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Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado de Pernambuco nº 65 - Distribuição gratuita - www.suplementopernambuco.com.

br
Hallina beltrão

NOVAS REPETIÇÕES
NOVAS DIFERENÇAS
Nova biografia nos leva a refletir o legado de Jorge Luis Borges

Entrevista com Antonio Prata • Enrique vila-matas • ficção inédita de ricardo lísias
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

GALERIA

L A R ISS A PI N HO A LV E S
“As duas fotos fazem parte da série Casa como Convém, trabalho em que observo um grupo
de amigos (que formam um coletivo de arte com o mesmo nome da série) e sua maneira de se
relacionar com a casa e com os objetos do espaço de morada. A casa é uma das maiores forças de
integração para o pensamento, as lembranças e os sonhos, e, nesse sentido, fotografar o habitar
constitui, também, uma experiência de estudo sobre memória, tempo e identidade.”
www.larissapinhoalves.com
www.flickr.com/photos/satie

C A RTA DO E DI TOR Superintendente de edição


Adriana Dória Matos

Nos 25 anos da morte de Jorge Luis Borges, o mais observou Alfredo no ensaio inédito para essa capa Superintendente de criação
influente nome da literatura hispano-americana do Pernambuco. Ainda no terreno “borgeano”, a Luiz Arrais
do século passado, o Pernambuco promove um escritora Lucila Nogueira preferiu fazer um ensaio Governo do estado EDIÇÃO
dossiê sobre o autor. Nosso mote foi o recente pessoal, refletindo sobre suas primeiras leituras Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
de pernambuco
lançamento nacional da biografia Borges, uma vida, do autor. Como professora de letras, Lucila faz
Governador Redação
de Edwin Williamson, publicada originalmente questão que seus alunos entrem em contato com o
Eduardo Campos Mariza Pontes e Marco Polo
em inglês em 2005. O professor titular do Depar- mundo de Borges. “Ele leva o leitor a reflita, quase
tamento de Letras da UFPE, o argentino Alfredo nos forçando a aprender mais e mais. É uma força arte, fotografia E REVISÃO
Cordiviola, topou a empreitada de escrever uma única na literatura”, observou Lucila, que também Secretário da Casa Civil Gilson Oliveira, Hallina Beltrão, Karina Freitas,
análise dessa obra à luz dos clichês que cresceram é imortal da Academia Pernambucana de Letras. Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Militão Marques e Sebastião Corrêa
e floresceram ao redor do “senhor das bibliotecas Nessa edição traz ainda um texto inédito de
Produção gráfica
e labirintos”, nas últimas décadas. Julian Fúks, convidado do Festival A Letra e a Voz, que Companhia editora Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto
“A biografia, entretanto, pode ser interessante revela em primeira mão a inspiração por trás do seu de Pernambuco – CEPE Bandeira e Sóstenes Fernandes
não por desvendar algum hipotético segredo ou novo livro Procura do romance. E Antonio Prata, um Presidente
marketing E PUBlicidade
por oferecer alguma impensada chave interpre- dos mais consagrados cronistas contemporâneos, Leda Alves Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
tativa, mas porque impõe uma reflexão acerca do faz uma defesa do seu ofício na entrevista do mês: Diretor de Produção e Edição
lugar que ocupa Borges no imaginário global das “Tornei-me cronista, portanto, acho eu, porque era Ricardo Melo Comercial e circulação
letras da atualidade. Toda vez que surge um novo uma forma de viver da escrita. O que não significa Gilberto Silva
Diretor Administrativo e Financeiro
ensaio, uma tese ou uma proposta de trabalho que eu não goste do gênero, gosto muito e vivo
Bráulio Menezes
sobre Borges, essa reflexão tende a se atualizar. defendendo-o dos detratores, que o acusam de
Se nem toda contribuição é capaz de redefinir as ser um gênero menor”.
percepções sobre o fenômeno Borges, pelo menos Vale ressaltar ainda o conto inédito de Ricar-
CoNSELHO EDITORIAL
ajudam a pensar nos motivos que despertam o do Lísias que publicamos na contracapa. Lísias é Everardo Norões (presidente) Pernambuco é uma publicação da
interesse e confirmam a vigência das suas ficções, nome de ponta da nova literatura brasileira. Seu Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
enquanto instauram pelo menos duas interrogações conto Sobre a rapidez só faz comprovar a força Lourival Holanda CEP: 50100-140
sempre pertinentes: por que se escreve hoje sobre da sua escrita. Nelly Medeiros de Carvalho Contatos com a Redação
Borges? Para que se escreve hoje sobre Borges?”, Boa leitura e até o próximo mês. Pedro Américo de Farias 3183.2787 | [email protected]
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

BASTIDORES

KARINA FREITAS

O personagem é
quem “escreve”
o seu escritor
O convidado do festival A
Letra e a Voz, que a Prefeitura
do Recife realiza em agosto,
revela os mecanismos que
impulsionam o seu novo
livro, Procura do romance

bia empantanar-se no mundo em busca de alguma


Julián Fuks improvável verdade, perscrutar as minúcias das
ocorrências banais, furtar dos interstícios da vida a
Escrever é um ato de fracasso. A procura ineficaz razão de sua pertinácia. Forneci-lhe uma biografia
da palavra inexata, da palavra que falta, ou da pa- emprestada, jovem semiargentino a deambular
lavra que escapa. Escrever é afundar-se em um por Buenos Aires à procura de suas raízes: minha
presente angustioso e denso feito da ausência da própria biografia, que ele cuidou de desvirtuar de
linguagem, de seu silêncio, de sua falência. Não há acordo com suas necessidades, explorando com
porvir no instante em que se escreve; esse instante todo critério os atributos supostos, as relações em
não prevê qualquer futuro, não o percebe em sua hipótese, as identidades alegadas. Nele investi toda
iminência. O vazio não conhece o vocábulo que minha crítica, fiz dele um sujeito obstinado ou
irá suplantá-lo, não o aceita, parece não compor- obsessivo, a vasculhar em sua vivência ou na me-
tar sua insuficiência, sua arbitrariedade. Também mória inventada onde estaria o truque narrativo, a
não há no átimo da criação qualquer pretérito, ou inverdade, a falha. Com ele montava e desmontava
esse é o átimo que dilui e distorce todo passado, os episódios de sua existência, para que insatisfeito
CARTUNS que o dissolve em palavra. Escrever é destecer ele os abandonasse sem mais narrar, legando-me
SANTIAGO a trama que parecia enredar-se, anular a ideia uns quantos capítulos de palavras sustadas. Assim,
[email protected] que se insinuava antes mesmo que se formasse, fiz do fracasso da escrita o fracasso do meu per-
desígnio partido antes da chegada. E, no entanto, sonagem, e em suas ruínas recolhi meu romance.
ou por isso, por nunca vingar o impulso primário, Não foi um processo fácil. No primeiro dia, toma-
por nunca redimi-lo ou saciá-lo, escrever é uma do de entusiasmo, escrevi quatro parágrafos, longos
inelutável necessidade. como estes ou ainda mais longos, e fui dormir
Discorde-se; isso é o que tem sido escrever para com uma estranha sensação de dever cumprido,
mim. Um dia, uns quantos anos atrás, inflamei-me embora tanto ainda me faltasse. No segundo dia,
de certeza e exaltei a virtude de contar histórias, no terceiro dia, em dias subsequentes de quase um
reais ou imaginárias, inéditas ou reiteradas, exten- ano inteiro, repeti o fervor e fui colhendo parágra-
sas ou sumárias. Depois desse dia as histórias não fos de dois em dois. Então fui me escasseando por
me apareceram mais, como se me desertassem ou ocorrência de algum rigor. Houve vezes, inúmeras,
de mim se evadissem, como se desdenhassem da em que o silêncio se impingiu sobre mim e me
minha confiança desmesurada. Tentei escrever um dominou, calou-me os dedos, como se recusasse
conto e a história se fez de imediato problemática, ser contrariado por algo de serventia menor. Por
desviou-se em entraves, revelou-se puro impasse. mais três ou quatro anos, bom foi o dia em que
Tentei escrever outro, e outro mais, e travestida em acrescentei umas poucas linhas de algum valor, e
outras frases ou camuflada em outros parágrafos em que aprendi que tão importante quanto a ideia é
deparei com a mesma história, feita apenas de a ladainha, o ritmo da frase, a sonoridade, as rimas
hesitação, lucubração e obstáculo. Ergui os olhos internas, as pequenas nuances, a construção de
do papel – ou da tela luminosa, para ser acurado. um discurso rico em forma e melodia. Agora estou
Compreendi estar diante de algo mais complexo preso a esses mecanismos, burlo o silêncio não
e intrincado, uma tênue incipiência do que já se com a boca, ou com os dedos, ou com as ânsias,
mostrava sinuoso, uma fina linha que já se enredava mas com os ouvidos – e só assim pude escrever
e que eu teria que destramar se quisesse continuar estas linhas sobre a procura da Procura do romance.
narrando, se quisesse ser escritor.
Para fazer-me escritor, fiz escritor meu perso- Julian Fúks lança Procura do romance no segundo se-
nagem. Fiz de meus vacilos os vacilos dele, fiz de mestre deste ano, pela Editora Record. É autor também
minhas dificuldades as suas dificuldades. A ele ca- de Histórias de literatura e cegueira.
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Artigo

Você quer uma


karina freitas

conversa boa?
imagine-a então
Diálogos possíveis e
fantasiosos com o escritor
espanhol Enrique Vila-Matas
Kelvin Falcão Klein

A amizade é o campo da relação com o outro, que se Jerônimo”. Larbaud estava trabalhando em seu estudo
dá, em Enrique Vila-Matas, a partir do texto. Eu deixo sobre a tradução, que talvez tenha demorado tanto
o outro viver em meu texto para que ele se transforme, justamente por conta dessa participação silenciosa
efetivamente, em uma parte de mim, sem que perca, das pessoas ao redor. Havia sempre uma ideia a mais
com isso, suas feições. Na amizade, o indivíduo se a acrescentar e um livro que deveria ser lido. Sempre
faz outro. Dissemina a própria subjetividade em uma há um livro que deve ser lido.
trama na qual cada ponto de passagem responde pelo
todo. O amigo é o mesmo e também o outro. Ler o Não é por acaso que Valery Larbaud tem papel tão
amigo é ler, de forma privilegiada, a si. importante em Bartleby e companhia, junto de outros
A amizade, trazida como uma categoria do pensa- escritores também muito importantes para a con-
mento, nos dá uma nova estratégia de leitura: o que é cepção do livro, como Paul Valéry, Kafka ou Robert
abstrato no campo da filiação literária (a intertextua- Walser – todos cultores de uma postura de servidão
lidade da tradição e a forma como um autor é unido produtiva para com a literatura, cada um à sua ma-
a outro) torna-se direto e pessoal em Vila-Matas, por neira. Subalternos, como o senhor os chama.
conta da máquina de nomeação que ele coloca em - Há também Emmanuel Bove, que morou no mes-
funcionamento dentro de seus livros. Aparecem as mo prédio que André Gide, na rua Vaneau, em Paris.
casas, os homens, as mulheres e os contextos: Claudio Bove no térreo e Gide mais acima. Quando jogavam
Magris, Rodrigo Fresán, Paula de Parma, Fleur Jaeggy, xadrez, era sempre Gide quem ganhava, não por ser
Valparaíso, Sevilha e Buenos Aires. melhor jogador, mas porque Bove era um melhor
Essa parte das conversações procura mapear parte perdedor. Bove, como Walser, segue em frente sempre
desses nomes e observar o funcionamento específico perdendo coisas pelo caminho. Não era um coleciona-
de cada um deles na poética do autor. dor como Gide, por exemplo. Bove parecia trabalhar
sempre a partir do dispêndio. A breve convivência que
Tenho a impressão de que dois livros seus dependem tiveram é muito representativa da postura que cada
bastante dos laços de amizade – Paris não acaba nunca um cultivava diante da literatura. Gide era escutado,
e Bartleby e companhia –, mas em registros distintos: seguido e observado. Bove era o melhor entre os es-
o primeiro remeteria a amizades de seus anos de critores desconhecidos, dizia Beckett. Algo na linha
formação, um contexto de experiência e vivência que do que pode ser encontrado entre Borges e Arlt.
só mais tarde seria transformado em texto; Bartleby
e companhia, contudo, parece arregimentar um con- Em uma de suas crônicas, o senhor diz que Roberto
tingente de companheiros de leitura que contribuíam Arlt lhe ofereceu um dos livros mais úteis que já leu
com dados, autores ou indicações bibliográficas, cola- em sua vida – um livro que lhe trouxe um conceito
borando diretamente com o texto. O senhor poderia claro não da existência e, sim, da sobrevivência do
comentar essa relação? escritor. Que conceito é esse?
- É essa a situação de Bartleby e companhia: é um livro que - Penso que se trata da consciência de que a escritura é
nunca parou de ser escrito. Recebo sugestões e novos uma estrutura vazia e que o escritor é um Narciso que
casos de abandono da literatura, amigos me ligam e se lança sempre no vazio. Escrever leva sempre a um
perguntam se eu não penso em lançar um segundo túnel sem final, porque jamais se chega à satisfação
volume. As notas feitas sob um texto invisível são plena, nunca se chega a escrever a obra excepcional
agora complementadas pelas leituras de muitas outras que sempre confiamos que faríamos algum dia, e
pessoas. Valery Larbaud conta que, por quase 20 anos, isso produz a maior das angústias. Antes se aprende
os amigos lhe apresentaram dados e indicações de a morrer do que a escrever. Arlt falava da necessidade
livros, dizendo a ele: “Isso vai ajudá-lo com seu São imediata de se viver um dia após o outro, de conseguir
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o sustento a partir da literatura. Mas Ricardo Piglia


