� professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP (Universidade de S�o Paulo). Escreve �s sextas.
Bola�o talvez seja quem melhor entendeu o que � escrever a viol�ncia
Marcelo Cipis/Editoria de Arte/Folhapress | ||
Roberto Bola�o (1953-2003) foi um dos escritores latino-americanos que talvez melhor tenha compreendido o que significa escrever a viol�ncia. Pois, no fundo, � poss�vel que a Am�rica Latina seja inicialmente isso: uma forma de viol�ncia.
Principalmente, uma viol�ncia que afeta nossa mem�ria, nossas formas de narrar, que redefine o ritmo de nossa linguagem. Seria f�cil falar de seus clich�s coloniais, exotismos, da "vida" que pulsa em um ritmo contagiante. Esta seria, no entanto, a mera vis�o reflexa de um olhar colonial secular, agora internalizado pelos antigos colonizados.
Mas talvez uma vis�o realmente interna deva partir da maneira como a viol�ncia nos forma e nos molda.
"Noturno do Chile", por exemplo, � a longa rememora��o da descoberta do amor do jovem padre Sebasti�n Urrutia Lacroix pela literatura.
Por meio de seus fluxos de mem�ria –frases cont�nuas que duram, �s vezes, duas p�ginas–, com suas parataxes que justap�em imagens em deslocamento meton�mico, Bola�o descreve a hist�ria recente do Chile como um grande pano de fundo. � frente do cen�rio, aparece na verdade o desejo de literatura, quase como um desejo de defesa contra o sil�ncio deste "lugar esquecido", que no romance ganha o nome de Chile.
Mas esse desejo de literatura n�o se encontra apenas na rememora��o do padre Urrutia. Ele se encontra na pr�pria escrita de Bola�o, em sua maneira de se servir de formas liter�rias completamente d�spares, como a estrutura tipificada do romance policial e os fluxos temporais proustianos, um pouco como algu�m que est� em um lugar esquecido e que precisa lidar com objetos empoeirados que um dia vieram de fora.
Procurando injetar vida no que j� fora usado, �s vezes muito usado, Bola�o injeta trag�dia onde ela nunca existiu (em romances policiais) e ironia onde ela sempre pareceu estranha (nas formas proustianas).
Notem como j� h� algo de defesa contra a viol�ncia do desterro aqui. Os personagens de Bola�o sempre est�o a lidar com um desejo de saber que ganha, no mais das vezes, um tom comicamente enciclop�dico.
Assim, em um dos momentos dram�ticos do encontro entre o padre Urrutia e seu iniciador no mundo liter�rio, o cr�tico Farewell, ent�o acamado e doente, Urrutia come�a a lembrar da hist�ria dos papas. Ele descrever� a vida dos pont�fices mais obscuros como se recitasse um verbete da "Enciclop�dia Mirador" ou como um aluno que descreve os afluentes da margem esquerda do rio Amazonas.
Em "Estrela Distante", veremos listas inumer�veis de revistas liter�rias e nomes de poetas obscuros cortando periodicamente o texto.
Que este saber sem lugar e fun��o, t�o pr�prio de um latino-americano que descobre livros antigos em uma biblioteca velha, seja afirmado pela literatura, seja transformado em ironia suprema de uma literatura renovada; eis algo que diz muito.
Pois tal enciclopedismo ser� a descri��o indireta de lugares que lutar�o para anular a for�a de toda experi�ncia de saber, que procurar�o o esquecimento cont�nuo de sua pr�pria viol�ncia, o bloqueio de sua pr�pria autorreflex�o.
Neste sentido, h� de se perceber como a hist�ria recente entra nos romances de Bola�o. Ela sempre entra como aquilo do qual seria melhor n�o falar, como a queda de Allende e a ascens�o da ditadura chilena contada em um conjunto r�pido de frases curtas. Ou como a ex-mulher de um torturador que dava saraus liter�rios em sua casa enquanto o marido torturava presos pol�ticos no por�o, e sua recusa em elaborar aquilo do que fora c�mplice.
A viol�ncia deixa marcas em frases encurtadas, em ruas que ficam silenciosas, em imagens que rapidamente se dissolvem, como se fic�ssemos sem saber se eram ou n�o reais. � dessa forma que a literatura fala da viol�ncia que nos constitui.
Se me permitem uma nota pessoal final, �-me dif�cil escrever sobre essa viol�ncia do sil�ncio que conhecemos t�o bem sem lembrar de que tenho uma filha no terceiro ano do ensino m�dio que confessou recentemente nunca ter tido aulas sobre a Nova Rep�blica e os �ltimos 30 anos da hist�ria brasileira.
No que t�m raz�o aqueles que descobriram que os escritores aparentemente mais "fant�sticos" (como Kafka e o pr�prio Bola�o) eram, no fundo, os mais "realistas".
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