Descrição de chapéu Folhajus

Gastronomia vai parar nos tribunais em ação do blogueiro JB contra Bel Coelho

Depois de perder em caso contra Alex Atala, Júlio Bernardo processa a chef em discussão que envolve ódio e misoginia

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São Paulo e Brasília

O blogueiro Júlio Bernardo, conhecido como JB, se define um "cronista de comida". No entanto, utilizando a ascensão das redes sociais na última década, conseguiu com os seguidores e admiradores do seu blog Boteco do JB um poder comparado ao dos críticos gastronômicos —seus comentários ácidos já abalaram o ânimo dos mais conceituados chefs.

Ocorre que as discussões, antes virtuais, migraram para outra esfera bem mais real: a dos tribunais.

O blogueiro Júlio Bernardo durante apresentação da cantora Majur, na Casa de Francisca - 15.jan.2020 - Mathilde Missioneiro/Folhapress

No momento, o embate coloca em campos opostos JB e a chef Bel Coelho, que comanda o Cuia Café e Restaurante, em São Paulo.

O cronista decidiu processar a chef, pedindo indenização por danos morais, e apresentou na ação postagens de Bel que lhe atribuem agenda de ódio, misoginia e machismo e até assédio moral e sexual.

A chef, por sua vez, apresentou ao Judiciário, dentro de sua defesa, vários relatos de pessoas, buscando demonstrar que JB extrapolaria a liberdade de expressão para flertar com a agressividade gratuita.

A primeira audiência do caso foi marcada para sexta-feira (3), no juizado de pequenas causas em São Paulo, procedimento escolhido por JB. Nem ele nem seu advogado compareceram, e a defesa de Bel pediu a extinção do processo, o que foi concedido pelo juiz.

JB e seu advogado afirmaram preparar um embate na Justiça Civil —não aceitaram, no entanto, especificar à reportagem quando darão entrada na nova ação.

"A gente entendeu que, como vai vir esse fogo pesado do outro lado, a justiça comum é o foro mais adequado", diz o advogado Humberto Deporte. "Não é uma linha de defesa, é uma linha de atacar o Júlio."

Para entender como a temperatura subiu assim na gastronomia paulistana, é preciso voltar no tempo. O ponto de partida dessa ação judicial é o desfecho de outro processo, de injúria e difamação, este movido contra JB por Alex Atala, do restaurante D.O.M.

JB publicou em seu blog, em 2020, um texto supostamente de autoria de uma ex-funcionária de um chef não identificado, e que detalhava assédios sexuais do patrão. Não havia nome, mas muitas insinuações.

"Ele não só não assumiu a autoria como não escrevia meu nome, mas fazia as referências mais óbvias que deixavam claro que o texto falava de mim", afirma o chef Atala.

Imagens do livro "Mandioca"
Imagem do livro 'Mandioca', de Alex Atala - Divulgação

"Durante muitos anos eu aceitei quieto os absurdos dele, mas quando ele se esconde atrás do anonimato, se escora em uma causa importantíssima, que é o feminismo, e usa mentiras para atacar minha honra e da minha família, eu não poderia me calar."

Atala contratou o advogado criminalista Roberto Podval e pediu explicações na Justiça. "Eu lembro que a primeira vez que ouvi falar dele foi quando ele escreveu uma crítica sobre o D.O.M. alegando ter sido maltratado pela equipe porque não estaria vestido como um cliente normal", conta.

A partir daí, diz Atala, as críticas deixaram a esfera profissional. "Ele passou a me atacar pessoalmente. Difícil chamar de crítica, porque raramente era sobre a comida, sobre o trabalho, mas muito mais sobre minha pessoa."

JB chegou a ter negócios com alimentação. O mais conhecido foi o Restaurante Sinhá, em Pinheiros, onde foi sócio e comandou a feitura dos alimentos. Ao ingressar em seu boteco virtual e adotar a alcunha JB, criticou do sucesso televisivo "Master Chef Brasil" ao McDonald's.

Como o blogueiro não conseguiu comprovar suas acusações, aceitou um acordo negociado pelo Ministério Público e pagou R$ 1.000 para encerrar o processo.

A chef Bel Coelho entra na história quando esse acordo vem a público, em agosto de 2021. Bel, que já passou pelo D.O.M., comandou as cozinhas dos extintos Madelleine, Sabuji e Dui, e atualmente cuida do projeto solo Clandestino, conta que há anos se sentia agredida por comentários de JB.

