Leitura fundamental para penetrar o universo secreto da Rússia contemporânea, "O Dia de um Oprítchnik" nos põe diante de uma longa linhagem de escritores insubordinados que usaram a literatura paródica para cutucar o governo russo, como fez Nikolai Gógol no século 19, e Mikhail Bulgákov, no 20.
O autor, Vladímir Sorókin, é um dos proeminentes nomes da geração contemporânea e, se isso ainda não estava claro para o leitor brasileiro após "Dostoiévski-Trip", que rendeu ao escritor o primeiro convite a um autor russo para a Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, já não há mais dúvidas da força da pós-modernidade russa após a leitura de "O Dia de um Oprítchnik", na tradução criativa de Arlete Cavaliere.
No romance, Andrei Komiaga, oficial russo, acorda em sua elegante casa, vira um cálice de vodca para espantar a ressaca, se alimenta, dá ordens aos funcionários do lar e sai para trabalhar apresentando ao leitor uma Moscou moderníssima, rica em tecnologia e organizada, capital de um país que se mantém apartado do Ocidente através de um grande muro.
Komiaga é um oprítchnik, um comandante responsável por manter a ordem na nova Rússia, de quem acompanhamos em seus caprichos e rituais desde a hora que desperta até voltar para a cama.
Alguns procedimentos estéticos presentes nesse romance de 2006, publicado agora pela editora 34 com tradução e posfácio de Cavaliere, exemplificam os caminhos que trilham os contemporâneos. Um deles é o constante diálogo com a tradição literária, presente já no título do romance, que se passa em uma segunda-feira de trabalho de um oprítchnik, assim como fez Soljenitsín em "Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch".
Mas se o Nobel de literatura mostrava em seu romance os absurdos dos gulags, Sorókin olha para o futuro, e aqui está outro procedimento literário contemporâneo —a literatura soviética, em especial a que seguia os preceitos stalinistas, rezava a cartilha do realismo, aos contemporâneos interessa mais bagunçar as fronteiras entre o real e o fantástico.
Assim, num romance levemente futurista –a narrativa se passa em 2027– convivem o passado e o futuro. Oprítchniké o título dado ao oficial que integrava a Oprítchnina, violenta guarda de Ivã, o Terrível, o primeiro soberano de toda a Rússia, ainda no século 16.
Dessa forma, na Rússia de Sorókin, hologramas coabitam com oficiais medievais, ambos a serviço daquele que assumiu o poder após desventuras políticas que desestabilizaram a Rússia desde o fim da União Soviética.
Komiaga é um protagonista desagradável que expressa sua subjetividade por meio da violência, do apetite sexual desenfreado e de seu interesse por entorpecentes. No discurso do personagem, há apenas espaço para a valorização da autocracia, da nação e da fé ortodoxa, que formam uma espécie de trindade da sociedade russa pós-soviética, inclusive fora da ficção, pois resiste na figura ambígua do presidente Vladimir Putin.
E cada um desses três eixos é golpeado, ao menos no romance de Sorókin, através das atitudes de Komiaga e daqueles que o cercam. A moralidade distorcida é um traço coletivo, que culmina na figura do Soberano, a quem interessa apenas manter distância do Ocidente, paz com a China e os estrangeiros longe da Rússia, bem como russos longe do estrangeiro.
Uma Rússia cada vez mais isolada em seus costumes reflete o autoritarismo e a violência que ultrapassam os limites da ficção e podem ser notados já no governo de Putin, que une em si o amálgama retratado por Sorókin —a Rússia medieval, soviética e capitalista em uma espécie de paz impossível.
Quando aponta para um futuro próximo, Sorókin descortina o que espera dos russos sob o governo de Putin, a quem se opõe ferrenhamente e, para o qual, não acredita haver salvação, mas apenas uma repetição sangrenta dos erros do passado que condena a Rússia a ser, como disse o próprio autor em entrevista, um país sem presente ao qual cabe o constante equilibro entre o que foi e o que um dia pode vir a ser.
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