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Hallina beltrão
NOVAS REPETIÇÕES
NOVAS DIFERENÇAS
Nova biografia nos leva a refletir o legado de Jorge Luis Borges
Entrevista com Antonio Prata • Enrique vila-matas • ficção inédita de ricardo lísias
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
GALERIA
L A R ISS A PI N HO A LV E S
“As duas fotos fazem parte da série Casa como Convém, trabalho em que observo um grupo
de amigos (que formam um coletivo de arte com o mesmo nome da série) e sua maneira de se
relacionar com a casa e com os objetos do espaço de morada. A casa é uma das maiores forças de
integração para o pensamento, as lembranças e os sonhos, e, nesse sentido, fotografar o habitar
constitui, também, uma experiência de estudo sobre memória, tempo e identidade.”
www.larissapinhoalves.com
www.flickr.com/photos/satie
Nos 25 anos da morte de Jorge Luis Borges, o mais observou Alfredo no ensaio inédito para essa capa Superintendente de criação
influente nome da literatura hispano-americana do Pernambuco. Ainda no terreno “borgeano”, a Luiz Arrais
do século passado, o Pernambuco promove um escritora Lucila Nogueira preferiu fazer um ensaio Governo do estado EDIÇÃO
dossiê sobre o autor. Nosso mote foi o recente pessoal, refletindo sobre suas primeiras leituras Raimundo Carrero e Schneider Carpeggiani
de pernambuco
lançamento nacional da biografia Borges, uma vida, do autor. Como professora de letras, Lucila faz
Governador Redação
de Edwin Williamson, publicada originalmente questão que seus alunos entrem em contato com o
Eduardo Campos Mariza Pontes e Marco Polo
em inglês em 2005. O professor titular do Depar- mundo de Borges. “Ele leva o leitor a reflita, quase
tamento de Letras da UFPE, o argentino Alfredo nos forçando a aprender mais e mais. É uma força arte, fotografia E REVISÃO
Cordiviola, topou a empreitada de escrever uma única na literatura”, observou Lucila, que também Secretário da Casa Civil Gilson Oliveira, Hallina Beltrão, Karina Freitas,
análise dessa obra à luz dos clichês que cresceram é imortal da Academia Pernambucana de Letras. Francisco Tadeu Barbosa de Alencar Militão Marques e Sebastião Corrêa
e floresceram ao redor do “senhor das bibliotecas Nessa edição traz ainda um texto inédito de
Produção gráfica
e labirintos”, nas últimas décadas. Julian Fúks, convidado do Festival A Letra e a Voz, que Companhia editora Eliseu Souza, Joselma Firmino, Júlio Gonçalves, Roberto
“A biografia, entretanto, pode ser interessante revela em primeira mão a inspiração por trás do seu de Pernambuco – CEPE Bandeira e Sóstenes Fernandes
não por desvendar algum hipotético segredo ou novo livro Procura do romance. E Antonio Prata, um Presidente
marketing E PUBlicidade
por oferecer alguma impensada chave interpre- dos mais consagrados cronistas contemporâneos, Leda Alves Alexandre Monteiro, Armando Lemos e Rosana Galvão
tativa, mas porque impõe uma reflexão acerca do faz uma defesa do seu ofício na entrevista do mês: Diretor de Produção e Edição
lugar que ocupa Borges no imaginário global das “Tornei-me cronista, portanto, acho eu, porque era Ricardo Melo Comercial e circulação
letras da atualidade. Toda vez que surge um novo uma forma de viver da escrita. O que não significa Gilberto Silva
Diretor Administrativo e Financeiro
ensaio, uma tese ou uma proposta de trabalho que eu não goste do gênero, gosto muito e vivo
Bráulio Menezes
sobre Borges, essa reflexão tende a se atualizar. defendendo-o dos detratores, que o acusam de
Se nem toda contribuição é capaz de redefinir as ser um gênero menor”.
percepções sobre o fenômeno Borges, pelo menos Vale ressaltar ainda o conto inédito de Ricar-
CoNSELHO EDITORIAL
ajudam a pensar nos motivos que despertam o do Lísias que publicamos na contracapa. Lísias é Everardo Norões (presidente) Pernambuco é uma publicação da
interesse e confirmam a vigência das suas ficções, nome de ponta da nova literatura brasileira. Seu Antônio Portela Companhia Editora de Pernambuco – CEPE
Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
enquanto instauram pelo menos duas interrogações conto Sobre a rapidez só faz comprovar a força Lourival Holanda CEP: 50100-140
sempre pertinentes: por que se escreve hoje sobre da sua escrita. Nelly Medeiros de Carvalho Contatos com a Redação
Borges? Para que se escreve hoje sobre Borges?”, Boa leitura e até o próximo mês. Pedro Américo de Farias 3183.2787 | [email protected]
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
BASTIDORES
KARINA FREITAS
O personagem é
quem “escreve”
o seu escritor
O convidado do festival A
Letra e a Voz, que a Prefeitura
do Recife realiza em agosto,
revela os mecanismos que
impulsionam o seu novo
livro, Procura do romance
Artigo
conversa boa?
imagine-a então
Diálogos possíveis e
fantasiosos com o escritor
espanhol Enrique Vila-Matas
Kelvin Falcão Klein
A amizade é o campo da relação com o outro, que se Jerônimo”. Larbaud estava trabalhando em seu estudo
dá, em Enrique Vila-Matas, a partir do texto. Eu deixo sobre a tradução, que talvez tenha demorado tanto
o outro viver em meu texto para que ele se transforme, justamente por conta dessa participação silenciosa
efetivamente, em uma parte de mim, sem que perca, das pessoas ao redor. Havia sempre uma ideia a mais
com isso, suas feições. Na amizade, o indivíduo se a acrescentar e um livro que deveria ser lido. Sempre
faz outro. Dissemina a própria subjetividade em uma há um livro que deve ser lido.
trama na qual cada ponto de passagem responde pelo
todo. O amigo é o mesmo e também o outro. Ler o Não é por acaso que Valery Larbaud tem papel tão
amigo é ler, de forma privilegiada, a si. importante em Bartleby e companhia, junto de outros
A amizade, trazida como uma categoria do pensa- escritores também muito importantes para a con-
mento, nos dá uma nova estratégia de leitura: o que é cepção do livro, como Paul Valéry, Kafka ou Robert
abstrato no campo da filiação literária (a intertextua- Walser – todos cultores de uma postura de servidão
lidade da tradição e a forma como um autor é unido produtiva para com a literatura, cada um à sua ma-
a outro) torna-se direto e pessoal em Vila-Matas, por neira. Subalternos, como o senhor os chama.
conta da máquina de nomeação que ele coloca em - Há também Emmanuel Bove, que morou no mes-
funcionamento dentro de seus livros. Aparecem as mo prédio que André Gide, na rua Vaneau, em Paris.
casas, os homens, as mulheres e os contextos: Claudio Bove no térreo e Gide mais acima. Quando jogavam
Magris, Rodrigo Fresán, Paula de Parma, Fleur Jaeggy, xadrez, era sempre Gide quem ganhava, não por ser
Valparaíso, Sevilha e Buenos Aires. melhor jogador, mas porque Bove era um melhor
Essa parte das conversações procura mapear parte perdedor. Bove, como Walser, segue em frente sempre
desses nomes e observar o funcionamento específico perdendo coisas pelo caminho. Não era um coleciona-
de cada um deles na poética do autor. dor como Gide, por exemplo. Bove parecia trabalhar
sempre a partir do dispêndio. A breve convivência que
Tenho a impressão de que dois livros seus dependem tiveram é muito representativa da postura que cada
bastante dos laços de amizade – Paris não acaba nunca um cultivava diante da literatura. Gide era escutado,
e Bartleby e companhia –, mas em registros distintos: seguido e observado. Bove era o melhor entre os es-
o primeiro remeteria a amizades de seus anos de critores desconhecidos, dizia Beckett. Algo na linha
formação, um contexto de experiência e vivência que do que pode ser encontrado entre Borges e Arlt.
só mais tarde seria transformado em texto; Bartleby
e companhia, contudo, parece arregimentar um con- Em uma de suas crônicas, o senhor diz que Roberto
tingente de companheiros de leitura que contribuíam Arlt lhe ofereceu um dos livros mais úteis que já leu
com dados, autores ou indicações bibliográficas, cola- em sua vida – um livro que lhe trouxe um conceito
borando diretamente com o texto. O senhor poderia claro não da existência e, sim, da sobrevivência do
comentar essa relação? escritor. Que conceito é esse?
- É essa a situação de Bartleby e companhia: é um livro que - Penso que se trata da consciência de que a escritura é
nunca parou de ser escrito. Recebo sugestões e novos uma estrutura vazia e que o escritor é um Narciso que
casos de abandono da literatura, amigos me ligam e se lança sempre no vazio. Escrever leva sempre a um
perguntam se eu não penso em lançar um segundo túnel sem final, porque jamais se chega à satisfação
volume. As notas feitas sob um texto invisível são plena, nunca se chega a escrever a obra excepcional
agora complementadas pelas leituras de muitas outras que sempre confiamos que faríamos algum dia, e
pessoas. Valery Larbaud conta que, por quase 20 anos, isso produz a maior das angústias. Antes se aprende
os amigos lhe apresentaram dados e indicações de a morrer do que a escrever. Arlt falava da necessidade
livros, dizendo a ele: “Isso vai ajudá-lo com seu São imediata de se viver um dia após o outro, de conseguir
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
entrevista
Antonio Prata
O lugar da crônica,
essa “vira-lata”
da nossa literatura
Na perspectiva do cronista paulistano, o leitor
brasileiro precisa do lirismo e do humor do gênero em
meio à aridez das notícias e análises da imprensa atual
divulgação
projeto editorial
FICÇÃO CIENTÍFICA
Marco A Editora Globo lança Fahrenheit 451, de Ray Bradbury,
Polo em quadrinhos assinados pelo americano Tim Hamilton
O Editora Globo está lançando, próprias é tido como um ato
sob o selo Globo Graphics, subversivo, numa sociedade
a versão em quadrinhos que se pauta pela neutralização
assinada por Tim Hamilton de qualquer individualidade.
