Já temos foto do bicho. "Mug shot", para usar o termo técnico. Donald Trump, com seu ar ameaçador, como se fosse um personagem de Stanley Kubrick beirando a loucura.
Nenhuma pessoa sã gostaria de ter aquilo na camiseta. Ou na caneca, para tomar o café na manhã.
A América de hoje não é para os sãos. Depois de divulgar a foto no Twitter, com as palavras "Fraude eleitoral" e "Nunca se render", Donald recebeu mais de US$ 7 milhões para a campanha. Parte dessa soma vem do merchandising com a foto.
Os republicanos compram. Os democratas também. Ambos por razões distintas: os primeiros porque querem ter em casa uma imagem do mártir; os segundos, do monstro. Em qualquer dos casos, e como em Las Vegas, a casa sempre ganha no final.
A política americana está reduzida a isto: entretenimento. A ficção —e a lógica da ficção— contaminou a realidade. Vários autores já tinham alertado para o fenômeno. Bruno Maçães, sobre quem já escrevi nesta Folha, foi o mais recente, com seu "History Has Begun".
Outro foi Neil Postman, em 1985. Seu livro, "Amusing Ourselves to Death" ("Divertindo-nos até a morte"), ganha hoje contornos de profecia.
A tese de Postman é uma refutação de George Orwell: não, George, o perigo para as democracias não vem de um poder tirânico, exterior, violento, que submete a sociedade ao Big Brother.
O perigo vem do entretenimento permanente, tal como Aldous Huxley previu no seu "Admirável Mundo Novo": a ideia demencial de que tudo –política, religião, academia etc.– deve seguir a mesma lógica do espetáculo.
É uma regressão civilizacional. Na era da "mente tipográfica", ou seja, da palavra escrita, havia pelo menos um esforço de racionalidade: na transmissão do conhecimento e, lógico, na interpretação do que era afirmado.
Basta ler, hoje, os debates políticos do século 19. Pareciam peças literárias, mesmo que fossem de improviso. Os deputados, os senadores, os presidentes, imbuídos numa cultura literária, pensavam literariamente.
Podiam enganar o auditório, sem dúvida, mas até para enganar era preciso cumprir certas regras de introdução, exposição e conclusão.
Com o declínio da cultura escrita e a emergência da imagem e da TV, houve uma revolução epistemológica comparável à invenção da prensa por Gutenberg.
E, como sempre acontece, o meio determina a mensagem (McLuhan dixit). O meio determina uma forma de pensamento em que a emoção, e não a razão, é soberana.
Em 1985, Neil Postman não podia antever a emergência e a força da internet. Mas o que ele escreve sobre a televisão é mil vezes amplificado pelo mundo virtual, onde tudo é abreviado e caricaturado até à insanidade.
Antigamente, a pergunta "você precisa que eu faça um desenho?" era um insulto, uma forma de tachar o outro de imbecil por não compreender certas ideias ou conceitos.
Hoje, fazer desenhos é uma obrigação e, em certos casos, a coisa mais sofisticada de que somos capazes. Uma imagem vale por mil palavras?
Então um "meme" vale por uma biblioteca inteira de história ou de filosofia.
Se esse "meme" refletir, ou evocar, as convenções do drama que a TV e o cinema popularizaram, melhor ainda: há um efeito de reconhecimento que faz as delícias das plateias.
Donald Trump é um mestre nesse jogo e o roteiro do filme já está sendo escrito: um homem perseguido pelo sistema, ameaçado com a cadeia, mas capaz de uma última luta para vencer seus inimigos.
(Tente ler esta última frase com a voz grave que normalmente acompanha os trailers dos blockbusters e perceberá a ideia.)
Nessa lógica, a "mug shot" e as frases que ela contém poderiam ser o cartaz de um filme. Mais: elas são vistas como um filme, ainda que inconscientemente, por seus apoiantes e adversários.
Os primeiros querem ver a continuação da saga porque não há nada mais excitante que uma vingança.
Os segundos também, para sentirem o frêmito de verem o vilão derrotado no final.
Ambos são incapazes de ver naquela imagem o que ela simplesmente é: um simulacro de ficção, uma paródia, uma caricatura de uma caricatura de uma caricatura.
No seu profético livro, Neil Postman é bastante comedido nas soluções para esse estado de alienação. Mas uma delas é não alimentar a fantasia em que a realidade se tornou. Nem mártir, nem monstro. Apenas um manipulador, um farsante, um impostor.
Pobre Neil Postman. A julgar pelo sucesso da foto, o mais certo é a América seguir o título do seu livro e se divertir até a morte.
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