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Périplo de cineasta traduz Rússia pós-União Soviética
Alexander Kessel sonhava com o espaço, foi militar e crupiê e hoje trabalha na TV
Apesar de detestar Putin, diretor de "Enquanto ele voava" prosperou sob seu governo e tornou-se retrato bem-acabado de seu tempo
IGOR GIELOW
ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU
Alexander Kessel sonhava,
como todo garoto soviético que
cresceu nos anos 70, ser um
cosmonauta famoso. Por razões tão tortuosas quanto a história russa das últimas duas décadas, esse judeu ucraniano
com sotaque moscovita não foi
ao espaço, mas ironicamente é
o cosmos o tema que talvez o
torne conhecido.
Kessel atende a porta com
um sorriso algo desconfiado no
rosto, chinelos e cara de sono.
Pede para as visitas deixarem
seus sapatos à porta e, depois
de arrumar um pouco de salmão defumado com pão e abrir
uma garrafa de pinot noir californiano, pergunta: "O que exatamente você quer saber?".
Bem, no restrito círculo do
cinema independente russo,
ele ganhou fama, mas a reportagem está lá não só por isso.
Afinal de contas, "Enquanto ele
voava", seu projeto de conclusão do curso da Escola de Diretores e Roteiristas de Moscou,
nunca foi lançado comercialmente, apesar de ter ganho dez
prêmios internacionais para
curtas-metragens desde que foi
finalizado em 2006.
Mas é a história de Kessel
que atrai: aos 37 anos, ele é um
retrato vivo das mudanças que
o maior país do mundo vem sofrendo desde que sobreveio
aquilo que o presidente Vladimir Putin chama de "o maior
desastre geopolítico do século
20", o fim da União Soviética.
"Também queria ser cineasta, é verdade, só que eu levei a
sério a minha tentativa de ir para o espaço", conta Kessel. Em
"Enquanto ele voava", os desejos se fundem: em 35 minutos
de uma narrativa precisa e delicada, é contada uma história alternativa do dia 12 de abril de
1961, quando a União Soviética
lançou Iuri Gagarin ao espaço.
O filme enfoca a órfã sonhadora Masha, que ganhou fama
ao receber Gagarin com um pote de leite quando ele aterrou
em Smelovka, no sul da Rússia.
O primeiro homem a ir ao espaço desceu de pára-quedas, tendo abandonado a cápsula no
meio do caminho ao solo, um
ato de bravura nunca depois repetido.
Tendo mudado aos quatro
anos para Moscou, onde o pai
russo trabalhava como engenheiro para o governo e a mãe
ucraniana cuidava da casa, Kessel era um dos que se impressionavam com a história de Gagarin, mas estava longe do primeiro passo para seu objetivo: a
escola de pilotagem da Força
Aérea em Volgogrado.
Aos 15 anos, ele completou os
estudos secundários e foi para a
cidade. Durante dois anos, apesar das boas notas nos exames,
não conseguia entrar. A resposta, diz ele, estava em seu passaporte: no item "nacionalidade",
estava escrito "judeu", e não
"ucraniano".
"Eu nunca quis mudar isso.
Sou o que sou." Judeus não tinham muitas chances na terra
do comunismo, e 1 milhão de
pessoas emigraram a Israel
com o fim do país.
Frustrado, Kessel voltou a
Moscou e entrou no Exército
para poder freqüentar o departamento de ciências espaciais
na universidade militar. Novamente, não deu certo: em 1988,
aos 18 anos, foi mandado para a
antiga Alemanha Oriental.
Havia 380 mil soldados soviéticos naquela que era a linha
de frente da Guerra Fria. O grau
de prontidão era o maior do
mundo. "Estávamos prontos
para entrar em ação total em
menos de oito horas. Só pararíamos em Paris", conta Kessel,
que foi servir como cabo em
Rathenow, em Brandenburgo,
a poucos quilômetros da fronteira ocidental.