do romance Fahrenheit 451, do Dentro dessa lógica invertida, os
escritor norte-americano Ray bombeiros não são encarregados
Bradbury (foto). O livro foi de apagar incêndios e, sim, de
lançado originalmente em 1953 queimar livros (o título é uma
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
CONSELHO EDITORIAL
O caminho Depois de várias tentativas de convencer editoras
a aceitarem o projeto e de também “bater na trave”
em editais de fomento, a dupla decidiu partir para
I Os originais de livros submetidos à Cepe,
exceto aqueles que a Diretoria considera
se tornou mais
voga hoje ”, opina o autor. 1. Contribuição relevante à cultura;
Segundo Rodrigo, com a opção feita, o cálculo para
definir o valor necessário foi simples: eles queriam
2. Sintonia com a linha editorial da Cepe,
uma narrativa do
custear uma tiragem de mil exemplares, caixas e em-
balagens e também envio para os colaboradores. Es- que privilegia:
peravam que cada um dos dois convencesse cerca de
livro, uma história 50 amigos a ajudar com R$ 100. “Para nossa surpresa,
em pouco mais de três semanas, a gente conseguiu
vender 160 cotas”.
a) A edição de obras inéditas, escritas ou
traduzidas em português, com
exterior à obra
relevância cultural nos vários campos
A contribuição dava direito a duas cópias em capa
dura, coloridas, numeradas e autografadas, com o en- do conhecimento, suceptíveis de serem
vio incluso. “Uma coisa boa foi que nós conseguimos apreciadas pelo leitor e que preencham
não me considero de religião nenhuma, sou apenas essas vitórias depois de ouvir das editoras coisas desse os seguintes requisitos: originalidade,
muito curioso por elementos de qualquer mitologia. tipo: ‘Como é? Vocês querem editar em capa dura? Co- correção, coerência e criatividade;
A dos orixás é muito interessante porque não tem, lorido? Com papel especial? Vocês estão loucos, não é
diferentemente de outras, como a do islamismo, do viável’”, recorda Rodrigo. As rejeições iam pelo mesmo
catolicismo, do judaísmo, uma característica mora- caminho. “Elas sempre foram reclamando do custo, b) A reedição de obras de qualquer gênero
lista. Os deuses erram, acertam, sacaneiam, choram, nunca ninguém fez sugestões ou questionamentos da criação artística ou área do
brigam, morrem, renascem”, descreve o autor. “É uma ao livro. Ninguém se preocupava em fazer o papel de conhecimento científico,
grande telenovela.” editor. Então, no fim, foi necessário que nós também consideradas fundamentais para o
aprendêssemos a editar a nós mesmos, o que foi um
patrimônio cultural;
DIVERSIDADE DE GÊNEROS trabalho doloroso”, conta.
Um dos diferenciais de Um outro pastoreio é a impos- Os nãos escutados foram essenciais para a dupla:
sibilidade de conseguir encaixá-lo em um gênero “Acabaram até ajudando no processo de criação, por- c) O Conselho não acolhe teses ou
específico. Está longe de ser uma narrativa ilustrada, que a gente teve mais tempo”. Com os cinco anos de dissertações sem as modificações
porque muitas vezes os desenhos têm balões e são criação de Um outro pastoreio na bagagem, que rendeu aos necessárias à edição que contemple
protagonistas das páginas. E, mesmo que em alguns dois também um editora própria, a Gaveta Editorial,
a ampliação do universo de leitores,
momentos traga páginas em formato de quadrinhos eles organizam agora novos projetos. Indio San traba-
e verdadeiras cenas construídas apenas com ilus- lha numa história em quadrinhos, Escárnio, já perto de visando a democratização
tração, o livro também não fica muito tempo nessa ser finalizada. “Estamos pensando agora na forma de do conhecimento.
opção. Talvez o termo novela gráfica – em um sentido lançá-la. Imaginamos em algo diferente, com outro
diferente do associado às HQs – seja a denominação mecanismo”. Enquanto isso, Rodrigo escreve um livro II Atenditos tais critérios, o Conselho emitirá
mais próxima. de terror, A escadaria - os projetos são individuais, mas
parecer sobre o projeto analisado, que será
“Quando o projeto começou, a ideia era que, cada eles sempre trocam comentários sobre suas produções.
página de desenho abstrato viesse com um trecho de Os gaúchos ainda estão produzindo mais uma obra comunicado ao proponente, cabendo à
poesia, mas isso só serviria se a gente ficasse muito em conjunto, com o nome provisório de Lobos e borbo- diretoria da Cepe decidir sobre a publicação.
próximo do enredo tradicional da lenda”, conta Ro- letas, uma mistura de lendas indígenas com cultura
drigo. Quando os dois decidiram criar em cima da cigana, tendo o antropomorfismo como tema. “Esse III Os textos devem ser entregues em quatro
narrativa original, foi necessária uma nova forma de deve ser algo mais próximo ao Um outro pastoreio. O
vias, em papel A4, conforme a nova
contar. “Nessas idas e vindas, o Indio foi pesquisando argumento está pronto, mas a gente tem que escrevê-
vários caminhos, que acabaram levando-o de volta a -lo para começar mesmo o trabalho”, antecipa. E que ortografia, em fonte Times New Roman,
um projeto da faculdade de stop motion com bonecos. ninguém duvide que o livro vai sair, não importa se em tamanho 12, com espaço de uma linha e meia,
O livro virou quase uma fotonovela, com balões e breve ou se daqui a alguns anos, se por uma editora ou sem rasuras e contendo, quando for o caso,
tudo”, lembra o escritor. pelas mãos da dupla e de seus colaboradores: Rodrigo índices e bibliografias apresentados conforme
A negociação foi árdua para achar o ponto de e Indio já provaram que até tiram alguma força de
as normas técnicas em vigor.
equilíbrio entre texto e imagem. “Na verdade, se dificuldades editoriais.
não tivéssemos lançado, ainda estaríamos me-
xendo no livro, seria uma alquimia eterna”, brinca IV Serão rejeitados originais que atentem contra
Rodrigo. Um atestado disso é a quantidade de ver- O LIVRO a Declaração dos Direitos Humanos e
sões impressas, que foram incorporadas às apre- Um outro pastoreio fomentem a vilência e as diversas formas de
sentações da obra que os autores fazem durantes
Gaveta Editorial preconceito.
as turnês pelo país. O caminho percorrido até o
resultado final se tornou mais uma narrativa do Páginas 208
livro, uma história exterior à obra, mas que passou Preço R$ 50 V Os originais devem ser encaminhados à
a ser fundamental para também entendê-la – e Presidência da Cepe, para o endereço
valorizá-la ainda mais. indicado a seguir, sob-registro de correio ou
protocolo, acompanhados de
correspondência do autor, na qual informará
seu curriculum resumido e endereço para
contato.
CAPA
Espelhos, labirintos e
bibliotecas apócrifas
Como escapar dos mitos
Uma biografia de Borges acaba de ser editada em Borges, essa reflexão tende a se atualizar. Se nem toda
português; não é a primeira, e certamente não haverá contribuição é capaz de redefinir as percepções sobre
de ser a última. Trata-se de Borges, uma vida, de Edwin o fenômeno Borges, pelo menos ajudam a pensar nos
e repetições que Jorge Williamson (Cia. das Letras, R$ 68), publicada origi-
nalmente em inglês em 2005. A obra pode ser útil, mas
motivos que despertam o interesse e confirmam a
vigência das suas ficções, enquanto instauram pelo
Luis Borges nos lançou? não se caracteriza por apresentar grandes novidades
nem por introduzir novas perspectivas sobre a vida
menos duas interrogações sempre pertinentes: por
que se escreve hoje sobre Borges? Para que se escreve
ou sobre a produção do autor argentino. Williamson hoje sobre Borges?
Alfredo Cordiviola escreve um trabalho sério, documentado, fornece um Escrever uma biografia de Borges pode ser uma
amplo panorama do contexto político argentino, que aventura temerária. Esse adjetivo, temerária, não alude
pode ser valioso para leitores não familiarizados com o aqui ao culto da coragem nem à ousadia intelectual;
assunto, mas entre suas virtudes não figura essa cons- é na verdade uma forma de expressar certa descon-
tante necessidade de interpretar os textos borgianos fiança. O próprio Borges disse e escreveu muitas
a partir de eventos biográficos, traumas e invocações vezes, com irônica condescendência, que sua vida
psicológicas de todo tipo. A biografia, entretanto, pode não se distinguia pela profusão de acontecimen-
ser interessante não por desvendar algum hipotético tos memoráveis, desses que excitam a curiosidade
segredo ou por oferecer alguma impensada chave dos leitores e garantem uma definitiva densidade
interpretativa, mas porque impõe uma reflexão acerca novelesca aos anos vividos. Amores, desventuras,
do lugar que ocupa Borges no imaginário global das contradições, dramatismos, que em outros autores
letras da atualidade. Toda vez que surge um novo argentinos tão diversos entre si como um Sarmiento,
ensaio, uma tese ou uma proposta de trabalho sobre uma Victoria Ocampo ou um Rodolfo Walsh são
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
HALLINA BELTRÃO
cruciais para entender a trajetória pública e as opções Borges, relembrar permanentemente as citações que que foi se consolidando, como em todos os casos,
literárias de um escritor, parecem sempre menores, flutuam por esse universo borgiano que se confunde ao longo do tempo. Após seu retorno da Espanha,
algo irrelevantes, no caso de Borges. “Vida y muerte com o próprio universo de toda a literatura. em 1921, em plena eclosão das vanguardas, haverá
le han faltado a mi vida”, escreveu alguma vez, Existem muitos autores consagrados, e os cânones de publicar seu primeiro livro, os poemas de Fervor
sem jactância nem melancolia (ou com melancólica garantem a vigência de dezenas de nomes próprios. de Buenos Aires, em 1923, enquanto participava ativa-
jactância), embora a sentença também possa ser Poucos, entretanto, gozam do tipo de reputação que mente nos debates e nas revistas que proliferavam
entendida como uma impostação. Contudo, não é Borges lenta e constantemente foi acumulando pelo no campo intelectual de uma cidade exemplarmente
essa imaginada ou verídica falta de episódios sin- menos desde os anos 1960. Na América Latina do cosmopolita e periférica. Na década seguinte, sur-
gulares a que permite duvidar hoje da pertinência século 20, uma região e um tempo marcados por um gem notórias experiências em prosa (a biografia
de uma biografia de Borges. Afinal, toda vida pode e extenso e heterogêneo número de autores notáveis- de Evaristo Carriego (1930), os ensaios de Discussão
merece ser narrada, e mais ainda em se tratando de nem mesmo aqueles que representam a figura um (1932), a ficção burlesca História universal da infâmia
um autor tão influente e perdurável nas letras atuais. pouco anacrônica do “grande escritor” – como, por (1935)), mas é nos quarenta, a década de Ficções
O problema é outro. Falar de um autor consagra- exemplo, Carlos Fuentes, Neruda ou Julio Cortázar – (1944) e El Aleph (1949) quando Borges começa a
do e universalmente ungido como Borges supõe já são motivos de tamanha unanimidade. Nem sequer ganhar outro tipo de reconhecimento.
