um novo espírito a terra.

P.P. esperou então o tempo certo para fazer sua cabeça de Oxum e Iansã, o período em
que o mundo profano, do trabalho, estudos e deveres sociais, lhe permitissem ficar no roncó
durante um mês e ter ainda outros dois para levar a cabo seu preceito. Durante o preceito uma
série de tabus são impostos pelo orixá, entre eles é imprescindível que a pessoa que acaba de
ser feita de santo não freqüente determinados locais (delegacias, hospitais, locais de lazer com
grande aglomeração de pessoas e consumo de álcool, entre outros) cuja energia possa
interferir no axé recém adquirido do orixá. Restrições que fazem sentido ao pensar que a
iniciação é literalmente o ato de renascimento do sujeito na religião. Simbolicamente falando,
sendo “recém nascido”, ainda tenro e sem defesas para lidar com as novas percepções acerca
do mundo ao qual veio, o sujeito não pode ser exposto a espaços sociais em que dramas
sociais do cotidiano da vida de sujeitos “maduros” se desenrolam. O preceito então se
configura como um tempo de amadurecimento e desenvolvimento de novas configurações
subjetivas que permitirão ao sujeito circular no mundo profano e compreendê-lo através dos
novos sentidos subjetivos que foram desenvolvidos após sua iniciação e durante o período de
seu preceito.

O que me chamou a atenção no relato de P.P. foi como reinterpretou seu


pertencimento ao Candomblé depois de ter sido iniciada. Antes de ter sido feita, a religião
afro-brasileira era somente mais uma contingência do seu cotidiano, um fato atrelado a sua
história familiar, que muito a mobilizava emocionalmente mas que não ia além de se
configurar como uma enorme admiração e respeito.

P.P. relata ter sentido muito conforto e certeza depois de ter sido feita. Essas são duas
sensações recorrentes que são descritas após a iniciação do adepto que agora está em estreita e
43
íntima ligação com a deidade e a comunidade do terreiro. Ao contrário do que hipotetizei,
ambas as sensações não decorrem do retorno ao tempo sagrado devido a sua re-ordenação do
cotidiano profano, caótico, duma crise consciente com o mundo da modernidade liquida. As
sensações vem da certeza de não se estar mais sós, de participar de uma comunidade que vela
intensamente pelos seu participantes, que não os julga segundo parâmetros morais fixos,
respeitando suas configurações subjetivas, e de ser inundados de bem-estar após cada transe.

Minha informante me contou que fazer orixá é “uma coisa mágica”, que o quarto de
santo, ou roncó, “é uma bolha, um lugar quentinho, seguro, que é o contrário do nosso mundo
louco, individualista, apressado”. Inclusive, ao sair do quarto, começou a ver tudo, o mundo
profano, como sujo e impuro, o exato inverso do espaço sagrado. O mundo social adquiriu
então uma conotação negativa que o definiu como um espaço de incerteza, insegurança e mal-
estar. Como dito no parágrafo anterior, não foi uma crise consciente com o mundo moderno
liquido que gerou esse antagonismo de sentidos e sim o contato com o mundo sagrado que
eliciou uma reinterpretação do mundo social, profano. Tampouco foi a necessidade de driblar
a solidão imposta pelas individualidades cada vez mais atomizadas do mundo moderno
liquido que levou P.P. ao Candomblé. Se voltarmos rapidamente a sua biografia, veremos que
vinha de uma família com forte sentido comunitário e que se ancorava não somente nos laços
familiares como também na pertença a uma religião que presa fortemente a idéia de ebé,
família, que é o Candomblé.

Também disse que antes de entrar estava com medo de abrir mão desse mundo
profano, porque as imposições de uma vida em comunhão com o sagrado iriam limitar sua
vida no mundo social. A discussão sobre as restrições do preceito é uma dessas limitações.
Outras advém do fato que ao se tornar um membro ritualmente ativo de sua comunidade
religiosa, o cotidiano de P.P. se pautaria por uma nova série de normas e obrigações que
alterariam significativamente sua relação com o mundo profano. Entre essas alterações se
encontram obrigações como códigos de indumentária em certos dias, jejuns em outros,
restrições de circulação por alguns espaços e o dever de estar sempre disponível para sua
comunidade religiosa independente da importância do que estivesse acontecendo no seu
cotidiano profano.