A chef Bel Coelho, na sua cozinha durante a pandemia, quando fechou seu restaurante e passou a trabalhar de casa - 17.ago.2020 - Keiny Andrade/Folhapress

"Alguém até falou que estava passando pano para o Alex [Atala], mas eu respondi que se mulheres denunciarem qualquer homem, eu uso meu próprio perfil para denunciar junto, mas não será um texto anônimo", diz. "Simplesmente respondi que estava comemorando por não ter como aliado da luta feminista um assediador moral e sexual que me persegue há 12 anos digitalmente."

JB registrou todos os posts e foi para a justiça com um pedido de indenização. "Me senti injuriado e ofendido por fake news divulgadas por ela numa rede social", explica.

"Dinheiro na mão, calcinha no chão"

Em uma das postagens de JB sobre Bel Coelho, que consta dos documentos anexados à defesa da chef, ele a compara a uma "aspirante de modelo".

"Não sei se sou muito careta, mas acho um tanto desrespeitoso com a profissão alguém que posa devidamente uniformizada na cozinha com uma maquiagem fortíssima. Cozinha não é lugar para aspirante de modelo e só por isso não tenho a menor vontade de conhecer o seu Dui. Vai que cai uma sombra ou um teco de batom no rango...".

Na entrevista à Folha, JB disse que sua relação com a chef era "distante", e que tinha pouco contato com seu trabalho. "Que me lembre, fui apenas uma vez a um projeto seu, atendendo a pedido da própria chef, após muita insistência. Não existe 'visita profissional', não sou pago para escrever. Eu saio, como e bebo. Se achar relevante, escrevo sobre a experiência", argumenta.

Para tratar da alegada misoginia, a defesa de Bel Coelho também reuniu depoimentos de outras mulheres, caso da carta assinada pela historiadora Adriana Oliveira.

Em uma postagem publicada por JB, em 2016, era simulado um "obituário culinário" de seu marido, o chef Rodrigo Oliveira, do restaurante Mocotó. Um trecho foi interpretado como menção a Adriana, afirmando que "dinheiro na mão, calcinha no chão".

Outra testemunha no processo Bel Coelho x JB é a jornalista de gastronomia Ailin Aleixo —a "Ailin Desleixo", em postagens do cronista. Ailin afirma que JB a teria desqualificado ao longo de dez anos, "quase que diariamente, ultrapassando limites do compreensível".

Um mulher que relata ter sofrido assédio sexual de JB, e que teve depoimento anexado por Bel Coelho ao processo, preferiu não dar entrevista à Folha. Nos autos, ela conta que conheceu o cronista no bar Fel, onde ele foi consultor e ela, bartender.

Segundo o texto da mulher, teria havido dois momentos em que JB "passou a mão" em seu corpo, mais especificamente em seus "glúteos". Ela afirma que, em um destes supostos momentos, o blogueiro teria sido alertado por um amigo que não tocasse mais nela.

JB diz conhecer a vítima, mas nega as acusações de assédio. "Não aconteceu isso", afirma.

Em retrospecto, JB diz que a internet mudou muito nos últimos anos, e que sua postura também vem mudando. "Escrevo desde 2007, tenho um canal no Youtube desde 2014. Estamos em 2022. É natural para mim a busca por um movimento mais elegante", analisa.

"Se você acompanhar meu trabalho, vai ver que existe um processo, uma responsabilidade, e hoje eu tomo muito mais cuidado com tudo. A meta é que eu seja um exemplo a ser seguido. E acho que podemos e devemos criticar com mais inteligência em vez de deboche, ironia."

Segundo Daniela Osvald, professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em meados dos anos 2000 começaram a surgir na internet ferramentas que automatizam a publicação, com os primeiros websites pessoais, depois os blogs com comentários.

"Na popularização dessas ferramentas, foram se criando estratégias discursivas de como ter audiência, entre elas a de ser polêmico", diz ela, que também é coordenadora do Observatório de Comunicação, Censura e Liberdade de Expressão (Obcom), da USP. "Muitas vezes, trata-se de um conteúdo que beira a linguagem ofensiva", completa.

"Essa discussão global se volta a grupos politicamente e economicamente desfavorecidos ou vulneráveis. Mas vai migrando para outras esferas. Ela chega na moda, na gastronomia, no jornalismo, que buscam também um parâmetro para isso."

Colaborou Marcella Franco

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior desta reportagem citava declaração do blogueiro Júlio Bernardo de maneira equivocada. Onde se lia "Escrevo desde 2007", o correto seria "Escrevo desde 2017". O erro foi corrigido.

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