enfrentar uma séria dificuldade inicial. Pois, o que aqueles legitimados pelo Nobel como Octavio Paz ou Na década da definitiva irrupção desse peronismo
dizer de Borges que já não tenha sido dito? Como García Márquez (ou, menos ainda, o controvertido sempre desprezado e combatido por Borges, na década
fazer para não cair nas armadilhas da repetição e Vargas Llosa) ocupam a mesma posição de Borges. Ar- de uma Europa marcada pelo fascismo e pela guerra,
do lugar-comum? Como evitar a multiplicação de guedas, Roa Bastos, Rulfo, Arlt, Lezama Lima, Onetti, o prestígio do autor vai ganhando uma proporção
mais uma glosa dessas imagens, auras e afirmações Asturias, Guimarães Rosa, Carpentier, Felisberto Her- que tenderá a se consolidar em dimensão planetária
já solidificadas pela tradição e pela crítica? nández, Puig são, entre muitos outros, autores funda- ao longo dos 30 anos seguintes. Um dos fatores que
Tais ressalvas, contudo, poderiam ser também mentais e inevitáveis dentro do sistema literário, mas, contribui nessa consolidação é sua constante parti-
facilmente refutadas. Afinal, se Borges é um clás- mesmo assim, não geraram tanta repercussão quanto cipação na revista Sur, fundada em 1931 por Victoria
sico, essa incerta categoria que, segundo o autor Borges. Bolaño é observado com grande fervor pela Ocampo. A revista, que teve um lugar proeminente
de El Aleph, permite às gerações dos homens ler um crítica atual, mas não sabemos como será lido daqui no cenário cultural latino-americano, congregava al-
livro com prévio fervor e misteriosa lealdade, e se os a 20 anos. Obviamente, não se trata aqui de afirmar gumas das personalidades literárias mais interessantes
clássicos são aqueles que de alguma forma impõem, que um autor é “melhor” ou “mais famoso” do que da época. Adolfo Bioy Casares, Silvina Ocampo, José
na critica e no mercado, a necessidade de continuar outro, mas de registrar os modos de disseminação, Bianco, Ezequiel Martinez Estrada, Amado Alonso,
escrevendo, por que não redigir então mais um en- misteriosos e firmes, desse nome, Borges, dentro das Eduardo Mallea eram, entre muitos outros, presenças
saio, mais uma interpretação, mais uma biografia? órbitas da literatura contemporânea. habituais nessas páginas, que divulgavam a literatura
Se Borges é referência inconteste na literatura de Na literatura argentina, em particular, Borges é o que estava sendo produzida nesse momento pelos
hoje, algo diferente sempre poderá ser acrescentado, grande acontecimento do século 20, ou quiçá de toda autores locais (muitos dos contos, poemas, resenhas
algo que permita prosseguir multiplicando esse mito a literatura nacional escrita desde a independência. e ensaios de Borges apareceram na revista antes de
feito de labirintos, metafísicas apócrifas e bibliotecas Como Beatriz Sarlo lembrou em mais de uma ocasião, ser incluídos em volumes individuais), traduzia a
infinitas. Afinal, escrever sobre Borges hoje supõe assim como o peronismo é o grande evento da polí- produção de autores europeus relevantes e servia como
referir constantemente as interpretações que se se- tica, o marco indispensável para entender a história permanente tribuna de debates políticos e literários.
dimentaram até formar parte do mesmo universo ao argentina das últimas seis décadas, Borges é o marco Em 1942, quando Borges não recebe o esperado Prêmio
qual pertencem seus contos, ensaios, poemas e até obrigatório da literatura argentina, a peça insubstituí- Nacional de Literatura, ao qual concorria com El jardín
as vicissitudes da sua vida privada. Escrever sobre vel em torno da qual funciona a máquina literária. É de senderos que se bifurcan, Sur prepara um desagravo; em
Borges é escrever em círculos; é invocar esses muitos evidente que Borges nem sempre ocupou esse lugar, julho desse ano (o mês em que morre Roberto Arlt),
12
PERNAMBUCO, JULHO 2011
capa
o número 94 da revista reúne uma série de depoi- do grupo Sur, um autor que defendia os interesses da sidades, viaja regularmente, e se transforma em um
mentos que enfatizam a singularidade de Borges e classe dominante. O próprio Borges, com beligerante conferencista profissional. Continuará publicando
exaltam a sua figura. Escrito com urgência, a modo humorismo, favorecia esse lugar-comum, multipli- e dando infinitas entrevistas até a sua morte. Para
de protesto, o volume não pretende oferecer estudos cando frases de efeito que nem sempre deveriam ter morrer, escolhe um exílio, e empreende com Maria
aprofundados da obra, mas servir como homenagem sido tomadas ao pé da letra (“espero que me perdoem Kodama a longa e última viagem rumo a Genebra,
e como cerimônia de legitimação que já em si revela por acrescentar que desacredito na democracia, este onde falece em 1986.
a preponderância que a literatura de Borges tinha no curioso abuso da estatística”; “afilie-me ao Partido Borges é hoje uma atração turística na cidade de
campo intelectual dessa época. E mesmo que nem Conservador, o que é uma forma de ceticismo”) ou Buenos Aires; é também uma espécie de mito, uma
todos os comentários fossem igualmente laudatórios adotando atitudes destinadas a figurar na história sintaxe, uma forma de adjetivar, um repertório for-
(o de Ernesto Sábato, por exemplo, não omite algu- da infâmia, como, durante a trágica década de 1970 mulado a partir de um arrabalde sul-americano, um
ma ironia), o fato de organizar um número especial das ditaduras militares e das desaparições massivas, autor para todas as bibliotecas do mundo. A morte,
de desagravo por um prêmio não recebido indica sua visita ao Chile de Pinochet e seu iníquo apoio ao o tempo e a multiplicação de perspectivas foram
que Borges era percebido, já nos anos 1940, sob o governo de Videla. diluindo, sem anulá-los, os dilemas que surgiam
prisma da excepcionalidade. A afirmação de um dos No período que separa os anos 1950 dos 1970 (mar- dessa dupla face do Borges reacionário em política
colaboradores, Bernardo Canal-Feijóo, resume assim cado pela proscrição do peronismo e por contínuos e revolucionário em literatura. Outras leituras sou-
essa percepção: “a sua obra sempre me pareceu da golpes militares), essa discussão, focalizada nas re- beram colocar muitas aspas nesses dois adjetivos.
categoria dessas que tornam óbvias de antemão as percussões da figura pública do autor, se torna mais Autores que manifestam a centralidade de Borges nas
consagrações magistrais, porque trazem consigo um acirrada, e opera como um grande divisor dentro do suas próprias obras, como Ricardo Piglia, Silviano
próprio magistério”. campo intelectual. Paralelamente, sua obra se torna Santiago, Beatriz Sarlo e Alan Pauls (por citar, como
Contudo, apesar das efusivas apologias dos mem- cada vez mais conhecida no exterior, iniciando um sempre, apenas alguns) leram as relações entre litera-
bros da revista Sur, e dos explícitos reconhecimentos percurso de universalização que continua se expan- tura e política a partir dos mecanismos que confluem
dos seus leitores, a figura e a obra de Borges não es- dindo até hoje. Referência – como espelho invertido na escrita, ampliando, a partir de Borges, as signi-
tavam livres de controvérsia. Durante muito tempo, ou como inventor de mundos – para os autores do ficações da escrita política e da política da escrita.
já desde os anos 1930 e até pelo menos os anos 1970, chamado boom latino-americano, seus textos são No pensamento contemporâneo, a multiplicação
Borges era criticado por seu aparente hermetismo, também traduzidos nas mais diversas línguas; é cada da presença de Borges é evidente na prática teórica
por seus barroquismos, por ser “pouco argentino” vez mais lido e mais admirado. Na literatura de língua e ficcional. Partindo de Borges e retornando a ele,
e estar mais influenciado por suas leituras inglesas inglesa, Borges é aclamado por autores tão influentes novas interpretações permitem repensar a condição
do que pela realidade que o circundava, e por suas como John Updike, Nabokov, Paul Auster, Susan das literaturas nacionais, as funções da leitura, a
posições políticas elitistas e conservadoras. Mas essa Sontag, Thomas Pynchon, Paul de Man ou Harold noção do real, os usos da citação e do arquivo, a
reprovação era também sintoma da dimensão que o Bloom. Na França, é condecorado como Comendador relação entre literaturas consagradas e periféricas,
autor ocupava com força cada vez maior no sistema da Ordem das Letras e das Artes, Blanchot, Deleuze, as transfigurações do cosmopolitismo e do ameri-
das letras vernáculas. Relegado pela cultura oficial Genette e Ranciere escrevem sobre ele, Foucault se canismo, os vínculos do texto com o passado e a
durante os anos do peronismo, a partir do golpe inspira na enciclopédia chinesa de O idioma analítico de história, as combinatórias possíveis entre as diversas
militar de 1955, que derroca o governo de Perón, John Wilkins para reformular a relação entre as palavras tradições, as promessas da heterotopia. As opções
passa a receber emblemáticas honrarias e cargos, e as coisas; mais tarde, Baudrillard adverte no mapa poderiam se multiplicar, e provavelmente haverão
como o de diretor da Biblioteca Nacional, professor do império de “Sobre o rigor da ciência” o reino do de se multiplicar, à medida que futuros leitores de
de literatura inglesa na Universidade de Buenos Aires, simulacro. Borges recebe prêmios internacionais Borges atendam os ecos desse nome e se permitam
membro pleno da Academia Argentina de Letras e o prestigiosos como, entre tantos outros, o Formen- incorrer em novas repetições, em novas diferenças.