Eram 2.000 soldados no
quartel, e Kessel foi treinado
para ser comandante de tanque, recebendo o equipamento
mais moderno à disposição do
Exército Vermelho à época, o
T-80. Apenas 15% dos tanques
soviéticos eram desse modelo,
e quase todos estavam na Alemanha comunista.
"Eu praticamente só estava
no quartel para alguma troca de
comando e nas eleições, quando tínhamos de votar em algum
comissário. Não é muito diferente do que acontece nessas
eleições agora", brinca ele, que
diz "odiar Putin". No resto do
tempo, pilotava tanques.
Kessel não pensava muito no
apocalipse -ou algo similar-
que aconteceria caso tivesse de
executar suas ordens. "Uma
vez, estávamos patrulhando a
fronteira junto ao rio Elba e vimos blindados ocidentais da
outra margem. O que eles pensavam? Nós fazíamos o que nos
mandavam fazer."
Kessel estava mais preocupado com as pequenas diversões
da vida militar -basicamente,
descumprir uma longa lista de
proibições. A mais bizarra era a
caça ao cervo, abundante em
Rathenow, usando como arma
o canhão de 125 milímetros do
T-80. "Só que, para não destroçarmos o bicho, substituíamos
o projétil por um pedaço de pão
preto duro. Colocávamos a carga explosiva e o pão. Quando
atingia o veado, ele morria com
o choque."
Cerveja
O contato com os locais, e
principalmente as locais, era
outra diversão vetada. Kessel
se desculpa e não fala muito sobre a óbvia corte às moças, sob
o olhar inquisitivo de sua mulher, Irina, com quem está casado há 11 anos e tem duas filhas
pequenas, Bela, 5, e Sophia, 3.
Certa vez, houve um exercício militar em que os soldados
ficavam espalhados pelos perímetros, longe dos olhos dos oficiais. Kessel recebeu dos companheiros uma missão arriscada: comprar cerveja com o dinheiro recolhido entre os sentinelas. O problema é que Kessel
não falava alemão, apenas uma
ou outra palavra. Com isso,
"Lebensmittel" (comida) para
ele era o equivalente a loja de
alimentos, já que em russo elas
se chamam simplesmente
"Produkti" (produtos).
"Lá fui eu, carregando um rádio enorme com uma antena de
dois metros de altura nas costas. Parei numa casa, eram
umas 9h, e falei para um velhinho: "Lebensmittel". Ele voltou
com um pedaço de pão, provavelmente achando que os russos tratam muito mal seus soldados", ri Kessel.
Ele se fez entender e conseguiu entrar numa loja. Ficou
impressionado com a variedades de produtos -a Alemanha
Oriental tinha o melhor padrão
de vida do bloco soviético. E pelo menos cinco tipos de cerveja.
Sem saber qual escolher, pegou
as maiores garrafas e botou nos
bolsos dez unidades. Voltou ao
quartel, quase apanhando dos
colegas: era uma cerveja sem
álcool para gestantes.
Em 1989, o isolamento da vida militar não lhe dava idéia do
rumo da história. "Só sabia que
havia uma grande merda acontecendo, mas ninguém nos
contava nada e não podíamos
ter rádios", diz ele, que só ficou
sabendo da queda do Muro de
Berlim duas semanas após 9 de
novembro daquele ano.
"Só entendi o que acontecia
quando vimos um dia um bando de alemães ocidentais passeando de Harley-Davidson na
cidade", lembra. Em junho de
1990, seu termo expirou, e ele
foi colocado em um avião de
carga de volta para casa.
Quando chegou a Moscou, falou com amigos e pensou em virar diplomata. "O Mgimo [sigla
russa para Instituto Estatal para Relações Internacionais de
Moscou] não aceitava nem mulher nem judeu. Mas novamente eu insisti", disse Kessel, Alex
para os amigos mas próximos.
Um deles é Ruslan Pukhov, três
anos mais novo, que ele conheceu nos cursos preparatórios
para tentar entrar no Mgimo.
"Ele era cabeça-dura e acabou conseguindo, o que foi uma
surpresa generalizada ou um
sinal de que realmente as coisas
tinham mudado", diz Pukhov,
hoje diretor de um think-tank
militar. "Ele já falava em fazer
um filme. A gente ironizava: "É,
você vai mesmo ser o [Federico] Fellini russo"."