já nos mostrou que sua sobrevivência vai muito
mais longe. O cadáver de Arlt está sobre a cidade, Breve guia de leitura para Vila-Matas
o caixão suspenso por cabos e retirado pela janela,
dado seu tamanho. É uma presença que não se pode
neutralizar. Sua obra é uma profecia, uma cifra de tomadas de forma arrebatadora por uma pulsão
um mundo que ainda se anuncia. Arlt morreu aos Diogo Guedes negativa, a de se negar a fazer qualquer coisa, a
42 anos e sempre será jovem. de abster-se do mundo – no caso, recusando-se
A crítica já consagrou Enrique Vila-Matas como a voltar a publicar ou escrever.
Muitos já disseram que esse relato do cadáver de Arlt um dos principais nomes da literatura contem- Nesse trajeto, parte ensaístico e parte ficcional,
sobre Buenos Aires, contado por Piglia a partir das porânea, assim como bem definiu as pulsões de ele traz à cena alguns de seus recorrentes perso-
fotos do velório, é apócrifo. Esse procedimento de seus livros: a de desaparecer, a de negar-se, a nagens. Robert Walser, Franz Kafka e Paul Valéry
escapar tanto da verdade quanto da mentira, insistindo de mergulhar a literatura dentro de si mesma, servem às passagens do autor catalão em diversos
em um falseamento que potencializa a ficção, está deixando sempre nesse percurso ironias sutis e momentos do livro e de suas demais obras. Em
também em sua novela Impostura, está na Historia melancólicas – até porque, de certa forma, toda Juan Rulfo, ele encontra uma das desculpas que
abreviada da literatura portátil, em Doutor Pasavento. ironia deveria ser uma constatação melancólica. mais o impressionaram para o silêncio. Quando
Muitos são os autores contemporâneos que seguem a Como uma boa parte dos grandes escritores, suas perguntado o motivo de tal escolha, o autor dizia:
trilha: Aira, Tabucchi, Martín Caparrós no livro sobre obras parecem fazer parte de um universo único, “É que morreu meu tio Celerino, que era quem
o roubo da Gioconda, Ricardo Cano Gaviria em seu habitado pelos personagens e tipos que aparecem me contava as histórias”.
livro sobre as últimas horas de Walter Benjamin. Como com recorrência nas suas narrativas e pelo tom Em meio a passagens completamente ane-
o senhor vê esse agrupamento arbitrário? leve do seu também já tão falado modo ensaístico tódicas, Vila-Matas vai descifrando a angústia e
- Não é a primeira vez, e certamente não será a últi- de escrever ficção. psicologia dos autores. Um dos belos momentos
ma, que fico lado a lado com Antonio Tabucchi. Ele Vila-Matas reproduz e reconstrói com maestria é quando ele fala de Juan Ramón Jiménez. Prêmio
é responsável por uma guerra total contra a literatura suas motivações literárias em cada um de seus Nobel, ele decidu, depois da morte de sua mulher,
que não confia em si mesma, e é um dos maiores ar- livros - assim, qualquer escolha para se iniciar Zenobia, nunca mais criar nenhuma obra. Segun-
tífices e falseadores de nosso tempo. Seus livros têm em sua obra é uma espécie de acerto singular. O do o catalão, é um silêncio que quer provar que
a capacidade de transformar retrospectivamente seus mal de Montano, de 2002, é uma das representações só fazia sentido escrever com ela viva, e a frase
precursores. Só pude ler Moby Dick, de fato, depois de mais fortes da própria condição do autor catalão, de Juan Ramón é uma síntese do livro: “Minha
ter passado por A mulher de Porto Pim, seu livro sobre os um doente de literatura como os personagens melhor obra é o arrependimento por minha obra”.
Açores. Alguns anos atrás, combinamos de nos en- citados, contaminados por livros e escritores a Buscando a motivação do não escrever, o
contrar. Eu passaria por Roma para uma conferência ponto de esquecerem tudo mais e perderem o catalão termina por esboçar a descrição do fio
e Tabucchi também estaria lá. Comprei um presente sono e a sanidade preocupando-se com o seu fim. que mantém a literatura contemporânea viva,
para meu amigo, evidentemente. Quando, finalmente, Esse mal-estar literário, um condição do texto fazendo uma das melhores representações
nos colocamos frente a frente, com os pedidos no bar de Vila-Matas, é notado ainda mais em Bartleby de sua própria contaminação sufocante pelos
já feitos, resolvo anunciar a lembrança singela que e companhia, de 2001, talvez a melhor porta de livros. Em Bartleby e companhia, Vila-Matas dá
havia preparado para a ocasião. Antonio faz o mesmo, entrada para sua obra. Como se fosse incapaz de a entender que narra para escapar – talvez
e, pelas dimensões, vejo que é também um livro. Sur- conceber personagens que não vivam em torno inutilmente - de uma armadilha que cria em
presos, constatamos que os livros são iguais: os escritos e dentro da literatura, ele nos apresenta um es- seus ensaios ficcionais, transformando escri-
do Barão de Teive, o semi-heterônimo piromaníaco critor, há 25 anos sem publicar nada, disposto a tores como Walser e Kafka em personagens
de Pessoa, que acabavam de ser editados. fazer um diário para colecionar história de auto- quase pitorescos. Expõe isso a partir de uma
res bartlebys. O adjetivo, tirado de uma obra de frase cortante e definitiva do argentino Rodolfo
Kelvin Falcão Klein é autor de Conversas apócrifas Herman Melville, serve para descrever os pessoas Fogwill: “Escrevo para não ser escrito”.
com Enrique Vila-Matas
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entrevista
Antonio Prata

O lugar da crônica,
essa “vira-lata”
da nossa literatura
Na perspectiva do cronista paulistano, o leitor
brasileiro precisa do lirismo e do humor do gênero em
meio à aridez das notícias e análises da imprensa atual
divulgação

São muitas as definições de crônica.


Você tem a sua? Por que a confusão
entre crônica e conto é tão comum
hoje em dia? Ou antes: por que essas
definições preocupam tanta gente?
Acho que a definição de crônica ocupa
tanto as pessoas pela própria indefinição
do gênero, esse vira-lata que nasceu
do cruzamento da literatura com o
jornalismo, mas que, apesar de híbrido,
é profundamente fértil e capaz de
produzir filhotes com as mais diversas
caras. Como ela é, antes de mais nada,
um espaço no jornal, muitas vezes entra
na moldura outros gêneros, da análise
econômica ao conto, passando pelo
ensaio, pela “pensata”, até pela receita
de bolo, o que complica ainda mais a
empreitada taxonômica. (Perdoem o
“taxonômica”, aprendi a palavra outro
dia, estava doido pra usar). Eu não
saberia definir crônica. Como o romance
ou o conto, há muitos tipos de crônica.
Um deles poderia ser descrito como
uma lente de aumento num assunto
que, desleixadamente, chamaríamos
de menor — como se de fato houvesse
algo menor sob o céu: não há, tudo é
importante, como bem sabem os artistas,
os detetives e os neuróticos em geral. Pois
publicação, tanto em livro quanto na internet e
Entrevista a Luís Henrique Pellanda na imprensa — não tem a sua. Na verdade, tem,
bem, essa lente de aumento criaria um
hipercomentário, que é uma das formas
mas não a formula categoricamente: julga que a da crônica — aquela que começa com
É comum encontrarmos por aí uma série de crônica é um gênero de várzea, numa época em “Você já reparou que...”. Uma crônica,
definições para a crônica. Tanto Machado quanto que as várzeas foram asfaltadas. Prefere, por- contudo, também pode ser uma história,
Alencar a comparavam a um colibri a esvoaçar tanto, cultivar certa indefinição “taxonômica”. um caso, ocorrido ou não. O que a
pela página. João Paulo Cuenca disse que ela é Para ele, o espaço da crônica deve ser reservado diferenciaria de um conto, então? Deixo
o pingente do jornal. Martha Medeiros a tem na a investigações cotidianas, hipercomentários a pergunta aos entendidos em Teoria
conta de esponja do cotidiano. Paulo Mendes sobre o nada, reflexões carregadas de humor e Literária; eu realmente não sei.
Campos a considerava a azeitona do pastel cul- lirismo — o que vier. Melhor dizer, é claro, que
tural. Vinicius, o cafezinho quente pós-refeição a definição de crônica de Antonio Prata está no Aos 14 anos, você escreveu sua primeira
e pré-cigarro. João do Rio, um espelho capaz de livro que lançou no ano passado, pela Editora crônica, a respeito da demolição da casa
guardar imagens para o futuro. Alceu Amoroso 34, Meio intelectual, meio de esquerda, reunião de 77 da sua família, um texto que fez a sua
a chamou de passarinho afogado. Telmo Mar- de seus textos publicados na web e nos jornais mãe chorar. José de Alencar também
tino, de pássaro dodô da literatura. Para José desde 2004. Mesmo assim, ele arrisca aqui as fazia a mãe chorar ao ler para ela
Castello, o cronista é um cigano, um nômade suas boas opiniões. Na entrevista abaixo, Prata romances em voz alta, quando criança.
entre dois mundos. fala sobre o alcance atual da crônica e afirma Sobre o caso, Moacyr Scliar opinou:
Definições: Antonio Prata — que, apesar dos que, para um escritor de 1,68m, ser visto como “A literatura é a única coisa que faz
33 anos, já acumula uma longa experiência de um “autor menor” não tem muita importância. com que um jovem arranque lágrimas
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Não me importo, A crônica é tirar leite


se me tacharem de de pedra. Romance
‘escritor menor’: não é comentar, é
com 1,68m, narrar. O processo
nunca esperei me do romance é
deparar com outra transformar
coisa mesmo leite em pedra
de um adulto, sobretudo literatura. A crônica pode ter escrever roteiro, os truques asfaltadas. Otimizadas. quero escrever mais nada.
um adulto importante essa função? Para você, que de roteirista me auxiliam no Impermeabilizadas. E o Ironicamente, minha crônica
como é, para cada um, a sua lia os cronistas desde cedo, romance e assim por diante. cronista, esse vira-lata, ficou mais conhecida, Bar ruim
mãe”. Com você, na época, ela foi uma formadora? meio sem lugar. Mas acho é lindo, bicho!, que fala dos
aconteceu algo parecido? Ó lá! Ó lá! Não falei? Juro que Ainda sobre o tal “gênero que isso está mudando, “meio intelectuais, meio de
O que lhe o fez optar pela não tinha lido a pergunta menor”. Você acha que a porque as pessoas percebem esquerda”, foi publicada pela
crônica e pela literatura? ao responder a anterior. A crônica é vítima de algum a aridez e querem sabor, primeira vez em um blog.
Olha aqui, apesar de aquele crônica, na maior parte do tipo de “preconceito” no querem um pouco de humor
texto ter feito chorar minha tempo, lida com o comezinho, ambiente literário? Para Luiz e lirismo no meio do deserto E seu romance para a
mãe e minha irmã, sempre o cotidiano, o banal. Mas, Ruffato, muitos literatos de números e análises. coleção Amores Expressos
preferi — e levei muito mais oras, nós também não torcem o nariz para ela (Prata prepara um livro
jeito para — fazer rir os outros. lidamos, a maior parte do porque a crônica estaria Parece que a crônica voltou a sobre uma história de amor
Não saberia dizer o que me tempo, com o comezinho, diretamente relacionada ao interessar o leitor brasileiro em Xangai)? Já está pronto?
fez optar pela literatura. Nem o cotidiano, o banal? A prosaísmo da associação e o mercado editorial. Você Como foi passar de cronista
sei se é tanto uma opção, é vida não é gasta, 99,99%, entre jornalismo e dinheiro. tem essa impressão? A e contista experiente a
mais uma descoberta, né? lidando com o comezinho, Sim, ainda há preconceito. internet pode estar associada romancista estreante?
Como a sexualidade e a o cotidiano, o banal? Por Acho que, por um lado, a esse revigoramento? Qual Obrigado pelo “cronista
preferência por sorvete de que, então, falar do pequeno pode ter a coisa do dinheiro, a sua experiência como e contista experiente”! O
creme, em vez de morango. é ser menor? A vida como mas, por outro, também, cronista também de blog? O romance ainda não está
Sem dúvida, ser filho de ela é é menos importante do quem sabe, uma ponta de gênero respira bem fora do pronto. Foi difícil mudar
escritores (Mário Prata e Marta que a vida como ela não é? inveja, porque a crônica, jornal, na atmosfera da web? a chave da crônica para
Góes) deve ter influenciado, Não acho que uma crônica ao aparecer em jornais e Eu espero que você esteja o romance. Um gênero
nos genes e no meio. Também sobre um estilingue seja, revistas, é muito mais lida certo. Ficaria muito contente, chega a ser o oposto do
estudei em escolas que a priori, menor do que um que a maioria dos romances. tanto como escritor como outro. A crônica é um
sempre incentivaram muito conto sobre o grande amor. Parte dos comentários contra quanto leitor. Acho que a comentário sobre nada,
a leitura e me fizeram, desde Porque, se a crônica sobre a crônica pode ser como a internet pode ter o seu papel, é tirar leite de pedra.
cedo, gostar de ler.Já sobre a o estilingue for boa, ela vai inveja de um músico clássico mas outra razão é o natural Romance não é comentar,
crônica: acho que fui parar aí além deste primeiro tema. diante do músico de rock: retorno de pêndulo. Ninguém é narrar, é transformar
um pouco por necessidade. Ela vai falar sobre a infância, “São apenas três acordes e aguenta tanta seriedade, leite em pedra, construir a
Como escritor, você precisa se a violência, as memórias ‘She loves you yeah yeah controle, tanto papo sério. história, os personagens,
sustentar, e a crônica é talvez de menino e o escambau. A yeah’, isso não é música!”. Quem sabe, como ervas preferencialmente sem
o gênero mais rapidamente crônica come pelas beiradas. Mas não acho que o daninhas, as crônicas brotem ficar metendo o bedelho,
vendável. Tornei-me cronista, Mas come! Além disso, a preconceito da alta entre um infográfico e outro? o tempo todo, no que eles
portanto, acho eu, porque era crônica também pode falar literatura contra nós, os Sobre a internet: ela recria estão fazendo. Acho que
uma forma de viver da escrita. do grande, e o faz diversas baixotes da escrita, cause essa saudável várzea de consegui virar a chave,
O que não significa que eu não vezes. Por que O amor acaba, algum mal para além das que eu estava falando. mas prefiro não dizer que
goste do gênero, gosto muito do Paulo Mendes Campos, rodas literárias. Acredito Ali nasce o texto sem o jogo está ganho antes
e vivo defendendo-o dos seria menor que uma boa que as crônicas passaram compromisso, sem gancho, de ver o livro publicado.
detratores, que o acusam de poesia sobre o mesmo tema? maus bocados nas últimas sem a obrigação de informar, Espero que fique bom.
ser um gênero menor. Rubem Sobre a segunda parte décadas por outra razão. Da de esclarecer, apenas com Mas, se não ficar, também,
Braga é um escritor menor? da sua pergunta: sim, a queda do Muro de Berlim a intenção de agradar, de tudo bem, sou feliz como
crônica foi fundamental à em diante, assistimos a levar graça, lirismo. Sobre cronista. (Não me importo
Antonio Candido disse que a minha formação, mas não uma profissionalização o blog: eu sou um blogueiro se me tacharem de “escritor
crônica é “um gênero menor, só ela. Acho que escritores do mundo. O espaço dos muito relapso. Raramente menor”: com 1,68m, nunca
graças a Deus”, pois apenas se alimentam de todos os cronistas foi ocupado escrevo um texto para a esperei outra coisa...)
sendo pequena estaria mais gêneros, independentemente por analistas, cientistas, internet: gasto todo tempo
próxima da gente e acabaria do formato que eles gráficos, tabelas. A disponível em meus projetos Luís Henrique Pellanda é jorna-
se tornando, para muitos, pratiquem. As manhas crônica é um gênero de e obrigações profissionais, lista e autor do livro O macaco
um caminho para a vida e a como cronista me ajudam a várzea e as várzeas foram quando termino, não ornamental.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

