Ao produzir perfis detalhados e imaginativos da vida mental de seus pacientes, o britânico Oliver Sacks (1933-2015) transformou a neurologia em uma ciência narrativa.
Em "O Rio da Consciência", livro póstumo do autor, ele presta um tributo a seus antecessores e deixa claro que, mais do que uma invenção dele, a "neurociência romanceada" é uma ressurreição literária: grandes médicos do século 19 escreviam desse jeito.
Veja, por exemplo, como o fisiologista Emil Du Bois-Reymond (1818-96) fala de suas crises de enxaqueca: "Acordo com uma sensação generalizada de desordem: uma leve dor na região da têmpora direita, que chega ao auge da intensidade ao meio-dia. Ela responde a cada pulsação da artéria temporal. O rosto fica pálido e encovado, o olho direito pequeno e avermelhado".
"Cito a autodescrição em parte por sua precisão e beleza", explica Sacks, "mas principalmente porque ela é exemplar: todos os casos de enxaqueca variam, mas são, por assim dizer, permutações desse."
A capacidade de recuperar a sensibilidade que predominava em épocas menos estreitamente especializadas da história da ciência é um dos fios condutores do livro, que ajuda muito a evitar a sensação de "pot-pourri" ou mera coletânea que poderia ser gerada pela diversidade de temas.
Outro tema unificador são ídolos intelectuais de Sacks —principalmente Darwin e Freud, com o psicólogo e filósofo William James, outro gigante do século 19, num distante terceiro lugar.
(É curioso, aliás, como a paixão de Sacks por Freud sobrevive aos incontáveis equívocos factuais das ideias freudianas —aqui, faz sentido suspeitar que o talento literário do pai da psicanálise ajuda a encobrir seus diversos pecados.)
Mesmo falando de pesquisadores como os citados acima, gente que forjou novas disciplinas praticamente sozinha, Sacks prefere se debruçar sobre o pequeno —detalhes que podem não mudar o mundo, mas que são a carne e o sangue de uma área científica.
Temos, por exemplo, o fascínio do autor pela coevolução que une flores e seus insetos polinizadores num minueto que já dura dezenas de milhões de anos, ou os misteriosos enganos auditivos que levam as pessoas a interpretar uma frase das maneiras mais criativas e estapafúrdias (algo que o autor poderia apelidar de "efeito Velha Surda de 'A Praça É Nossa'", caso fosse brasileiro e gostasse de humor televisivo datado).
E, quando fala de neurociência, reforça uma das mensagens mais importantes de seus livros anteriores: o cérebro, em certo sentido, constrói ativamente a realidade percebida, usando as pistas da natureza para montar um modelo do mundo que, às vezes, "dá pau" de modos divertidos ou assustadores.
A grande joia do livro, porém, é provavelmente o ensaio final, no qual Sacks usa a imagem do escotoma —termo que designa regiões do campo visual que ficam embaçadas ou totalmente apagadas ao lado de outros pontos de visão normal— para descrever a natureza contingente das descobertas científicas.
Trocando em miúdos: até quando falamos de ciência, a ideia de progresso permanente e inexorável é ilusória.
O avô de Charles Darwin, Erasmus, por exemplo, foi um evolucionista convicto, mas seu neto muito mais cauteloso e conservador só se convenceu do caráter mutável das espécies de seres vivos e conseguiu formular de modo coerente a ideia de seleção natural após anos de coleta e análise de informações.
Grandes ideias podem eclodir a qualquer momento, mas só conseguem deitar raízes em ecossistemas sociais e culturais que lhes sejam amigáveis, sem falar nas idiossincrasias dos que atuam como guardiães das diferentes disciplinas e têm influência suficiente para barrar esse desenvolvimento. A verdade não triunfa automaticamente.
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