Foram anos difíceis. Na
União Soviética, cursar o Mgimo significava vida ganha. Com
a desintegração do país, tudo ficou incerto. Durante os seis
anos em que ficaram no Mgimo, Kessel e seus amigos tiveram de se virar. "No começo,
ganhávamos 40 rublos de ajuda
oficial; ao fim, 6.000 rublos.
Pouco importa, era sempre o
suficiente só para duas refeições ao mês", afirma Pukhov.
Crupiê
A maioria dos alunos ia dar
aula de línguas ou trabalhar na
Intourist, a estatal de turismo.
Mas Kessel inovou: virou crupiê no recém-aberto cassino da
rua Novy Arbat. "Ganhávamos
o equivalente a US$ 700, mas
no fim do mês as gorjetas garantiam cerca de US$ 1.100. Estava rico", conta ele, que estudou alemão e inglês.
O problema é que ele tinha de
trabalhar quase a noite toda, e o
ritmo dos estudos era puxado.
Pagou o preço: quando dormiu
pela segunda vez em uma semana sobre a mesa de "blackjack", foi demitido. Era 1994, e
ele foi trabalhar como analista
no Rossiskie Kredit, o segundo
maior dos 2.000 bancos que
proliferaram na confusão econômica dos anos Ieltsin. "Ganhava três vezes menos, mas
pelo menos não tinha mais
olheiras."
Quando deixou o Mgimo, em
1996, encontrou um amigo que
lhe ofereceu um emprego de relações-públicas para a Adidas
em Paris. Voltou a juntar dinheiro, comprando em 1997 o
apartamento em que mora às
margens do rio Moscou.
Fez um ótimo negócio. Kessel vive em um prédio cujas
áreas comuns lembram as de
um cortiço, já que não há administração de condomínios na
Rússia. Datado dos anos 30, erguido para a burocracia comunista, o prédio tinha vários andares abandonados. Kessel
comprou primeiro um por US$
110 mil e, depois, outro no andar de cima por US$ 90 mil. Reformou tudo e montou um dúplex que hoje, dez anos depois,
vale mais de US$ 2 milhões.
Nessa época conheceu Irina,
cinco anos mais nova, e em
1999 começou a trabalhar na
ORT, maior canal estatal russo.
Era o que chama de "diretor de
marketing ativo" -ou seja, levantava dinheiro entre anunciantes. Ganhou o equivalente
a US$ 10 mil mensais, durante
os cinco anos lá. "Foi quando vi
que poderia tentar realizar
meu segundo sonho, já que para ir ao espaço iria precisar de
mais dinheiro."
Em dois anos, esse fã do polonês Krystof Kieslowski cursou
a escola de direção e, com US$
50 mil do próprio bolso, rodou
"Enquanto ele voava". Conhecidos da TV gostaram do que viram e mandaram o DVD para
alguns festivais de curta-metragens. Foi um sucesso alternativo, encabeçando a mostra
de curtas do Kinovtar, o Sundance Festival russo, em 2006.
"Fui premiado mais recentemente em Teerã. Acho que eles
não souberam que eu sou judeu", brinca. "Mas o problema
é encontrar espaço para algo
independente do Estado."
Nem Kessel nem Irina votaram nas eleições parlamentares de 2 de dezembro, que confirmaram o domínio total de
Putin no Parlamento. "Eu só
estou esperando o patriarca ortodoxo Alexei 2� vir a público
dizer que Putin foi escolhido
por Deus e toda a Rússia tem de
aceitá-lo como czar. Não consigo suportar isso, embora não
possa me queixar muito do
ponto de vista prático", afirma
o cineasta, lembrando que voltou ao cargo da TV estatal -ganhando o dobro do que em sua
primeira passagem.
Cinismo típico da era Putin?
"Talvez, mas ainda quero fazer
filmes, no plural", despediu-se
Kessel, um representante bem-acabado do "zeitgeist" da Rússia do século 21.
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