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Passado composto

No Rio, um pr�dio guarda o Brasil

SYLVIA COLOMBO

RESUMO O Instituto Geogr�fico e Hist�rico Brasileiro, que tem sua sede no Rio de Janeiro, guarda documentos importantes e, por vezes, intocados. Aberta ao p�blico, a institui��o que existe desde 1838, acaba de disponibilizar o acervo pessoal do ex-presidente M�dici, que tem sido objeto de estudos da Comiss�o da Verdade.

A caixinha de madeira se abre ao deslizar da tampa na qual est�o gravadas duas discretas imagens da Coroa Imperial brasileira. Dentro, um volume da edi��o "princeps" --nome dado � primeira a ser impressa, ap�s c�pias manuscritas-- de "Os Lus�adas", em cuja folha de rosto se l�: "Luis de Cam�es seu dono".

O volume, que data de 1572, foi trazido ao Brasil por um religioso portugu�s, que o deu de presente ao imperador d. Pedro 2� (1825-91), na d�cada de 1840. Exilado ap�s a proclama��o da Rep�blica (1889), o velho monarca pediu que o livro fosse enviado para acompanh�-lo em seus �ltimos anos, na Europa. S� em 1925, trazida pelo neto do imperador, a obra voltou ao Rio.

Numa tarde de segunda-feira da primavera carioca, Maura Macedo Correa e Castro conta vagarosamente o caminho trilhado pelo livro. Segura com muito cuidado o volume e pergunta: "Eu estou te chateando? Sei que podem ser meio aborrecidas essas hist�rias de objetos velhos, para os que v�m de fora. N�s estamos muito metidos aqui, eles s�o nosso cotidiano", diz � Folha a historiadora, que n�o revela a idade, mas trabalha h� 40 anos do Instituto Geogr�fico e Hist�rico Brasileiro.

Enquanto caminha pelas apertadas estantes da biblioteca, cuja cole��o original foi formada em 1838, vai apontando, de mem�ria, onde est�o di�rios dos viajantes, a se��o Brasiliana e os livros que pertenceram a d. Pedro 2�, revestidos com papel�o marrom: "O certo seria restaur�-los; o tempo est� acabando com as encaderna��es, mas n�o h� dinheiro".

A institui��o, que lan�a agora volume comemorativo dos seus 175 anos, "Brasiliana IHGB" [org. Pedro Corr�a do Lago, Capivara, R$ 196, 720 p�gs.], guarda em sua sede, no bairro da Gl�ria, documentos relativos a todas as �pocas da hist�ria do Brasil, e em diferentes formatos e suportes.

Da tela "Ru�nas da S� de Olinda", pintada pelo holand�s Frans Post em 1665, � primeira hist�ria do Brasil escrita em ingl�s ("A History of Brazil", James Henderson, 1821). Da instru��o para cobrar a derrama (o imposto sobre o ouro extra�do em Minas Gerais, que foi o estopim da Inconfid�ncia Mineira de 1789), ao di�rio do abolicionista Andr� Rebou�as (1838-98), registrando a extin��o da escravid�o em 13 de maio de 1888. De poltronas e lou�as usadas por dom Pedro 2� em seu dia a dia a fl�mulas da campanha presidencial de J�nio Quadros (1917-92) e objetos encontrados quando do arrasamento do Morro do Castelo na reforma urban�stica do Rio, em 1921 --h�, inclusive, mapas de um suposto tesouro, que teria sido enterrado no morro pelos jesu�tas, durante o s�culo 18, e jamais encontrado.

Est�o no acervo, ainda, mapas do s�culo 16 que registram a ent�o rec�m-descoberta costa do Brasil, correspond�ncia de presidentes, tanto da Rep�blica Velha (1889-1930) como da ditadura militar (1964-85), cole��es da "Revista Ilustrada", do "Cruzeiro", fotos do Rio antigo e da �poca da cria��o do parque Nacional do Xingu, no Mato Grosso, na d�cada de 1960.

"� a cole��o mais antiga de hist�ria do Brasil, e sofre a falta de bra�os para desbastar e organizar os documentos. H� um tesouro escondido ali. Fizemos o livro para divulgar e chamar a aten��o de pesquisadores. Ningu�m imagina filas de gente indo ao IHGB, mas poderia haver mais pesquisadores interessados, mais demanda para que se abram os arquivos", diz o organizador da "Brasiliana IHGB", o editor e bibli�filo Pedro Corr�a do Lago, tamb�m ex-presidente da Biblioteca Nacional.

