Nas ruas de terra batida do Girassol, um residencial erguido por famílias pobres à beira da rodovia que leva a Brasília, a tensão de uma parcela expressiva dos moradores é quase palpável. Alguns imóveis traduzem esse sentimento: foram abandonados e depenados, com caixas d’água, fiações e portões arrancados.
Outras casas do Girassol, que fica na periferia de Cocalzinho de Goiás, uma pequena cidade no entorno do DF, são ocupadas por famílias que chegaram no rastro do abandono dos primeiros moradores. Estão ali como único meio de moradia, sem pagar aluguel, e também para evitar a depredação das casas a qualquer sinal de abandono.
A incerteza incorporada à rotina no Girassol se deve à decisão do Banco do Brasil de leiloar imóveis residenciais de famílias pobres que deixaram de pagar os financiamentos imobiliários.
O BB afirmou que os leilões foram "obrigatórios, em cumprimento à lei 9.514/97 (alienação fiduciária)".
Os leilões se intensificaram nos anos de pandemia, quando trabalhadores das periferias das cidades brasileiras se viram sem renda diante da crise econômica e das restrições de circulação impostas pelo combate ao vírus, que afetaram sobretudo os informais.
A inadimplência dos financiamentos imobiliários passou a ser uma constante no Girassol, onde vivem faxineiras, marceneiros, pedreiros, carregadores de areia e outros autônomos que costumam buscar trabalho em Brasília, cujo centro está a 70 quilômetros do residencial de Cocalzinho.
Vanderlei Pereira da Silva, de 35 anos, mora com o filho Gael, de 1 ano, numa casa simples no Girassol. Há três semanas, não encontra trabalho. Ele faz carregamento de caminhão de areia. Nos piores momentos da pandemia, os períodos sem trabalho foram ainda maiores.
Há anos Silva deixou de pagar o financiamento imobiliário, cuja parcela é de R$ 518. "Eu me endividei, cuido sozinho do meu filho e pago R$ 400 só para a mulher que cuida do bebê quando tenho trabalho", disse.
Ele teme que a casa vá a leilão; se já não foi, o que Silva não sabe por não ter recebido uma carta ou telefonema do banco.
No lote ao lado, a casa onde mora a família do sobrinho de Silva foi colocada a leilão pelo Banco do Brasil na segunda-feira (25). O lance mínimo foi de R$ 15.493.
Vivem no imóvel o pintor Walliff de Oliveira, 28, a mulher, Fabiana das Dores, 26, e a filha de 10 anos. Eles disseram ter comprado um ágio de quem fez o financiamento no Banco do Brasil. Pagaram nove prestações e ficaram inadimplentes.
"A gente descobriu o leilão na internet. Não chega carta, não ligam, nada", afirmou Fabiana. "Se forem tomar a casa, vão tomar de todo mundo. Do asfalto para cá, ninguém paga."
Os imóveis colocados à venda são simples. Alguns contam com dois quartos, uma cozinha, uma sala e um banheiro. Não há água encanada para todos, a internet é instável, a maior parte das ruas não tem asfalto e a energia não chega regularmente em todas as casas.
Gustavo da Silva Mariano, 21, cuida de uma fazenda perto da casa onde mora no Girassol. O imóvel é um dos ofertados no leilão de segunda-feira.
Mariano ocupa a casa com a mulher e dois filhos, de 2 e 5 anos. "Quem fez o financiamento deixou de pagar as prestações com o tempo. E aí ele me ofereceu morar aqui, senão arrancam tudo. Se eu sair hoje, arrancam a fiação, pia, tudo."
O jovem disse que a situação piorou muito na pandemia, com mais casas sendo colocadas em leilão. "Eu nem fico sabendo. Estou aqui há um ano. Se a casa for leiloada, eu saio."
As casas ocupadas estão sendo colocadas à venda em leilões pelo Banco do Brasil, com lances mínimos de R$ 15 mil a R$ 60 mil, como foi o caso do leilão feito na última segunda-feira (25).
Ao todo, 101 imóveis –todos eles descritos como ocupados– foram ofertados nesse leilão. As casas oferecidas ficam no Girassol e em residenciais com o mesmo nível de precariedade urbana em Cocalzinho e em Águas Lindas de Goiás, também no entorno do DF.
O leilão foi feito sem um comunicado por carta ou telefone aos ocupantes, conforme o relato dos moradores à Folha.
A informação sobre os leilões se espalha pelo bairro, e passaram a ser comuns o abandono de imóveis, a retirada de objetos de valor, a ocupação por outras famílias ou a permanência nos imóveis sem clareza sobre o destino.
A Folha questionou o Banco do Brasil sobre a quantidade de leilões feitos de 2018 a 2022, envolvendo imóveis com valores de oferta de R$ 50 mil ou menos.
Segundo os dados fornecidos pelo banco, nenhum leilão foi feito em 2018. Em 2019, primeiro do governo Jair Bolsonaro (PL), foram 25. Em 2020, quando começaram os efeitos da pandemia, 35 leilões foram realizados. Em 2021, o número subiu para 41. Conforme os dados, já foram feitos 4 leilões em 2022, somando 105 no total.
Os leilões comerciais também aumentaram exponencialmente na pandemia, conforme dados do Banco do Brasil: nenhum em 2018 e 2019; 68 em 2020; e 166 em 2021.
Apesar do aumento, os leilões vêm tendo baixa procura. Num certame com oferta de 149 imóveis, houve 4 vendas, com valor médio de negociação de R$ 33,7 mil, segundo o banco.
Em outro, com 119 casas, não houve compradores. É comum que essas casas sejam colocadas em reiterados leilões, conforme ocupantes dos imóveis.
"O Banco do Brasil possui diversas opções para evitar a inadimplência de operações de financiamento imobiliário", disse, em nota. "Após constatação da inadimplência do crédito, o BB continua disponibilizando alternativas para a regularização das parcelas de forma simplificada com alongamento do prazo e diluição do saldo em atraso, dentro das boas práticas bancárias."
Em 2021, segundo a instituição, houve renegociação e regularização de mais de 35 mil operações do tipo. A venda direta ou o leilão ocorrem "após esgotadas todas as tentativas para a regularização", segundo a nota.
"Os imóveis são ofertados como se encontram, com descontos significativos e condições diferenciadas, dando a oportunidade de aquisição, inclusive, pelos atuais ocupantes, se houver. Os adquirentes dos imóveis dão destinação aos mesmos, no exercício de seu direito de propriedade", disse o banco.
Em caso de resistência em sair por parte de quem ocupa o imóvel, a questão deve ser resolvida na Justiça, por iniciativa de quem arrematou o bem.
No Girassol, a reportagem não encontrou nenhuma família que afirmou ter condições financeiras de arrematar o próprio imóvel no leilão. Elas nem chegam a ser formalmente avisadas da venda, segundo os relatos feitos.
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