Mas, o quarto de santo inverteu sua percepção dessa série de obrigações e restrições.

44
A partir daquele momento, a estadia no roncó, P.P. foi tomada por um sentimento de
acolhimento que ela relata ser comum a todos os integrantes da casa, houve um sentimento
claro de pertencimento a família de santo. Passou a existir uma lógica, papéis, funções e ao
mesmo tempo uma vontade movida pelo orixá, o amor pelo orixá, que fez com que os novos
sentidos subjetivos desenvolvidos durante sua iniciação diluíssem sua impressão negativa
acerca de suas novas obrigações e restrições.

P.P. sente até hoje essa sensação de acolhimento, apesar de que tenha se perdido um
pouco dela no viver do mundo profano. “Mas a sensação se renova com os sentidos: o cheiro
de uma esteira, a visão do interior de um terreiro”. O ingresso de P.P. no Candomblé a fez ser
“uma pessoa melhor, me realizei na casa de santo nessa relação com o orixá”.

L.G. também relata ter mudado muito sua relação com o mundo profano devido a sua
iniciação no mundo sagrado do Candomblé, em outras palavras, ter reconfigurado sua
experiência subjetiva com seu cotidiano após ter ingressado na religião. Mas no seu caso o
processo foi diferente. Jovem homem, com quase trinta anos de idade, branco, cursando a
faculdade de Direito, oriundo de estamento A e vindo da religião espírita, do culto Kardecista,
L.G. entrou recentemente no Candomblé ao ser chamado por um espírito de Umbanda para
ajudar no trabalho de exorcismo de um amigo antes que esse entrasse no Candomblé.

Apesar de algumas similaridades com os relatos de R.O. e P.P., o relato de L.G. não
será utilizado para demonstrar como sua iniciação religiosa influenciou seu cotidiano e sim
como o informante utilizou recursos exteriores aos da religião afro-brasileira, geralmente
indisponíveis para estamentos C e D, para adequar o conteúdo do Candomblé a sua
experiência subjetiva. Quando digo “recursos exteriores” me refiro ao uso do espaço virtual
da internet – fóruns e sites - , ao pensamento científico que influencia a doutrina Kardecista e
permeia a formação educacional dos cursos superiores e ao conhecimento escrito científico
produzido pela academia a respeito do Candomblé.

Como R.O., L.G. já vinha de uma comunidade religiosa na qual havia educado sua
espiritualidade. L.G. entrou para o Kardecismo devido a um problema de psicomotricidade,
em sua tenra infância, que havia burlado sistematicamente as curas propostas pela medicina
da tradição do determinismo biológico, organicismo e reducionismo. Sua mãe, desesperada
com o problema do filho, decidiu fazer apelo a alguém de dentro de sua religião, e o levou a
45
uma psicóloga espírita em busca de uma solução. Não foi uma surpresa para mãe de L.G.
quando a profissional da saúde produziu sua cura ao fazer uso de um conjunto de processos
terapêuticos espíritas que seriam fortemente contestados e descritos como fetichismo por
vários profissionais da saúde mais ortodoxos. Desde esse dia meu informante passou a fazer
parte da congregação espírita, indo a sessões de passe, aulas de educação de mediunidade,
leituras de obras psicografadas por grandes médiuns e palestras sobre a missão espírita neste
mundo.

Duas décadas mais tarde, L.G., espírita praticante, que havia tido pouco ou nenhum
contato com religiões afro-brasileiras acompanhou um amigo seu a uma festa num terreiro no
Distrito Federal. Nesse dia conheceu uma mãe de santo cujo espírito de Umbanda o chamou,
alguns dias após a festa, para ajudar seu amigo, como havia dito previamente, a fazer um
exorcismo que o possibilitaria a entrar no Candomblé. Devido a uma série de fatores que
entrelaçaram a biografia de ambos, L.G. também acabou por ser iniciado na religião.

