![Andrea Santos, secretária do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas: “O calor é um assassino, um grave problema de saúde pública”](https://s2-valor.glbimg.com/nxHE7DNxVYj0hmL0JRkIEoRKCzI=/984x0/smart/filters:strip_icc()/i.s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/internal_photos/bs/2024/a/B/PHXfc9SXGCimVBdOnUrA/foto24rel-101-ping-f8.jpg)
Adaptar as cidades à emergência climática significa bem mais do que obras. É preciso o retrofit do modo de vida urbano, com mudanças na educação, nos transportes e nas construções, afirma Andrea Santos, diretora para a América Latina da Rede de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Urbanas (UCCRN, na sigla em inglês), professora do programa de engenharia de transportes da Coppe e secretária do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.
Santos considera que as ondas de calor representam hoje um dos maiores riscos ao país. “É um problema que já nos afeta severamente. O calor é um assassino, um grave problema de saúde pública. Também afeta a economia, reduz a produtividade e impacta a produção de alimentos”, diz. Em sua opinião, o caminho de adaptação é longo, mas viável e algumas medidas podem ser tomadas no curto prazo.
Como exemplo, Santos cita uma maior arborização urbana, modernizações nos sistemas de drenagem das cidades e a criação de pontos de resfriamento nos locais de maior concentração da população, onde as pessoas podem ter acesso à água e a ambientes mais frescos. “Isso faz muita diferença. É bom para todos, mas tem maior impacto para quem passa horas no deslocamento de casa para o trabalho e vive em habitações precárias, pequenas, sem ventilação e acesso à refrigeração”, afirma. Veja a seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Qual é a maior urgência para as cidades?
Andrea Santos: Tudo é urgente. O clima já mudou. Precisamos mitigar e adaptar ao mesmo tempo. Mas todos os desastres, todos os extremos de calor, com mortes, perdas de qualidade de vida e econômicas que sofremos nos mostram o tamanho colossal do nosso atraso. Por isso, a adaptação está no centro de todas as discussões. É muito urgente, mas viável.
Valor: E a mitigação?
Santos: Houve avanços em algumas cidades. Mas, em geral, em vez de diminuir, estamos aumentando as emissões urbanas oriundas do consumo de energia, sobretudo, em transportes. É muito difícil, por exemplo, estabelecer de onde vem determinada emissão de um caminhão ou avião que circule entre cidades.
Valor: O financiamento da mitigação e da adaptação às mudanças climáticas é uma pauta das discussões do G20. Como avançar?
Santos: É preciso inserir sustentabilidade em todos os fluxos financeiros. O financiamento deve focar na transformação transversal. Isso quer dizer que projetos para qualquer tipo de coisa - seja educação, saúde, obras, segurança, transporte, tecnologia - devem levar em conta o componente climático. Os projetos precisam incluir sustentabilidade. Porque, se não, corremos o risco de ter somente greenwashing, projetos que vão consumir recursos e não nos levarão a lugar algum.
Valor: Desde 2009 o Brasil tem uma Política Nacional sobre Mudança do Clima e criou em 2016 um Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima. Também tem planos setoriais de mitigação. O quanto se avançou?
Santos: Esses planos lançam indicadores, traçam diretrizes. Mas cada cidade precisa ter seu próprio planejamento, que atenda suas necessidades. Os planos nacionais estabelecem conceitos gerais. Mas eles precisam ser adequados a especificidades locais.
Valor: As cidades brasileiras têm desenvolvido planejamento climático?
Santos: Poucas das nossas cidades investem no planejamento climático, com planos realmente estruturados. O Rio de Janeiro é um exemplo de cidade que fez um plano assim. Mas, como de forma geral, faltam recursos para levar adiante.
Valor: As cidades brasileiras estão sujeitas a diferentes regimes climáticos e têm diferentes composições socioeconômicas. Qual é o tamanho do desafio?
Santos: O Brasil é um país de dimensões continentais, com toda sorte de problemas e vulnerabilidades. Teremos que abrir vários caminhos para mitigar e adaptar as cidades às mudanças climáticas. Temos a maior parte da população concentrada em áreas costeiras sujeitas a eventos extremos. A localização por si só é um risco.
Valor: Mas a senhora vê fatores de risco em comum?