projeto editorial

INDIO SAN/ DIVULGAÇÃO

O padroeiro dos “perdidos” é revisitado


desde sua aparentemente simples proposta inicial: a expõe o autor, também jornalista e músico. Com esse
Diogo Guedes de recontar a lenda popular do Negrinho do Pastoreio, uma foco, a dupla juntou à lenda as histórias de culturas e
das mais conhecidas no Rio Grande do Sul, em uma religiões africanas.
Um livro é mais do que a narrativa que ele mesmo união singular de texto e ilustrações. Um outro pastoreio tem uma construção narrativa
propõe. Por trás das escolhas de formato, fonte, papel e Segundo Rodrigo dMart, que veio ao Recife e a Olin- fragmentada, contada por meio da união de texto
extensão, há a própria história do processo de produção da recentemente para divulgar a obra, a ideia original com fotografias, desenhos, bonecos e ilustrações di-
da obra, um caminho árduo omitido do seu enredo, era dar uma roupagem contemporânea à história, gitais. Simão é um velho que caminha à noite até
mas que o influencia direta ou indiretamente. Entre a mais conhecida na versão regionalista do escritor João encontrar um menino, passando a apresentar-lhe e
ideia e a materialização dela, existem diversos obstá- Simões Lopes Neto. Na narrativa popular, o Negrinho aos leitores a lenda do Negrinho do Pastoreio, revelando
culos e prazeres a serem incorporados e redescobertos é um escravo maltratado e espancado por seu dono também aos poucos o envolvimento dos orixás nessa
na obra. Um outro pastoreio, escrito por Rodrigo dMart e por não conseguir capturar de volta um cavalo. Mas trama. Aparentemente complexo, esse fluxo acontece
ilustrado por Indio San, é um dos casos em que essa seu sofrimento é recompensado: passa a ser protegido naturalmente, mediado pela bela relação entre as
interferência se torna um elemento importante para por Nossa Senhora e espécie de padroeiro dos que sombrias e habilidosas ilustrações de Indio San e o
a própria realização do produto. precisam encontrar algum objeto perdido. texto lírico, com tom de fábula, tecido por Rodrigo,
A dupla gaúcha enfrentou bem mais que angústias “Nós partimos de duas hipóteses. Primeiro, e se o também composto por poemas e cantos.
criativas para concluir o livro. Sim, claro que elas exis- Negrinho do Pastoreio não fosse um escravo, mas um Como o autor aponta, a escolha da temática dos
tiram - durante cinco anos, eles produziram quatro ser elemental, uma espécie de arquétipo mitológico? orixás demandou uma pesquisa extensa – evidenciada
“bonecas” (versões impressas) de Um outro pastoreio, e Segundo, e se a santa da lenda, que acaba tendo uma no material extra, que traz a versão original da lenda,
o roteiro, que antes tinha 10 páginas, passou a ter mais denotação mais católica, apesar disso não ser explícito, um glossário e outros textos -, que foi desde a consulta
de 100. Assim, o trabalho sofreu mutações profundas fosse na verdade um entidade ligada aos orixás?”, de documentos e livros até a visita a terreiros. “Eu
DIVULGAÇÃO

FICÇÃO CIENTÍFICA
Marco A Editora Globo lança Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,
Polo em quadrinhos assinados pelo americano Tim Hamilton
O Editora Globo está lançando, próprias é tido como um ato
sob o selo Globo Graphics, subversivo, numa sociedade
a versão em quadrinhos que se pauta pela neutralização
assinada por Tim Hamilton de qualquer individualidade.
do romance Fahrenheit 451, do Dentro dessa lógica invertida, os
escritor norte-americano Ray bombeiros não são encarregados
Bradbury (foto). O livro foi de apagar incêndios e, sim, de
lançado originalmente em 1953 queimar livros (o título é uma

MERCADO e em 1966 rendeu uma ótima


versão cinematográfica, sob
referência à temperatura em que
o papel entra em combustão).

EDITORIAL direção de François Truffaut.


A história ocorre num futuro
Bradbury é conceituado
por dar à ficção científica
em que ler livros ou ter ideias dimensões de alta literatura.
A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
O caminho Depois de várias tentativas de convencer editoras
a aceitarem o projeto e de também “bater na trave”
em editais de fomento, a dupla decidiu partir para
I Os originais de livros submetidos à Cepe,
exceto aqueles que a Diretoria considera

percorrido até o um caminho próprio, tão difundido atualmente: o


financiamento coletivo, ou crowdfunding. “O que fizemos
mesmo foi uma boa e velha ação entre amigos. Só
projetos da própria Editora, são analizados
pelo Conselho Editorial, que delibera a partir

resultado final que talvez essa fórmula de publicação do livro tenha


chamado a atenção das pessoas. Isso está muito em
dos seguintes critérios:

se tornou mais
voga hoje ”, opina o autor. 1. Contribuição relevante à cultura;
Segundo Rodrigo, com a opção feita, o cálculo para
definir o valor necessário foi simples: eles queriam
2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,

uma narrativa do
custear uma tiragem de mil exemplares, caixas e em-
balagens e também envio para os colaboradores. Es- que privilegia:
peravam que cada um dos dois convencesse cerca de

livro, uma história 50 amigos a ajudar com R$ 100. “Para nossa surpresa,
em pouco mais de três semanas, a gente conseguiu
vender 160 cotas”.
a) A edição de obras inéditas, escritas ou
traduzidas em português, com

exterior à obra
relevância cultural nos vários campos
A contribuição dava direito a duas cópias em capa
dura, coloridas, numeradas e autografadas, com o en- do conhecimento, suceptíveis de serem
vio incluso. “Uma coisa boa foi que nós conseguimos apreciadas pelo leitor e que preencham
não me considero de religião nenhuma, sou apenas essas vitórias depois de ouvir das editoras coisas desse os seguintes requisitos: originalidade,
muito curioso por elementos de qualquer mitologia. tipo: ‘Como é? Vocês querem editar em capa dura? Co- correção, coerência e criatividade;
A dos orixás é muito interessante porque não tem, lorido? Com papel especial? Vocês estão loucos, não é
diferentemente de outras, como a do islamismo, do viável’”, recorda Rodrigo. As rejeições iam pelo mesmo
catolicismo, do judaísmo, uma característica mora- caminho. “Elas sempre foram reclamando do custo, b) A reedição de obras de qualquer gênero
lista. Os deuses erram, acertam, sacaneiam, choram, nunca ninguém fez sugestões ou questionamentos da criação artística ou área do
brigam, morrem, renascem”, descreve o autor. “É uma ao livro. Ninguém se preocupava em fazer o papel de conhecimento científico,
grande telenovela.” editor. Então, no fim, foi necessário que nós também consideradas fundamentais para o
aprendêssemos a editar a nós mesmos, o que foi um
patrimônio cultural;
DIVERSIDADE DE GÊNEROS trabalho doloroso”, conta.
Um dos diferenciais de Um outro pastoreio é a impos- Os nãos escutados foram essenciais para a dupla:
sibilidade de conseguir encaixá-lo em um gênero “Acabaram até ajudando no processo de criação, por- c) O Conselho não acolhe teses ou
específico. Está longe de ser uma narrativa ilustrada, que a gente teve mais tempo”. Com os cinco anos de dissertações sem as modificações
porque muitas vezes os desenhos têm balões e são criação de Um outro pastoreio na bagagem, que rendeu aos necessárias à edição que contemple
protagonistas das páginas. E, mesmo que em alguns dois também um editora própria, a Gaveta Editorial,
a ampliação do universo de leitores,
momentos traga páginas em formato de quadrinhos eles organizam agora novos projetos. Indio San traba-
e verdadeiras cenas construídas apenas com ilus- lha numa história em quadrinhos, Escárnio, já perto de visando a democratização
tração, o livro também não fica muito tempo nessa ser finalizada. “Estamos pensando agora na forma de do conhecimento.
opção. Talvez o termo novela gráfica – em um sentido lançá-la. Imaginamos em algo diferente, com outro
diferente do associado às HQs – seja a denominação mecanismo”. Enquanto isso, Rodrigo escreve um livro II Atenditos tais critérios, o Conselho emitirá
mais próxima. de terror, A escadaria - os projetos são individuais, mas
parecer sobre o projeto analisado, que será
“Quando o projeto começou, a ideia era que, cada eles sempre trocam comentários sobre suas produções.
página de desenho abstrato viesse com um trecho de Os gaúchos ainda estão produzindo mais uma obra comunicado ao proponente, cabendo à
poesia, mas isso só serviria se a gente ficasse muito em conjunto, com o nome provisório de Lobos e borbo- diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.
próximo do enredo tradicional da lenda”, conta Ro- letas, uma mistura de lendas indígenas com cultura
drigo. Quando os dois decidiram criar em cima da cigana, tendo o antropomorfismo como tema. “Esse III Os textos devem ser entregues em quatro
narrativa original, foi necessária uma nova forma de deve ser algo mais próximo ao Um outro pastoreio. O
vias, em papel A4, conforme a nova
contar. “Nessas idas e vindas, o Indio foi pesquisando argumento está pronto, mas a gente tem que escrevê-
vários caminhos, que acabaram levando-o de volta a -lo para começar mesmo o trabalho”, antecipa. E que ortografia, em fonte Times New Roman,
um projeto da faculdade de stop motion com bonecos. ninguém duvide que o livro vai sair, não importa se em tamanho 12, com espaço de uma linha e meia,
O livro virou quase uma fotonovela, com balões e breve ou se daqui a alguns anos, se por uma editora ou sem rasuras e contendo, quando for o caso,
tudo”, lembra o escritor. pelas mãos da dupla e de seus colaboradores: Rodrigo índices e bibliografias apresentados conforme
A negociação foi árdua para achar o ponto de e Indio já provaram que até tiram alguma força de
as normas técnicas em vigor.
equilíbrio entre texto e imagem. “Na verdade, se dificuldades editoriais.
não tivéssemos lançado, ainda estaríamos me-
xendo no livro, seria uma alquimia eterna”, brinca IV Serão rejeitados originais que atentem contra
Rodrigo. Um atestado disso é a quantidade de ver- O LIVRO a Declaração dos Direitos Humanos e
sões impressas, que foram incorporadas às apre- Um outro pastoreio fomentem a vilência e as diversas formas de
sentações da obra que os autores fazem durantes
Gaveta Editorial preconceito.
as turnês pelo país. O caminho percorrido até o
resultado final se tornou mais uma narrativa do Páginas 208
livro, uma história exterior à obra, mas que passou Preço R$ 50 V Os originais devem ser encaminhados à
a ser fundamental para também entendê-la – e Presidência da Cepe, para o endereço
valorizá-la ainda mais. indicado a seguir, sob-registro de correio ou
protocolo, acompanhados de
correspondência do autor, na qual informará
seu curriculum resumido e endereço para
contato.

VI Os originais apresentados para análise não


ON LINE MEMÓRIA
serão devolvidos.
Revista virtual atrai na Massao Ohno, o editor paulista que dedicou toda sua vida a
visualidade e nos textos publicar livros de poemas e atuou no MCP do Recife
Vale a pena conhecer a revista virtual Há um ano, morria Massao edições, promovendo o diálogo
Companhia Editora de Pernambuco
Cadernos de Não-Ficção, da Não Editora, Ohno. Nascido em Sorocaba, entre linguagens. Foi, ainda,
uma simpática “pequena editora São Paulo, filho de japoneses, produtor cinematográfico, mais Presidência (originais para análise)
independente” de Porto Alegre. estudou Odontologia, mas uma vez fora do estabelecido. Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Editada por Alexandre Xerxenesky logo dedicou-se aos livros, Produziu o clássico do cinema CEP 50100-140
e com projeto gráfico de Samir sua verdadeira paixão. Foi marginal O bandido da luz Recife - Pernambuco
Machado de Machado, é bonita e traz um caso raro, pois passou a vermelha, de Rogério Sganzerla.
textos inteligentes. Destaque para o editar exclusivamente poesia. Massao Ohno também atuou
número dois da revista, cuja temática E não poesia consagrada, mas no Movimento de Cultura
principal é o questionamento de poesia de transgressores como Popular, nos anos 1960,
mitos como “poesia não vende” Roberto Piva, Hilda Hilst e em Pernambuco, editando
e “ninguém lê poesia”, além de Jorge Mautner. Artista gráfico, o famoso álbum Meninos do
abordar assuntos variados. incorporou obras de arte às suas Recife, de Abelardo da Hora.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

CAPA

Espelhos, labirintos e
bibliotecas apócrifas
Como escapar dos mitos
Uma biografia de Borges acaba de ser editada em Borges, essa reflexão tende a se atualizar. Se nem toda
português; não é a primeira, e certamente não haverá contribuição é capaz de redefinir as percepções sobre
de ser a última. Trata-se de Borges, uma vida, de Edwin o fenômeno Borges, pelo menos ajudam a pensar nos
e repetições que Jorge Williamson (Cia. das Letras, R$ 68), publicada origi-
nalmente em inglês em 2005. A obra pode ser útil, mas
motivos que despertam o interesse e confirmam a
vigência das suas ficções, enquanto instauram pelo

Luis Borges nos lançou? não se caracteriza por apresentar grandes novidades
nem por introduzir novas perspectivas sobre a vida
menos duas interrogações sempre pertinentes: por
que se escreve hoje sobre Borges? Para que se escreve
ou sobre a produção do autor argentino. Williamson hoje sobre Borges?
Alfredo Cordiviola escreve um trabalho sério, documentado, fornece um Escrever uma biografia de Borges pode ser uma
amplo panorama do contexto político argentino, que aventura temerária. Esse adjetivo, temerária, não alude
pode ser valioso para leitores não familiarizados com o aqui ao culto da coragem nem à ousadia intelectual;
assunto, mas entre suas virtudes não figura essa cons- é na verdade uma forma de expressar certa descon-
tante necessidade de interpretar os textos borgianos fiança. O próprio Borges disse e escreveu muitas
a partir de eventos biográficos, traumas e invocações vezes, com irônica condescendência, que sua vida
psicológicas de todo tipo. A biografia, entretanto, pode não se distinguia pela profusão de acontecimen-
ser interessante não por desvendar algum hipotético tos memoráveis, desses que excitam a curiosidade
segredo ou por oferecer alguma impensada chave dos leitores e garantem uma definitiva densidade
interpretativa, mas porque impõe uma reflexão acerca novelesca aos anos vividos. Amores, desventuras,
do lugar que ocupa Borges no imaginário global das contradições, dramatismos, que em outros autores
letras da atualidade. Toda vez que surge um novo argentinos tão diversos entre si como um Sarmiento,
ensaio, uma tese ou uma proposta de trabalho sobre uma Victoria Ocampo ou um Rodolfo Walsh são
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