Ao começar a transitar pelo espaço sagrado e práticas do Candomblé, meu informante


se deparou com o método de transmissão de conhecimento da religião: a oralidade e
performance. L.G. percebeu que muitas das perguntas que fazia a sua ialorixá, sobre o
Candomblé e suas práticas, eram respondidas de maneira insatisfatória, conceitualmente
confusa ou simplesmente permaneciam sem resposta, sendo que o caráter vago das réplicas,
ou sua total ausência, era justificado por declarações do gênero: “você ainda não está pronto
para isso”, “foi assim que me ensinaram”, “você tem que saber fazer a pergunta certa” ou
“isso só se aprende fazendo”. Foi então que L.G. se deparou com a variabilidade discursiva e
performática descrita anteriormente, que produziu uma grande confusão e desgosto no novo
adepto.

Por ser o Candomblé uma religião de caráter iniciático, é através de sucessivas


iniciações menores e vivências de novas práticas rituais, que o adepto acumula conhecimento
acerca dos procedimentos, práticas e sentidos gerados por sua experiência na religião. Serão
também os sentidos subjetivos gerados pelo babalorixá ou ialorixá do terreiro, acerca da
prática de sua religião, que durante o processo de informação social do corpo do adepto, serão
os norteadores de dita socialização. Portanto uma série de fatores subjetivos entrarão em jogo
influenciando esse processo executado pelo sacerdote, ou sacerdotisa, como sua educação

46
formal e informal, estamento social ao qual pertence ou no qual se encontra, fatos biográficos,
tendências ideológicas, etc...

L.G., “falando como iaô”, diz que até os presentes dias, está se adaptando a essa
característica do Candomblé, devido ao fato de que “sua realidade é muito diferente das
realidades de outras religiões”. Listando as razões que mantém essa adaptação contínua, diz
que, para começar, sua ialorixá e ele mesmo são de estamentos sociais muito diferentes,
motivo ao qual L.G. atribui certa dificuldade de comunicação devido a usos diferentes da
linguagem e discurso. O fato de que a sacerdotisa já vinha do meio das religiões afro-
brasileiras, naturalizando certos sentidos e práticas que não são autoevidentes para L.G. e que
nunca necessitaram maiores explicações para a sacerdotisa que uma vez deparada com seus
questionamentos, produziu explicações insatisfatórias, também é outro fator de que mantém a
continuidade do processo de adaptação. O informante relata que muitas vezes a informação
não é clara, o que o leva a observar que “há muitos Candomblés dentro de um só”, ou várias
práticas diferentes da religião que se encontram mescladas na prática de seu terreiro e que
produzem uma série de confusões na compreensão dos rituais, cosmologia e performances.

A estratégia de L.G. para esclarecer suas incertezas foi lançar mão de vários outras
meios de aquisição de conhecimento para elucidar a prática da religião. Assim foi que buscou
em fóruns de sites sobre Candomblé na internet, livros escritos por autores da academia, ou
importou noções do culto Kardecista para verter luz sobre as práticas, discursos e narrativas
da religião a qual participava e não compreendia bem.

Para seu assombro, sua estratégia produziu ainda mais confusão já que foi em busca
do conhecimento de uma doutrina “pura”, padrão ou estrutura geral imanente á prática do
Candomblé, uma busca e necessidade fictícia que se deriva de uma educação com forte
influência das ciências naturais e linguística, como é a educação formal ocidental, desde a
elementar até a superior. Como escrevi no capítulo sobre a história do Candomblé nesta
pesquisa, padrões, estruturas ou “pureza” conceital e performática não são inerentes a esta
religião, e creio não ser o caso de religião alguma. Não há codificação permanente do corpus
ritual e cosmológico no Candomblé. “Além de um terreiro diferir muito pro outro faltam
referencias dessas diferenças... Os livros escritos por antropólogos e sociólogos não explicam
nada do que eu quero saber e na internet tem muita baboseira, as pessoas postam o que bem

47
lhes dá na telha, você tem que procurar muito até achar alguma coisa que faça sentido com
aquilo que você viveu”, me disse L.G.

