São Paulo, segunda-feira, 01 de março de 2004

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País marcado por golpes se rebelou contra escravidão

JEAN-MICHEL CAROIT
DO "LE MONDE"

No dia 1� de janeiro, Jean-Bertrand Aristide presidia, em Porto Príncipe, as cerimônias do bicentenário da independência do Haiti. Enquanto isso, em Gonaives, no norte do país, chefes de gangues transformados em "rebeldes" preparavam-se para lançar a ofensiva contra seu antigo chefe, o mesmo presidente Aristide.
Sua partida agora abre um novo capítulo na história trágica da velha Pérola das Antilhas, às vezes também qualificada como "nação patética" ou "pedaço de África perdido no meio das Américas".
Descoberta por Cristóvão Colombo em 1492, a ilha de Hispaniola, que hoje se divide entre o Haiti e a República Dominicana, era povoada por mais de 300 mil índios tainos. A história moderna da ilha, descrita como um paraíso por Colombo, começa com um genocídio. Em menos de meio século, os indígenas pacíficos são exterminados, dizimados pela escravidão nas minas de ouro, por massacres e pelas epidemias trazidas pelos "conquistadores".
A partir de 1505, são introduzidas as plantações de cana-de-açúcar, importada das ilhas Canárias. Os navios negreiros, na maioria portugueses nos primeiros anos, desembarcam seus carregamentos de escravos arrancados das costas da África ocidental. Enquanto isso, os colonos espanhóis, decepcionados com o esgotamento das minas de ouro, deixam a ilha em direção às Américas Central e do Sul, e piratas franceses se instalam na ilha de Tortuga, ao norte do Haiti.
Estrategicamente situada na rota dos galeões espanhóis, essa pequena ilha rochosa serve de base para flibusteiros e bucaneiros que multiplicam suas incursões sobre a parte ocidental de Hispaniola. Por tratado de 1697, a Espanha acaba por reconhecer a soberania francesa sobre esse território, que toma o nome de colônia de Saint-Domingue, que se tornará, um pouco mais de um século depois, a República do Haiti.
Graças à cultura do açúcar, produto cuja importância é hoje comparável à do petróleo, Saint-Domingue torna-se a colônia mais rica do mundo. Essa riqueza se funda sobre a brutal exploração de cerca de 500 mil escravos que trabalham do nascer ao pôr-do-sol sob condições desumanas e submetidos aos mais cruéis castigos. Na aurora da Revolução Francesa (1789), os escravos são dez vezes mais numerosos do que os brancos e os libertos, mulatos e negros que conseguiram ou compraram sua liberdade.
Refugiados nas montanhas, dezenas de milhares de escravos fugitivos, os "marrons", lançam ataques às plantações. O mais célebre deles, o "houngan" (sacerdote do vodu) François Mackandal, torna-se o cabeça de uma rebelião que aterrorizará os proprietários por muitos anos.
Depois da Revolução Francesa, é entre os escravos que o grito de liberdade encontrará maior ressonância. No dia 14 de agosto de 1791, uma cerimônia vodu celebrada por Boukman, um outro "houngan", no norte da colônia, marca o início da rebelião que, 13 anos mais tarde, levaria à independência do Haiti.
A figura de Toussaint Louverture, o Espártaco negro, domina esses 13 anos revolucionários, retratados pelo escritor cubano Alejo Carpentier em seu romance "O Século das Luzes". Formidável estrategista, que soube jogar habilmente com as rivalidades entre as grandes potências -Espanha, Inglaterra e França-, Louverture consolida seu poder na ilha e desafia Napoleão. Capturado à traição, morre numa cela glacial nos Alpes do Jura, mas seus tenentes resistem. Os 43 mil soldados franceses, sob ordens de um cunhado de Napoleão, são dizimados pela guerrilha de ex-escravos.
No total, mais de 200 mil, a maioria negros, morreram nessa primeira revolução de escravos vitoriosa. Quando os chefes da armada local proclamam a independência de Saint-Domingue e lhe dão seu nome indígena de Haiti, no dia 1� de janeiro de 1804, a antiga jóia das colônias francesas está em ruínas. As plantações estão devastadas, e o antagonismo entre a maioria negra e a minoria mulata ressurge. Temendo o contágio abolicionista, as potências da época, que ainda mantinham a escravidão, colocam a jovem república no ostracismo.
O massacre de brancos e o confisco das propriedades dos colonos tornam as relações com a França ainda mais difíceis. As autoridades temem nova invasão. O presidente Alexandre Pétion propõe-se a pagar uma compensação "razoavelmente calculada" para indenizar os colonos.
A negociação tem continuidade com o presidente Jean-Pierre Boyer, que aceita, sob a ameaça de uma esquadra, pagar uma compensação de 150 milhões de francos-ouro. Em 1838, a França reconhece a independência do Haiti. Renegociada para 90 milhões de francos-ouro, a indenização será integralmente paga pelo Haiti, que fará o último pagamento em 1883. É a título de reembolso desta "dívida de independência" que Jean-Bertrand Aristide lançou em 2003 uma campanha exigindo o reembolso, pela França, de US$ 21.685.135.571,48, o equivalente hoje à quantia paga a Paris.
A França criou uma comissão chefiada pelo sociólogo Régis Debray para aprofundar o assunto. Conclui que "a requisição haitiana não tem fundamento jurídico, pois tenta requalificar juridicamente atos que pertencem ao passado e busca uma inadmissível retroatividade de leis e normas".
Golpes de Estado, revoltas e revoluções palacianas se sucederam no século 19 até o desembarque de marines americanos, que ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Em nome da doutrina Monroe, os EUA afirmaram suas ambições regionais em detrimento das velhas potências européias. Como na Nicarágua e na República Dominicana, os EUA assumiram o controle das aduanas e criaram exércitos que seriam capazes de garantir a estabilidade e os seus interesses.
Somoza em Manágua, Trujillo em Santo Domingo, Duvalier em Porto Príncipe: pouco depois da partida dos marines, ditaduras se instalam com o apoio dos exércitos formados pelos americanos. Passando por cima dos militares, o médico e praticante de vodu François Duvalier, apelidado de "Papa Doc", forma sua própria milícia, os temíveis "tontons macoutes" que vão aterrorizar o Haiti entre 1957 et 1986. Dezenas de milhares de haitianos são assassinados ou forçados ao exílio.
Em 1986, a queda de Jean-Claude Duvalier, o "Baby Doc", que sucedeu seu pai em 1971, faz nascer a esperança de mudança democrática que se cristaliza na pessoa de um jovem padre das favelas, Jean-Bertrand Aristide.



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