HALLINA BELTRÃO

cruciais para entender a trajetória pública e as opções Borges, relembrar permanentemente as citações que que foi se consolidando, como em todos os casos,
literárias de um escritor, parecem sempre menores, flutuam por esse universo borgiano que se confunde ao longo do tempo. Após seu retorno da Espanha,
algo irrelevantes, no caso de Borges. “Vida y muerte com o próprio universo de toda a literatura. em 1921, em plena eclosão das vanguardas, haverá
le han faltado a mi vida”, escreveu alguma vez, Existem muitos autores consagrados, e os cânones de publicar seu primeiro livro, os poemas de Fervor
sem jactância nem melancolia (ou com melancólica garantem a vigência de dezenas de nomes próprios. de Buenos Aires, em 1923, enquanto participava ativa-
jactância), embora a sentença também possa ser Poucos, entretanto, gozam do tipo de reputação que mente nos debates e nas revistas que proliferavam
entendida como uma impostação. Contudo, não é Borges lenta e constantemente foi acumulando pelo no campo intelectual de uma cidade exemplarmente
essa imaginada ou verídica falta de episódios sin- menos desde os anos 1960. Na América Latina do cosmopolita e periférica. Na década seguinte, sur-
gulares a que permite duvidar hoje da pertinência século 20, uma região e um tempo marcados por um gem notórias experiências em prosa (a biografia
de uma biografia de Borges. Afinal, toda vida pode e extenso e heterogêneo número de autores notáveis- de Evaristo Carriego (1930), os ensaios de Discussão
merece ser narrada, e mais ainda em se tratando de nem mesmo aqueles que representam a figura um (1932), a ficção burlesca História universal da infâmia
um autor tão influente e perdurável nas letras atuais. pouco anacrônica do “grande escritor” – como, por (1935)), mas é nos quarenta, a década de Ficções
O problema é outro. Falar de um autor consagra- exemplo, Carlos Fuentes, Neruda ou Julio Cortázar – (1944) e El Aleph (1949) quando Borges começa a
do e universalmente ungido como Borges supõe já são motivos de tamanha unanimidade. Nem sequer ganhar outro tipo de reconhecimento.
enfrentar uma séria dificuldade inicial. Pois, o que aqueles legitimados pelo Nobel como Octavio Paz ou Na década da definitiva irrupção desse peronismo
dizer de Borges que já não tenha sido dito? Como García Márquez (ou, menos ainda, o controvertido sempre desprezado e combatido por Borges, na década
fazer para não cair nas armadilhas da repetição e Vargas Llosa) ocupam a mesma posição de Borges. Ar- de uma Europa marcada pelo fascismo e pela guerra,
do lugar-comum? Como evitar a multiplicação de guedas, Roa Bastos, Rulfo, Arlt, Lezama Lima, Onetti, o prestígio do autor vai ganhando uma proporção
mais uma glosa dessas imagens, auras e afirmações Asturias, Guimarães Rosa, Carpentier, Felisberto Her- que tenderá a se consolidar em dimensão planetária
já solidificadas pela tradição e pela crítica? nández, Puig são, entre muitos outros, autores funda- ao longo dos 30 anos seguintes. Um dos fatores que
Tais ressalvas, contudo, poderiam ser também mentais e inevitáveis dentro do sistema literário, mas, contribui nessa consolidação é sua constante parti-
facilmente refutadas. Afinal, se Borges é um clás- mesmo assim, não geraram tanta repercussão quanto cipação na revista Sur, fundada em 1931 por Victoria
sico, essa incerta categoria que, segundo o autor Borges. Bolaño é observado com grande fervor pela Ocampo. A revista, que teve um lugar proeminente
de El Aleph, permite às gerações dos homens ler um crítica atual, mas não sabemos como será lido daqui no cenário cultural latino-americano, congregava al-
livro com prévio fervor e misteriosa lealdade, e se os a 20 anos. Obviamente, não se trata aqui de afirmar gumas das personalidades literárias mais interessantes
clássicos são aqueles que de alguma forma impõem, que um autor é “melhor” ou “mais famoso” do que da época. Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo, José
na critica e no mercado, a necessidade de continuar outro, mas de registrar os modos de disseminação, Bianco, Ezequiel Martinez Estrada, Amado Alonso,
escrevendo, por que não redigir então mais um en- misteriosos e firmes, desse nome, Borges, dentro das Eduardo Mallea eram, entre muitos outros, presenças
saio, mais uma interpretação, mais uma biografia? órbitas da literatura contemporânea. habituais nessas páginas, que divulgavam a literatura
Se Borges é referência inconteste na literatura de Na literatura argentina, em particular, Borges é o que estava sendo produzida nesse momento pelos
hoje, algo diferente sempre poderá ser acrescentado, grande acontecimento do século 20, ou quiçá de toda autores locais (muitos dos contos, poemas, resenhas
algo que permita prosseguir multiplicando esse mito a literatura nacional escrita desde a independência. e ensaios de Borges apareceram na revista antes de
feito de labirintos, metafísicas apócrifas e bibliotecas Como Beatriz Sarlo lembrou em mais de uma ocasião, ser incluídos em volumes individuais), traduzia a
infinitas. Afinal, escrever sobre Borges hoje supõe assim como o peronismo é o grande evento da polí- produção de autores europeus relevantes e servia como
referir constantemente as interpretações que se se- tica, o marco indispensável para entender a história permanente tribuna de debates políticos e literários.
dimentaram até formar parte do mesmo universo ao argentina das últimas seis décadas, Borges é o marco Em 1942, quando Borges não recebe o esperado Prêmio
qual pertencem seus contos, ensaios, poemas e até obrigatório da literatura argentina, a peça insubstituí- Nacional de Literatura, ao qual concorria com El jardín
as vicissitudes da sua vida privada. Escrever sobre vel em torno da qual funciona a máquina literária. É de senderos que se bifurcan, Sur prepara um desagravo; em
Borges é escrever em círculos; é invocar esses muitos evidente que Borges nem sempre ocupou esse lugar, julho desse ano (o mês em que morre Roberto Arlt),
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

capa

o número 94 da revista reúne uma série de depoi- do grupo Sur, um autor que defendia os interesses da sidades, viaja regularmente, e se transforma em um
mentos que enfatizam a singularidade de Borges e classe dominante. O próprio Borges, com beligerante conferencista profissional. Continuará publicando
exaltam a sua figura. Escrito com urgência, a modo humorismo, favorecia esse lugar-comum, multipli- e dando infinitas entrevistas até a sua morte. Para
de protesto, o volume não pretende oferecer estudos cando frases de efeito que nem sempre deveriam ter morrer, escolhe um exílio, e empreende com Maria
aprofundados da obra, mas servir como homenagem sido tomadas ao pé da letra (“espero que me perdoem Kodama a longa e última viagem rumo a Genebra,
e como cerimônia de legitimação que já em si revela por acrescentar que desacredito na democracia, este onde falece em 1986.
a preponderância que a literatura de Borges tinha no curioso abuso da estatística”; “afilie-me ao Partido Borges é hoje uma atração turística na cidade de
campo intelectual dessa época. E mesmo que nem Conservador, o que é uma forma de ceticismo”) ou Buenos Aires; é também uma espécie de mito, uma
todos os comentários fossem igualmente laudatórios adotando atitudes destinadas a figurar na história sintaxe, uma forma de adjetivar, um repertório for-
(o de Ernesto Sábato, por exemplo, não omite algu- da infâmia, como, durante a trágica década de 1970 mulado a partir de um arrabalde sul-americano, um
ma ironia), o fato de organizar um número especial das ditaduras militares e das desaparições massivas, autor para todas as bibliotecas do mundo. A morte,
de desagravo por um prêmio não recebido indica sua visita ao Chile de Pinochet e seu iníquo apoio ao o tempo e a multiplicação de perspectivas foram
que Borges era percebido, já nos anos 1940, sob o governo de Videla. diluindo, sem anulá-los, os dilemas que surgiam
prisma da excepcionalidade. A afirmação de um dos No período que separa os anos 1950 dos 1970 (mar- dessa dupla face do Borges reacionário em política
colaboradores, Bernardo Canal-Feijóo, resume assim cado pela proscrição do peronismo e por contínuos e revolucionário em literatura. Outras leituras sou-
essa percepção: “a sua obra sempre me pareceu da golpes militares), essa discussão, focalizada nas re- beram colocar muitas aspas nesses dois adjetivos.
categoria dessas que tornam óbvias de antemão as percussões da figura pública do autor, se torna mais Autores que manifestam a centralidade de Borges nas
consagrações magistrais, porque trazem consigo um acirrada, e opera como um grande divisor dentro do suas próprias obras, como Ricardo Piglia, Silviano
próprio magistério”. campo intelectual. Paralelamente, sua obra se torna Santiago, Beatriz Sarlo e Alan Pauls (por citar, como
Contudo, apesar das efusivas apologias dos mem- cada vez mais conhecida no exterior, iniciando um sempre, apenas alguns) leram as relações entre litera-
bros da revista Sur, e dos explícitos reconhecimentos percurso de universalização que continua se expan- tura e política a partir dos mecanismos que confluem
dos seus leitores, a figura e a obra de Borges não es- dindo até hoje. Referência – como espelho invertido na escrita, ampliando, a partir de Borges, as signi-
tavam livres de controvérsia. Durante muito tempo, ou como inventor de mundos – para os autores do ficações da escrita política e da política da escrita.
já desde os anos 1930 e até pelo menos os anos 1970, chamado boom latino-americano, seus textos são No pensamento contemporâneo, a multiplicação
Borges era criticado por seu aparente hermetismo, também traduzidos nas mais diversas línguas; é cada da presença de Borges é evidente na prática teórica
por seus barroquismos, por ser “pouco argentino” vez mais lido e mais admirado. Na literatura de língua e ficcional. Partindo de Borges e retornando a ele,
e estar mais influenciado por suas leituras inglesas inglesa, Borges é aclamado por autores tão influentes novas interpretações permitem repensar a condição
do que pela realidade que o circundava, e por suas como John Updike, Nabokov, Paul Auster, Susan das literaturas nacionais, as funções da leitura, a
posições políticas elitistas e conservadoras. Mas essa Sontag, Thomas Pynchon, Paul de Man ou Harold noção do real, os usos da citação e do arquivo, a
reprovação era também sintoma da dimensão que o Bloom. Na França, é condecorado como Comendador relação entre literaturas consagradas e periféricas,
autor ocupava com força cada vez maior no sistema da Ordem das Letras e das Artes, Blanchot, Deleuze, as transfigurações do cosmopolitismo e do ameri-
das letras vernáculas. Relegado pela cultura oficial Genette e Ranciere escrevem sobre ele, Foucault se canismo, os vínculos do texto com o passado e a
durante os anos do peronismo, a partir do golpe inspira na enciclopédia chinesa de O idioma analítico de história, as combinatórias possíveis entre as diversas
militar de 1955, que derroca o governo de Perón, John Wilkins para reformular a relação entre as palavras tradições, as promessas da heterotopia. As opções
passa a receber emblemáticas honrarias e cargos, e as coisas; mais tarde, Baudrillard adverte no mapa poderiam se multiplicar, e provavelmente haverão
como o de diretor da Biblioteca Nacional, professor do império de “Sobre o rigor da ciência” o reino do de se multiplicar, à medida que futuros leitores de
de literatura inglesa na Universidade de Buenos Aires, simulacro. Borges recebe prêmios internacionais Borges atendam os ecos desse nome e se permitam
membro pleno da Academia Argentina de Letras e o prestigiosos como, entre tantos outros, o Formen- incorrer em novas repetições, em novas diferenças.
Prêmio Nacional de Literatura. Borges costumava se tor e o Cervantes (“una generosa equivocação, que
definir como um libertário ou uma espécie de anar- aceito com impudicícia”). Vários filmes são feitos a Alfredo Cordiviola é professor titular do Departamento
quista. Para seus detratores, era, como grande parte partir dos seus contos. É laureado em várias univer- de Letras da UFPE.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

HALLINA BELTRÃO

A salvação pela
Era um Recife enso­la­rado, aquele em que nos encon­ ado­les­cên­cia e toda a sua eufo­ria. Havia um deserto
trá­va­mos, em uma livra­ria da Rua da Imperatriz nas em torno do Rio Capibaribe por onde eu cami­nhava
manhãs de sábado. Era um andar pelas ruas como den­tro da minha burka, da minha redoma de vidro.
quem estava em casa e as estan­tes de livros o labi­ Um deserto sem som­bra que aver­me­lhava a minha

estética é a
rinto esco­lhido para des­co­brir esse espe­lho que nos pele e dila­tava as minhas pupi­las. Sou estran­geira,
devolve a face. Era o final dos anos 1960 e a juven­ pen­sava assim como Camus, sou ina­dap­tá­vel a este
tude des­co­bria auto­res que se tor­na­vam com­pa­nhias calor a esse cará­ter de inse­gu­rança com que cami­
e assunto obri­ga­tó­rio nas con­ver­sas fora da sala de nhava na superfície.

saída possivel
aula. Poderia dizer que um deles era Herman Hesse, Mas, de repente, o que me acon­te­cia era o insight,
com seus famo­sos Sidharta, Demian, O lobo da estepe, e os uma reve­la­ção, uma epi­fa­nia. O autor argen­tino me
demais que cole­ci­o­ná­va­mos avi­da­mente, enquanto envol­via e me levava para um outro plano, em que
suas idéias iam for­mando parte da nossa visão do as ima­gens eram sobe­ra­nas e nada me ame­a­çava,
mundo. Havia tam­bém uma pro­cura pelos livros de em minha visão do mundo cris­ta­lino. Era uma poe­

Escritora lembra seus Camus: O estrangeiro, O homem revoltado, O mito de Sísifo,


estes de um viés mais exis­ten­ci­a­lista, em que não se
sia que falava de sonhos e que relia os livros, era um
mundo intacto da bana­li­dade coti­di­ana e ler Jorge

primeiros contatos com a


esque­cia jamais a atmos­fera de absurdo. Luis Borges me fazia sen­tir segura de que a minha
Eu me lem­bro, Amarcord, eu me lem­bro, quando vida não era um equívoco.
pela pri­meira vez li um livro de Borges publi­cado Também eu vivia den­tro de um labi­rinto, tam­bém

literatura de Borges no Recife no Brasil. O nome era Elogio da sombra e perfis, a que se
suce­deu Nova antologia pessoal, este último edi­tado em
eu atra­ves­sava o hori­zonte de olhos afli­tos, exces­siva
visão enca­de­ada, von­tade visi­o­ná­ria de des­res­pei­tar
1969 pela conhe­cida Editora Sabiá do Rio de Janeiro, pesos e medi­das, cri­ando por um método extra­or­di­
com tra­du­ção da filha de Drummond, Maria Julieta ná­rio a mais pre­sente de todas as com­pa­nhias.
Lucila Nogueira Graña e de Marly de Oliveira. Até hoje, quando toco Havia tanto nessa fic­ção como nessa poe­sia algo
nos livros, mer­gu­lho nova­mente naquela estra­nha que, no mundo adulto, habi­tu­al­mente, exige que
atmos­fera que pas­sou a me acom­pa­nhar durante um todos renun­ciem: o encan­ta­mento, o sonho, a magia.
longo período. Eram anos de ferro. Tanques cer­ca­vam Naquela época eu res­pei­tava des­me­su­ra­da­mente a
a Faculdade de Direito do Recife, como a mos­trar página impressa, e não ano­tava nada em suas mar­
uma pos­sí­vel inu­ti­li­dade daque­les cinco anos do gens; em pro­por­ção con­trá­ria, pri­si­o­neira de Borges,
curso de Direito a que me dedi­cava, atro­pe­lada que eu o lia e relia, ama­re­lando as pági­nas com tom cor
fora a Constituição por um Ato Institucional a reper­ de fogo da cidade do Recife.
cu­tir dema­si­ado na soci­e­dade bra­si­leira. Do ponto Marcada pelo hibri­dismo, pro­duto de uma edu­ca­
de vista pes­soal, a pri­meira desi­lu­são amo­rosa já me ção portuguesa/carioca/nordestina, identificava-me
ensi­nara a pre­ca­ri­e­dade das rela­ções huma­nas e a com Jorge Luis Borges em sua busca de iden­ti­dade,
incer­teza dos afe­tos em meio ao vazio e à tris­teza dos em seu des­co­nhe­ci­mento de si mesmo, em sua ânsia
desen­con­tros pos­sí­veis. Aprendi que o amor era um de adaptar-se à cul­tura da sua terra de nas­ci­mento,
jogo, que a lei pre­ci­sava da força e esse mundo que des­cen­dente direto que era de euro­peus, de um lado,
sur­gia, de tão desa­gra­dá­vel, have­ria de levar-me ao ingle­ses e, de outro portugueses.
refú­gio da poesia. A ascen­dên­cia por­tu­guesa marca a poe­sia de Borges
Seus poe­mas pro­va­vam que a sal­va­ção pela esté­ com uma nos­tal­gia incons­ci­ente, carac­te­rís­tica da
tica era uni­ver­sal e his­to­ri­ca­mente pos­sí­vel. Nessa noção de fado, de des­tino. As vezes em que esteve
época, eu escre­via poe­sia even­tu­al­mente, pas­sada a no Brasil, fez ques­tão de referir-se a essa con­di­ção
14
PERNAMBUCO, JULHO 2011

