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País marcado por golpes se rebelou contra escravidão
JEAN-MICHEL CAROIT
DO "LE MONDE"
No dia 1� de janeiro, Jean-Bertrand Aristide presidia, em Porto
Príncipe, as cerimônias do bicentenário da independência do Haiti. Enquanto isso, em Gonaives,
no norte do país, chefes de gangues transformados em "rebeldes" preparavam-se para lançar a
ofensiva contra seu antigo chefe, o
mesmo presidente Aristide.
Sua partida agora abre um novo
capítulo na história trágica da velha Pérola das Antilhas, às vezes
também qualificada como "nação
patética" ou "pedaço de África
perdido no meio das Américas".
Descoberta por Cristóvão Colombo em 1492, a ilha de Hispaniola, que hoje se divide entre o
Haiti e a República Dominicana,
era povoada por mais de 300 mil
índios tainos. A história moderna
da ilha, descrita como um paraíso
por Colombo, começa com um
genocídio. Em menos de meio século, os indígenas pacíficos são
exterminados, dizimados pela escravidão nas minas de ouro, por
massacres e pelas epidemias trazidas pelos "conquistadores".
A partir de 1505, são introduzidas as plantações de cana-de-açúcar, importada das ilhas Canárias.
Os navios negreiros, na maioria
portugueses nos primeiros anos,
desembarcam seus carregamentos de escravos arrancados das
costas da África ocidental. Enquanto isso, os colonos espanhóis, decepcionados com o esgotamento das minas de ouro,
deixam a ilha em direção às Américas Central e do Sul, e piratas
franceses se instalam na ilha de
Tortuga, ao norte do Haiti.
Estrategicamente situada na rota dos galeões espanhóis, essa pequena ilha rochosa serve de base
para flibusteiros e bucaneiros que
multiplicam suas incursões sobre
a parte ocidental de Hispaniola.
Por tratado de 1697, a Espanha
acaba por reconhecer a soberania
francesa sobre esse território, que
toma o nome de colônia de Saint-Domingue, que se tornará, um
pouco mais de um século depois,
a República do Haiti.
Graças à cultura do açúcar, produto cuja importância é hoje
comparável à do petróleo, Saint-Domingue torna-se a colônia
mais rica do mundo. Essa riqueza
se funda sobre a brutal exploração
de cerca de 500 mil escravos que
trabalham do nascer ao pôr-do-sol sob condições desumanas e
submetidos aos mais cruéis castigos. Na aurora da Revolução
Francesa (1789), os escravos são
dez vezes mais numerosos do que
os brancos e os libertos, mulatos e
negros que conseguiram ou compraram sua liberdade.
Refugiados nas montanhas, dezenas de milhares de escravos fugitivos, os "marrons", lançam ataques às plantações. O mais célebre
deles, o "houngan" (sacerdote do
vodu) François Mackandal, torna-se o cabeça de uma rebelião
que aterrorizará os proprietários
por muitos anos.
Depois da Revolução Francesa,
é entre os escravos que o grito de
liberdade encontrará maior ressonância. No dia 14 de agosto de
1791, uma cerimônia vodu celebrada por Boukman, um outro
"houngan", no norte da colônia,
marca o início da rebelião que, 13
anos mais tarde, levaria à independência do Haiti.
A figura de Toussaint Louverture, o Espártaco negro, domina esses 13 anos revolucionários, retratados pelo escritor cubano Alejo
Carpentier em seu romance "O
Século das Luzes". Formidável estrategista, que soube jogar habilmente com as rivalidades entre as
grandes potências -Espanha, Inglaterra e França-, Louverture
consolida seu poder na ilha e desafia Napoleão. Capturado à traição, morre numa cela glacial nos
Alpes do Jura, mas seus tenentes
resistem. Os 43 mil soldados franceses, sob ordens de um cunhado
de Napoleão, são dizimados pela
guerrilha de ex-escravos.
No total, mais de 200 mil, a
maioria negros, morreram nessa
primeira revolução de escravos
vitoriosa. Quando os chefes da armada local proclamam a independência de Saint-Domingue e
lhe dão seu nome indígena de
Haiti, no dia 1� de janeiro de 1804,
a antiga jóia das colônias francesas está em ruínas. As plantações
estão devastadas, e o antagonismo entre a maioria negra e a minoria mulata ressurge. Temendo
o contágio abolicionista, as potências da época, que ainda mantinham a escravidão, colocam a jovem república no ostracismo.
O massacre de brancos e o confisco das propriedades dos colonos tornam as relações com a
França ainda mais difíceis. As autoridades temem nova invasão. O
presidente Alexandre Pétion propõe-se a pagar uma compensação
"razoavelmente calculada" para
indenizar os colonos.
A negociação tem continuidade
com o presidente Jean-Pierre Boyer, que aceita, sob a ameaça de
uma esquadra, pagar uma compensação de 150 milhões de francos-ouro. Em 1838, a França reconhece a independência do Haiti.
Renegociada para 90 milhões de
francos-ouro, a indenização será
integralmente paga pelo Haiti,
que fará o último pagamento em
1883. É a título de reembolso desta
"dívida de independência" que
Jean-Bertrand Aristide lançou em
2003 uma campanha exigindo o
reembolso, pela França, de US$
21.685.135.571,48, o equivalente
hoje à quantia paga a Paris.
A França criou uma comissão
chefiada pelo sociólogo Régis Debray para aprofundar o assunto.
Conclui que "a requisição haitiana não tem fundamento jurídico,
pois tenta requalificar juridicamente atos que pertencem ao passado e busca uma inadmissível retroatividade de leis e normas".
Golpes de Estado, revoltas e revoluções palacianas se sucederam
no século 19 até o desembarque
de marines americanos, que ocuparam o Haiti de 1915 a 1934. Em
nome da doutrina Monroe, os
EUA afirmaram suas ambições
regionais em detrimento das velhas potências européias. Como
na Nicarágua e na República Dominicana, os EUA assumiram o
controle das aduanas e criaram
exércitos que seriam capazes de
garantir a estabilidade e os seus
interesses.
Somoza em Manágua, Trujillo
em Santo Domingo, Duvalier em
Porto Príncipe: pouco depois da
partida dos marines, ditaduras se
instalam com o apoio dos exércitos formados pelos americanos.
Passando por cima dos militares,
o médico e praticante de vodu
François Duvalier, apelidado de
"Papa Doc", forma sua própria
milícia, os temíveis "tontons macoutes" que vão aterrorizar o Haiti entre 1957 et 1986. Dezenas de
milhares de haitianos são assassinados ou forçados ao exílio.
Em 1986, a queda de Jean-Claude Duvalier, o "Baby Doc", que
sucedeu seu pai em 1971, faz nascer a esperança de mudança democrática que se cristaliza na pessoa de um jovem padre das favelas, Jean-Bertrand Aristide.
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