São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

JOSÉ SERRA

Com Bush ou com Kerry

A disputa entre George Bush, cujo governo, como diz Michael Walzer, é o mais direitista da história dos Estados Unidos, e John Kerry, democrata apoiado pela tradição dos Kennedy, poderá mudar muito os rumos da política externa e interna norte-americana. Com Kerry, espera-se uma diminuição da arrogância e da truculência, ao lado do fortalecimento do hoje execrado multilateralismo nas grandes decisões internacionais. No campo doméstico, serão pelo menos contidos os retrocessos em matéria de direitos civis e sociais.
É preciso ter claro, no entanto, que duas coisas que interessam muito ao Brasil não mudarão. A primeira é o elã protecionista norte-americano, em plena evidência na campanha eleitoral. É falsa, como dois e dois são cinco, a idéia de que o acesso dos países em desenvolvimento ao mercado norte-americano de bens e serviços seja uma causa importante da destruição de empregos no país. Mas é certo, como dois e dois são quatro, que os interesses setoriais contrariados pela concorrência externa continuarão persuadindo a maioria dos norte-americanos de que essa tese falsa é correta. Aliás, é por isso, e não por alguma posição dura brasileira, que a Alca não está caminhando.
Em segundo lugar, o eleito, seja quem for, vai dar um tranco no modelo dos déficits gêmeos crescentes, o fiscal e o externo, ambos convergindo para 5% do PIB. Na era Clinton, eles haviam se divorciado: o déficit em conta corrente do balanço de pagamentos não parou de crescer, mas o déficit fiscal virou superávit. Bush, para enfrentar a desaceleração da economia, seguiu a cartilha neoconservadora (e burra) e reduziu os impostos sobre os mais ricos, enquanto aumentava os gastos militares. Empinou, assim, os resultados fiscais negativos.
Kerry procurará recuperar a receita de impostos. Bush, provavelmente, irá se concentrar no corte de gastos sociais. Mas, independentemente da forma, a redução do déficit orçamentário será prioritária. Mas, como nem um nem outro conseguirá promover um ajuste fiscal do tamanho que o Federal Reserve, o Banco Central de lá, considera necessário, será inevitável alguma elevação dos juros, hoje no nível mais baixo desde a depressão dos anos 30.
É óbvio que esse aumento dos juros americanos, que já começa a ser antecipado pelo mercado financeiro, terá repercussões adversas sobre as economias altamente endividadas, como a brasileira. Nossas dificuldades tendem, portanto, a agravar-se.
Infelizmente, o governo Lula, confundindo bolha com tendência, não aproveitou as excepcionais condições da economia internacional no ano passado -juros irrisórios, demanda dinâmica, bons preços para produtos brasileiros- para melhorar a performance da economia e torná-la menos vulnerável a adversidades externas. Jogando fora seu inviável programa original sem ter uma alternativa consistente para substituí-lo, ficou preso ao tripé de juros altos, impostos mais altos ainda e arrocho fiscal exagerado, confiando nos discursos e não se sabe exatamente em que tipo de forças de mercado para promover o desenvolvimento.
Diagnóstico desalentador? Não, diagnóstico realista e necessário como ponto de partida para a mobilização da sociedade e das forças políticas mais decentes, de todos os quadrantes, para que seja encontrada uma saída para o crescimento medíocre em que o Brasil empacou e cuja principal conseqüência é agravar o desemprego, o grande problema social brasileiro.


José Serra escreve às segundas-feiras nesta coluna.

E-mail: [email protected]



Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Alma farta
Próximo Texto: Frases

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.