capa

HALLINA BELTRÃO

Sua estratégia
narrativa
possibilita a
figuração do
maravilhoso, do
fantástico, sem
quebrar a realidade
Andrade, Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Ale-
xandre Eulálio, Fausto Cunha, Augusto Meyer, Paulo
Ronai, Guilhermino César, Lya Luft, para men­ci­o­nar
ape­nas os pri­mei­ros a que se seguiu toda uma for­tuna
crí­tica recen­te­mente men­ci­o­nada em livro por Jorge
Schwartz, que con­se­guiu reu­nir esses pri­mei­ros tex­tos
ori­gi­nais que ates­tam a boa recep­ção que teve o autor
argen­tino no Brasil.
A sua poe­sia se cons­ti­tui desde o sur­gi­mento no
Brasil em uma resis­tên­cia ao impé­rio, quer do raci­
o­na­lismo, quer do rea­lismo, que tem dire­ci­o­nado
algum seg­mento de nossa pro­du­ção lite­rá­ria, rea­tando
a arte poé­tica ao clima encan­ta­tó­rio e mágico de seu
iní­cio, demons­trando como se fic­ci­o­na­liza o dis­curso
ensaís­tico con­tem­po­râ­neo, tran­si­tando entre o conto
e a crí­tica e incluindo em seus livros poe­mas líri­cos, o
que leva à rea­li­za­ção de uma fusão de gêne­ros na qual
existe uma noção de auto­bi­o­gra­fia ligada, ainda que
de modo dis­si­mu­lado, à busca do autoconhecimento.
Sua estra­té­gia nar­ra­tiva, a exem­plo de Cervantes pos­
si­bi­lita a figu­ra­ção do mara­vi­lhoso, do sobre­na­tu­ral
sem que­brar a rea­li­dade, que se sub­mete a essa arte
de talismã e sor­ti­lé­gio, e que é pre­cur­sora da atual
lite­ra­tura cha­mada pós-moderna.
de por­ta­dor de san­gue lusi­tano, por exem­plo, em vesse de ganhar vários prê­mios ao longo de sua vida. Como lem­bra Ricardo Piglia, a arte de nar­rar con­
entre­vista a Renato Modernell, para a revista Status, Através de Borges tudo adqui­ria um novo colo­rido, siste em pres­sen­tir o ines­pe­rado; cenas fic­ci­o­nais
em agosto de 1934, con­vi­dado que fora a vir ao Brasil um mis­té­rio pas­sava a ser pró­ximo e pos­sí­vel. Podia retor­nam à mente do lei­tor como lem­bran­ças pes­so­
por Jorge Schwartz. cami­nhar, à maneira de Pixote, vivendo minha pró­ ais; a estru­tura oní­rica e calei­dos­có­pica de Borges nos
“Meus dois sobre­no­mes são por­tu­gue­ses, Borges pria ale­go­ria, sus­ten­tando con­tra o sol meu espe­lho de pro­jeta na reve­la­ção de um segredo cuja arte nar­ra­tiva
e Acevedo. Acevedo creio que é judeu-português, enig­mas. Havia lugar para o fan­tás­tico, o conhe­ci­mento con­sis­tiu em ocul­tar. Isso por­que, base­ado no oxí­moro
assim me dis­se­ram. Borges, não. É um sobre­nome oní­rico, havia uma luz no fim do túnel, havia um norte e no des­do­bra­mento, Borges narra o final como se ele
muito comum em Lisboa. Meu bisavô era um capi­tão mag­né­tico, um qua­drante, uma bús­sola repentina. fora o pre­sente, daí terem os seus con­tos a estru­tura
por­tu­guês que se cha­mava Borges de Moncorvo, que Nunca mais fui a mesma. Voltei ao Brasil com duas de um orá­culo, pois a pes­soa, até a con­clu­são, não
é um pequeno povo­ado de Trás-os-Montes, perto da malas de livros. Sim, por­que a par­tir de Borges fui des­ com­pre­ende que a his­tó­ria é a sua e que seu des­tino
fron­teira com a Espanha, e creio que este ano vou ser co­brindo outros auto­res latino-americanos que me é defi­nido pela fata­li­dade: vidas pos­sí­veis, mun­dos
con­vi­dado para visi­tar esse lugar que foi dos meus fala­vam uma lin­gua­gem mais con­sen­tâ­nea com o meu para­le­los, as his­tó­rias dos outros se tecem com a trama
tata­ravôs. Estive cerca de um mês em Lisboa, onde me padrão de sen­si­bi­li­dade lírica. Algo menos pro­saico e da nossa pró­pria iden­ti­dade, ape­sar de con­si­de­rar­mos
tor­nei amigo de um escri­tor cha­mado João António menos pro­lixo, com den­si­dade ima­gé­tica e meta­fí­sica. ser a lei­tura o ato de cons­truir, a par­tir de expe­ri­ên­cias
Ferro. Eu falava em cas­te­lhano e ele me res­pon­dia Mais do que ora­li­dade, um jar­dim secreto, em uma estra­nhas, uma memó­ria privada.
em por­tu­guês. Muito len­ta­mente nos enten­día­mos. casa estra­nha, a estru­tura de pará­bola já encon­trada Seria pos­sí­vel reco­nhe­cer na obra de Borges, não
Afinal, os dois idi­o­mas são tão pare­ci­dos, nem sei se em Kafka, que Borges, por sinal, tra­du­zira; um escân­ ape­nas as pré-faladas mar­cas do expres­si­on ­ ismo de
vale­ria a pena estu­dar o outro.” dalo com gosto de assom­bro a con­ju­gar visí­vel com o Kafka, como a atmos­fera sur­re­a­lista que impreg­
Borges, a jul­gar por sua bibli­o­gra­fia em perió­di­ invi­sí­vel, um gosto de fábula de deri­va­ção român­tica, nou, no ini­cio do século 20 as cha­ma­das van­guar­
cos, have­ria de estar pre­sente em Portugal com sua desde Roffmann a Hawthorne. Vidas de ima­gi­na­ das. Avesso a uma escola que não a dele pró­prio,
obra e Joaquim Montezuma de Carvalho che­ga­ria a ção, cami­nhando no fio do fan­tás­tico, lite­ra­tura de o escri­tor argen­tino pre­ten­deu distanciar-se do
des­ta­car a rela­ção de seu conto Aleph com o canto sonho mais capaz de inven­tar do que de obser­var, de Ultraísmo, embora não tanto quanto dese­jara. De
décimo de Os Lusíadas. trans­gre­dir do que de repe­tir, her­deiro de um certo qual­quer forma, é sua obra se move como que
Compreendi, então, que a lite­ra­tura era um sonho, este­ti­cismo sim­bo­lista ao modo de Oscar Wilde e do den­tro de um sonho para o qual nos chama e seduz
embora um sonho diri­gido. Era um código espe­cial em mundo de espanto de William Blake, além das for­mas com seu canto, trans­for­mando aquilo que con­si­de­
que pes­soas de várias cul­tu­ras rapi­da­mente se reco­ de hor­ror de Poe e Baudelaire. ra­mos rea­li­dade em alvo insig­ni­fi­cante. Surrealista
nhe­ciam. Percebi que não havia tanta dis­tân­cia entre O poeta como alguém que vê o des­co­nhe­cido como ou não, importa trans­cre­ver, para medi­ta­ção sobre
a fic­ção e a voz lírica, que o segredo era a maior qua­ num espe­lho de enig­mas, mas que logo o verá frente o assunto, ape­nas um texto seu, nar­ra­tivo, que nos
li­dade, guar­dado na metá­fora trans­pa­rente e con­cisa. a frente, como nas pala­vras de São Paulo: agora co- deixa estre­me­cer sob a impres­são carac­te­rís­tica de
Compreendi que éramos todos foras­tei­ros, pri­si­ nheço ape­nas em parte, mas então conhe­ce­rei como seu uni­verso inconfundível:
o­nei­ros da ima­gi­na­ção e da memó­ria, cami­nhando sou conhe­cido. Jorge Luis Borges con­se­gue cha­mar a “Eu estava com um amigo, um amigo que des­co­
pelas ruas igno­ran­tes dos man­da­dos do des­tino. aten­ção do lei­tor e dar-lhe cons­ci­ên­cia de que as coi­sas nheço: eu o via e ele estava muito mudado. Nunca
Peças de um tabu­leiro adi­ando a morte como no podem ser o avesso delas mesmo, que nós as vemos ao tinha visto o rosto dele, mas sabia que seu rosto
filme de Bergman, O sétimo selo, banhando-se no rio con­trá­rio, e nesse ponto ele é fiel à van­guarda ultraista não podia ser aquele. Estava muito mudado, muito
de Heráclito, sem per­ce­ber a mudança da água no por onde come­çou e mantém-se no ter­reno do gênero triste. Seu rosto estava mar­cado pela amar­gura, pela
cami­nho infinito. ale­gó­rico, des­pre­zando as evi­dên­cias repe­ti­ti­vas de um doença, tal­vez pela culpa. Tinha a mão direita den­tro
Não era todo mundo que com­pac­tu­ava com minha certo ramo expe­ri­men­ta­lista de seu tempo. do paletó (isto é impor­tante para o sonho). Eu não
pre­fe­rên­cia pelo autor argen­tino. Quando fui a Buenos A meta­fí­sica pre­sente no texto de Borges reveste-se podia ver sua mão, que ele escon­dia do lado do
Aires pela pri­meira vez, em 1976, o seu rosto estava de uma dig­ni­dade exis­ten­cial, o inter­tex­tu­a­lismo que cora­ção. Então o abra­cei, senti que ele pre­ci­sava de
em todas as ban­cas de revistas, em uma bela edi­ção nela encon­tra­mos for­ta­lece o argu­mento de que todos minha ajuda. ‘Mas, meu pobre Fulano, que acon­te­
de sua obra reu­nida. Impressionante esse poder da os livros podem ser ape­nas um mesmo livro e que, ceu? Como você está mudado!’ ele me res­pon­deu: ‘É
lite­ra­tura de nos levar a fazer cone­xões que se tor­nam além do acaso e da morte, o pas­sado guarda o futuro sim, estou muito mudado’. Lentamente foi tirando
ines­que­cí­veis em nos­sas vidas. entre pátios e jardins. a mão. Pude ver que era a garra de um pássaro.”
Era um ídolo em Buenos Aires aquele que, com No que con­cerne ao nosso país, desde o ini­cio de
rela­ção ao Nobel, sem­pre fora pre­te­rido, embora hou­ sua ati­vi­dade lite­rá­ria fora cele­brado por Mário de Lucila Nogueira é escritora.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

CRÔNICA
Ana Braga
chico ludermir, HALLINA BELTRÃO e ricardo moura

Entra a cerveja,
sai a verdade
Lembro bem. Era simples escolher artesanato pernambucano. Fui atrás caixas de cerveja barata que não chega
uma cerveja nos anos 1990. Os de uma rede de tear. Reparando de à metade do sabor? É uma escolha de
botecos ao redor da universidade box em box, dei conta do sumiço Sofia. Sem exagero, a filosofia é tão
vendiam Brahma e Antártica. Kaiser, de outro item tão ou mais popular. parte da cerveja quanto a cevada.
só em último caso. Mais do que isso, As garrafinhas de aguardente. Nietzsche considerava que a
apenas em bares pingados, casas de Aquelas cujos nomes e rótulos mais embriaguez da cerveja liberava
importados e de amigos. Aliás, foi parecem piadas de Juca Chaves e o poder, a sensualidade e a
nessa época que conheci a mexicana que a gente leva de souvenir aos criatividade – e ao que tudo
Corona. E confesso que eu curtia mais amigos gringos. Encontrei apenas indica, o deus grego Dionísio era
a garrafa translúcida e o status da um e outro exemplar empoeirado. o seu companheiro imaginário de
bandinha de limão do que o próprio No mercado, ninguém sabia quando manguaça filosófica nos pubs de
líquido, que era do tipo pilsen leve o fornecimento voltaria ao normal Viena. É fato. A cerveja tem efeitos
e eu nem fazia ideia. Hoje, eu já não – se é que volta. Em tom saudosista, psicoativos e transforma a percepção
empunho uma long neck assim, o último freguês que me atendeu de quem bebe. Dá-se um outro
desavisadamente. Bebo cerveja chegou a dizer que a moda agora seria estado de consciência.
com tudo que ela tem dentro, seus outra. Distraída com a pechincha Charles Baudelaire escreveu, em
humores, dissabores e prazeres. da rede, sai dali sem perguntar qual Paraísos artificiais, que um homem
Quem, afora os egípcios que ganhavam nem por quê. Dias depois, Sandy que só bebe água tem um segredo
barris de cerveja para construir pirâmides com uma tulipa de Devassa na mão, a esconder de seus semelhantes.
e os caras que fizeram a fusão da Brahma num comercial de televisão. E eis que Talvez isso justifique as amizades
e da Antártica na Ambev, imaginou ocorreu uma hipótese: cervejas estão de copo. Quantas nasceram ontem
que a cerveja chegaria aos níveis de tomando o lugar até de aguardentes. à noite, nas mesas de bares, pubs e
consumo e conhecimento de hoje? Já A cerveja tornou-se onipresente. lojas de conveniência do mundo?
reparou nos maiores supermercados? E não dá mais para subjugar a bebida Plutarco – não dá para evitar os
Existem corredores inteiros dedicados à aos prazeres inferiores, digamos assim. gregos, quando o assunto é “tomar
bebida. Às vezes, nem as adegas fazem De fazer inveja a muitos títulos da uma” - dizia que a finalidade da
páreo. E as gôndolas mais parecem o enologia, o livro Cerveja & Filosofia (Tinta bebida era alimentar e aumentar
jogo War. Vê-se Alemanha, Bélgica, Negra Editorial, 2010) promove um a amizade. Já abracei, beijei e
Holanda, Japão, Dinamarca, Inglaterra, elogio à bebida, com uma coletânea conjuguei outros pretéritos – nem
Escócia, Irlanda, Itália, Estados Unidos, de artigos que desce rendonda sempre perfeitos - depois de
Argentina e México, só para citar algumas goela abaixo. Um deles me ajudou a algumas tulipas. Já declarei amor
nacionalidades. E quando se vai aos entender, muitos anos depois, aquela eterno a um completo desconhecido
SOBRE A AUTORA rótulos, outro mundo se abre. Tem larger, bandinha de limão na Corona. Trata e pedi paz para o mundo. Já chorei
dark larger, boc, ale, red ale, stout e suas sobre cerveja, amizade e caráter. Sim, no Omar Khayyam, boteco do tempo
Ana Braga é jornalista inúmeras subcategorias e subtipos. porque a bebida, além da estética, tem da universidade, que homenageava
e também atua na área Estava eu outro dia no Mercado ética. Se você tiver 50 reais para gastar o poeta pinguço. Enfim, já amarguei
de publicidade Público de São José, reduto da em cerveja, comprará uma caixa de muitas ressacas de cerveja, até saber
baixa boemia recifense e de algum cerveja realmente boa ou duas ou três que, quando ela entra, a verdade sai.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

depoimento

A “rede” que Procurar

faz um livro Lançamento de "Traduzindo Hannah"