Prêmio Nacional de Literatura. Borges costumava se tor e o Cervantes (“una generosa equivocação, que
definir como um libertário ou uma espécie de anar- aceito com impudicícia”). Vários filmes são feitos a Alfredo Cordiviola é professor titular do Departamento
quista. Para seus detratores, era, como grande parte partir dos seus contos. É laureado em várias univer- de Letras da UFPE.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
HALLINA BELTRÃO
A salvação pela
Era um Recife ensolarado, aquele em que nos encon adolescência e toda a sua euforia. Havia um deserto
trávamos, em uma livraria da Rua da Imperatriz nas em torno do Rio Capibaribe por onde eu caminhava
manhãs de sábado. Era um andar pelas ruas como dentro da minha burka, da minha redoma de vidro.
quem estava em casa e as estantes de livros o labi Um deserto sem sombra que avermelhava a minha
estética é a
rinto escolhido para descobrir esse espelho que nos pele e dilatava as minhas pupilas. Sou estrangeira,
devolve a face. Era o final dos anos 1960 e a juven pensava assim como Camus, sou inadaptável a este
tude descobria autores que se tornavam companhias calor a esse caráter de insegurança com que cami
e assunto obrigatório nas conversas fora da sala de nhava na superfície.
saída possivel
aula. Poderia dizer que um deles era Herman Hesse, Mas, de repente, o que me acontecia era o insight,
com seus famosos Sidharta, Demian, O lobo da estepe, e os uma revelação, uma epifania. O autor argentino me
demais que colecionávamos avidamente, enquanto envolvia e me levava para um outro plano, em que
suas idéias iam formando parte da nossa visão do as imagens eram soberanas e nada me ameaçava,
mundo. Havia também uma procura pelos livros de em minha visão do mundo cristalino. Era uma poe
literatura de Borges no Recife no Brasil. O nome era Elogio da sombra e perfis, a que se
sucedeu Nova antologia pessoal, este último editado em
eu atravessava o horizonte de olhos aflitos, excessiva
visão encadeada, vontade visionária de desrespeitar
1969 pela conhecida Editora Sabiá do Rio de Janeiro, pesos e medidas, criando por um método extraordi
com tradução da filha de Drummond, Maria Julieta nário a mais presente de todas as companhias.
Lucila Nogueira Graña e de Marly de Oliveira. Até hoje, quando toco Havia tanto nessa ficção como nessa poesia algo
nos livros, mergulho novamente naquela estranha que, no mundo adulto, habitualmente, exige que
atmosfera que passou a me acompanhar durante um todos renunciem: o encantamento, o sonho, a magia.
longo período. Eram anos de ferro. Tanques cercavam Naquela época eu respeitava desmesuradamente a
a Faculdade de Direito do Recife, como a mostrar página impressa, e não anotava nada em suas mar
uma possível inutilidade daqueles cinco anos do gens; em proporção contrária, prisioneira de Borges,
curso de Direito a que me dedicava, atropelada que eu o lia e relia, amarelando as páginas com tom cor
fora a Constituição por um Ato Institucional a reper de fogo da cidade do Recife.
cutir demasiado na sociedade brasileira. Do ponto Marcada pelo hibridismo, produto de uma educa
de vista pessoal, a primeira desilusão amorosa já me ção portuguesa/carioca/nordestina, identificava-me
ensinara a precariedade das relações humanas e a com Jorge Luis Borges em sua busca de identidade,
incerteza dos afetos em meio ao vazio e à tristeza dos em seu desconhecimento de si mesmo, em sua ânsia
desencontros possíveis. Aprendi que o amor era um de adaptar-se à cultura da sua terra de nascimento,
jogo, que a lei precisava da força e esse mundo que descendente direto que era de europeus, de um lado,
surgia, de tão desagradável, haveria de levar-me ao ingleses e, de outro portugueses.
refúgio da poesia. A ascendência portuguesa marca a poesia de Borges
Seus poemas provavam que a salvação pela esté com uma nostalgia inconsciente, característica da
tica era universal e historicamente possível. Nessa noção de fado, de destino. As vezes em que esteve
época, eu escrevia poesia eventualmente, passada a no Brasil, fez questão de referir-se a essa condição
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
capa
HALLINA BELTRÃO
Sua estratégia
narrativa
possibilita a
figuração do
maravilhoso, do
fantástico, sem
quebrar a realidade
Andrade, Murilo Mendes, Otto Maria Carpeaux, Ale-
xandre Eulálio, Fausto Cunha, Augusto Meyer, Paulo
Ronai, Guilhermino César, Lya Luft, para mencionar
apenas os primeiros a que se seguiu toda uma fortuna
crítica recentemente mencionada em livro por Jorge
Schwartz, que conseguiu reunir esses primeiros textos
originais que atestam a boa recepção que teve o autor
argentino no Brasil.
A sua poesia se constitui desde o surgimento no
Brasil em uma resistência ao império, quer do raci
onalismo, quer do realismo, que tem direcionado
algum segmento de nossa produção literária, reatando
a arte poética ao clima encantatório e mágico de seu
início, demonstrando como se ficcionaliza o discurso
ensaístico contemporâneo, transitando entre o conto
e a crítica e incluindo em seus livros poemas líricos, o
que leva à realização de uma fusão de gêneros na qual
existe uma noção de autobiografia ligada, ainda que
de modo dissimulado, à busca do autoconhecimento.
Sua estratégia narrativa, a exemplo de Cervantes pos
sibilita a figuração do maravilhoso, do sobrenatural
sem quebrar a realidade, que se submete a essa arte
de talismã e sortilégio, e que é precursora da atual
literatura chamada pós-moderna.
de portador de sangue lusitano, por exemplo, em vesse de ganhar vários prêmios ao longo de sua vida. Como lembra Ricardo Piglia, a arte de narrar con
entrevista a Renato Modernell, para a revista Status, Através de Borges tudo adquiria um novo colorido, siste em pressentir o inesperado; cenas ficcionais
em agosto de 1934, convidado que fora a vir ao Brasil um mistério passava a ser próximo e possível. Podia retornam à mente do leitor como lembranças pesso
por Jorge Schwartz. caminhar, à maneira de Pixote, vivendo minha pró ais; a estrutura onírica e caleidoscópica de Borges nos
“Meus dois sobrenomes são portugueses, Borges pria alegoria, sustentando contra o sol meu espelho de projeta na revelação de um segredo cuja arte narrativa
e Acevedo. Acevedo creio que é judeu-português, enigmas. Havia lugar para o fantástico, o conhecimento consistiu em ocultar. Isso porque, baseado no oxímoro
assim me disseram. Borges, não. É um sobrenome onírico, havia uma luz no fim do túnel, havia um norte e no desdobramento, Borges narra o final como se ele
muito comum em Lisboa. Meu bisavô era um capitão magnético, um quadrante, uma bússola repentina. fora o presente, daí terem os seus contos a estrutura
português que se chamava Borges de Moncorvo, que Nunca mais fui a mesma. Voltei ao Brasil com duas de um oráculo, pois a pessoa, até a conclusão, não
é um pequeno povoado de Trás-os-Montes, perto da malas de livros. Sim, porque a partir de Borges fui des compreende que a história é a sua e que seu destino
fronteira com a Espanha, e creio que este ano vou ser cobrindo outros autores latino-americanos que me é definido pela fatalidade: vidas possíveis, mundos
convidado para visitar esse lugar que foi dos meus falavam uma linguagem mais consentânea com o meu paralelos, as histórias dos outros se tecem com a trama
tataravôs. Estive cerca de um mês em Lisboa, onde me padrão de sensibilidade lírica. Algo menos prosaico e da nossa própria identidade, apesar de considerarmos
tornei amigo de um escritor chamado João António menos prolixo, com densidade imagética e metafísica. ser a leitura o ato de construir, a partir de experiências
Ferro. Eu falava em castelhano e ele me respondia Mais do que oralidade, um jardim secreto, em uma estranhas, uma memória privada.
em português. Muito lentamente nos entendíamos. casa estranha, a estrutura de parábola já encontrada Seria possível reconhecer na obra de Borges, não
Afinal, os dois idiomas são tão parecidos, nem sei se em Kafka, que Borges, por sinal, traduzira; um escân apenas as pré-faladas marcas do expression ismo de
valeria a pena estudar o outro.” dalo com gosto de assombro a conjugar visível com o Kafka, como a atmosfera surrealista que impreg
Borges, a julgar por sua bibliografia em periódi invisível, um gosto de fábula de derivação romântica, nou, no inicio do século 20 as chamadas vanguar
cos, haveria de estar presente em Portugal com sua desde Roffmann a Hawthorne. Vidas de imagina das. Avesso a uma escola que não a dele próprio,
obra e Joaquim Montezuma de Carvalho chegaria a ção, caminhando no fio do fantástico, literatura de o escritor argentino pretendeu distanciar-se do
destacar a relação de seu conto Aleph com o canto sonho mais capaz de inventar do que de observar, de Ultraísmo, embora não tanto quanto desejara. De
décimo de Os Lusíadas. transgredir do que de repetir, herdeiro de um certo qualquer forma, é sua obra se move como que
Compreendi, então, que a literatura era um sonho, esteticismo simbolista ao modo de Oscar Wilde e do dentro de um sonho para o qual nos chama e seduz
embora um sonho dirigido. Era um código especial em mundo de espanto de William Blake, além das formas com seu canto, transformando aquilo que conside
que pessoas de várias culturas rapidamente se reco de horror de Poe e Baudelaire. ramos realidade em alvo insignificante. Surrealista
nheciam. Percebi que não havia tanta distância entre O poeta como alguém que vê o desconhecido como ou não, importa transcrever, para meditação sobre
a ficção e a voz lírica, que o segredo era a maior qua num espelho de enigmas, mas que logo o verá frente o assunto, apenas um texto seu, narrativo, que nos
lidade, guardado na metáfora transparente e concisa. a frente, como nas palavras de São Paulo: agora co- deixa estremecer sob a impressão característica de
Compreendi que éramos todos forasteiros, prisi nheço apenas em parte, mas então conhecerei como seu universo inconfundível:
oneiros da imaginação e da memória, caminhando sou conhecido. Jorge Luis Borges consegue chamar a “Eu estava com um amigo, um amigo que desco
pelas ruas ignorantes dos mandados do destino. atenção do leitor e dar-lhe consciência de que as coisas nheço: eu o via e ele estava muito mudado. Nunca
Peças de um tabuleiro adiando a morte como no podem ser o avesso delas mesmo, que nós as vemos ao tinha visto o rosto dele, mas sabia que seu rosto
filme de Bergman, O sétimo selo, banhando-se no rio contrário, e nesse ponto ele é fiel à vanguarda ultraista não podia ser aquele. Estava muito mudado, muito
de Heráclito, sem perceber a mudança da água no por onde começou e mantém-se no terreno do gênero triste. Seu rosto estava marcado pela amargura, pela
caminho infinito. alegórico, desprezando as evidências repetitivas de um doença, talvez pela culpa. Tinha a mão direita dentro
Não era todo mundo que compactuava com minha certo ramo experimentalista de seu tempo. do paletó (isto é importante para o sonho). Eu não
preferência pelo autor argentino. Quando fui a Buenos A metafísica presente no texto de Borges reveste-se podia ver sua mão, que ele escondia do lado do
Aires pela primeira vez, em 1976, o seu rosto estava de uma dignidade existencial, o intertextualismo que coração. Então o abracei, senti que ele precisava de
em todas as bancas de revistas, em uma bela edição nela encontramos fortalece o argumento de que todos minha ajuda. ‘Mas, meu pobre Fulano, que aconte
de sua obra reunida. Impressionante esse poder da os livros podem ser apenas um mesmo livro e que, ceu? Como você está mudado!’ ele me respondeu: ‘É
literatura de nos levar a fazer conexões que se tornam além do acaso e da morte, o passado guarda o futuro sim, estou muito mudado’. Lentamente foi tirando
inesquecíveis em nossas vidas. entre pátios e jardins. a mão. Pude ver que era a garra de um pássaro.”
