São Paulo, terça-feira, 31 de maio de 2005

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FERNANDO BONASSI

Os faraós

É uma espécie de pirâmide da infelicidade, onde a facilidade de uns se alimenta da fatalidade dos outros. São pedras sobre pedras de suor e trabalho escravizado em benefício da própria morte em vida. É uma ferida de vaidade aberta no deserto da consciência pesada de produtos e serviços personalizados. São todos esses indiferentes que misturam seus privados e privadas com o público indigente das revistas de auto-ajuda malcheirosas. Fotografam-se estirados, suados e semipelados quando deviam se cansar das férias eternas em que passam e posam de bacanas.
Os seqüestradores adoram essas reportagens inocentes só pra fazer as suas sacanagens posteriormente, num beco escuro dessas ilhas de fantasia monitoradas por empresas terceirizadas. São tropas de seguranças armados e frotas de carros blindados. São médicos especializados para curar, moleques de recado para servir e rainhas do Nilo para dormir. São mulheres mucamas presas às camas com cintos de castidade, chás de caridade e contratos de casamento, sobre os quais choram em lamento enquanto gastam a sua parte. São os governantes principescos e afrescalhados pela inexperiência e burrice ancestral de seus velhos súditos. São antigos talheres de prata, novos dentes de ouro, salvas de palmas de estanho. São reputações de antanho diplomadas em faculdades especialmente preparadas à toque de caixa, plásticas estéticas para erguer o que está em baixa e próteses torneadas por escultores em alta no mercado desses grandes interesses mesquinhos e insignificantes. Têm brinquedos inteligentes e sonoros nessas jogadas barulhentas, bancos imobiliários para iniciá-los nos negócios escusos e fazendas herdadas onde poderão tiranizar em seu ócio obscuro; trata-se do comodismo das comodities passadas de geração em geração para herdeiros degenerados nos mercados futuros de interesses espúrios.
São solos fáceis, férteis e improdutivos grilados a bel prazer nas caladas das noites geladas e safadas, quando as vacas gordas encalhadas no marasmo são pastoreadas à esmo e prostituídas pra render de porta em porta, vendendo carnês impagáveis, comprando fé por trocados e consumindo todos os parcos e porcos recursos da inteligência reinante no reino. Sempre houve algo de pobre no ar desses palácios para que os mais vivos pudessem suportar o próprio cheiro de defunto das idéias de governança.
São cabeças baixas de ressaca, pernas abertas às visitas solenes, penas vencidas vendidas de quereres e perícias compradas nos tribunais da injustiça. São tratados volumosos embaralhados por sentenças tortuosas, intraduzíveis e impublicáveis de indecências indizíveis. Qualquer confusão terá sido mera mensagem de que "tudo poderia dar em nada", já que "uma coisa leva à outra", que "se estupram e se matam" às carradas pelos corredores estreitos da cidade, numa eugenia suicida, entropia assassina e unanimidade insuportáveis. Protegidos por acórdãos, acordos e acordes, alguns maiorais fazem contratar sua musiquinha oficial através de leis de renúncia fiscal, como se pagar mal fosse o único objetivo supremo dos paraísos do Caribe, onde vegetam esses artistas da fome investindo no inverno europeu ou no inferno da Bolsa de Nova York.
São séculos de tecnologia protestante acumulada contra os idólatras, centenas de aparelhos eletrodomésticos emprenhados, pares de animais domésticos escovados em cabeleireiros e dezenas de empregados altaneiros gozando com respeito da mais funda estima e atenção, utilizados à exaustão em lavanderias escondidas por quatro paredes de quartinhos insalubres, muros da vergonha, salários de fome e tapetes vermelhos.
Há fartura desorganizada, faturas atrasadas e papagaios revoltados nos cartórios de protesto. Para esses se destinam os soldados treinados com cacetetes emborrachados, com os quais serão teleguiados para a frente de batalha da desinformação. O melhor é nem sabermos que somos tão idiotas de financiarmos esses vôos cegos. Pois são asas-delta, quadrados mágicos, planadores motorizados, aviões bimotores e jatos encostados em hangares emprestados por empresas subsidiadas e falidas. São bicicletas importadas da Ásia, carros americanos do ano, leasings africanos por debaixo dos panos e objetos para o ânus torneados por artistas patrocinados. São anéis colados aos dedos lambuzados de açúcar, sangue e matéria adiposa. São nádegas suspensas, papadas esticadas, bochechas estufadas, seios empinados, barrigas aspiradas por drogas injetáveis e os bolsos bombados de vilezas e visões alucinógenas. São jóias raras roubadas de índios extintos e cobras criadas, são vitrines sedutoras em museus e verdadeiras obras de arte de vanguarda falsificadas e hipervalorizadas, assumindo proporções amaldiçoadas. São toneladas de notas oficiais rasuradas, promissórias adulteradas, endossos quentes nas costas arqueadas, escrituras, hipóteses forjadas e hipotecas fantasmas. Medalhas esfoladas, faixas descoradas, bandeiras abandonadas e fraldas usadas no exercício do poder. Uma satisfação em cima da outra insatisfação. As unhas estarão agarradas à flor da chão, mas a queda destes deuses será a conclusão inevitável dessa espera. Engenheiros alucinados arranjados sem concurso trabalham com o projeto absurdo de que tudo isso possa ser sepultado com os proprietários embalsamados, em sete palmos de terra arrasada e muito bem estercada.


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