“funcionar” Por Ronaldo Wrobel (Álbuns) Atualizado há ± 7 meses

Finalista do Prêmio São


Paulo de Literatura revela as
agruras de um lançamento
Ronaldo Wrobel

Terça-feira, 23 de novembro de 2010, três da tarde explicou que a livraria escolhida para o lançamento
no Rio. Eu tirava um cochilo antes do lançamento de – repito: dali a quatro horas, convites distribuídos,
Traduzindo Hannah, dali a quatro horas numa livraria da bufê contratado -, a tal livraria tinha sido alagada
zona sul. Convites distribuídos, bufê contratado, livros pelo rompimento de um cano. Um curto-circuito
estocados na loja: tudo pronto para o evento quando completou o quadro, com princípio de incêndio e
o telefone tocou. Achei que fosse mais um convidado interdição geral da loja. Carros do corpo de bombeiros
a lamentar a virtual ausência por qualquer motivo: bloqueavam a rua, interrompendo o tráfego. Enfim,
dor de coluna, aulas de mandarim às terças e quintas, o caos. Lançamento cancelado.
viagem ao Cazaquistão. Tudo muito informativo – e Pausa. Já passei por experiências absurdas antes.
desolador. A cada desculpa batia a impressão de que a Certa vez, sobrevoava a Patagônia argentina quando
noite seria um fracasso: meia dúzia de amigos piedosos aquelas máscaras de oxigênio caíram e as aero-
mordiscando salgadinhos na livraria inóspita. No meu moças entraram em pânico. Em suma, acontecia a
caso havia um agravante. famigerada “despressurização da cabine” – senha
O Rio vivia um surto de violência depois que bandi- mortal que a maioria dos passageiros finge ignorar
dos reagiram à ocupação policial de seus morros com nos anúncios de segurança. Não gritei nem vi de-
a queima de carros e ônibus pela cidade. O auge da sespero entre os passageiros. Estávamos em choque,
crise tinha acontecido dois dias antes, quando a ban- eu aferrado à poltrona, olhando pela janela, tentando
didagem retalhou bairros de norte a sul com ameaças entender as coisas.
e atentados que proibiram muita gente de voltar para Talvez os pessimistas reagissem com mais pro-
casa. Hotéis ficaram lotados de... cariocas! Dormiu-se priedade, confirmando premonições ou entregues
em lojas e escritórios, casas de amigos etc. Corria na a vícios mórbidos. Eu não tinha a que me entregar,
internet o papo de que a Rocinha ia invadir a zona sul a despreparado para o incidente que só acabaria
qualquer instante. Ninguém saía à noite (alguns, nem uma hora depois, com um pouso de emergência
de dia). Marcado havia três meses, meu lançamento em Buenos Aires.
resolveu coincidir com aquele momento adorável. Não estou livre de pressentimentos, claro. Como a
Quando o telefone tocou, às três da tarde, me pre- maioria das pessoas, tenho medo de más notícias. Sei
parei para a mesma cantilena: “estarei contigo em precisamente quais são elas e já até ensaiei reações.
pensamento, não faltarei ao próximo lançamento, vou Mas notícias tão absurdas como uma livraria alagada
comprar o livro amanhã mesmo” etc. Eu respondia e incendiada na véspera de meu lançamento, franca-
com as cortesias de praxe. Fazer o que? Mandar uma mente... Nunca fui doido o bastante para prever uma
van blindada buscar os convidados? coisa dessas. Bem disse um amigo: até os paranóicos
Atendi o telefone já resignado à sina: menos um no têm inimigos de verdade. E agora? Resumi a situação
lançamento. Mas quem escutei não era convidado, num conto: “Existem, em nossos caminhos, as coisas
parente, bandido. Uma moça da Editora Record, tão apropriadamente tristes ou felizes, belas ou feias, trá-
cordialmente quando possível, me dava a notícia que gicas ou serenas. E mesmo as coisas apropriadamente
nem a mente mais perversa e criativa teria imagina- impróprias. Existe, por outro lado, o incoerente, o
do. Se acontecesse num filme, o público diria que é descabido.” Como se reage ao descabido?
“coisa de cinema”. Mas não. Aquilo acontecia, sim - e Autografar o livro na calçada foi minha primeira
acontecia comigo! Muito franca e objetiva, a moça ideia. “Nem pensar”, descartou a moça da editora.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTOS DE ACERVO PESSOAL

Página Inicial Perfil Conta

Dali a pouco foi conseguida outra loja da mesma antes vermelha, agora azul -, vale conferir por que dados me esperavam. Autografado o livro, deram no pé
cadeia de livrarias, perto da loja original. Seguiram- ela vestia vermelho. antes que a noite e a bandidagem entrassem em com-
-se quatro horas de correria. Mandei centenas de Você ainda vai descobrir que, lá pela página 45, ela bustão. Outras pessoas – destemidas ou incautas – fo-
emails, pendurado no telefone. Amigos imprimiram disse preferir cores quentes. Conselho aos escritores: ram chegando aos poucos. Eu sorria, recitando o refrão
cartazes para afixá-los na vitrine da loja interdi- tenham paciência e humildade, esqueçam o relógio, aflito: muito obrigado, muito obrigado! Alguns tinham
tada. A editora transferiu o estoque de livros para saibam recomeçar o que for preciso - e, principal- deparado com a primeira livraria interditada, a maioria
o novo endereço e acionou o bufê enquanto uma mente, reconhecer essa necessidade. Não esperem foi avisada a tempo. Minha família e os mais íntimos
rádio anunciava a mudança. Uma corrente solidária aplausos pelo árduo trabalho tido naquele parágrafo animaram o salão, fazendo as honras da casa e dis-
aflorou, todos se telefonando, se escrevendo, dando particularmente rebuscado. Às vezes, o que mais traindo a pequena fila que ia se formando diante da
a notícia em blogs, Facebook, Orkut etc. Muitos me exigiu esforço está uma droga e o melhor do texto mesa de autógrafos.
ligavam já cientes do imprevisto, oferecendo ajuda, saiu num sopro. Abracei os queridos, matei saudades, sorri para
arregaçando as mangas, tentando salvar minha Traduzindo Hannah foi uma grande aventura, sem o fotógrafo. Procurava ser ligeiro nas dedicatórias,
agonizante noite de autógrafos. dúvida. Quando eu pensava ter terminado a história, sem invencionices para não atrasar a vida de quem
Havia semanas que eu me dedicava àquele lan- um terremoto criativo destruía seus pilares. A esta- conferia o relógio ou, simplesmente, cansava as
çamento depois de sete anos escrevendo o livro e bilidade só veio em 2008, quando pus o ponto final pernas na fila que foi crescendo, crescendo... Lá pe-
outros tantos procurando editora. A jornada épi- como quem chega ao cume do Everest. Agora faltava las oito horas o burburinho aumentou: gargalhadas,
ca tinha começado com uma ideia casual para chegar à lua – ou seja, publicar o livro. fotografias, vinho branco, crianças bagunceiras. A
um conto. Semanas depois, um amigo que lia o Eis uma fase ingrata: as coisas já não dependem de moça da editora não escondia o entusiasmo. En-
rascunho protestou: por que a pressa? “Vá com você (ou só de você). Ouve-se “não” de editoras, de tão me dei conta: a noite era um sucesso! Livraria
calma, isso dá um romance”. Será? Como quem agentes literários, de todo mundo. E os conselhos? Al- cheia, pessoas felizes, alvoroço. Apressadinhos já
não quer nada, aprofundei as pesquisas de época guns são úteis (no todo ou em parte), outros camuflam furavam a fila ou acenavam ao longe para mostrar
(Traduzindo Hannah se passa no Rio de Janeiro dos maldades ou merecem o esquecimento. As frustrações presença. Havia gente do Rio inteiro: zonas sul,
anos 30). Noites insones me lançaram ao desafio vêm em ondas avassaladoras que afogam quem não norte e oeste, subúrbios, até Niterói e Duque de
de transformar aquelas esquálidas páginas num persiste. Persisti, contando com o estímulo de amigos Caxias. Meu Deus, que alegria! A coisa só termi-
romance. Foram anos e anos, dias inteiros devota- e, muito especialmente, de duas queridas literatas. nou depois das onze. Hoje vejo as fotos e logo fico
dos ao desenvolvimento da narrativa, ao enrique- Editado o livro, abri um perfil no Facebook e Twitter emocionado (estão disponíveis no Facebook). Quem,
cimento dos personagens, à criação de subtramas para fazer a divulgação. Só no Facebook acabei con- ali, teria desconfiado da minha insegurança? Quem
para alinhavar – e alavancar – a história. quistando 200 amigos, todos maravilhosos. Não os diria que eu não passava de um pedinte? Que eu
Escrever ficção é interessante. Você fica vicia- conheço, nem sei quem são, mas acompanho suas sorvia cada sorriso, cada afeto, cada abraço como
do naquilo, divagando sobre detalhes, buscando vidas com lupa para descobrir que passaram as férias se fossem únicos? E eram.
novas soluções. Construir um mundo imaginário em Amsterdam, que reencontraram amigos de infân- Hoje sou o feliz devedor dos amigos que lá esti-
é desafiador porque não há limites formais para a cia, que comeram sushi no Leblon, que adoram cães e veram. E o melhor: todos chegaram em casa sosse-
criação. Sempre é possível melhorar. Quando um gatos, que detestam os políticos etc. Que coisa curiosa: gadamente. Se porventura alguém não chegou, se
capítulo parece pronto, surge uma nova ideia que ninguém tem unha encravada no Facebook! Meus 200 acabou dormindo fora ou coisa parecida, a culpa não
implode tudo (inclusive outros capítulos). Qualquer amigos estão fielmente retratados por Fernando Pessoa foi minha. Nem dos bandidos.
ajuste no texto exige atenção redobrada porque as no belo Poema em Linha Reta. Mas essa é outra história, quem sabe para o pró-
palavras têm dons mediúnicos e se comunicam com Pois bem. Seis horas do dia 23 de novembro de ximo livro?
parágrafos passados. Por exemplo: se você decide 2010, era preciso ir para a (outra) livraria e encarar o
trocar a roupa de sua personagem na página 112 – lançamento. Chegando lá, poucos e precavidos convi- Ronaldo Wrobel é autor de Traduzindo Hannah.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

INÉDITOS

HALLINA BELTRÃO
Um
maracujá
na gaveta
Bruno Albertim

Carregava em si o mesmo cheiro amarelado. Odor


fresco, inebriante, de fezes de gato recém-pisadas.
O tampão de excrementos quase adormecidos re-
virado, revelando bosta fresca, purulenta, vibrante
como geleia. Era o cheiro dos velhos parentes: a
infância vivida entre gatos.
A avó era obcecada pelos felinos domésticos. No
velho casarão de faxina constante, interminável,
havia dezenas. Uns cinza, outros amarelados –
quase tão amarelos quanto as fezes depositadas
entre as palmeiras anãs do quintal onde os meni-
nos reproduziam personagens já proscritos da TV
ou das revistas mofadas nas bancas no interior.
As fezes lhe traziam o tempo perdido. O avô à
mesa, barba feita, cabelos tingidos, fio a fio, acaju
escuro, antes do caldo da carne guisada ser vertida
no prato fundo, vidro leitoso, para receber golpes de
farinha grosseira antes de virar um pirão de última
hora sorvido pontualmente às 12h15.
Por minutos, esquecia-se do exílio diário. Cólicas
constantes, a coceirinha suave e meio irritante no
ânus, o gosto metálico na boca. Vermes lhe comiam
por dentro. Mas não tinha paciência alguma de
vestir a cara com alguma dignidade para carregar
um potinho com as fezes virgens da manhã até um
laboratório de onde conseguiria um documento
oficial informando que, sim, seu corpo era um
condomínio de parasitas.
Sua disposição para a dignidade limitava-se a
descer com o cachorro pelo elevador de serviço – o
mesmo pelo qual o rapaz da quitanda subia com as
frutas e verduras dos vizinhos. Inclusive os maracujás
com os quais ele, finalmente, obtinha algum sono.
Quando menino, ia às procissões da cidade, ino-
cência estampada nas roupas alvas, carregando velas
amparadas pelas cascas secas de maracujá. Em casa,
depois de ajudar o padre a guardar os ostensórios e
cálices ao troco de um beijo perene na testa, tomava
um suco bem-concentrado de maracujá. A avó sabia.
O líquido lhe ajudava a perder as vontades. A não
querer descer a rua até a praia onde as moças das ruas
de trás abriam as pernas para barbudos de bigodes
ostensivos dentro de fuscas cor de caramelo. Ou café
com leite. Já nem existem mais fuscas dessa cor pelas
ruas. Buscava uma caderneta antiga na gaveta dos
paninhos de bandeja quando encontrou um maracujá
enrugado. Grandes estrias na bola disforme. Fundas.
Sulcadas. Rasgou a casca, atravessou sua pectina, a
fita esbranquiçada, com um gesto. Teve um rápido
prenúncio, um lampejo de ereção sob a calça cinza.
Era o cheiro amarelado. O mais de dentro dos gatos.
SOBRE O AUTOR Nunca mais guardou maracujás na gaveta.
Bruno Albertim é
jornalista e autor de
O Recife – Guia prático,
histórico e sentimental
da cozinha de tradição
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