Era um ídolo em Buenos Aires aquele que, com No que concerne ao nosso país, desde o inicio de
relação ao Nobel, sempre fora preterido, embora hou sua atividade literária fora celebrado por Mário de Lucila Nogueira é escritora.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
CRÔNICA
Ana Braga
chico ludermir, HALLINA BELTRÃO e ricardo moura
Entra a cerveja,
sai a verdade
Lembro bem. Era simples escolher artesanato pernambucano. Fui atrás caixas de cerveja barata que não chega
uma cerveja nos anos 1990. Os de uma rede de tear. Reparando de à metade do sabor? É uma escolha de
botecos ao redor da universidade box em box, dei conta do sumiço Sofia. Sem exagero, a filosofia é tão
vendiam Brahma e Antártica. Kaiser, de outro item tão ou mais popular. parte da cerveja quanto a cevada.
só em último caso. Mais do que isso, As garrafinhas de aguardente. Nietzsche considerava que a
apenas em bares pingados, casas de Aquelas cujos nomes e rótulos mais embriaguez da cerveja liberava
importados e de amigos. Aliás, foi parecem piadas de Juca Chaves e o poder, a sensualidade e a
nessa época que conheci a mexicana que a gente leva de souvenir aos criatividade – e ao que tudo
Corona. E confesso que eu curtia mais amigos gringos. Encontrei apenas indica, o deus grego Dionísio era
a garrafa translúcida e o status da um e outro exemplar empoeirado. o seu companheiro imaginário de
bandinha de limão do que o próprio No mercado, ninguém sabia quando manguaça filosófica nos pubs de
líquido, que era do tipo pilsen leve o fornecimento voltaria ao normal Viena. É fato. A cerveja tem efeitos
e eu nem fazia ideia. Hoje, eu já não – se é que volta. Em tom saudosista, psicoativos e transforma a percepção
empunho uma long neck assim, o último freguês que me atendeu de quem bebe. Dá-se um outro
desavisadamente. Bebo cerveja chegou a dizer que a moda agora seria estado de consciência.
com tudo que ela tem dentro, seus outra. Distraída com a pechincha Charles Baudelaire escreveu, em
humores, dissabores e prazeres. da rede, sai dali sem perguntar qual Paraísos artificiais, que um homem
Quem, afora os egípcios que ganhavam nem por quê. Dias depois, Sandy que só bebe água tem um segredo
barris de cerveja para construir pirâmides com uma tulipa de Devassa na mão, a esconder de seus semelhantes.
e os caras que fizeram a fusão da Brahma num comercial de televisão. E eis que Talvez isso justifique as amizades
e da Antártica na Ambev, imaginou ocorreu uma hipótese: cervejas estão de copo. Quantas nasceram ontem
que a cerveja chegaria aos níveis de tomando o lugar até de aguardentes. à noite, nas mesas de bares, pubs e
consumo e conhecimento de hoje? Já A cerveja tornou-se onipresente. lojas de conveniência do mundo?
reparou nos maiores supermercados? E não dá mais para subjugar a bebida Plutarco – não dá para evitar os
Existem corredores inteiros dedicados à aos prazeres inferiores, digamos assim. gregos, quando o assunto é “tomar
bebida. Às vezes, nem as adegas fazem De fazer inveja a muitos títulos da uma” - dizia que a finalidade da
páreo. E as gôndolas mais parecem o enologia, o livro Cerveja & Filosofia (Tinta bebida era alimentar e aumentar
jogo War. Vê-se Alemanha, Bélgica, Negra Editorial, 2010) promove um a amizade. Já abracei, beijei e
Holanda, Japão, Dinamarca, Inglaterra, elogio à bebida, com uma coletânea conjuguei outros pretéritos – nem
Escócia, Irlanda, Itália, Estados Unidos, de artigos que desce rendonda sempre perfeitos - depois de
Argentina e México, só para citar algumas goela abaixo. Um deles me ajudou a algumas tulipas. Já declarei amor
nacionalidades. E quando se vai aos entender, muitos anos depois, aquela eterno a um completo desconhecido
SOBRE A AUTORA rótulos, outro mundo se abre. Tem larger, bandinha de limão na Corona. Trata e pedi paz para o mundo. Já chorei
dark larger, boc, ale, red ale, stout e suas sobre cerveja, amizade e caráter. Sim, no Omar Khayyam, boteco do tempo
Ana Braga é jornalista inúmeras subcategorias e subtipos. porque a bebida, além da estética, tem da universidade, que homenageava
e também atua na área Estava eu outro dia no Mercado ética. Se você tiver 50 reais para gastar o poeta pinguço. Enfim, já amarguei
de publicidade Público de São José, reduto da em cerveja, comprará uma caixa de muitas ressacas de cerveja, até saber
baixa boemia recifense e de algum cerveja realmente boa ou duas ou três que, quando ela entra, a verdade sai.
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depoimento
Terça-feira, 23 de novembro de 2010, três da tarde explicou que a livraria escolhida para o lançamento
no Rio. Eu tirava um cochilo antes do lançamento de – repito: dali a quatro horas, convites distribuídos,
Traduzindo Hannah, dali a quatro horas numa livraria da bufê contratado -, a tal livraria tinha sido alagada
zona sul. Convites distribuídos, bufê contratado, livros pelo rompimento de um cano. Um curto-circuito
estocados na loja: tudo pronto para o evento quando completou o quadro, com princípio de incêndio e
o telefone tocou. Achei que fosse mais um convidado interdição geral da loja. Carros do corpo de bombeiros
a lamentar a virtual ausência por qualquer motivo: bloqueavam a rua, interrompendo o tráfego. Enfim,
dor de coluna, aulas de mandarim às terças e quintas, o caos. Lançamento cancelado.
viagem ao Cazaquistão. Tudo muito informativo – e Pausa. Já passei por experiências absurdas antes.
desolador. A cada desculpa batia a impressão de que a Certa vez, sobrevoava a Patagônia argentina quando
noite seria um fracasso: meia dúzia de amigos piedosos aquelas máscaras de oxigênio caíram e as aero-
mordiscando salgadinhos na livraria inóspita. No meu moças entraram em pânico. Em suma, acontecia a
caso havia um agravante. famigerada “despressurização da cabine” – senha
O Rio vivia um surto de violência depois que bandi- mortal que a maioria dos passageiros finge ignorar
dos reagiram à ocupação policial de seus morros com nos anúncios de segurança. Não gritei nem vi de-
a queima de carros e ônibus pela cidade. O auge da sespero entre os passageiros. Estávamos em choque,
crise tinha acontecido dois dias antes, quando a ban- eu aferrado à poltrona, olhando pela janela, tentando
didagem retalhou bairros de norte a sul com ameaças entender as coisas.
e atentados que proibiram muita gente de voltar para Talvez os pessimistas reagissem com mais pro-
casa. Hotéis ficaram lotados de... cariocas! Dormiu-se priedade, confirmando premonições ou entregues
em lojas e escritórios, casas de amigos etc. Corria na a vícios mórbidos. Eu não tinha a que me entregar,
internet o papo de que a Rocinha ia invadir a zona sul a despreparado para o incidente que só acabaria
qualquer instante. Ninguém saía à noite (alguns, nem uma hora depois, com um pouso de emergência
de dia). Marcado havia três meses, meu lançamento em Buenos Aires.
resolveu coincidir com aquele momento adorável. Não estou livre de pressentimentos, claro. Como a
Quando o telefone tocou, às três da tarde, me pre- maioria das pessoas, tenho medo de más notícias. Sei
parei para a mesma cantilena: “estarei contigo em precisamente quais são elas e já até ensaiei reações.
pensamento, não faltarei ao próximo lançamento, vou Mas notícias tão absurdas como uma livraria alagada
comprar o livro amanhã mesmo” etc. Eu respondia e incendiada na véspera de meu lançamento, franca-
com as cortesias de praxe. Fazer o que? Mandar uma mente... Nunca fui doido o bastante para prever uma
van blindada buscar os convidados? coisa dessas. Bem disse um amigo: até os paranóicos
Atendi o telefone já resignado à sina: menos um no têm inimigos de verdade. E agora? Resumi a situação
lançamento. Mas quem escutei não era convidado, num conto: “Existem, em nossos caminhos, as coisas
parente, bandido. Uma moça da Editora Record, tão apropriadamente tristes ou felizes, belas ou feias, trá-
cordialmente quando possível, me dava a notícia que gicas ou serenas. E mesmo as coisas apropriadamente
nem a mente mais perversa e criativa teria imagina- impróprias. Existe, por outro lado, o incoerente, o
do. Se acontecesse num filme, o público diria que é descabido.” Como se reage ao descabido?
