Paul Auster revira hist�ria recente americana em romance geracional
Vincent West - 6.set.2017/Reuters | ||
O escritor americano Paul Auster |
Paul Auster tinha 14 anos quando, durante uma excurs�o escolar em que os meninos caminhavam por uma trilha sob uma tempestade, ouviu um trov�o; um fio de eletricidade caiu sobre o garoto que ia � sua frente, que morreu na hora.
N�o foi um incidente qualquer. "N�o h� um dia em que n�o pense nisso, n�o h� um livro que eu escreva em que o efeito que epis�dio teve em mim n�o se fa�a sentir", conta Auster, 70, � Folha, em entrevista realizada durante a Feira do Livro de Guadalajara, no M�xico.
� o caso de seu mais recente romance "4321", o primeiro que publica em sete anos. N�o porque a cena apare�a explicitamente, mas porque a estrutura do livro se arma a partir de acasos que determinam a vida de cada um.
A trama do romance –que deve sair no Brasil no primeiro semestre de 2018, pela Companhia das Letras –acompanha quatro homens que na verdade s�o um s�, Archie Ferguson, garoto judeu nascido em Newark em 1947.
No livro, Archie nasce num hospital, "� um mesmo ser gen�tico, com os mesmos pais"; mas a partir da�, a hist�ria se divide, com quatro vers�es diferentes desse mesmo indiv�duo.
Cada um vai para uma cidade distinta, vive diferentes momentos decisivos na rela��o com os pais, desenvolve diferentes rela��es com a hist�ria dos EUA dos anos 1950/1960 e, com isso, forma uma personalidade que guarda poucas semelhan�as com a dos outros Archies.
"Quando tive a ideia de fazer o livro e tinha os personagens na minha cabe�a, os quatro Archies, e meu primeiro impulso era lev�-los at� a velhice", diz o escritor.
"Mas, quando comecei a escrever, me dei conta de que era um livro sobre o desenvolvimento humano. Sendo assim, os primeiros 20 anos s�o os mais interessantes. � quando tudo o que realmente importa nos acontece. Passamos de fr�geis crian�as a homens e mulheres. S�o os 20 anos mais incr�veis de nossas vidas, e foi nisso que decidi colocar o foco", conta.
O autor da "Trilogia de Nova York" considera que "definitivamente somos determinados por nosso meio e por nossa fam�lia, mas tamb�m pelo acaso, por surpresas do destino". E � ent�o que o epis�dio de sua pr�pria adolesc�ncia faz eco na hist�ria.
"Eu nasci em Nova Jersey. N�o cresci no meio de uma guerra ou numa cidade ocupada. N�o vivi na Ucr�nia nos anos 1930, quando milh�es de pessoas estavam morrendo de fome", pondera.
"N�o experimentei nada assim. Portanto o epis�dio do colega morto na minha frente foi algo de propor��o enorme, pois percebi que minha confort�vel vida americana nos anos 50 e 60 n�o tinha me preparado para isso. De certo modo, comecei a crescer e a escrever a partir da�."
Indagado sobre se isso o fizera pensar de outro modo sobre a morte, ele diz que n�o.
"Eu sabia que as pessoas morriam. O que aprendi com esse evento foi mais que isso. Aprendi que eu n�o estava mais andando sobre o que eu achava que era um ch�o s�lido, que a realidade era imprevis�vel, que, de um instante para o outro, voc� n�o sabe o que vai acontecer."
"E, mesmo que voc� me disser que entende o que eu senti", adverte, "isso n�o � inteiramente verdadeiro, porque, quando uma experi�ncia como essa acontece, o impacto quem sente � cada um". "Esse momento me persegue a vida toda", conclui.
HIST�RIA DOS EUA
As vidas dos quatro Archie Fergusons t�m como pano de fundo eventos hist�ricos como o in�cio da Guerra Fria, o assassinato de John Fitzgerald Kennedy (1917-1963) e a Guerra do Vietn�.
"� tamb�m um livro sobre como me comportei e como se comportou minha gera��o diante da Am�rica que vimos", explica. Auster relaciona a raz�o para faz�-lo agora � sua idade.
