Membros da Igreja Católica francesa abusaram sexualmente de mais de 200 mil crianças e adolescentes nos últimos 70 anos, afirma o relatório de uma abrangente investigação divulgado nesta terça-feira (5).
Segundo o chefe da comissão independente responsável pelo levantamento, Jean-Marc Sauvé, a igreja mostrou "indiferença profunda, total e até cruel durante anos", escolhendo fechar os olhos para as denúncias e proteger a si própria em vez de defender as vítimas do abuso sistêmico.
No domingo (3), Sauvé, um católico praticante de 72 anos, havia revelado à imprensa francesa que, em um universo de 115 mil padres e oficiais religiosos, a igreja abrigou entre 2.900 e 3.200 pedófilos —uma "estimativa mínima". A maioria das vítimas era formada por meninos com idade entre 10 e 13 anos.
Para Sauvé, a igreja não apenas abdicou de tomar as medidas necessárias para impedir que os abusos acontecessem, mas também deixou de denunciá-los e, em alguns casos, conscientemente colocou crianças em contato com predadores sexuais.
O líder da conferência dos bispos da França, Eric de Moulins-Beaufort, disse que a igreja está envergonhada, pediu perdão às vítimas e à sociedade e prometeu agir.
Na maioria dos casos, no entanto, os atos estão prescritos, e os autores dos abusos, falecidos, o que abre dúvidas sobre quais medidas efetivas serão tomadas pela Igreja Católica francesa.
A comissão de investigação foi estabelecida por bispos católicos no final de 2018 e começou os trabalhos no início de 2019, com a meta de lançar luz sobre os casos de abuso sexual e pedofilia e tentar restaurar a confiança pública na igreja em um momento de diminuição das congregações católicas no país.
Segundo o líder da comissão, a Igreja Católica francesa demonstrava total indiferença às vítimas até a década de 2000. Só começou a haver uma mudança de conduta a partir de 2015, disse Sauvé, acrescentando, no entanto, que os casos de abusos ainda são uma realidade na instituição.
Para ele, a doutrina da Igreja Católica em assuntos como sexualidade, obediência e santidade do sacerdócio ajudou a criar pontos cegos que permitiram o abuso sexual por parte do clero.
Assim, para tentar reconstruir um ambiente de confiança entre clérigos e fiéis, a igreja precisaria reformar a abordagem dessas questões, além de assumir a responsabilidade pelo que aconteceu e garantir que as denúncias de abusos e pedofilia sejam reportadas às autoridades judiciais.
A comissão conclui que a Igreja Católica francesa deve indenizar as vítimas com uma compensação financeira adequada "que, apesar de não ser suficiente [para enfrentar o trauma], é indispensável para completar o processo de reconhecimento [de culpa]." A orientação é que os pagamentos sejam feitos com o patrimônio dos agressores ou da própria igreja, não com as contribuições dos fiéis.
Os investigadores recomendam ainda que sejam criados métodos de formação adequada a novos padres e de verificação de antecedentes de qualquer membro designado para uma atividade clerical em que há contato com crianças ou pessoas em situação de vulnerabilidade.
Segundo Sauvé, a comissão identificou cerca de 2.700 vítimas de abusos na Igreja Católica francesa por meio de chamados para depoimentos. Nos arquivos, foram encontrados outros milhares.
Levantamentos mais abrangentes estimam que o número total de crianças e adolescentes submetidos a abusos varia entre 216 mil e 330 mil. A escala sem precedentes inclui abusos cometidos por membros da igreja que não necessariamente tinham alguma função sacerdotal.
Entre os escândalos sexuais ligados à igreja francesa e analisados pela comissão está o do padre Bernard Preynat, condenado em 2020 a cinco anos de prisão por abusos cometidos nas décadas de 1970 e 1980. O caso Preynat inspirou o filme "Graças a Deus", do diretor François Ozon.
Para François Devaux, vítima de abuso na igreja e fundador da associação La Parole Libérée (a palavra liberada), que reúne outras pessoas com histórias semelhantes, o trabalho da comissão finalmente trouxe reconhecimento institucional da responsabilidade da igreja.
"Vocês são uma vergonha para a humanidade", disse Devaux aos representantes católicos durante o evento de apresentação do relatório. "Neste inferno, houve abomináveis crimes em massa, mas algo ainda pior: traição da confiança, traição da moral, traição das crianças."
O relatório com mais de 2.000 páginas será analisado pelo Vaticano. O papa Francisco expressou, nesta terça, grande pesar pelas vítimas de abusos cometidos pelo clero francês. O líder da Igreja Católica já abordou o tema em conferências com bispos do país no mês passado e deve se reunir com o premiê francês, Jean Castex, em uma audiência privada em duas semanas.
Em junho, o pontífice disse que o escândalo dos abusos sexuais na igreja era uma catástrofe mundial. À época, o Vaticano divulgou a revisão mais abrangente das leis da instituição nos últimos 40 anos, endurecendo as regras contra violência sexual.
Segundo o novo regramento, o abuso de menores deve ser punido com a suspensão ou a destituição do cargo clerical, já que representa uma ofensa contra o sexto mandamento do Decálogo, que prega castidade nas palavras e nas obras, com um menor ou pessoa "habitualmente imperfeita no uso da razão".
A mesma punição se aplica ao clérigo que aliciar menores e vulneráveis para induzi-los "a se exporem pornograficamente" e ao religioso que "adquirir, reter, exibir ou distribuir" imagens pornográficas.
Desde que foi eleito, em 2013, Francisco tomou uma série de medidas para erradicar o abuso sexual de menores cometido por clérigos. Em 2019, emitiu um decreto que tornou obrigatório que bispos e padres informem suspeitas de abusos sexuais e permitiu a qualquer pessoa enviar denúncias diretamente ao Vaticano. Caso os bispos não informem os casos de abuso, podem ser considerados corresponsáveis pelo crime que ocultaram.
Mas os críticos acusam o pontífice de responder muito lentamente aos escândalos de abuso sexual, de não ter empatia com as vítimas e de acreditar cegamente na palavra de seus colegas clérigos.
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