“coisa de cinema”. Mas não. Aquilo acontecia, sim - e Autografar o livro na calçada foi minha primeira
acontecia comigo! Muito franca e objetiva, a moça ideia. “Nem pensar”, descartou a moça da editora.
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Dali a pouco foi conseguida outra loja da mesma antes vermelha, agora azul -, vale conferir por que dados me esperavam. Autografado o livro, deram no pé
cadeia de livrarias, perto da loja original. Seguiram- ela vestia vermelho. antes que a noite e a bandidagem entrassem em com-
-se quatro horas de correria. Mandei centenas de Você ainda vai descobrir que, lá pela página 45, ela bustão. Outras pessoas – destemidas ou incautas – fo-
emails, pendurado no telefone. Amigos imprimiram disse preferir cores quentes. Conselho aos escritores: ram chegando aos poucos. Eu sorria, recitando o refrão
cartazes para afixá-los na vitrine da loja interdi- tenham paciência e humildade, esqueçam o relógio, aflito: muito obrigado, muito obrigado! Alguns tinham
tada. A editora transferiu o estoque de livros para saibam recomeçar o que for preciso - e, principal- deparado com a primeira livraria interditada, a maioria
o novo endereço e acionou o bufê enquanto uma mente, reconhecer essa necessidade. Não esperem foi avisada a tempo. Minha família e os mais íntimos
rádio anunciava a mudança. Uma corrente solidária aplausos pelo árduo trabalho tido naquele parágrafo animaram o salão, fazendo as honras da casa e dis-
aflorou, todos se telefonando, se escrevendo, dando particularmente rebuscado. Às vezes, o que mais traindo a pequena fila que ia se formando diante da
a notícia em blogs, Facebook, Orkut etc. Muitos me exigiu esforço está uma droga e o melhor do texto mesa de autógrafos.
ligavam já cientes do imprevisto, oferecendo ajuda, saiu num sopro. Abracei os queridos, matei saudades, sorri para
arregaçando as mangas, tentando salvar minha Traduzindo Hannah foi uma grande aventura, sem o fotógrafo. Procurava ser ligeiro nas dedicatórias,
agonizante noite de autógrafos. dúvida. Quando eu pensava ter terminado a história, sem invencionices para não atrasar a vida de quem
Havia semanas que eu me dedicava àquele lan- um terremoto criativo destruía seus pilares. A esta- conferia o relógio ou, simplesmente, cansava as
çamento depois de sete anos escrevendo o livro e bilidade só veio em 2008, quando pus o ponto final pernas na fila que foi crescendo, crescendo... Lá pe-
outros tantos procurando editora. A jornada épi- como quem chega ao cume do Everest. Agora faltava las oito horas o burburinho aumentou: gargalhadas,
ca tinha começado com uma ideia casual para chegar à lua – ou seja, publicar o livro. fotografias, vinho branco, crianças bagunceiras. A
um conto. Semanas depois, um amigo que lia o Eis uma fase ingrata: as coisas já não dependem de moça da editora não escondia o entusiasmo. En-
rascunho protestou: por que a pressa? “Vá com você (ou só de você). Ouve-se “não” de editoras, de tão me dei conta: a noite era um sucesso! Livraria
calma, isso dá um romance”. Será? Como quem agentes literários, de todo mundo. E os conselhos? Al- cheia, pessoas felizes, alvoroço. Apressadinhos já
não quer nada, aprofundei as pesquisas de época guns são úteis (no todo ou em parte), outros camuflam furavam a fila ou acenavam ao longe para mostrar
(Traduzindo Hannah se passa no Rio de Janeiro dos maldades ou merecem o esquecimento. As frustrações presença. Havia gente do Rio inteiro: zonas sul,
anos 30). Noites insones me lançaram ao desafio vêm em ondas avassaladoras que afogam quem não norte e oeste, subúrbios, até Niterói e Duque de
de transformar aquelas esquálidas páginas num persiste. Persisti, contando com o estímulo de amigos Caxias. Meu Deus, que alegria! A coisa só termi-
romance. Foram anos e anos, dias inteiros devota- e, muito especialmente, de duas queridas literatas. nou depois das onze. Hoje vejo as fotos e logo fico
dos ao desenvolvimento da narrativa, ao enrique- Editado o livro, abri um perfil no Facebook e Twitter emocionado (estão disponíveis no Facebook). Quem,
cimento dos personagens, à criação de subtramas para fazer a divulgação. Só no Facebook acabei con- ali, teria desconfiado da minha insegurança? Quem
para alinhavar – e alavancar – a história. quistando 200 amigos, todos maravilhosos. Não os diria que eu não passava de um pedinte? Que eu
Escrever ficção é interessante. Você fica vicia- conheço, nem sei quem são, mas acompanho suas sorvia cada sorriso, cada afeto, cada abraço como
do naquilo, divagando sobre detalhes, buscando vidas com lupa para descobrir que passaram as férias se fossem únicos? E eram.
novas soluções. Construir um mundo imaginário em Amsterdam, que reencontraram amigos de infân- Hoje sou o feliz devedor dos amigos que lá esti-
é desafiador porque não há limites formais para a cia, que comeram sushi no Leblon, que adoram cães e veram. E o melhor: todos chegaram em casa sosse-
criação. Sempre é possível melhorar. Quando um gatos, que detestam os políticos etc. Que coisa curiosa: gadamente. Se porventura alguém não chegou, se
capítulo parece pronto, surge uma nova ideia que ninguém tem unha encravada no Facebook! Meus 200 acabou dormindo fora ou coisa parecida, a culpa não
implode tudo (inclusive outros capítulos). Qualquer amigos estão fielmente retratados por Fernando Pessoa foi minha. Nem dos bandidos.
ajuste no texto exige atenção redobrada porque as no belo Poema em Linha Reta. Mas essa é outra história, quem sabe para o pró-
palavras têm dons mediúnicos e se comunicam com Pois bem. Seis horas do dia 23 de novembro de ximo livro?
parágrafos passados. Por exemplo: se você decide 2010, era preciso ir para a (outra) livraria e encarar o
trocar a roupa de sua personagem na página 112 – lançamento. Chegando lá, poucos e precavidos convi- Ronaldo Wrobel é autor de Traduzindo Hannah.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
INÉDITOS
HALLINA BELTRÃO
Um
maracujá
na gaveta
Bruno Albertim
HALLINA BELTRÃO
INÉDITOS
A família
Ronaldo Costa Fernandes
dos órfãos
Ele se perguntava quanto sua caixa de choro podia
suportar. Porque acreditava que a gente não produz
que uma cidade tinha duas mil almas e pensava
que a cidade era um grande cemitério.
lágrima ao infinito. O fígado tem um tamanho, o rim A mãe era pequena, mas a dor não se pergunta,
tem um tamanho, o órgão que jorra lágrima deve ter para doer, se o corpo é pequeno ou grande. A dor tem
um número limitado de água salgada. O que podia seu tamanho independente do tamanho do corpo em
chorar? Podia chorar um copo de lágrima? Podia que se hospeda. A professora se comprometeu com o
chorar uma chaleira de água? E que tal um balde? Um prefeito de levá-lo para uma cidade com sete milhões
balde deve ser demasiado. Por mais dor que se tenha de almas que era o Rio de Janeiro. Ela ia fazer um
ou mais capacidade tenha o nosso órgão que como o curso pela prefeitura e deixá-lo na casa de parentes,
rim trabalha com a água, achava que um balde era também pobres, também pequenos, também cheios
exagero. Passava pela sua cabeça que podia perder de dores. Ela ia deixá-lo na casa dos parentes da mãe.
líquido e ir minguando, quando viessem buscá- Ele só tinha viajado da casa dele até a escola. Agora
-lo encontrariam um menino muito menor que ele a viagem para outra escola demorava dias. Os homens
cercado de água como guri mijão. Mas há também o não deviam fazer viagens de dias. É sempre bom não
choro sem lágrima que é choro para dentro. A gente sair de casa. A professora pegou a mão dele e ia levar
fica encharcado de água e ninguém se dá conta. a mão dele para dar para a outra mão.
Ele não conhecia o mundo, mas o mundo também A mãe tinha se perdido dela mesma. Essa é a pior
não o conhecia. O mundo dele era muito reduzido, maneira de se perder, porque não adianta que os ou-
só as histórias tinham outro mundo maior. No mun- tros nos encontrem. A mãe abandonou a família e foi
do que ele conhecia nunca tinha visto um morto. viver o grande amor. Mas o grande amor, que seria o
Velório era uma palavra sussurrada e, como todas, pai, não sabia que ele era o grande amor. O pai tocava
as palavras sussurradas, uma palavra proibida. flauta. Certa vez ele viu um sujeito tocando flauta
Então ele pensava que velório era uma reunião na praça e ficou do lado dele. Foi a primeira vez que
de mortos. Quando o levaram ao velório da mãe, teve pai. Uma hora lá o flautista parou e perguntou:
muitos mortos vieram chorar em cima dele. Outros Quer um sanduíche? O pai nunca perguntou se ele
mortos o abraçavam. Existiam alguns mortos que queria um sanduíche porque o pai não tinha cara.
diziam, mas tão criança ainda e tão órfão. O pai E ninguém pode perguntar coisas para os outros se
havia morrido de outra morte: nunca existira. O não tem cara.
pai estava dentro dele como um espermatozoide, Ninguém sabe se a flauta do pai morreu. Ninguém
no resto o pai nasceu para ele morto. E a família da sabe o que foi feito da flauta do pai.
mãe morava no Rio de Janeiro. Ela tinha na sala um Teve medo foi dos corredores. E das muitas portas
pôster do Pão de Açúcar, então ele achava que no Rio dos corredores. Atrás de cada porta tem uma histó-
de Janeiro todo mundo morava no Pão de Açúcar. ria. A história dele, por exemplo, tinha uma porta.
