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FERNANDO BONASSI
Os faraós
É uma espécie de pirâmide da
infelicidade, onde a facilidade de uns se alimenta da fatalidade dos outros. São pedras sobre
pedras de suor e trabalho escravizado em benefício da própria
morte em vida. É uma ferida de
vaidade aberta no deserto da
consciência pesada de produtos e
serviços personalizados. São todos esses indiferentes que misturam seus privados e privadas com
o público indigente das revistas
de auto-ajuda malcheirosas. Fotografam-se estirados, suados e
semipelados quando deviam se
cansar das férias eternas em que
passam e posam de bacanas.
Os seqüestradores adoram essas
reportagens inocentes só pra fazer
as suas sacanagens posteriormente, num beco escuro dessas ilhas
de fantasia monitoradas por empresas terceirizadas. São tropas
de seguranças armados e frotas
de carros blindados. São médicos
especializados para curar, moleques de recado para servir e rainhas do Nilo para dormir. São
mulheres mucamas presas às camas com cintos de castidade, chás
de caridade e contratos de casamento, sobre os quais choram em
lamento enquanto gastam a sua
parte. São os governantes principescos e afrescalhados pela inexperiência e burrice ancestral de
seus velhos súditos. São antigos
talheres de prata, novos dentes de
ouro, salvas de palmas de estanho. São reputações de antanho
diplomadas em faculdades especialmente preparadas à toque de
caixa, plásticas estéticas para erguer o que está em baixa e próteses torneadas por escultores em
alta no mercado desses grandes
interesses mesquinhos e insignificantes. Têm brinquedos inteligentes e sonoros nessas jogadas
barulhentas, bancos imobiliários
para iniciá-los nos negócios escusos e fazendas herdadas onde poderão tiranizar em seu ócio obscuro; trata-se do comodismo das
comodities passadas de geração
em geração para herdeiros degenerados nos mercados futuros de
interesses espúrios.
São solos fáceis, férteis e improdutivos grilados a bel prazer nas
caladas das noites geladas e safadas, quando as vacas gordas encalhadas no marasmo são pastoreadas à esmo e prostituídas pra
render de porta em porta, vendendo carnês impagáveis, comprando fé por trocados e consumindo todos os parcos e porcos recursos da inteligência reinante no
reino. Sempre houve algo de pobre no ar desses palácios para que
os mais vivos pudessem suportar
o próprio cheiro de defunto das
idéias de governança.
São cabeças baixas de ressaca,
pernas abertas às visitas solenes,
penas vencidas vendidas de quereres e perícias compradas nos tribunais da injustiça. São tratados
volumosos embaralhados por
sentenças tortuosas, intraduzíveis
e impublicáveis de indecências indizíveis. Qualquer confusão terá
sido mera mensagem de que "tudo poderia dar em nada", já que
"uma coisa leva à outra", que "se
estupram e se matam" às carradas pelos corredores estreitos da
cidade, numa eugenia suicida,
entropia assassina e unanimidade insuportáveis. Protegidos por
acórdãos, acordos e acordes, alguns maiorais fazem contratar
sua musiquinha oficial através de
leis de renúncia fiscal, como se pagar mal fosse o único objetivo supremo dos paraísos do Caribe,
onde vegetam esses artistas da fome investindo no inverno europeu ou no inferno da Bolsa de Nova York.
São séculos de tecnologia protestante acumulada contra os
idólatras, centenas de aparelhos
eletrodomésticos emprenhados,
pares de animais domésticos escovados em cabeleireiros e dezenas
de empregados altaneiros gozando com respeito da mais funda estima e atenção, utilizados à
exaustão em lavanderias escondidas por quatro paredes de quartinhos insalubres, muros da vergonha, salários de fome e tapetes
vermelhos.
Há fartura desorganizada, faturas atrasadas e papagaios revoltados nos cartórios de protesto.
Para esses se destinam os soldados treinados com cacetetes emborrachados, com os quais serão
teleguiados para a frente de batalha da desinformação. O melhor é
nem sabermos que somos tão
idiotas de financiarmos esses vôos
cegos. Pois são asas-delta, quadrados mágicos, planadores motorizados, aviões bimotores e jatos encostados em hangares emprestados por empresas subsidiadas e falidas. São bicicletas importadas da Ásia, carros americanos do ano, leasings africanos por
debaixo dos panos e objetos para
o ânus torneados por artistas patrocinados. São anéis colados aos
dedos lambuzados de açúcar,
sangue e matéria adiposa. São
nádegas suspensas, papadas esticadas, bochechas estufadas, seios
empinados, barrigas aspiradas
por drogas injetáveis e os bolsos
bombados de vilezas e visões alucinógenas. São jóias raras roubadas de índios extintos e cobras
criadas, são vitrines sedutoras em
museus e verdadeiras obras de arte de vanguarda falsificadas e hipervalorizadas, assumindo proporções amaldiçoadas. São toneladas de notas oficiais rasuradas,
promissórias adulteradas, endossos quentes nas costas arqueadas,
escrituras, hipóteses forjadas e hipotecas fantasmas. Medalhas esfoladas, faixas descoradas, bandeiras abandonadas e fraldas
usadas no exercício do poder.
Uma satisfação em cima da outra
insatisfação. As unhas estarão
agarradas à flor da chão, mas a
queda destes deuses será a conclusão inevitável dessa espera. Engenheiros alucinados arranjados
sem concurso trabalham com o
projeto absurdo de que tudo isso
possa ser sepultado com os proprietários embalsamados, em sete
palmos de terra arrasada e muito
bem estercada.
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