"Depois dos 60, voc� come�a a querer olhar para tr�s, muito mais do que fazia quando tinha 40 ou 50. N�o � algo consciente, mas vai se fazendo muito presente", diz.
"� como se voc� quisesse, ou tivesse, que dar um sentido � sua vida dentro do per�odo em que voc� viveu, porque voc� sabe que seu tempo no mundo est� encolhendo e vai se dando conta do qu�o pequenino voc� �."
� por isso, diz ele, que n�o seria poss�vel escrever "4321", um romance de mais de 800 p�ginas, mais cedo na vida.
"Meus livros dos �ltimos anos, mais autobiogr�ficos, foram me preparando para este. 'Winter Journal' [de 2012, publicado no Brasil como 'Di�rio de Inverno' em 2014] e 'Report From the Interior' [2013] foram uma esp�cie de ensaio para este. Apesar disso, os Archies n�o s�o eu. O cora��o do livro � autobiogr�fico, n�o o que ocorre com os personagens."
Devido ao per�odo em que transcorre, Auster considera que o racismo � um dos grandes temas do livro.
"Mas observei uma coisa incr�vel. Eu publiquei o livro em janeiro. Fiz a divulga��o e dei entrevistas sobre ele em mais de 15 pa�ses, al�m dos Estados Unidos e, at� agora, ningu�m tinha me perguntado sobre ra�a. Foi preciso chegar ao M�xico, � Am�rica Latina, para que me perguntassem por isso", conta.
A explica��o, cr�, n�o � nada casual. "A maioria dos jornalistas que me entrevistaram at� agora eram brancos. No caso dos Estados Unidos, esse � um assunto n�o resolvido. At� os alem�es resolveram seu passado com Hitler e com o Holocausto melhor do que n�s lidamos com a quest�o da ra�a. Por que n�o h� um museu da escravid�o em Washington?", inquire.
"Devemos assumir que somos um pa�s constru�do sobre dois delitos: a escravid�o e a matan�a dos ind�genas."
Indagado sobre as mudan�as recentes na sociedade, ap�s a gest�o Barack Obama, Auster se mostra pessimista.
"Eu gostei de v�-lo eleito, gostei dele como presidente, mas, a longo prazo, fez com que o racismo, em vez de melhorar, piorasse. Muita gente odiou o fato de haver um negro na Casa Branca. O fim de seu mandato abriu muitas caixas do mal, h� muitos dem�nios soltos por a� agora."
Sobre o atual presidente, Donald Trump, Auster diz n�o ter nada de novo a dizer. "Ele ganhou gra�as � coincid�ncia de v�rias circunst�ncias naquele momento, todas j� expostas", diz.
E acrescenta: "N�o consigo ser otimista". "At� hoje nos orgulh�vamos de, mesmo com todas as nossas falhas, sermos um pa�s com institui��es fortes, mas Trump e os republicanos est�o fazendo um esfor�o enorme para desmantelar essas institui��es. Minha �nica esperan�a � de que n�o tenham tempo."
Auster diz que, como escritor, sua contribui��o sobre o momento � limitada. "Os grandes romances sobre momentos hist�ricos surgem 30 ou 50 anos depois de eles ocorrerem. � muito cedo ainda para escrever o grande romance dos anos Trump."
Por outro lado, cr� que a literatura tenha uma fun��o a exercer. "Um romance n�o pode influir na hist�ria de modo amplo, mas pode criar empatia, pois p�e foco sobre vidas humanas, mostra que cada vida importa, que cada vida merece aten��o."
"Ent�o", diz, "se eu sou um escritor talentoso e escrevo um romance potente sobre um morador de rua, o leitor tocado por esse livro dificilmente poder� ver um morador de rua novamente com os mesmos olhos. Isso � que podemos fazer, � a contribui��o que podemos dar � hist�ria como intelectuais".
"Mais do que de ficcionistas, o que precisamos nos EUA hoje � de um jornalismo bom e independente, e este vem tendo dificuldades de atuar." "Sem isso", acrescenta, "corremos o risco de sofrer um apag�o informativo que nos impe�a de tomar decis�es pol�ticas importantes."
A jornalista viajou a convite da Feira do Livro de Guadalajara.
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