HALLINA BELTRÃO

INÉDITOS

A família
Ronaldo Costa Fernandes

dos órfãos
Ele se perguntava quanto sua caixa de choro podia
suportar. Porque acreditava que a gente não produz
que uma cidade tinha duas mil almas e pensava
que a cidade era um grande cemitério.
lágrima ao infinito. O fígado tem um tamanho, o rim A mãe era pequena, mas a dor não se pergunta,
tem um tamanho, o órgão que jorra lágrima deve ter para doer, se o corpo é pequeno ou grande. A dor tem
um número limitado de água salgada. O que podia seu tamanho independente do tamanho do corpo em
chorar? Podia chorar um copo de lágrima? Podia que se hospeda. A professora se comprometeu com o
chorar uma chaleira de água? E que tal um balde? Um prefeito de levá-lo para uma cidade com sete milhões
balde deve ser demasiado. Por mais dor que se tenha de almas que era o Rio de Janeiro. Ela ia fazer um
ou mais capacidade tenha o nosso órgão que como o curso pela prefeitura e deixá-lo na casa de parentes,
rim trabalha com a água, achava que um balde era também pobres, também pequenos, também cheios
exagero. Passava pela sua cabeça que podia perder de dores. Ela ia deixá-lo na casa dos parentes da mãe.
líquido e ir minguando, quando viessem buscá- Ele só tinha viajado da casa dele até a escola. Agora
-lo encontrariam um menino muito menor que ele a viagem para outra escola demorava dias. Os homens
cercado de água como guri mijão. Mas há também o não deviam fazer viagens de dias. É sempre bom não
choro sem lágrima que é choro para dentro. A gente sair de casa. A professora pegou a mão dele e ia levar
fica encharcado de água e ninguém se dá conta. a mão dele para dar para a outra mão.
Ele não conhecia o mundo, mas o mundo também A mãe tinha se perdido dela mesma. Essa é a pior
não o conhecia. O mundo dele era muito reduzido, maneira de se perder, porque não adianta que os ou-
só as histórias tinham outro mundo maior. No mun- tros nos encontrem. A mãe abandonou a família e foi
do que ele conhecia nunca tinha visto um morto. viver o grande amor. Mas o grande amor, que seria o
Velório era uma palavra sussurrada e, como todas, pai, não sabia que ele era o grande amor. O pai tocava
as palavras sussurradas, uma palavra proibida. flauta. Certa vez ele viu um sujeito tocando flauta
Então ele pensava que velório era uma reunião na praça e ficou do lado dele. Foi a primeira vez que
de mortos. Quando o levaram ao velório da mãe, teve pai. Uma hora lá o flautista parou e perguntou:
muitos mortos vieram chorar em cima dele. Outros Quer um sanduíche? O pai nunca perguntou se ele
mortos o abraçavam. Existiam alguns mortos que queria um sanduíche porque o pai não tinha cara.
diziam, mas tão criança ainda e tão órfão. O pai E ninguém pode perguntar coisas para os outros se
havia morrido de outra morte: nunca existira. O não tem cara.
pai estava dentro dele como um espermatozoide, Ninguém sabe se a flauta do pai morreu. Ninguém
no resto o pai nasceu para ele morto. E a família da sabe o que foi feito da flauta do pai.
mãe morava no Rio de Janeiro. Ela tinha na sala um Teve medo foi dos corredores. E das muitas portas
pôster do Pão de Açúcar, então ele achava que no Rio dos corredores. Atrás de cada porta tem uma histó-
de Janeiro todo mundo morava no Pão de Açúcar. ria. A história dele, por exemplo, tinha uma porta.
Não gostou do velório. Primeiro, porque a mãe era Os dois, a professora e o menino, já tinha batido em
a única morta que não se movia, não chorava, não várias portas. Havia a porta do tio dele que morava
lhe dava pêsames e não lhe dizia coitado mas tão na Rocinha e a professora não queria levá-lo lá. Havia
SOBRE O AUTOR
pequeno e tão órfão. a porta da Favela do Jacarezinho mas a professora
Ronaldo Costa Fernandes, A mãe tinha a pobreza dentro dela. A mãe ficou não queria saber daquela porta para ele. Ela tinha
ganhou vários prêmios, órfã do marido logo no primeiro ano de sofrimento em mente a porta da tia Paula que era uma porta de
entre eles, o Casa de las junto. Sofrer junto não é prova de amor, é prova de cabeça de porco. O edifício era uma cidade espichada.
Américas. Seu mais recente matemática. Um sofrimento mais um sofrimento Uma meio favela espichada. Havia porta que estava
trabalho é o romance Um igual a dois sofrimentos. A mãe foi parar no inte- aberta e via-se lá dentro uma pobreza de interior.
homem é muito pouco rior do sofrimento. O sofrimento tinha prefeito, Subiram várias escadas porque não havia elevador.
ruas asfaltadas e duas mil almas. Ele ouvia falar Havia porta para o elevador, mas não havia elevador.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

Ele não queria entrar naquela casa. A professora o demônio até mesmo dentro de um copo com água mundo eram os mesmos que limpavam o mundo.
é que o botou lá dentro. A mulher disse que d. Paula fria. Ele se perguntava como o demônio, que vinha Quantos anos alongaram sua cara, furaram o rosto,
não estava porque d. Paula era manicure e estava no dos infernos, podia ser frio. Imaginava um inferno torceram o nariz, deram mais beiço ao beiço? A pe-
trabalho. Ele não sabia a profissão da mãe. Ela tinha polar, os mortos condenados não ao fogo eterno, mas numbra nunca o largou. Já nasceu com a penumbra.
duas profissões. A primeira profissão da mãe era ser ao frio eterno. Perdeu a sede? – a mulher perguntou. A pele mesmo é alvo da penumbra. Seus olhos só
mãe dele. A segunda profissão da mãe era existir. A Tomou a água mais para que tudo fizesse sentido. Ele alcançam a penumbra. Agora ela está ali, frente à
mãe não saía para o trabalho. Ela acordava e já es- pedira água porque tinha sede, logo deveria tomar o penumbra, para retornar de onde vieram. O tempo
tava de expediente. Não é fácil você ter a vida como copo d’água para matar a sede. Essa era a lógica do não conta por anos, mas por penumbras. A penumbra
profissão. Ele não sabia de que a mãe morreu. Ela foi mundo e ele tinha que seguir a lógica do mundo. Não é uma espécie de sujeira do tempo que não se pode
ficando cada vez menor, foi perdendo a voz, perdeu o poderia beber água sem ter sede, segurar o copo sem remover. Uma sujeira abjeta, feita da mesma matéria
emprego da vida e quando um dia o menino acordou ter pedido água, sentir calor e a boca seca e dizer que volátil que é o ar, embora possa aprisionar o ar e não
a mãe tinha se demitido da vida. tinha sede. O mundo é feito de ações encadeadas e aprisionar o tempo. Não o preocupa o tempo. Pensa
Ele tinha visto poucos rostos na minha vida. Entre naquele momento as ações estavam difusas e desen- nele como um homem acuado, que tem apenas seis
a casa e a escola havia poucos rostos. Ele não ima- cadeadas como um trem que não pudesse, mesmo balas para a sua arma. Nasceu apenas com seis balas,
ginava que se podia ver tantos rostos num só dia. Já com trilho, fazer vagão puxar vagão. não sabe quantas deflagrou e quantas lhe restam. Mas
estava tonto de ver a cidade giratória, porque o Rio Saíram dali mais perto do chão. Ele não tinha não se ilude. Não passará da sua munição que trouxe
de Janeiro, de dentro de um ônibus, é uma cidade percebido que a gente cresce e diminui várias vezes ao mundo ao nascer. A vida é mais ou menos isso:
de parque de diversões. Ele não tinha entrado num durante o dia. Ao entrar na casa da mulher, tinha um um revólver inútil que ao fim ficará sem munição e
ônibus. Tinha entrado num trem-fantasma ou num tamanho; ao sair de lá, o chão estava tão perto que só servirá para dar o tiro final que é a morte. Ela está
cinema. A janela do ônibus era uma telinha de tele- podia ver as imperfeições de todos os chãos. Nada lá, olhando pela janela, trinta anos depois da visita
visão – a televisão mesmo ele nunca tinha visto ela mais descontínuo, diverso e imperfeito que o chão. que fez a ela e ela negou ser ela. Nunca foi empregada
antes, a televisão – e em vez de passar uma história Ele pensava que nasceu para viver no chão. Que sua de trem. Nunca foi empregada doméstica. Negou
passava era prédio, prédio, prédio e rosto rosto rosto. vida sempre foi no chão e que não passaria do chão. ser sua tia Paula. Eh, bem. Agora que ganhou a vida
Não tinha nenhum sentimento pela mulher. Nem Tinha mesmo a sensação de que o chão e ele eram feito um cão – os cães morrem sem consciência de
ódio, nem simpatia. A mulher era um objeto a mais aparentados e que só não poderia dizer que o chão o que vivem e de que morrem, mas como todo bicho
na casa. A única diferença é que o objeto respirava, pariu porque conheceu a mãe que era outra espécie tem a suspeita de sobreviver – agora ele poderia
andava, ofegava e olhava com os olhos miúdos de de chão. A professora apertava tanto sua mão que não dizer que não morava ali, que trabalhava na Rede
quem recua. A penumbra já é os óculos escuros da percebia a manopla que lhe torcia os dedos. Não se Ferroviária e que limpava os trens e que era apenas
natureza, mas a professora não tivera os óculos es- importava de a professora apertar seus dedos porque um empregado doméstico. Ele mesmo não sabia onde
curos dela porque os óculos eram escuro mas eram todo o corpo estava apertado como se tivesse sido estava nem quando chegaria. Mas não. Acolheu quem
de grau. Se ela clareasse as vistas, corria o perigo de tomado por uma gigantesca e constritora manopla. não o acolheu. Cuidava de quem não o cuidou. Deu
ver embaçado. Então a dúvida dela era se via fora Tudo lhe doía, todos os ossos doíam, porém o que a última luz à última penumbra dela. Ela nem sabe
de foco ou se via tudo em preto e branco, mais para mais o imprensava, constringia, triturava era o chão que existe, como cão que só reconhece sua existência
preto que para branco. Ele queria que professora fosse cheio de impurezas que atapetou definitivamente quando o coração dispara de medo.
sua mãe. A pobreza da professora era instruída e ela seus pensamentos. É como se ele negasse que fosse o sobrinho dela.
sabia quais estados o rio São Francisco cortava. Uma A mulher disse que não era a mulher. Ela era outra Ela agora não tinha mais família, porque os desme-
mulher que sabe quais estados o rio São Francisco mulher. Ela era apenas uma mulher de limpeza. moriados pertencem à linhagem dos mortos. O que
corre é uma mulher que não abandona criança nem Mesmo sendo criança, achou estranho alguém tão nos faz vivos é a memória e sem ela somos corpos que
passa fome na vida. Mas a professora não podia ficar pobre ter alguém mais pobre para limpar a pobreza qualquer um pode ser dono. Quem era dono dele era
com ele porque tinha uma cambada de filhos que dela. A mulher via o mundo sujo. Tudo o que tinha sua memória. A tia não sabia que a vida era uma es-
necessitavam dos conhecimentos dela do rio São diante dela era sujeira. O papel dela no mundo, desde piral, não um círculo, mas algo que roda, roda e roda
Francisco. E havia lei, e havia a família da mãe que, que se entendia por gente, era limpar o mundo. E e nunca termina como se fosse uma água contínua a
por ordem do juizado de menores, ele deveria ser limpar o mundo não era fácil porque as pessoas nunca descer pelo ralo. A memória da tia era um ralo, não
entregue, no escuro, na penumbra, em preto e branco, estavam contentes com o trabalho dela de limpar conseguia reter a água do passado. Não se lembrava
uma família que não sabia por quais estados o rio São o mundo. Ela disse que a mulher sua tia não sabia que quem cuidava dela hoje foi quem ela negou.
Francisco atravessava. quando voltaria. Como não sabia? Havia viajado a Hoje quem toma conta dela é um desconhecido. Um
Ele tinha ficado imobilizado. Não conseguia pegar trabalho. A professora estranhou porque pobre não homem que não pertence à família dos mortos. Os
o copo d’água que ela trouxera da cozinha. O copo viaja a trabalho. Mas a mulher que limpava a casa mortos não têm parentes. Ou melhor, o único parente
também estava quente. Pensou que todas as coisas no da tia e limpava o mundo desde que se entendeu dos mortos são os mortos que fazem a grande família
Rio fossem quentes. A cabeça das pessoas, as pernas por gente – e gente pobre ainda por cima – disse dos mortos. Escurece. Há muito que escureceu no
das pessoas, as emoções das pessoas. A mãe tinha que a tia trabalhava limpando trem. Ela limpava a pensamento da tia e ela não se lembrava do dia em
mais temperatura que as outras pessoas. No povoado casa de minha tia. Minha tia limpava o trem que os que se passou por empregada para não ficar com a
em que moravam, de madrugada havia um vento passageiros sujavam – e como sujavam. Mas ela não tutela dele. Foi tutelado pela vida. A vida não é um
peregrino e estrangeiro que passava desavisado pela era manicure? Falta de trabalho. O mundo se dividia bom pai, a vida não é uma boa mãe. A vida pertence
cidade. Aquilo não deveria ser a rota daquele vento assim. Os que sujavam o mundo e os que limpavam à família dos órfãos. Somos todos órfãos. A grande
frio. A mãe dizia que era o demônio. A mãe achava o mundo. Na maioria das vezes os que sujavam o família dos vivos é composta de órfãos.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

resenhas
HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO

Guia de superação Há um momento em que


a vida se impõe sem heróis
ou slogans. É o que a
alimento que tivesse mais
de uma cor, mais de uma
textura, um sabor que não
do romance, pai rapta o
próprio filho de dois anos
como gesto desesperado
silêncio da literatura
brasileira diante do trauma
da ditadura militar,

para militantes
colombiana Laura Restrepo fosse elementar. Achava para recuperar casamento quando nossos “vizinhos”
(convidada da Flip 2011) que atentava contra toda falido; mãe impõe silêncio são tão empenhados em
problematiza no (quase) norma de sobrevivência, sobre o passado. Doze jamais permitir que o

que sobreviveram
autobiográfico Heróis demais. quase de decência, essa anos mais tarde, um longo passado seja amortecido
“Meu primeiro, e último, predileção pela comida diálogo entre mãe e filho ou esquecido. E mais:
livro com essa temática”, branca e mole, o leite, o procura colar/entender o com esse romance,
já revelou em entrevista. pão, o sorvete de baunilha, episódio. Até onde uma Laura nos revela um jeito
Colombiana Laura Restrepo Ex-jornalista e, desde os
anos 1990, um dos maiores
a massa, como se temesse
levar à boca coisas
ditadura interfere nas
relações pessoais? Até
delicado e peculiar de
recuperar e problematizar
promove “biografia” da sua nomes da literatura latino- surpreendentes, escuras ou onde ela dá o sentido da lembranças pessoais,
americana, ela aqui revela desconhecidas. Como se o vida desses adversários? que insistem em dizer
própria geração de guerrilheiros os ganhos e perdas da interior dele só aceitasse as Questionamentos que a tanto sobre todos nós.
sua geração na militância primeiras comidas, as de autora faz ecoar em Heróis
Schneider Carpeggiani contra a ditadura antes do medo”. demais. Questionamentos
militar, denominador Mas seu ar indignado típicos da literatura de
- político - comum do não se restringe às novas língua hispânica.
Continente entre as gerações. Olha para o “Não quis escrever
décadas de 1960 e 1970. que “restou” dos seus uma história de militantes
Seu acerto de contas contemporâneos com arrependidos. Quis
com o passado não seria certo pesar. A persona mostrar como a tirania
completo sem um certo que Laura criou para permeia tudo, até os que
olhar de desdém voltado esse livro fala de pessoas estão contra ela. A luta
a quem não cresceu/ viciadas em ditadura, política cria uma relação
amadureceu sob o de homens e mulheres estreita com o inimigo.
fantasma fascista. Essa que amadureceram Até que ponto você não
perspectiva é explorada como zumbis, à caça dos termina se parecendo com
na frustração de uma mãe mesmos velhos fantasmas, ele? Na relação entre mãe
com os hábitos alimentares quando inimigo já é outro. e filho isso fica claro. O romance
do filho, que se nega a Assim, eternamente único meio que o filho tem
comer frutas ou legumes: presos à história para chegar ao pai é uma Heróis demais
“Se sentia indignada, política, esses homens e mãe que não quer recordar Autora - Laura Restrepo
preocupada e violentada mulheres lidam com suas o passado”, comentou. Editora - Companhia das Letras
por ele ter semelhante decisões pessoais como Heróis demais nos faz Preço - R$ 39,50
aversão por qualquer guerrilheiros: na trama pensar no estranho Páginas - 235
DIVULGAÇÃO

