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Fukuyama, profetas, sacoleiros
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
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"O Senhor Deus é sofisticado,
mas não é malicioso", sentenciou Albert Einstein. A frase,
inscrita na Universidade de
Princenton, parece que caiu no
esquecimento. A tendência geral hoje -mais do que nos tempos do físico- é confundir fenômenos naturais com fenômenos sociais. Com a mistura, um
olho no noticiário e outro no
calendário, montou-se novo
frisson intelectual, contagiante
como a moda dos suspensórios:
o pressagismo, culto sincrético
da pressa e do presságio.
Se vivos fossem, o Padre Viera, o Bandarra, os profetas bíblicos e especialmente Daniel (o
mais elaborado deles) estariam
mudos e estarrecidos diante da
saraivada de premonições que
domina as praças das aldeias e
os templos ideológicos.
A nova safra de cassandras e
sibilas foi liderada por Francis
Fukuyama, mistura de filósofo,
marqueteiro e estrategista, que,
em 1989, relançou no balcão
das idéias o conceito do fim da
História (com H maiúsculo, no
sentido de "Weltgeshichte") e
previu o início de uma nova
era. Primeiro como ensaio na
revista conservadora "National
Interest", três anos depois em
forma de livro (1), Fukuyama
misturou os conceitos setecentistas de Hegel com o fim da
Guerra Fria e o desmoronamento do império soviético.
Pela primeira vez na crônica
do pensamento, o pensamento
virou manchete. Um Deus-nos-
acuda no cenáculo das idéias,
no mundo do espírito. Não se
falava ainda em globalização, e
Fukuyama lançou a primeira
grife intelectual globalizada:
virtual e furada. Como as seguintes. Aqui, em Aipotú, pátria das inversões e dos palíndromos, em pleno desnorteamento da Era Collor, Fukuyama era a modernidade.
Quase dez anos depois, os
pressentimentos de Fukuyama
diante dos avassaladores sucessos do Ocidente, da democracia
e do capitalismo liberal, parecem aquelas exortações futuristas de Marinetti nos anos 20:
enferrujadas. Fukuyama só
acertou ao confirmar o fim do
pós-Guerra, o que era óbvio.
No resto, esborrachou-se: o
fascismo está ai, os fundamentalismos religiosos idem, o confronto Ocidente-Oriente agrava-se, e o capitalismo continua
a exibir falhas estruturais e periódicas, nem sempre reparáveis pela "destruição criativa"
de Schumpeter.
A nova crise no mercado de
capitais, justaposta ao limiar
do novo milênio e à inevitável
inclinação apocalíptica, alavancadas por um gênero de jornalismo descontextualizado,
está produzindo uma febre de
prognósticos que, longe de costurar as grandes tendências facilitando o entendimento, misturam avaliações imediatistas
com percepções de longo prazo.
Resultado: uma salada em que
o futuro é o presente conjugado
de forma diferente.
Esse é o pecado crucial de Fukuyama e do novo pelotão de
pensadores que desponta, tanto
à direita como à esquerda, tomando o mundo virtual das
manchetes como reprodução do
mundo real (que se movimenta
de forma mais caprichosa e sutil). Com um pé na econometria
e outro em suas convicções ou
interesses, conjeturam sobre a
conjuntura como se fosse um
dado permanente e estável.
Li a conferência de Allan
Greenspan, presidente do Federal Reserve Board americano,
na Universidade de Berkley,
Califórnia ("O Estado de São
Paulo", 13/9/98, pág. B-14), que
tanto alento deu às bolsas,
quando declarou que os Estados Unidos não podem continuar como um oásis de prosperidade num mundo cada vez
mais estressado.
Arrazoado impecável sob o
ponto de vista conceitual, porém moralmente gratuito: o oásis de prosperidade é também
um bunker de protecionismos
que alimenta o bem-estar dos
seus cidadãos, mas agrava as
aflições de desenvolvidos e
emergentes. O autor é funcionário público num regime democrático em que os poderes se
equilibram e o eleitorado manifesta-se para defender seus interesses concretos e não as visões
de mundo de seus governantes.
A divina sofisticação referida
por Einstein pede adivinhadores mais aferrados aos valores.
Podem estar envolvidos com o
cotidiano, mas não podem
abrir mão do seu senso crítico.
Os profetas referidos no Velho
Testamento não eram dotados
de poderes ou sentidos especiais, mas de um aguçado e rigoroso olhar sobre os desmandos e desatinos da época. Sobretudo sobre mentalidades e costumes da época. Com base neles, percebiam as rotas de conflito e a imanência das colisões
-nada acontece por acaso.
Crises não são acionadas por
deuses maliciosos. São consequência do livre-arbítrio dos
comuns mortais, das suas paixões e resignações. O que nos leva à realidade brasileira e à nova rodada do inacabado esforço para conter os desajustes
cambiais e orçamentários.
Há duas décadas fala-se que,
para evitar o desperdício de divisas, é indispensável controlar
o "comprismo" no exterior, o
desvario nativo pelos badulaques de Miami. Quando esvaiu-
se o milagre de Delfim Netto, e
o país caiu na realidade, o governo Geisel tomou a decisão de
impor limites ao dreno de dólares provocado pelo turismo externo e pelo consumismo em
moeda forte. Criou-se um depósito compulsório para viajantes. Oposições estrilaram, em
nome do "inalienável direito de
ir e vir". Erraram.
Em outubro passado, para enfrentar o "amok" asiático, previa-se no programa de controle
fiscal e cambial um aumento
nas taxas de embarque dos aeroportos para o exterior e substanciais limitações nas compras
dos "free-shops". Mencionou-se
a cifra anual de US$ 5 bilhões
para justificar as medidas.
A compulsão sacoleira nivela
classes, cultura, estamentos.
Ninguém quer abdicar da pasta
dental americana ou dos biscoitos da rainha da Inglaterra.
Em nome desse direito, bufou o
PFL, atacado de populismo tardio e de súbito amor pelo destino dos funcionários da Brasif
(que controla empórios de bugigangas dos aeroportos).
Agora, as oposições clamam
por cortes nas importações, esquecidas das retaliações que
causariam em nossas exportações. Deveriam sair à rua para
uma cruzada de conscientização popular contra importados
supérfluos. O governo não pode
fazê-lo, mas a sociedade pode e
deve. É do seu interesse -para
garantir postos de trabalho-
equilibrar a balança comercial,
diminuir pressões cambiais.
Quando viajávamos à ex-
URSS, éramos atacados por
gente que queria ficar com nossos jeans, meias, esferográficas
e outros símbolos do progresso
capitalista. Afinal conseguiram: hoje, a Rússia é a maior
compradora de carros Rolls-
Royce. Mas soldados sem soldo
estão colhendo batatas.
Altos e médios executivos cobram planos para conter o desemprego, mas o salário dos
executivos no Brasil é um dos
maiores do mundo ("Gazeta
Mercantil", 26/1/98, pág. C-8).
Na "solucionática" brasileira
até agora não cabem indagações sobre a contribuição coletiva para minorar a respectiva
problemática. Crises vão e voltam sem que haja disposição
para compartilhar sacrifícios.
Pregões e taxas despencam ou
disparam, mas os índices de
participação são nulos. No auge
da Era da Informação, a angústia da antecipação ficou maior
do que a sede de conhecer. Nessa bolsa de hipóteses, futurologia é só um jogo de apostas.
Nem sofisticado nem malicioso:
irrelevante.
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1 - "The End of History and the Last Man" ("O Fim
da História e o Último Homem", ed. Rocco, 1992)
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