Não gostou do velório. Primeiro, porque a mãe era Os dois, a professora e o menino, já tinha batido em
a única morta que não se movia, não chorava, não várias portas. Havia a porta do tio dele que morava
lhe dava pêsames e não lhe dizia coitado mas tão na Rocinha e a professora não queria levá-lo lá. Havia
SOBRE O AUTOR
pequeno e tão órfão. a porta da Favela do Jacarezinho mas a professora
Ronaldo Costa Fernandes, A mãe tinha a pobreza dentro dela. A mãe ficou não queria saber daquela porta para ele. Ela tinha
ganhou vários prêmios, órfã do marido logo no primeiro ano de sofrimento em mente a porta da tia Paula que era uma porta de
entre eles, o Casa de las junto. Sofrer junto não é prova de amor, é prova de cabeça de porco. O edifício era uma cidade espichada.
Américas. Seu mais recente matemática. Um sofrimento mais um sofrimento Uma meio favela espichada. Havia porta que estava
trabalho é o romance Um igual a dois sofrimentos. A mãe foi parar no inte- aberta e via-se lá dentro uma pobreza de interior.
homem é muito pouco rior do sofrimento. O sofrimento tinha prefeito, Subiram várias escadas porque não havia elevador.
ruas asfaltadas e duas mil almas. Ele ouvia falar Havia porta para o elevador, mas não havia elevador.
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PERNAMBUCO, JULHO 2011
Ele não queria entrar naquela casa. A professora o demônio até mesmo dentro de um copo com água mundo eram os mesmos que limpavam o mundo.
é que o botou lá dentro. A mulher disse que d. Paula fria. Ele se perguntava como o demônio, que vinha Quantos anos alongaram sua cara, furaram o rosto,
não estava porque d. Paula era manicure e estava no dos infernos, podia ser frio. Imaginava um inferno torceram o nariz, deram mais beiço ao beiço? A pe-
trabalho. Ele não sabia a profissão da mãe. Ela tinha polar, os mortos condenados não ao fogo eterno, mas numbra nunca o largou. Já nasceu com a penumbra.
duas profissões. A primeira profissão da mãe era ser ao frio eterno. Perdeu a sede? – a mulher perguntou. A pele mesmo é alvo da penumbra. Seus olhos só
mãe dele. A segunda profissão da mãe era existir. A Tomou a água mais para que tudo fizesse sentido. Ele alcançam a penumbra. Agora ela está ali, frente à
mãe não saía para o trabalho. Ela acordava e já es- pedira água porque tinha sede, logo deveria tomar o penumbra, para retornar de onde vieram. O tempo
tava de expediente. Não é fácil você ter a vida como copo d’água para matar a sede. Essa era a lógica do não conta por anos, mas por penumbras. A penumbra
profissão. Ele não sabia de que a mãe morreu. Ela foi mundo e ele tinha que seguir a lógica do mundo. Não é uma espécie de sujeira do tempo que não se pode
ficando cada vez menor, foi perdendo a voz, perdeu o poderia beber água sem ter sede, segurar o copo sem remover. Uma sujeira abjeta, feita da mesma matéria
emprego da vida e quando um dia o menino acordou ter pedido água, sentir calor e a boca seca e dizer que volátil que é o ar, embora possa aprisionar o ar e não
a mãe tinha se demitido da vida. tinha sede. O mundo é feito de ações encadeadas e aprisionar o tempo. Não o preocupa o tempo. Pensa
Ele tinha visto poucos rostos na minha vida. Entre naquele momento as ações estavam difusas e desen- nele como um homem acuado, que tem apenas seis
a casa e a escola havia poucos rostos. Ele não ima- cadeadas como um trem que não pudesse, mesmo balas para a sua arma. Nasceu apenas com seis balas,
ginava que se podia ver tantos rostos num só dia. Já com trilho, fazer vagão puxar vagão. não sabe quantas deflagrou e quantas lhe restam. Mas
estava tonto de ver a cidade giratória, porque o Rio Saíram dali mais perto do chão. Ele não tinha não se ilude. Não passará da sua munição que trouxe
de Janeiro, de dentro de um ônibus, é uma cidade percebido que a gente cresce e diminui várias vezes ao mundo ao nascer. A vida é mais ou menos isso:
de parque de diversões. Ele não tinha entrado num durante o dia. Ao entrar na casa da mulher, tinha um um revólver inútil que ao fim ficará sem munição e
ônibus. Tinha entrado num trem-fantasma ou num tamanho; ao sair de lá, o chão estava tão perto que só servirá para dar o tiro final que é a morte. Ela está
cinema. A janela do ônibus era uma telinha de tele- podia ver as imperfeições de todos os chãos. Nada lá, olhando pela janela, trinta anos depois da visita
visão – a televisão mesmo ele nunca tinha visto ela mais descontínuo, diverso e imperfeito que o chão. que fez a ela e ela negou ser ela. Nunca foi empregada
antes, a televisão – e em vez de passar uma história Ele pensava que nasceu para viver no chão. Que sua de trem. Nunca foi empregada doméstica. Negou
passava era prédio, prédio, prédio e rosto rosto rosto. vida sempre foi no chão e que não passaria do chão. ser sua tia Paula. Eh, bem. Agora que ganhou a vida
Não tinha nenhum sentimento pela mulher. Nem Tinha mesmo a sensação de que o chão e ele eram feito um cão – os cães morrem sem consciência de
ódio, nem simpatia. A mulher era um objeto a mais aparentados e que só não poderia dizer que o chão o que vivem e de que morrem, mas como todo bicho
na casa. A única diferença é que o objeto respirava, pariu porque conheceu a mãe que era outra espécie tem a suspeita de sobreviver – agora ele poderia
andava, ofegava e olhava com os olhos miúdos de de chão. A professora apertava tanto sua mão que não dizer que não morava ali, que trabalhava na Rede
quem recua. A penumbra já é os óculos escuros da percebia a manopla que lhe torcia os dedos. Não se Ferroviária e que limpava os trens e que era apenas
natureza, mas a professora não tivera os óculos es- importava de a professora apertar seus dedos porque um empregado doméstico. Ele mesmo não sabia onde
curos dela porque os óculos eram escuro mas eram todo o corpo estava apertado como se tivesse sido estava nem quando chegaria. Mas não. Acolheu quem
de grau. Se ela clareasse as vistas, corria o perigo de tomado por uma gigantesca e constritora manopla. não o acolheu. Cuidava de quem não o cuidou. Deu
ver embaçado. Então a dúvida dela era se via fora Tudo lhe doía, todos os ossos doíam, porém o que a última luz à última penumbra dela. Ela nem sabe
de foco ou se via tudo em preto e branco, mais para mais o imprensava, constringia, triturava era o chão que existe, como cão que só reconhece sua existência
preto que para branco. Ele queria que professora fosse cheio de impurezas que atapetou definitivamente quando o coração dispara de medo.
sua mãe. A pobreza da professora era instruída e ela seus pensamentos. É como se ele negasse que fosse o sobrinho dela.
sabia quais estados o rio São Francisco cortava. Uma A mulher disse que não era a mulher. Ela era outra Ela agora não tinha mais família, porque os desme-
mulher que sabe quais estados o rio São Francisco mulher. Ela era apenas uma mulher de limpeza. moriados pertencem à linhagem dos mortos. O que
corre é uma mulher que não abandona criança nem Mesmo sendo criança, achou estranho alguém tão nos faz vivos é a memória e sem ela somos corpos que
passa fome na vida. Mas a professora não podia ficar pobre ter alguém mais pobre para limpar a pobreza qualquer um pode ser dono. Quem era dono dele era
com ele porque tinha uma cambada de filhos que dela. A mulher via o mundo sujo. Tudo o que tinha sua memória. A tia não sabia que a vida era uma es-
necessitavam dos conhecimentos dela do rio São diante dela era sujeira. O papel dela no mundo, desde piral, não um círculo, mas algo que roda, roda e roda
Francisco. E havia lei, e havia a família da mãe que, que se entendia por gente, era limpar o mundo. E e nunca termina como se fosse uma água contínua a
por ordem do juizado de menores, ele deveria ser limpar o mundo não era fácil porque as pessoas nunca descer pelo ralo. A memória da tia era um ralo, não
entregue, no escuro, na penumbra, em preto e branco, estavam contentes com o trabalho dela de limpar conseguia reter a água do passado. Não se lembrava
uma família que não sabia por quais estados o rio São o mundo. Ela disse que a mulher sua tia não sabia que quem cuidava dela hoje foi quem ela negou.
Francisco atravessava. quando voltaria. Como não sabia? Havia viajado a Hoje quem toma conta dela é um desconhecido. Um
Ele tinha ficado imobilizado. Não conseguia pegar trabalho. A professora estranhou porque pobre não homem que não pertence à família dos mortos. Os
o copo d’água que ela trouxera da cozinha. O copo viaja a trabalho. Mas a mulher que limpava a casa mortos não têm parentes. Ou melhor, o único parente
também estava quente. Pensou que todas as coisas no da tia e limpava o mundo desde que se entendeu dos mortos são os mortos que fazem a grande família
Rio fossem quentes. A cabeça das pessoas, as pernas por gente – e gente pobre ainda por cima – disse dos mortos. Escurece. Há muito que escureceu no
das pessoas, as emoções das pessoas. A mãe tinha que a tia trabalhava limpando trem. Ela limpava a pensamento da tia e ela não se lembrava do dia em
mais temperatura que as outras pessoas. No povoado casa de minha tia. Minha tia limpava o trem que os que se passou por empregada para não ficar com a
em que moravam, de madrugada havia um vento passageiros sujavam – e como sujavam. Mas ela não tutela dele. Foi tutelado pela vida. A vida não é um
peregrino e estrangeiro que passava desavisado pela era manicure? Falta de trabalho. O mundo se dividia bom pai, a vida não é uma boa mãe. A vida pertence
cidade. Aquilo não deveria ser a rota daquele vento assim. Os que sujavam o mundo e os que limpavam à família dos órfãos. Somos todos órfãos. A grande
frio. A mãe dizia que era o demônio. A mãe achava o mundo. Na maioria das vezes os que sujavam o família dos vivos é composta de órfãos.