PRESTÍGIO
Mariza Prêmio FIL de Literatura -Feira Internacional
Pontes do Livro de Guadalajara -inscreve até o dia 22
Um dos prêmios literários mexicano do século passado.
mais cobiçados do mundo - Ficou também famoso por
além do prestígio, paga US$ seu trabalho como fotógrafo
150 mil ao vencedor – está (caso da célebre foto ao lado).
com inscrições abertas até O prêmio visa reconhecer a
22 de julho. O Prêmio FIL de trajetória de um autor vivo,
Literatura é organizado pela que tenha um valioso trabalho
Feira Internacional do Livro de criação em qualquer gênero

NOTAS de Guadalajara, em parceria


com a Associação Civil Prêmio
literário, em língua românica.
O regulamento e uma lista

DE RODAPÉ Latino-Americano e do Caribe


Juan Rulfo. Rulfo (1917-1986)
biográfica dos vencedores
passados estão disponíveis
foi o mais célebre escritor no site www.fil.com.mx.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011

divulgação DIVULGAÇÃO

prateleira
O PALÁCIO DE INVERNO
Misturando História e ficção, o romance
coloca o jovem russo Geórgui Jachmenev
no centro dos acontecimentos políticos
que culminaram na morte do czar Nicolau
II e toda sua família, quando eclodiu
a revolução Bolchevique, no início do
século 20. O adolescente impulsivo da
periferia transforma-se no homem que
convive com o luxo e as intrigas palacianas,
sempre atormentado pela impossibilidade
de decidir livremente sobre sua vida. A
narrativa se alterna entre presente e passado,
entre a Russia dos czares e a Inglaterra de
Margareth Thatcher,
como pano de fundo
para uma história de
amor cheia de mistério.

Autor: John Boyne


Editora: Cia das Letras
Páginas: 456
Preço: R$ 39,50

Dama maior do mistério A questão da velhice MANHÃ DO BRASIL


Lançado em 2010, o título é finalista dos prêmios
A escritora inglesa P.D. melhor: o cenário valter hugo mãe é gráfico do livro, assinado Portugal Telecom e São Paulo de Literatura
James é um patrimônio para as mortes é um daqueles que preferem por Lourenço Mutarelli, deste ano. A narrativa inova na condução de 75
“criminal” do seu país. casarão vitoriano que as minúsculas. Essa é só que também escreveu o pequenos quadros, que apresentam os encontros
Tudo isso graças à pertencera a uma família uma das idiossincrasias texto de apresentação da e desencontros de dois personagens anônimos, a
originalidade com que poderosa. Ambiente de um dos grandes nomes obra: “Essa é a história partir de um encontro casual, numa trama poética,
consegue matar mais perfeito para causar da literatura portuguesa de todos os silvas, e é erótica, lírica e nostálgica. O narrador revela-
e melhor a cada livro. inúmeros arrepios na hoje. Convidado da Flip também uma história se o verdadeiro protagonista ao se envolver na
Sua (literária) ficha espinha. Um caso que deste ano, ele chega sobre a saudade, esse história, apaixonar-se pelos personagens e sofrer
criminal já rendeu dará muito trabalho para lançar o romance A sentimento tão profundo consequências. O livro é a
prêmios como o Grand ao seu incansável máquina de fazer espanhóis que os portugueses alegoria de um Brasil que
Master, da Mystery detetive Adam (segundo título de ficção fizeram caber em uma tenta superar o cotidiano
Writeres of America, Dalgliesh. (Schneider mais vendido em seu país palavra”. (Schneider sem perspectivas, buscando
e o Diamond Dagger, Carpeggiani) ano passado), obra que Carpeggiani) a superação e a renovação .
da British Crime ele teve pudor de enviar a
Writer’s Association. um dos seus amigos, seu Autor: Luís Alberto Brandão
Isso sem falar de um fiel leitor José Saramago. Editora: Scipione
título de realeza. Seus O pudor é compreensível. Páginas: 184
leitores fieis não terão A trama retrata a questão Preço: R$ 35,90
do que reclamar em da velhice de forma
relação ao seu novo aguda. Seu personagem, POETAS DA AMÉRICA DE CANTO CASTELHANO
romance lançado no um barbeiro chamado O “poeta da floresta”, Thiago de Mello, levou
Brasil, Mortalha para uma Silva, assim como o mais de vinte anos sonhando com esta coletânea
enfermeira. Uma jovem Nobel, está na casa inédita, destinada a contribuir com a integração
aluna morre durante dos 80 anos. Depois cultural latino-americana. Durante dois anos ele
uma aula prática na de perder a mulher, é selecionou, traduziu e organizou 400 obras de
escola de enfermagem entregue a um asilo. 120 autores de 19 países, dentre os quais estão
Nightingale House, no Encontra-se sozinho, Pablo Neruda, Jorge Luis Borges, Cesar Vallejo,
Sul da Inglaterra. Pouco mas sem sucumbir Rubén Darío, Gabriela Mistral, José Asunción
depois, outra estudante ROMANCE ao pessimismo, num ROMANCE Silva, Ernesto Cardenal, Mario Benedetti e muitos
aparece morta na cama. mundo cuja metafísica outros, representantes de
Os fatos envolvem o Mortalha para uma enfermeira parece ter sido subtraída A máquina de fazer espanhóis estilos, épocas e temas, que
local numa atmosfera Autor - P.D.James e se vê obrigado a Autor - valter hugo mãe identificam o espírito da
misteriosa, onde nada Editora - Companhia das Letras investigar novas formas Editoras - Cosac Naify poesia latino-americana.
mais parece pertencer Preço - R$ 35 de conduzir sua vida. Preço - R$39
à normalidade. E Páginas -354 Destaque para o projeto Páginas - 254
Organizadores: Thiago de Mello
Editora: Global
Páginas: 496
Preço: R$ 79

SOBREVIVÊNCIA DOS VAGALUMES


AUDIOTECA FLIPORTO VOCAÇÃO O autor analisa o Artigo dos Vaga-lumes, escrito por
Pasolini em 1975, e estabelece conexões com o
Deficientes visuais podem Vilaça é o homenageado Observatório astronômico é pensamento de outros intelectuais, para mostrar
ler mais de 2700 livros da Feira do Livro 2011 programa domingueiro as diversas formas de resistência da cultura, das
ideias e do corpo, diante da atração do poder
A Audioteca Sal e Luz, entidade Marcos Vinícius Vilaça será o Reaberto há pouco, o político, da mídia e do dinheiro. Ele defende a
sem fins lucrativos, criada homenageado da 2º edição da observatório astronômico da sobrevivência da experiência e da imagem no
em 1989, produz e empresta Feira do Livro de Pernambuco, Torre Malakoff atrai o público, mundo contemporâneo,
audiolivros, gratuitamente, a que acontece paralelamente à que lota o espaço nas sextas e recorre ao trabalho do
portadores de deficiência visual. Fliporto, em novembro. Dublê e domingos, das 16h às 19h. filósofo Walter Benjamim,
O site www.audioteca.com.br de jornalista, poeta, advogado, Graças à parceria de órgãos Imagem dialética, para
disponibiliza cerca de 2.700 livros, professor e gestor público, ele governamentais e universidades corroborar sua tese.
entre didáticos, profissionalizantes é autor de oito livros, entre os com a produtora Nós Pós, o
e literatura, em diversos gêneros, quais Coronel, coronéis - apogeu e observatório, fundado em 1850,
que contemplam autores declínio do coronelismo no Nordeste, oferece palestras, minicursos, Autor: Georges Didi-Huberman
clássicos e contemporâneos. Cultura e Estado e Em torno da videodebates, exposições e Editora: Ufmg
O projeto já recebeu diversos sociologia do caminhão. É ainda outros atrativos que unem Páginas: 160
prêmios educacionais. membro da ABL e da APL ciência e a arte. Preço: R$ 32
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FICÇÃO
Ricardo Lísias
hallina beltrão

Sobre a rapidez
I. De vez em quando sinto um história. Esse tipo de autor de tentasse algo contra mim. Acho andar para cima e para baixo
mal-estar. Não é muito forte repente vai gritar. Escritores que fiz tudo errado. Não achei chorando, pedi ajuda para um
e, para ser sincero, até gosto claros e límpidos acreditam nenhum lugar silencioso. Não carro da polícia. Os guardas
dele. Para compreendê-lo, na linguagem. Eles gritam consegui entender nada. Não voltaram comigo ao meu
preciso pensar com calma, o e são ingênuos. A geração- existe nada que me desespere apartamento. O André tinha
que sempre me agrada muito. blog, as pessoas que gostam mais do que isso. Não e não. ido embora, mas me deixara
Vou para um lugar silencioso do Facebook, todos acreditam Quando acordei, fui chamar um bilhete. Não se preocupa,
e me deito. Prefiro que não na linguagem. Quem faz as o André para tomar café e o não vai acontecer nada com
seja no chão. Quanto mais coisas rápido demais não pensa flagrei cortando a mão esquerda você. Tenho vergonha de dizer,
silêncio, melhor. Eu me sinto em nada. Eu me inscrevi no com um canivete. Tive uma mas me senti aliviado. Resolvi
muito bem em lugares com Twitter. Parecia que estavam me vertigem diante dele e, quando passar o mês inteiro pensando
pouco ou nenhum ruído. Não esfaqueando. Os mini golpes retomei o equilíbrio, comecei no que fazer para ajudá-lo.
respeito pessoas que gritam. não eram fundos o suficiente a gritar. Não me lembro de Uma semana depois, quando
Essa gente que fica nervosa e, para atingir o meu pulmão, mas tudo, mas sei que falei na eu estava indo para um lugar
espontaneamente, sai berrando. machucaram a minha pele. minha frente você não vai fazer silencioso, me ligaram dizendo
O fato é que não gosto de III. Tive que desligar o isso. Era final de 2008 e eu que o André tinha se enforcado.
pessoas espontâneas. Elas não computador e ir para um lugar estava muito infeliz. Ele riu e VI.Então, saí andando.
pensam antes de agir. Uma silencioso. Mas não consegui continuou se cortando. Fiquei Não lembro mais o que eu fiz
pessoa que faz algo de repente, pensar na minha personalidade. com medo de impedi-lo à força. naquele dia. Quando fui ver
seja o que for, é vulgar. Tudo o O Twitter não me serviu nem para Hoje sei que ele não reagiria, o Twitter e fiquei angustiado
que é muito veloz e espontâneo isso. O auge da espontaneidade mas naquele momento eu só com a velocidade com que as
me incomoda. Eu sinto aquele e da frase feita me deixou enxergava o canivete. E o André mensagens passavam, procurei
mal-estar. É um paradoxo: só com um mal-estar físico. rindo. Saí do apartamento. um lugar silencioso e acabei me
aparece quando tenho muita Procurei pelo corpo, mas não Eu o abandonei porque fiquei recordando do André. Agora,
coisa para fazer ao mesmo achei nenhum corte. Mesmo com medo. Fui atrás de um em março de 2011, não estou
tempo. Não poderei pensar assim eu me sentia como se lugar silencioso, mas só achei mais infeliz e queria que o
nele antes de realizá-las. Mas tivessem acabado de ferir a barulho. Só tinha barulho em meu amigão estivesse comigo.
para compreender o tal mal minha pele com um canivete. São Paulo, muito barulho. Sofro com essa história de que
estar, preciso ficar sem fazer Não tinham sido golpes muito Não encontrei nenhum lugar as pessoas que se suicidam
nada. Sempre que eu tenho profundos, mas angustiava. silencioso para tentar entender não vão para o céu. Semana
que resolver alguma coisa Procurei um lugar silencioso e o que estava acontecendo e passada entrei na igreja de
rápido demais, acabo com uma me deitei, mas dessa vez não isso me incomoda até hoje. Pinheiros. Estava um silêncio
sensação desagradável, portanto. consegui pensar na minha V. Nem no Parque do maravilhoso. Por favor, Senhor
II. Não consigo usar o Facebook personalidade. Lembrei-me, Ibirapuera encontrei algum Jesus, eu queria dizer que o
por mais de dez minutos sem em lugar disso, das últimas silêncio. Não consigo pensar André merece ir para o céu.
que essa sensação ruim apareça. visitas do meu amigo André. muito rápido. Comecei a ficar Ele merece muito ir para o céu,
Então, tenho que me deitar Ele estava com o braço todo cada vez mais desesperado. Senhor Jesus. Ricardo, essa
para compreender a origem cortado e me mostrava rindo. Subi e desci a Teodoro Sampaio história é besteira: pessoas que
de tudo isso. Mas eu gosto, Os cortes tinham acabado de duas vezes. Entrei em todos se suicidam também podem
apesar de tudo, porque tenho ser feitos: as cicatrizes ainda os cemitérios da região, mas vir para o céu. O André está
a oportunidade de pensar na estavam com casca. Fiquei não encontrei um cantinho aí, Senhor Jesus? Está sim,
minha personalidade. Não vejo perplexo e perguntei o que tinha silencioso. Muita gente estava Ricardo, o seu amigo veio
nenhuma graça em um blog, acontecido. Ele continuou rindo. sendo enterrada naquele dia. para o céu. Eu me levantei na
SOBRE O AUTOR por exemplo. Tudo é muito Quando fui dormir, percebi, por Quando eu me sinto oprimido mesma hora. Poucas vezes
rápido e superficial. Os blogs são causa do barulho que ele fazia (por não estar conseguindo estive tão feliz como agora em
Ricardo Lísias é autor, espontâneos. A geração-blog é no quarto de hóspedes, a origem pensar com muita rapidez), março de 2011. Antes de sair
entre outros, de Livro dos vulgar. As pessoas espontâneas dos ferimentos. Assustado, preciso achar um lugar da Igreja, pedi para o Senhor
mandarins e Anna O. e são de fato ridículas. Elas me tranquei a minha porta. silencioso. Não consigo pensar Jesus dizer para o André que
outras histórias lembram muito os escritores IV. Eu me envergonho de muito rápido. Naquele dia não eu queria muito convidá-lo
que querem contar uma boa ter achado que o André talvez encontrei silêncio e depois de para o meu casamento.

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