Meu informante, diante de sua ulterior confusão, decidiu optar por uma estratégia que
lhe desse a segurança que faltava: começou a adaptar as informações que havia encontrado
sobre o Candomblé para si, sendo sua subjetividade o padrão que conferiria sentido ao
conjunto de informações que considerava desconexo. “A adaptação ocorre ao omitir certas
informações que podem ser confusas demais pra mim, buscando transformar a coisa em algo
coerente, sabe, que faça sentido pra mim do jeito que eu sou. Faço isso ao me colocar no lugar
da mãe de santo, criada na periferia, e tentar entender o que ela diz segundo o que eu sei dela
ou selecionando aquilo que considero benéfico ou não. Adaptação é não se confundir com as
informações, pra tanto eu busco fora, ou dentro de mim, ouvindo meus guias ou pensando
naquilo que faz sentido para mim. Mas é necessária uma distância entre o terreiro e eu, uma
inserção total não me faz bem por causa da discrepância entre o que é importante pra mim e o
que o é pra minha mãe de santo”.

O relato de L.G. mostra como fatores educacionais, sociais e acesso a recursos de


obtenção de informação, que dependem da possibilidade de aquisição desses recursos,
influenciam na vivência do Candomblé por certos adeptos de estamento A e B. Evidencia-se
uma dialética que ocorre entre o sujeito e a religião, onde o resultado da contraposição da
subjetividade do adepto e a religião resulta numa modificação de ambos. O Candomblé de
L.G. é permeado por noções e configurações de sentido oriundas de outras esferas discursivas,
disciplinas e práticas, consideradas formais, que tornam a experiência da religião mais
coerente para este adepto, ao ser adaptada a sua realidade de sóciocultural.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
48
“Xangô um dia cansou-se da monotonia da corte
e partiu em busca de novas aventuras”.
(PRANDI, Mitologia dos Orixás)

O Candomblé é um universo fascinante. Como o Exú, está em perene movimento, é


transformação, metamorfose, palavra que Monique Augras (2008) usou para intitular seu
livro. Religião que é ao mesmo tempo forma de resistência da memória africana brasileira,
belíssima performance da reatualização do vínculo com o sagrado e centro formidável que
fornece infinitas possibilidades de produção de sentido aos seus adeptos, não é preciso dizer
que termino este relatório fascinado com uma das manifestações mais intrigantes de
representação social da complexa identidade nacional brasileira.

Comecei esta pesquisa orientado por uma série de construções teóricas acerca da
experiência religiosa do adepto de estamento A e B no Candomblé. As fontes as quais havia
recorrido, notáveis antropólogos, sociólogos, filósofos, historiadores da religião e psicólogos
foram fundamentais para a compreensão do fenômeno religioso em questão. Forneceram
valiosíssimos subsídios metodológicos, e teóricos, sem os quais não teria sido possível
penetrar com a profundidade necessária o tópico a ser descrito e analisado. Mas, fazendo uma
devida ressalva, nenhuma delas me preparou para o que encontrei no campo. Sujeitos que
estruturaram com incrível complexidade e insight suas experiências, alguns, sem os subsídios
dos notáveis aos quais tive acesso, no entanto desenvolvendo vivências e conhecimento
acerca da religião que não se encontra em referência alguma, por mais que seja completa, por
mais que a descrição seja densa.

O campo, espaço da etnografia, é um poderoso agente corrosivo da hipotetização.


