Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”.

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Ricardo Araújo Pereira

Os podcasts são muito modernos na sua radical rejeição da modernidade

Em geral, são demasiado longos, parados e dedicados a temas que um diretor de rádio diria não interessarem ao público

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Você é uma pessoa que gosta de coisas novas? Experimente um podcast, um programa em formato digital que pode ouvir no computador ou no celular.

Prefere coisas antigas? Experimente um podcast, que é na prática um programa de rádio —meio de comunicação inventado há mais de cem anos.

É possível que o podcast tenha vindo para nos salvar. Sei que vivemos numa época em que tudo nos salva. Uma pesquisa rápida no Google devolve vários resultados: "A música me salvou", "o meu trabalho me salvou", "este filme me salvou", "o humor me salvou", e até "ser demitido me salvou", ou mesmo "ter câncer me salvou".

Mais raro é o verbo salvar estar ligado a ocorrências em que a salvação não foi meramente metafórica, como na frase "estava encurralada na varanda de um prédio em chamas e o bombeiro me salvou." Mais depressa somos salvos por uma canção sobre o bombeiro do que pelo bombeiro.

Numa ponta do espaço destinado ao desenho um jovem homem negro coloca seu headphone. Ele veste jaqueta esportiva com gola e está de olhos fechados. Seus cabelos são pretos. Tem as mãos próximas das orelhas abrindo o equipamento. Próximo da mão direita dele está escrito o início de uma frase "um podcast é". Que faz o olhar do leitor caminhar para um rádio antigo que ocupa o centro do desenho. Seguido de outro homem, também jovem, dessa vez branco que está com a cabeça inclinada para cima, olhos fechados e fone de ouvidos. Também veste uma jaqueta esportiva com gola. Ao seu lado direito está o término da frase "um longo programa de rádio."
Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araujo Pereira de 21 de abril de 2024 - Folhapress

Mas os podcasts podem realmente ser a salvação. Como já vimos, unem os tecnófilos e os luditas. Na verdade, os podcasts são ainda mais novos e antiquados do que parecem. São programas de rádio que já nem a rádio emitiria. Em geral, são demasiado longos, demasiado parados e demasiado dedicados a temas que um diretor de estação de rádio diria não interessarem ao grande público. Isso faz deles muito modernos na sua radical rejeição da modernidade.

Além disso, os podcasts são salvadores porque fazem com que as pessoas estejam caladas durante muito tempo. É nessa condição higiênica que o ouvinte típico de podcast se mantém. E, pelo seu lado, o ouvinte também pode impor ao criador do podcast algumas condições que não são possíveis na rádio. Pode obrigá-lo a repetir o que disse, por exemplo. Ou obrigá-lo a falar com o dobro da velocidade. Receio que estas vantagens possam, ao contrário do que venho defendendo, fazer com que o podcast seja um fator de discórdia.

Desde que passei a ser ouvinte de podcasts, é frequente falar com alguém e lamentar que essa pessoa não venha com a funcionalidade de repetir o que acabou de dizer, ou o que disse num episódio emitido há meses. Dava-me muito jeito, em discussões familiares.

Também me desagrada o fato de não podermos pôr nossos interlocutores falando duas vezes mais depressa. Fica a sugestão para um outro tipo de ser humano. Novo e antiquado ao mesmo tempo.

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