ALUGUEL Entidade privada, mantida com a renda do aluguel de alguns andares do edif�cio que ocupa, o IHGB recebe, desde o per�odo mon�rquico, doa��es privadas de documentos, livros e peri�dicos. Tamb�m edita, sem interrup��o, desde 1839, a "Revista do IHGB", mais antiga publica��o do g�nero nas Am�ricas, que trata de pesquisas realizadas a partir do acervo da institui��o.

A consulta aos arquivos particulares � p�blica, mas eles se encontram hoje em diversos n�veis de cataloga��o. Apenas quatro t�m invent�rio completo; mais de 20 jamais foram manipulados; e o restante dos mais de 150 est�o catalogados de forma prec�ria, sum�ria ou incompleta. A biblioteca e a sala de leitura tamb�m est�o abertas a pesquisadores, assim como espa�os dedicados a expor cole��es.

O IHGB acaba de disponibilizar documentos do general Em�lio Garrastazu M�dici, que governou o Brasil entre 1969 e 1974, doados por seu filho, o engenheiro Roberto, 78. Tamb�m por falta de bra�os, o processo de organiza��o desses pap�is levou quase dez anos desde o momento da doa��o.

"H� coisas que est�o aqui h� d�cadas, muitas vezes indexadas pelo nome de doadores, e n�o pelo dos personagens. H� outras que apenas os velhos pesquisadores e arquivistas sabiam onde estavam. N�o havia cataloga��o, estava tudo na cabe�a deles e, se n�o o organizamos, o conhecimento se vai com eles", diz a arquivista Andrea Rocha Brasil, 42, contratada h� um ano pelo IHGB. "A constante entrada de doa��es e a discrep�ncia entre demandas e recursos faz com que a atividade de inventariar seja um verdadeiro trabalho de S�sifo", acrescenta o presidente do instituto, o tamb�m historiador Arno Wehling.

CAMPANHA Entre os 475 documentos do rec�m-aberto arquivo de M�dici, est�o os tr�s grossos volumes preparados pelo ent�o ministro da Justi�a, Alfredo Buzaid (1914-91) em 1971, para "servir de subs�dio" ao general, em suas tentativas de desmontar a "campanha difamat�ria movida contra o Brasil", como diz a carta ao presidente que acompanha o material.

S�o fichas de presos pol�ticos, relat�rios m�dicos que trazem apenas problemas menores de sa�de (gastrites, micoses, rinites), declara��es assinadas por carcereiros negando maus tratos nas pris�es, fotos de militantes rec�m-libertados, sorrindo e com cara de al�vio, abra�ando familiares e amigos.

"M�dici vinha sendo cobrado e se importava muito com a imagem do Brasil no exterior. Esses documentos parecem ter sido organizados para que ele se defendesse", diz � Folha Regina Wanderley, 74, que coordenou a cataloga��o do acervo --composto de mais de 30 latas de documentos, o conjunto tem levado membros da Comiss�o da Verdade ao IHGB.

Com mais de 50 anos de experi�ncia em trabalho com arquivos --come�ou no Arquivo Nacional, em 1962, e desde 1997 est� no instituto--, a professora comanda uma equipe de jovens bolsistas, estudantes de 20 e poucos anos do curso de hist�ria da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

"O conjunto dos documentos mostra um M�dici matizado, que sabia muito sobre o que acontecia com os presos pol�ticos, controlava a movimenta��o de opositores importantes, mas que tamb�m levava em conta o que lhe pediam a Anistia Internacional ou o cardeal Paulo Evaristo Arns, por exemplo, quando perguntavam pelo destino de presos pol�ticos. Tamb�m se mostra um homem ir�nico, que enchia as margens dos pap�is de coment�rios, e em certo sentido vaidoso, que guardava as cartas elogiosas que recebia de celebridades", completa Wanderley.

ESTIGMA Tratar do arquivo de M�dici traz uma particularidade para os pesquisadores do IHGB, uma vez que o general foi quem inaugurou a sede atual, em 1972, fazendo com que a institui��o permanecesse estigmatizada entre acad�micos progressistas por ser vinculada ao per�odo militar.

"N�s estivemos no ostracismo por muitos anos por conta dessa imagem, mas nunca houve censura de documentos nem limita��o � pesquisa aqui. Com o tempo, mais recentemente, tem havido mais esclarecimento, e os historiadores acad�micos voltaram a se aproximar", comenta Maura Macedo Correa e Castro.

Entre os pap�is guardados pelo general, est� o das marca��es que fez enquanto assistia � sess�o que anunciou o Ato Institucional n� 5.

O general, que na �poca chefiava o SNI (Servi�o Nacional de Informa��es), desenhou pacientemente a mesa e o local em que cada um estava sentado ao redor dela --� a imagem que ilustra a capa desta edi��o. Como que entediado, fez tamb�m pequenos desenhos, nos cantos de outra folha, enquanto seus colegas decidiam o fechamento do Congresso, a cassa��o de direitos pol�ticos e a dissemina��o da censura.