Como me disse uma vez um professor de filosofia cujo curso freqüentei, citando um texto de
Karl Marx cujo título não me vem a mente neste instante: “É na prática onde o homem deve
provar a verdade, ou seja, a realidade e o potencial, a concretude de seu pensamento. A
discussão sobre a realidade ou irrealidade do pensamento isolada da prática, é puramente
escolástica”. Apesar de ter escutado e gravado esta frase na época, pressentindo seu potencial
e aplicabilidade, foi somente no curso desta etnografia que seu conteúdo ganhou forma e uma
força afirmativa extraordinária.

49
Ao pensar as hipóteses que podiam estar por trás do objetivo de minha pesquisa, que
buscava analisar mudanças na composição social dos terreiros do Distrito Federal, fui levado
a pressupor uma série de razões pelas quais a movimentação social ocorria, boa parte delas
baseadas sobre leituras de autores que tinha feito no grupo de discussão antropológica do qual
havia participado. O que fiz foi imprimir sobre o fenômeno minhas próprias impressões sobre
as razões que eliciavam a mudança. Ao ter entrado em contato com certas idéias que me
pareceram, e são, revolucionárias para a prática de uma psicologia antropossocial50 fui
tomado pelo ímpeto de aplicá-las sistematicamente a realidade que buscava analisar.

Qual não foi a surpresa ao descobrir que muitas de minhas hipóteses, voltando a Marx,
minhas digressões escolásticas privadas, não correspondiam sequer de perto às forças que
animavam o fenômeno. Vi que o exercício da etnografia é a criação de um espaço limiar
privilegiado, onde o pesquisador cessa de pertencer a um único mundo e passa a transitar
entre dois: do que observa e participa, e daquele de onde veio. E após terminar sua pesquisa,
irá se deparar com algo que não esperava, que ambos os mundos não são mais o que eram,
eles se transformaram: “Os elementos de um ecoam e reverberam nos elementos do outro.
Mostra-se, assim, como, a partir da nossa bagagem cultural, pode-se ler a outra, e volta-se
ainda à nossa perspectiva originária com um olhar mais esclarecido” (SEGATO, 2005, p. 39).

O campo me contestou com narrativas e motivos que não obedeciam a lógica das
relações sociais na modernidade liquida: não era o individuo atomizado, solitário, angustiado
com as alterações drásticas que se desenrolavam com o advento de um novo zeitgeist, que em
seu desespero e afã de uma sensação de pertencimento a uma comunidade, buscava o
Candomblé. As narrativas colhida, experiências presenciadas revelavam o contrário, eram os
orixás que chamavam meus interlocutores!

Houve um chamado, um longínquo porém poderoso toque de atabaques, que veio da


sombra da herança colonial brasileira, recrutando adeptos para que a memória da negritude
brasileira não se apagasse nas turvas marés do esquecimento ou perecesse sob o rolo
compressor da hegemonização da cultura ocidental dominante, num ato de pasteurização das
mais diversas vozes que também narraram o passado do Brasil, constituem seu presente e
50
Termo que me parece apropriado para sintetizar o tipo de pesquisa que foi feita neste projeto, afinal, foi
através do uso de instrumentos tanto da psicologia de viés construtivo-interpretativo, como da antropologia,
história, filosofia e sociologia, que foi possível fazer a análise do fenômeno social e subjetivo que foi
apresentado nos últimos capítulos.
50
estarão em seu futuro.

Também descobri uma religião cuja força reside não na repetição de seu cânones,
dogmas ou liturgias, e sim na plasticidade oferecida por sua oralidade e performatividade.
Como a sedutora e macia Oxum, que acolhe sem preconceito adeptos das mais variadas
origens espirituais, sociais e culturais, lhes permitindo reviver o divino de acordo com suas
próprias subjetividades, sem no entanto, perder sua unidade simbólica. Isso ocorre porque o
Candomblé se manifesta no corpo, centro gerador e unificador das práticas sociais. Mesmo
que o orixá possa vir a ser compreendido das mais diversas formas, como em cada narrativa
exposta, ao se manifestar no transe ele será aquilo que sempre foi, uma deidade africana no
Brasil que vem lembrar e dialogar com seus adeptos sobre o que foram, quem e o que são e
serão.

6. REFERÊNCIAS

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