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Guerra da Ucrânia Rússia

Guerra da Geórgia, 15, foi ensaio geral do conflito na Ucrânia

Ocidente fez vista grossa para primeiro tiro de advertência de Putin contra a Otan

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São Paulo

Verdadeiro ensaio geral para a Guerra da Ucrânia, o conflito entre a Rússia e a Geórgia completa 15 anos nesta terça (8). Ele foi o primeiro tiro real de Vladimir Putin em sua cruzada contra o Ocidente, cuja vista grossa aos fatos anteriores e posteriores ao silêncio dos canhões contribuiu para a crise atual.

Como agora, a Guerra da Geórgia foi uma resposta violenta de Putin ao que lia como uma traição do Ocidente no pós-Guerra Fria. Derrotada a União Soviética em 1991, Moscou contava com um acordo tácito para que as estruturas militares dos EUA, encarnadas na Otan, não avançassem rumo às suas fronteiras.

Parentes de georgianos mortos participam de cerimônia lembrando os 15 anos da guerra em Tbilisi
Parentes de georgianos mortos participam de cerimônia lembrando os 15 anos da guerra em Tbilisi - Vano Chlamov/AFP

Ao longo dos anos 1990, o Kremlin foi um aliado dos EUA, chegando a namorar a ideia de aderir à aliança militar ocidental. A desregulamentação selvagem da economia soviética, contudo, levou ao caos social que explodiu na crise de 1998, e os rumos do país estavam nas mãos de um instável Boris Ieltsin.

A elite e os poderosos serviços de inteligência reagiram, chegando ao nome de Putin, chefe da principal sucessora da KGB, como sucessor ideal. Instalado no Kremlin como premiê em 1999, assumiu a cadeira de Ieltsin com a renúncia dele naquele réveillon e foi eleito pela primeira de quatro vezes no ano seguinte.

Em seu primeiro mandato, Putin se aproximou dos EUA e da Europa. Os ocidentais não reclamaram quando ele esmagou o separatismo tchetcheno com mão de ferro, mas o processo de expansão da Otan para engolir o antigo mundo comunista iniciado em 1999 não havia parado.

Ao contrário, em 2004 a aliança militar chegou a três ex-repúblicas soviéticas, os Estados Bálticos, algo nunca perdoado em Moscou. Putin, empoderado pelos preços altos do petróleo que o apetite chinês e a invasão dos EUA do Iraque em 2003 forneceram, resolveu trilhar outro caminho.

Ele ficou claro no famoso discurso em que desenhou o descontentamento russo, em uma conferência na Alemanha, em 2007. Os sinais já estavam claros, como numa entrevista do já chanceler Serguei Lavrov à Folha, na qual ele alertava contra o desejo da Otan de expandir-se.

Na mentalidade russa, é preciso ter controle sobre o entorno estratégico do país para bloquear as rotas históricas de invasões: o oeste, pisoteado por botas suecas, napoleônicas e nazistas ao longo dos séculos, o sul ameaçado pelos turcos e os vastos vazios da Ásia, fronteira com a hoje aliada China.

Para os críticos, isso não passava de paranoia imperialista, o que é uma forma de ver a coisa. Do ponto de vista russo, Putin apenas cumpriu o que prometeu. Logo após a cúpula da Otan em que foram prometidas vagas à Geórgia —no Cáucaso, a fronteira sul— e à Ucrânia —o grande corredor oeste—, foi à ação.

Aqui as coincidências com 2022 são notáveis. Havia duas regiões separatistas de maioria étnica russa na Geórgia, cortesia da colcha de retalhos que era a União Soviética. Assim como Kiev em 2004, Tbilisi já havia sido palco de uma "revolução colorida", a Rosa, em 2003, que retirou do poder um aliado de Moscou.

Com apoio e inspiração ocidental, em conjunto com forças oposicionistas legítimas, esses movimentos são vistos como heréticos por Putin.

Em 2008, um voluntarioso presidente estava no poder na Geórgia: Mikheil Saakashvili. Ele prometia a integração com Otan e União Europeia, além de retomar o controle das regiões das russófonas Abkházia e Ossétia do Sul. Estimulado pelos EUA e em meio a provocações fronteiriças, ignorou que 70 mil homens de Putin se reuniam para exercícios militares ditos de rotina no Cáucaso —exatamente como os 200 mil amealhados nos meses anteriores à invasão da Ucrânia, que desta vez soaram alarmes no mundo.

Por fim, o georgiano cometeu o erro de invadir, no dia 7 de agosto, a Ossétia do Sul. Como ocorreu com as duas autoproclamadas repúblicas no Donbass, no leste da Ucrânia, o Kremlin havia reconhecido as áreas e prometido proteção militar. Ato contínuo, entrou na guerra no dia seguinte.

Foi um conflito curto, de cinco dias, vencido pela desproporção de forças, ainda que com vexames pontuais para os russos. Putin, que ocupava a cadeira de premiê na gestão de Dmitri Medvedev mas era o real dono da bola, não precisou conquistar a Geórgia: manteve 20% do território como protetorados russos e, efetivamente, impediu que o país integrasse a Otan ou a União Europeia.

Governos em Tbilisi passaram a ter uma relação mais estável com Moscou, sem admitir controle político. "Nós sabemos há muito tempo que a Rússia era uma agressora, sabemos disso e o mundo todo sabe", afirmou em um evento para lembrar da guerra o premiê local, Irakli Garibachvili.

Houve cerca de 1.100 mortos, 400 dos quais civis. O Ocidente até condenou o conflito, mas, envolvido em sua crise econômica aguda, contemporizou. O resto é história: em 2014, Putin reagiu à segunda derrubada de um aliado em Kiev, anexou a Crimeia e fomentou a guerra civil no Donbass. O filme georgiano se repetia, e novamente a reação no Ocidente se resumiu a sanções econômicas relativamente suaves.

Tudo isso desembocou em 24 de fevereiro de 2022, precedido por um ultimato inexequível para EUA e Europa, em busca de alijar a Ucrânia de sua soberania em nome dos interesses de segurança russos.

O debate se dá sobre o papel apaziguador do Ocidente após 2008 e mesmo 2014, por muitos comparado ao que foi feito com Adolf Hitler antes da Segunda Guerra (1939-45), e acerca da ampliação da Otan.

São fatos que podem ser lidos sob prismas antagônicos, mas seguem defensáveis. Mesmo hoje os EUA se recusam a intervir diretamente na Ucrânia, cientes da tragédia que uma Terceira Guerra geraria. Ninguém quer armas nucleares explodindo, e o comprometimento em armar Kiev não autoriza chamar Joe Biden de Neville Chamberlain, o premiê britânico que tentou acalmar Hitler cedendo territórios.

Em relação à Otan, o argumento central é de que os 14 países ex-comunistas que aderiram à aliança tinham historicamente um déficit de soberania, e por motivos óbvios viam a Rússia como uma ameaça maior que o Ocidente. Aliar-se ao Ocidente soa natural. Uma coisa é certa: se hoje o mundo se equilibra ante um cenário agudo, não foi por falta de aviso, de um lado e do outro, que chegou a isso.

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