Para a pesquisadora Jana�na Cordeiro, da Universidade Federal Fluminense, o acervo rec�m-disponibilizado ajuda a entender "como conviveram, no pa�s, o milagre econ�mico' [crescimento recorde, baixa infla��o, grandes obras de infraestrutura] e o projeto repressivo", explica a historiadora, que realiza pesquisa de p�s-doutorado sobre a forma��o do consenso social e a mem�ria coletiva durante a ditadura, justamente a partir da trajet�ria do general.

"M�dici n�o era um homem de muitas palavras, fazia o tipo discreto e, depois que deixou o governo, acabou relegado a uma esp�cie de ostracismo, guardava amargura com rela��o ao lugar que a hist�ria lhe havia destinado. Conhec�amos pouco de sua fala e de seus pontos de vista", completa Cordeiro.

Muitos dos documentos ajudam a completar essa lacuna: anotados � margem, eles compilam impress�es de M�dici sobre discursos, relat�rios do SNI acerca das guerrilhas na Am�rica Latina ou informes sobre pol�tica internacional.

CARTAS H�, no conjunto, uma grande quantidade de cartas recebidas por M�dici, a maioria transmitindo apoios e elogios. � o caso, por exemplo, de uma missiva de Pel�, que, alguns meses depois da conquista do tricampeonato mundial pela sele��o, viajou para Guadalajara, no M�xico, em miss�o oficial do governo, para uma homenagem ao Brasil.

"� com imensa satisfa��o que passo �s m�os de Vossa Excel�ncia o relat�rio das atividades desenvolvidas por mim, durante a estada no M�xico, a fim de cumprir a honrosa miss�o de representar esse ilustre governo e nossa querida p�tria nos festejos comemorativos da inaugura��o da pra�a Brasil, na cidade de Guadalajara", escreve.

Mais adiante, afirma: "Queira, sr. presidente, aceitar os meus sinceros agradecimentos por ter escolhido este humilde brasileiro para t�o dignificante miss�o e, se aceitei, foi porque me senti sumamente honrado em representar tanto Vossa Excel�ncia como a todos os meus irm�os brasileiros".

Tamb�m em tom sol�cito escreve o soci�logo Gilberto Freyre (1900-87), enviando a M�dici um exemplar de seu "Ordem e Progresso" (1957), em ingl�s, edi��o para a qual havia escrito uma introdu��o destacando a a��o das For�as Armadas do Brasil, "t�o diferente da imagem que � dada hoje, em certos meios europeus e americanos".

O autor de "Casa-Grande & Senzala" escreve ainda: "Essa introdu��o poderia ser considerada �til ao atual esfor�o, da parte do Brasil, no sentido de uma poss�vel retifica��o daquela imagem. Vossa Excel�ncia, conhecedor, como �, da mat�ria --a import�ncia da psicologia e da sociologia da informa��o-- j� come�ou, com efeito, a desenvolver uma inteligente atividade nesse setor: atividade que estava faltando a favor do que de construtivo se vem fazendo em nosso pa�s nos �ltimos anos".

Na correspond�ncia pol�tica, est�o cartas de Richard Nixon (1913-94) sobre quest�es internacionais. Numa delas, o presidente norte-americano relata o encontro que teve com Mao Tse-tung (1893-1976) em visita � China, em 1972, e a reaproxima��o entre os dois pa�ses. Noutra, expressa preocupa��es com o "reestabelecimento da seguran�a e da estabilidade" na Bol�via, ap�s o golpe que instaurou a ditadura militar de Hugo Banzer (1926-2002). "Meu governo ofereceu, e continuar� oferecendo, apoio substancial para que o pa�s atinja esses objetivos."

H�, ainda, uma carta do ent�o vice-presidente do Iraque, Saddam Hussein (1937-2006), explicando a M�dici seu plano para resolver o conflito no Oriente M�dio.

No documento, no qual Hussein chama M�dici de "meu amigo sincero", aquele que alguns anos depois se tornaria ditador em seu pa�s (1979-2003) prop�e um plano democr�tico de forma��o de um "Reino �rabe Unido": "Haver� duas regi�es, a da Jord�nia e a da Palestina, cada uma com seu governador eleito, sua pr�pria C�mara de Deputados e seu pr�prio governo regional".

