No longínquo 1983, três ladrões levaram embora a taça Jules Rimet da sede da CBF, no Rio, perdemos Garrincha e Clara Nunes, assistimos perplexos à maxidesvalorização do cruzeiro, e, nas rádios, enfrentávamos Rádio Táxi, Ritchie e Balão Mágico. O ano não foi dos mais fáceis.
No campo dos afetos, o panorama não era melhor: celular e internet não existiam; amores analógicos, comunicação homeopática.
Passaram-se, então, 35 anos, e chegamos a 2018. E é esse o intervalo que separa o lançamento de "O Que É o Amor" de sua nova publicação.
Na introdução à nova edição, a escritora e psicanalista Betty Milan contextualiza o que representou publicar o texto em uma sociedade que ainda respirava "o vento libertário de Maio de 68" e, agora, após praticamente uma vida.
"O amor, na sua essência, não mudou", adianta Milan, no livro, aos mais ansiosos pela atualização do sentimento. Em entrevista à Folha, ela reforça a sensação de que, substancialmente, querer bem permanece igual, embora tenhamos nos tornado "mais imediatistas do que nunca", o que, em termos práticos, dificultaria algumas exigências do amor, como aceitar esperar ou ficar descontente.
A metamorfose do sexo, por sua vez, para Milan, foi maior.
"O livro foi escrito antes da descoberta do vírus da Aids. Ainda estávamos na onda da revolução sexual e o sexo era supervalorizado, a ponto de as mulheres serem obrigadas a transar para mostrar que eram livres. Havia uma tirania do sexo, que era obrigatório, o que, obviamente, é contrário à liberdade", avalia, reforçando que a liberdade de dizer "não" cresceu também devido ao movimento das mulheres contra o assédio.
Alguns trechos enfatizam a situação ao definir o amor como "o grande bandido", algo depreciado em contraponto ao valorizado sexo, "a que a modernidade nos entrega para neutralizar a paixão". Para Milan, "o mito do amor eterno foi substituído pelo mito do orgasmo genital perfeito".
A obra aponta, também, que todo o amor tem algo de vaidoso e egocêntrico, já que o amante se vê no ser amado —chegando, inclusive, a não se verem absolutamente, como descrevia Carlos Drummond de Andrade: "Os amantes se amam cruelmente/ e com se amarem tanto não se veem".
Em uma era de narcisos confortavelmente instalados nas redes sociais, as coisas podem ficar um pouco mais complicadas para quem busca o amor verdadeiro. Na visão da psicanalista, o narcisismo não prevalece no amor de verdade porque implica o respeito pela liberdade do outro.
"O amor verdadeiro não está ao alcance de todos, sobretudo dos narcisos, porque eles não vivem no culto do amor, e sim no da vaidade. Somos vaidosos e desconfiados. Isso é contrário ao amor, que não aceita a desconfiança."
Por falar em desconfiar, a internet trouxe também a exposição —voluntária ou não— das relações que mantemos, o que, vez ou outra, vira motivo de insegurança entre casais. Será possível domar o ciúme para que não prejudique o relacionamento?
Milan acredita que a análise ainda é um recurso poderoso para lidar com o sentimento de posse. "É preciso difundir, também na imprensa, que o ciúme não justifica a violência, em hipótese alguma", frisa.
Assim como não sobrevive sem a confiança, o amor, avalia a escritora, também não viveria sem o mal causado pela ausência. Assim, é possível que as novas gerações se vejam em desvantagem com relação aos leitores da década de 1980, para os quais a comunicação instantânea e videochamadas eram coisa de ficção.
"O discurso amoroso precisa da falta. As pessoas que mandam mensagens o dia inteiro podem estar desperdiçando as palavras. O amor não suporta a banalização", sentencia a psicanalista, que, como a Sherazade de "As Mil e Uma Noites" entretém a audiência por 112 páginas com histórias maravilhosas, exclusivamente sobre o amor.
De Platão a Eros, de Mariana Alcoforado a Perséfone, vários nomes auxiliam na tentativa de definir os contornos desse sentimento universal que, de maneira controversa, é tão conhecido e ainda tão obscuro.
"Vale lembrar Sêneca. Segundo ele, homem feliz é o que nada deseja. Nada é exagero; mas, quanto mais evitarmos o consumismo, mais felizes nós seremos."
O Que É o Amor
Betty Milan, ed. Record, R$ 34,90 (112 págs.)
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.