Pizza, tempurá, pipoca e espaguete não costumam guardar muitas semelhanças em seu preparo. Nas mãos da cozinheira Dulce Oliveira, porém, esses pratos têm em comum a vitória-régia, que serve de ingrediente base para essas e outras receitas, servidas em um espaço com o mesmo nome da planta aquática no Canal do Jari, no Pará.
Moradora da região, dona Dulce, como é conhecida, prepara 20 pratos, da entrada à sobremesa, principalmente com o caule e as folhas da vitória-régia —que são retiradas de um lago mantido por ela com 200 plantas.
Nos últimos anos, ela viu suas criações ganharem alcance, graças à propaganda boca a boca de quem busca conhecer melhor a gastronomia da região, que fica a uma hora de barco de Alter do Chão e 40 minutos da cidade de Santarém, ambas no Pará —para chegar lá, contrata-se passeios desses locais.
A história da cozinheira aposentada da Marinha Mercante com a planta começou em 2014, quando ela se mudou com a família para o lugar, em uma casa que fica às margens do Canal do Jari, entre os rios Tapajós e Arapiuns.
Foi quando ela teve a ideia de cultivar um jardim ornamental de vitória-régia, e, então, percebeu que animais, como tartaruga, peixe-boi e até bois, comiam a planta.
"Observando isso, resolvi experimentar. Primeiro testei receitas só em casa, mas, com o tempo e com pedidos, passei a oferecer aos visitantes", conta. Hoje, ela recebe turistas para conhecer o lago, provar as receitas e também comprar itens como geleias para levar para casa.
Dona Dulce foi descobrindo os sabores aos poucos, começando pela folha e passando para outras partes como caule e flores.
"A ideia era sempre fazer comparações e ver onde poderia usar na cozinha. A folha tem uma textura que lembra a da alface ou da couve. Do caule, se extrai uma espécie de palmito", explica ela.
O primeiro teste foi com o preparo de um vinagrete. Depois, o cardápio foi crescendo com quiches, paçoca, picles, massa de pizza, espaguete e até pipoca.
O tempurá, por exemplo, é feito com caule da vitória-régia frito e lembra um bolinho de arroz crocante. Com a semente da planta se faz a pipoca, que lembra a cor do milho, e não precisa de óleo para ser preparada.
Outras criações são a massa de pizza que leva farinha à base do caule desidratado —a textura da massa, diz dona Dulce, é semelhante à de um pão— e o espaguete, feito com o caule desfiado, complementado com molho de escolha do cliente (de tomate, branco ou camarão, por exemplo).
Hoje, quem visita a casa de Dona Dulce pode experimentar o menu-degustação com essas criações (R$ 30 por pessoa). Para manter o serviço, ela conta que cultiva cerca de 200 plantas anualmente de forma sustentável.
A época do cultivo acontece entre novembro e dezembro. Desse total só conseguimos aproveitar uns 80 caules, porque também dividimos com os animais."
Da Amazônia para o Sudeste, o restaurante Naiah, localizado dentro do Jardim Botânico Plantarum, em Nova Odessa, interior de São Paulo, também possui pratos com vitória-régia. O espaço tem até jardim próprio, de onde vêm os ingredientes.
A casa é comandada pelo chef Henrique Nunes, 33, um entusiasta das pancs (plantas alimentícias não convencionais), entre as quais está a vitória-régia.
O cardápio oferece duas receitas com a planta. "São saladas mornas que lembram espaguete de pupunha ou de abobrinha", explica Nunes.
Um deles é o espaguete de vitória-régia com camarão (R$ 44,20), feito com fios do caule temperados com alho, manteiga, camarões, páprica e cúrcuma e vinho branco, servidos com o crustáceo e tomatinhos. A outra versão, leva cogumelos champinhom, paris e shimeji. Os pratos variam de acordo com a disponibilidade do ingrediente.
O termo pancs (plantas alimentícias não convencionais) se difundiu a partir do trabalho de Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, dois dos principais estudiosos do tema. A pesquisa durou dez anos e deu origem ao livro "Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC) do Brasil" (768 págs).
A publicação é da editora Plantarum (2013), sediada no Jardim Botânico em São Paulo e traz, além de espécies de plantas comestíveis, fotos e receitas desenvolvidas em parceria com chefs, entre eles Henrique Nunes, do Naiah.
"O livro foi escrito há quase dez anos e a pesquisa é contínua. Acredito que o Brasil tenha ao menos 10 mil espécies de plantas alimentícias não convencionais", diz Kinupp.
O biólogo explica que da vitória-régia se come quase tudo: flores, sementes, caule. Seu pecíolo (talo) pode chegar a sete metros.
"Não só a vitória-régia, mas todas as pancs têm um grande potencial de diversificar o cardápio do brasileiro, fazendo frente a outros alimentos mais consumidos que muitas vezes não têm nutrientes", diz.
ONDE COMER
Jardim Vitória Régia
Canal do Jari (para chegar, é preciso contratar passeios em Santarém ou Alter do Chão, no Pará). Ter. a sáb., das 10h às 14h. Tel.: (93) 99182-9492. Instagram @dulce_jardimvitoriaregia
Restaurante Naiah
Av. Brasil, 2.000, Jardim Marajoara, Nova Odessa, São Paulo. Qua. a sex., das 12h às 15h; sáb. e dom., das 12h Fios de espaguete feito da planta aquática por dona Dulce às 15h30. Tel.: (19) 99334-6670.
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