A presidente Dilma Rousseff � mencionada em um dos documentos do arquivo. Trata-se de uma lista apreendida na casa de um dirigente da VAR (Vanguarda Popular Revolucion�ria), em maio de 1970. Dela, constam 28 nomes de presos que deveriam ser libertados em troca de um embaixador que seria sequestrado. Ao lado de alguns nomes havia um "x", que indicava que teriam prioridade de liberta��o. O nome de Dilma surge sem o "x". De fato, a atual governante n�o entrou na troca realizada para a liberta��o do embaixador alem�o Ehrenfried von Holleben, em junho daquele ano.

DIFICULDADES Para Pedro Corr�a do Lago, as dificuldades de manejo do acervo n�o s�o a �nica raz�o para a desinforma��o e o mau aproveitamento da cole��o do IHGB. "Os historiadores brasileiros privilegiam a discuss�o te�rica dentro da academia, e o papel fica em segundo plano", diz.

Francisco Doratioto, historiador e professor de Rela��es Internacionais da Universidade Cat�lica de Bras�lia, acredita que isso se deva a uma tend�ncia acad�mica de questionar as fontes prim�rias por identific�-las com uma vis�o positivista, suplantada pelo surgimento, no s�culo 20, da Escola dos Annales, que passou a integrar ao estudo cl�ssico da hist�ria instrumentos e documentos relacionados �s ci�ncias sociais.

"H� muita hist�ria que se faz com documentos, eu nunca orientaria um trabalho que n�o fosse por essa via, mas � fato que a academia levou a hist�ria a ficar mais te�rica, mais especulativa", diz.

Historiadores de relevo, como Jos� Murilo de Carvalho, Isabel Lustosa, Evaldo Cabral de Mello e Mary del Priore s�o associados do instituto. Usu�ria frequente do acervo, Del Priore, ex-professora da Universidade de S�o Paulo, que consulta cole��es de hist�ria imperial para seus livros sobre o per�odo ("Condessa de Barral", "O Pr�ncipe Maldito", e outros) concorda com a avalia��o de Corr�a do Lago e Doratioto.

"Uso muito o IHGB, a Biblioteca Nacional e o Museu Imperial, e o que vejo nas salas de consulta s�o poucos e raros estudantes que v�m unicamente para pesquisar suas teses. Uma vez terminadas, nunca mais. � como se o manuseio de arquivos, documentos e afins fosse algo cansativo e trabalhoso, quando eles s�o a carne e o sangue da hist�ria", lamenta.

Na opini�o do autor da recente trilogia biogr�fica de Get�lio Vargas (Companhia das Letras), o jornalista Lira Neto, com exce��o do CP-DOC, da Faculdade Get�lio Vargas, o estado geral dos arquivos brasileiros n�o � bom. Ele tamb�m atribui o problema � pouca demanda dos pesquisadores.

"Quando estava escrevendo o livro, resolvi pesquisar algo que alguns historiadores davam como fato, a acusa��o feita por Carlos Lacerda de que Get�lio tinha matado, nos anos 1920, um �ndio. Havia teses que partiam desse suposto fato para tirar conclus�es sobre a quest�o agr�ria no Sul. Pois bem: fui procurar e encontrei o inqu�rito que sustentava que o assassino era um hom�nimo de Get�lio. Ningu�m tinha buscado saber a verdade antes", conclui.

Atualmente, o instituto trabalha no invent�rio de dois arquivos. Um � o do advogado e pensador cat�lico Jackson de Figueiredo (1891-1928); o outro, de Epit�cio Pessoa (1865-1942), presidente do pa�s entre 1919 e 1922. Regina Wanderley, por�m, aponta para a relev�ncia de pap�is pouco ou jamais consultados sobre epis�dios importantes, que poderiam dar novas leituras a fatos consagrados.

"Os di�rios da condessa de Barral talvez ajudem a mostrar que ela era uma mulher mais interessante do ponto de vista pol�tico, com muita participa��o nas decis�es de dom Pedro 2�. Pela leitura deles, pessoalmente n�o acho que tenham sido mesmo amantes, algo hoje tido como fato", diz. E agrega: "Tenho certeza de que os documentos navais que temos aqui desde 1916 --cerca de 25.000-- teriam muito a acrescentar sobre o que se conhece hoje sobre a Guerra do Paraguai, principalmente sobre a participa��o de ex-escravos."

Para Doratioto, especialista em Guerra do Paraguai --� autor de "Maldita Guerra" (Companhia das Letras, 2002)--, a documenta��o sobre o per�odo que o IHGB guarda � de fato in�dita e relevante.

"A falta de organiza��o dos documentos brasileiros, no geral, � muito ruim. O IHGB deveria ser o �ltimo lugar em que voc� imaginaria haver algo in�dito, uma institui��o t�o antiga! � um absurdo que empresas estatais como a Petrobras, que d� dinheiro para escola de samba e at� para clube de futebol, n�o ajudem institui��es como essa."


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