22
PERNAMBUCO, JULHO 2011
resenhas
HALLINA BELTRÃO SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
para militantes
colombiana Laura Restrepo fosse elementar. Achava para recuperar casamento quando nossos “vizinhos”
(convidada da Flip 2011) que atentava contra toda falido; mãe impõe silêncio são tão empenhados em
problematiza no (quase) norma de sobrevivência, sobre o passado. Doze jamais permitir que o
que sobreviveram
autobiográfico Heróis demais. quase de decência, essa anos mais tarde, um longo passado seja amortecido
“Meu primeiro, e último, predileção pela comida diálogo entre mãe e filho ou esquecido. E mais:
livro com essa temática”, branca e mole, o leite, o procura colar/entender o com esse romance,
já revelou em entrevista. pão, o sorvete de baunilha, episódio. Até onde uma Laura nos revela um jeito
Colombiana Laura Restrepo Ex-jornalista e, desde os
anos 1990, um dos maiores
a massa, como se temesse
levar à boca coisas
ditadura interfere nas
relações pessoais? Até
delicado e peculiar de
recuperar e problematizar
promove “biografia” da sua nomes da literatura latino- surpreendentes, escuras ou onde ela dá o sentido da lembranças pessoais,
americana, ela aqui revela desconhecidas. Como se o vida desses adversários? que insistem em dizer
própria geração de guerrilheiros os ganhos e perdas da interior dele só aceitasse as Questionamentos que a tanto sobre todos nós.
sua geração na militância primeiras comidas, as de autora faz ecoar em Heróis
Schneider Carpeggiani contra a ditadura antes do medo”. demais. Questionamentos
militar, denominador Mas seu ar indignado típicos da literatura de
- político - comum do não se restringe às novas língua hispânica.
Continente entre as gerações. Olha para o “Não quis escrever
décadas de 1960 e 1970. que “restou” dos seus uma história de militantes
Seu acerto de contas contemporâneos com arrependidos. Quis
com o passado não seria certo pesar. A persona mostrar como a tirania
completo sem um certo que Laura criou para permeia tudo, até os que
olhar de desdém voltado esse livro fala de pessoas estão contra ela. A luta
a quem não cresceu/ viciadas em ditadura, política cria uma relação
amadureceu sob o de homens e mulheres estreita com o inimigo.
fantasma fascista. Essa que amadureceram Até que ponto você não
perspectiva é explorada como zumbis, à caça dos termina se parecendo com
na frustração de uma mãe mesmos velhos fantasmas, ele? Na relação entre mãe
com os hábitos alimentares quando inimigo já é outro. e filho isso fica claro. O romance
do filho, que se nega a Assim, eternamente único meio que o filho tem
comer frutas ou legumes: presos à história para chegar ao pai é uma Heróis demais
“Se sentia indignada, política, esses homens e mãe que não quer recordar Autora - Laura Restrepo
preocupada e violentada mulheres lidam com suas o passado”, comentou. Editora - Companhia das Letras
por ele ter semelhante decisões pessoais como Heróis demais nos faz Preço - R$ 39,50
aversão por qualquer guerrilheiros: na trama pensar no estranho Páginas - 235
DIVULGAÇÃO
PRESTÍGIO
Mariza Prêmio FIL de Literatura -Feira Internacional
Pontes do Livro de Guadalajara -inscreve até o dia 22
Um dos prêmios literários mexicano do século passado.
mais cobiçados do mundo - Ficou também famoso por
além do prestígio, paga US$ seu trabalho como fotógrafo
150 mil ao vencedor – está (caso da célebre foto ao lado).
com inscrições abertas até O prêmio visa reconhecer a
22 de julho. O Prêmio FIL de trajetória de um autor vivo,
Literatura é organizado pela que tenha um valioso trabalho
Feira Internacional do Livro de criação em qualquer gênero
divulgação DIVULGAÇÃO
prateleira
O PALÁCIO DE INVERNO
Misturando História e ficção, o romance
coloca o jovem russo Geórgui Jachmenev
no centro dos acontecimentos políticos
que culminaram na morte do czar Nicolau
II e toda sua família, quando eclodiu
a revolução Bolchevique, no início do
século 20. O adolescente impulsivo da
periferia transforma-se no homem que
convive com o luxo e as intrigas palacianas,
sempre atormentado pela impossibilidade
de decidir livremente sobre sua vida. A
narrativa se alterna entre presente e passado,
entre a Russia dos czares e a Inglaterra de
Margareth Thatcher,
como pano de fundo
para uma história de
amor cheia de mistério.
FICÇÃO
Ricardo Lísias
hallina beltrão
Sobre a rapidez
I. De vez em quando sinto um história. Esse tipo de autor de tentasse algo contra mim. Acho andar para cima e para baixo
mal-estar. Não é muito forte repente vai gritar. Escritores que fiz tudo errado. Não achei chorando, pedi ajuda para um
e, para ser sincero, até gosto claros e límpidos acreditam nenhum lugar silencioso. Não carro da polícia. Os guardas
dele. Para compreendê-lo, na linguagem. Eles gritam consegui entender nada. Não voltaram comigo ao meu
preciso pensar com calma, o e são ingênuos. A geração- existe nada que me desespere apartamento. O André tinha
que sempre me agrada muito. blog, as pessoas que gostam mais do que isso. Não e não. ido embora, mas me deixara
Vou para um lugar silencioso do Facebook, todos acreditam Quando acordei, fui chamar um bilhete. Não se preocupa,
e me deito. Prefiro que não na linguagem. Quem faz as o André para tomar café e o não vai acontecer nada com
seja no chão. Quanto mais coisas rápido demais não pensa flagrei cortando a mão esquerda você. Tenho vergonha de dizer,
silêncio, melhor. Eu me sinto em nada. Eu me inscrevi no com um canivete. Tive uma mas me senti aliviado. Resolvi
muito bem em lugares com Twitter. Parecia que estavam me vertigem diante dele e, quando passar o mês inteiro pensando
pouco ou nenhum ruído. Não esfaqueando. Os mini golpes retomei o equilíbrio, comecei no que fazer para ajudá-lo.
respeito pessoas que gritam. não eram fundos o suficiente a gritar. Não me lembro de Uma semana depois, quando
Essa gente que fica nervosa e, para atingir o meu pulmão, mas tudo, mas sei que falei na eu estava indo para um lugar
espontaneamente, sai berrando. machucaram a minha pele. minha frente você não vai fazer silencioso, me ligaram dizendo
O fato é que não gosto de III. Tive que desligar o isso. Era final de 2008 e eu que o André tinha se enforcado.
pessoas espontâneas. Elas não computador e ir para um lugar estava muito infeliz. Ele riu e VI.Então, saí andando.
pensam antes de agir. Uma silencioso. Mas não consegui continuou se cortando. Fiquei Não lembro mais o que eu fiz
pessoa que faz algo de repente, pensar na minha personalidade. com medo de impedi-lo à força. naquele dia. Quando fui ver
seja o que for, é vulgar. Tudo o O Twitter não me serviu nem para Hoje sei que ele não reagiria, o Twitter e fiquei angustiado
que é muito veloz e espontâneo isso. O auge da espontaneidade mas naquele momento eu só com a velocidade com que as
me incomoda. Eu sinto aquele e da frase feita me deixou enxergava o canivete. E o André mensagens passavam, procurei
mal-estar. É um paradoxo: só com um mal-estar físico. rindo. Saí do apartamento. um lugar silencioso e acabei me
aparece quando tenho muita Procurei pelo corpo, mas não Eu o abandonei porque fiquei recordando do André. Agora,
coisa para fazer ao mesmo achei nenhum corte. Mesmo com medo. Fui atrás de um em março de 2011, não estou
tempo. Não poderei pensar assim eu me sentia como se lugar silencioso, mas só achei mais infeliz e queria que o
nele antes de realizá-las. Mas tivessem acabado de ferir a barulho. Só tinha barulho em meu amigão estivesse comigo.
para compreender o tal mal minha pele com um canivete. São Paulo, muito barulho. Sofro com essa história de que
estar, preciso ficar sem fazer Não tinham sido golpes muito Não encontrei nenhum lugar as pessoas que se suicidam
nada. Sempre que eu tenho profundos, mas angustiava. silencioso para tentar entender não vão para o céu. Semana
que resolver alguma coisa Procurei um lugar silencioso e o que estava acontecendo e passada entrei na igreja de
rápido demais, acabo com uma me deitei, mas dessa vez não isso me incomoda até hoje. Pinheiros. Estava um silêncio
sensação desagradável, portanto. consegui pensar na minha V. Nem no Parque do maravilhoso. Por favor, Senhor
II. Não consigo usar o Facebook personalidade. Lembrei-me, Ibirapuera encontrei algum Jesus, eu queria dizer que o
por mais de dez minutos sem em lugar disso, das últimas silêncio. Não consigo pensar André merece ir para o céu.
que essa sensação ruim apareça. visitas do meu amigo André. muito rápido. Comecei a ficar Ele merece muito ir para o céu,
Então, tenho que me deitar Ele estava com o braço todo cada vez mais desesperado. Senhor Jesus. Ricardo, essa
para compreender a origem cortado e me mostrava rindo. Subi e desci a Teodoro Sampaio história é besteira: pessoas que
de tudo isso. Mas eu gosto, Os cortes tinham acabado de duas vezes. Entrei em todos se suicidam também podem
apesar de tudo, porque tenho ser feitos: as cicatrizes ainda os cemitérios da região, mas vir para o céu. O André está
a oportunidade de pensar na estavam com casca. Fiquei não encontrei um cantinho aí, Senhor Jesus? Está sim,
minha personalidade. Não vejo perplexo e perguntei o que tinha silencioso. Muita gente estava Ricardo, o seu amigo veio
nenhuma graça em um blog, acontecido. Ele continuou rindo. sendo enterrada naquele dia. para o céu. Eu me levantei na
SOBRE O AUTOR por exemplo. Tudo é muito Quando fui dormir, percebi, por Quando eu me sinto oprimido mesma hora. Poucas vezes
rápido e superficial. Os blogs são causa do barulho que ele fazia (por não estar conseguindo estive tão feliz como agora em
Ricardo Lísias é autor, espontâneos. A geração-blog é no quarto de hóspedes, a origem pensar com muita rapidez), março de 2011. Antes de sair
entre outros, de Livro dos vulgar. As pessoas espontâneas dos ferimentos. Assustado, preciso achar um lugar da Igreja, pedi para o Senhor
mandarins e Anna O. e são de fato ridículas. Elas me tranquei a minha porta. silencioso. Não consigo pensar Jesus dizer para o André que
outras histórias lembram muito os escritores IV. Eu me envergonho de muito rápido. Naquele dia não eu queria muito convidá-lo
que querem contar uma boa ter achado que o André talvez encontrei silêncio e depois de para o meu casamento.