Santos: De todos os extremos, o mais prevalente em quase todo o país são as ondas de calor. É um problema que já nos afeta severamente. O calor é um assassino, um grave problema de saúde pública. Também afeta a economia, reduz produtividade. Impacta a produção de alimentos.
Valor: Como podemos nos adaptar a cidades mais quentes?
Santos: Precisamos de protocolos específicos para o calor. Esses protocolos devem incluir desde mudanças nas políticas de saúde a medidas de transformação urbana. Obviamente, é impossível reconstruir as cidades. Mas precisamos de medidas de curto, médio e longo prazo.
Valor: Quais seriam as de curto prazo, já que o calor extremo está entre nós?
Santos: Temos muitas tecnologias que poderiam ser aplicadas. Mas existem medidas muito simples, como a criação de pontos de resfriamento, que são de curto prazo. São áreas, nos locais de maior concentração da população, onde as pessoas podem ter acesso à água e a ambientes mais frescos. Isso faz muita diferença. É bom para todos, mas tem maior impacto para quem passa horas no deslocamento de casa para o trabalho e vive em habitações precárias, pequenas, sem ventilação e acesso à refrigeração.
Valor: Que outras medidas?
Santos: A arborização urbana é uma das medidas de melhor custo-benefício. As árvores amenizam a temperatura, oferecem sombra, absorvem poluentes e melhoram a qualidade do ar. Também ajudam na drenagem, ao aumentar a absorção de água excedente na superfície. E não se trata de somente colocar árvores nas ruas. Isso é obviamente necessário. Mas precisamos criar corredores verdes, com praças, parques. Tudo isso deve estar conectado.
Valor: E que outras medidas podem ter grande impacto?
Santos: Os sistemas de drenagem das cidades brasileiras, de forma geral, não são eficientes. Os desastres recentes nos mostram que mudanças na drenagem podem reduzir o impacto dos extremos. E há antigas estruturas que podem ser revitalizadas e aproveitadas.
Valor: Quais?
Santos: Um exemplo são as fontes públicas, as antigas bicas. Não só podemos pensar na modernização das antigas quanto criar e espalhar novas pelas cidades. Isso faz muita diferença na tolerância ao calor.
Valor: Se tornou recorrente as cenas de pessoas vitimadas porque ignoraram alertas ou estavam em situações de risco. Como isso pode ser resolvido?
Santos: As cidades precisam investir em prevenção. Adaptar também é saber evitar. Educar e informar são parte disso. Por exemplo, as pessoas precisam saber que o lixo na calçada não é apenas perigoso para a saúde, ele também aumenta o risco de inundação. São coisas que parecem simples, mas é um grande desafio educar para a prevenção do risco.
Valor: E nos transportes?
Santos: Temos assistido a interrupções, colapsos. Rodovias e ferrovias são sujeitas a incêndios florestais, deslizamentos, alagamentos. Quando se fala em adaptação urbana, os transportes são fundamentais. Em geral pensamos neles como emissores de CO2. Claro que são. Mas também são fundamentais na adaptação.
Valor: Poderia dar exemplos?
Santos: É inconcebível que ainda tenhamos trens ou ônibus operando sem ar-condicionado. As pessoas também não podem ficar expostas ao sol em pontos de ônibus. É preciso que tenham condições adequadas. Por exemplo, uso de telhados verdes (com cobertura vegetal) e torres de resfriamento.
Valor: Mas existem adaptações que exigem mudanças bem mais profundas, não?
Santos: Claro. O Brasil precisa fazer o retrofit das cidades para se adaptar ao clima. Há muita coisa a fazer. Mas é preciso começar. E já. Precisamos, por exemplo, de novos códigos de obras e construção. São mudanças nos locais, no tipo de construção e nos projetos e materiais. Existem boas tecnologias. Mas não as usamos ou empregamos apenas muito pontualmente. Temos também que parar de insistir nos antigos modelos.
Valor: Isso acontece em desastres, como deslizamentos, não?
antos: Sim. De nada adianta reconstruir edificações destruídas por desastres no mesmo local e do mesmo jeito. Se uma determinada área foi devastada, colocar de novo as pessoas no mesmo local é perpetuar a insegurança. E a conta é impagável porque estaremos sempre reconstruindo.