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Memória
Obra de Soljenítsin denuncia injustiças da história soviética
Depois de expulso da URSS, em 74, escritor conseguiu reunir e
publicar toda a sua obra
PAULO BEZERRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Alexander Soljenítsin, morto
no domingo, aos 89, surgiu no
mundo literário russo em 1962
com a publicação, pela revista
"Novi Mir", da novela "Um Dia
na Vida de Ivan Dieníssovitch",
crônica da vida num campo de
trabalhos forçados, onde os prisioneiros vegetam em condições subumanas, trabalham
sem remuneração, comem comida estragada, e o dinheiro
que porventura seus familiares
enviam é retido para cobrir as
despesas do prisioneiro.
Além do relato das condições
em que são mantidos os prisioneiros, muitos sem qualquer
culpa formal, a novela já registra um aspecto nefasto da vida
soviética, só bem mais tarde
percebido e denunciado por estudiosos: o trabalho dos prisioneiros é parte de um sistema de
produção que integra o próprio
sistema econômico, até entra
no planejamento, e é tão arraigado que só será abolido na gestão de Gorbatchov, portanto no
fim da União Soviética.
A novela teve um sucesso estrondoso entre leitores, escritores, críticos. A Redação da revista e o próprio Soljenítsin receberam uma enxurrada de
cartas de ex-prisioneiros, e esse
material se constituiria numa
das fontes da gigantesca crônica de 38 anos de história soviética e alimenta a narrativa dos
três livros que compõem "O Arquipélago Gulag", já iniciada às
escondidas em 1958.
Em seguida, a "Novi Mir"
ainda publicou quatro contos
de Soljenítsin, e só. Começa aí a
via-crúcis do autor. O romance
"O Pavilhão dos Cancerosos",
relato da própria experiência
de Soljenítsin na luta contra o
câncer num hospital de Tashkende, e também das degradantes condições de funcionamento daquele hospital, recebeu de todas as instâncias legais, inclusive do sindicato dos
escritores, o aval para publicação, que acabou vetada pelas
autoridades. Só depois de esgotar todos os trâmites legais para
publicação do livro, Soljenítsin
permitiu que ele fosse lançado
pela Samizdat, editora clandestina dos dissidentes.
A publicação de "Um Dia na
Vida..." foi favorecida pelo clima de relativo abrandamento
da censura soviética no período
de Khruschov; já a proibição
para publicar "O Pavilhão..."
coincidiu com o ocaso e a queda
de Khruschov, seguida da volta
do neostalinismo ao poder.
Trabalhos forçados
O escritor enfrentou a mesma via-crúcis com o romance
"O Primeiro Círculo". Concebido sob a forma de círculos em
analogia com os círculos do inferno de Dante, esse romance é
um relato da própria experiência do autor em um campo de
trabalhos forçados, onde cumpriu pena de oito anos por ter
criticado Stálin numa carta a
um amigo. Também neste caso,
ele só permitiu sua publicação
pela Samizdat e, posteriormente, no exterior depois de esgotar todas as tentativas para publicá-lo por via legal. Até "O Arquipélago Gulag" ele tentou publicar por via legal.
Depois de expulso da URSS,
em 1974, Soljenítsin finalmente consegue reunir e publicar
toda a sua obra, cujo carro-chefe é "O Arquipélago Gulag".
Obra composta por três volumosos livros, traça um amplo
painel de 38 anos de história
soviética, reunindo um número
impressionante de testemunhos que engloba de cartas de
ex-prisioneiros e outras vítimas de perseguição a testemunhos das pessoas mais simples
até de cientistas, escritores, artistas, numa gama humana tão
vasta que, por si só, já nos dá a
dimensão da tragédia que se
abateu sobre um povo ao longo
de décadas. Deparamos um
painel de sonhos tragicamente
frustrados, vidas ceifadas ainda
em seu florescer, carreiras
científicas abruptamente interrompidas, projetos literários abortados pela truculência,
inteligências confinadas, famílias desfeitas ou destruídas, enfim, tamanho diapasão de tragédias pessoais que o leitor tem
a impressão de estar de fato no
inferno. E tudo isso sob um
fundo sinistro: uma revolução
que começara como o início da
realização de um sonho de milhões, degenera num pesadelo
fantasmático.
A última obra de vulto de Soljenítsin -"Duzentos Anos Juntos"- trata de dois séculos de
história dos judeus na Rússia e
se estende de 1795 a 1995. Ele já
foi acusado de anti-semitismo
por essa obra, mas, nas primeiras 50 páginas que li, não encontrei nenhum vestígio de anti-semitismo.
Obstinado
Soljenítsin foi um grande escritor, um homem de um valor
ético extraordinário, obstinado
em denunciar, com notórios
riscos para sua vida, todos os
crimes e injustiças cometidas
pelos sucessivos governos soviéticos. Muitos traços de sua
obra permitem associá-lo a
Tolstói e Dostoiévski, mas ele
jamais atingiu as profundezas
filosóficas e psicológicas ou a
maestria estética dos dois.
Ultimamente Soljenítsin vinha criticando duramente a situação econômica e moral da
Rússia, sobretudo a privataria
de Ieltsin, que da noite para o
dia transformou numerosos
pés-rapados em milionários.
Estes eram alvos de duras críticas do escritor. Ele também vinha defendendo a volta da pena
de morte para combater o terrorismo no país, sob o argumento de que, em certos momentos, o Estado e a sociedade
precisam se defender.
Muitos ex-prisioneiros soviéticos devem a Soljenítsin sua
libertação e reabilitação civil.
PAULO BEZERRA é professor de teoria literária
na Universidade Federal Fluminense e tradutor,
entre outras, de obras de Soljenítsin
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