Afonso Arinos - A Garupa e Outros Contos

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A Garupa e Outros Contos

Literatura em minha casa Conto Volume 2


Sylvia Orthof
Marina Colasanti
Paulo Mendes Campos Machado de Assis
Afonso Arinos
Impresso braille em volume nico, do volume 2, da 1 edio, 2002, da editora Martins
Fontes Ltda.
Volume nico
Ministrio da Educao
Instituto Benjamin Constant
Diviso de Imprensa Braille
Av. Pasteur, 350/368 - Urca 22290-240 Rio de Janeiro RJ - Brasil
Tel.: (0xx21) 2543-1119
http://www.ibcnet.org.br
- 2003
Copyright (C) 2002
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Ilustraes:
Lcia Brando Consultoria:
Alba Regina Spinardi Bueno
Preparao do original:
Helena Guimares Bittencourt
Ivete Batista dos Santos
ISBN 85-336-1582-5
Todos os direitos reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340
01325-000 So Paulo SP - Brasil
Fone: (0xx11) 3241-3677
Fax: (0xx11) 3105-6867
e-mail: [email protected]
http:www.martinsfontes.com.br
<I>
[Nota da digitalizao: destinando-se o presente texto a ser lido por meios electrnicos,
foi retirada do texto a formatao braille e a Nota Oficial da Comisso Brasileira do
Braille, bem como a seco "Seu Livro em Braille".]

<VII>
Dados Internacionais de catalogao na publicao (CIP)
(Cmara Brasileira do livro, SP, Brasil)
A Garupa, e outros contos /
Sylvia Orthof...
[et al.] ; introduo e apresentao dos autores e das obras Elias Jos ; ilustraes Lcia
Brando. - So Paulo : Martins Fontes, 2002 - (Coleo literatura em minha casa ; v.2)
Outros autores : Marina Colasanti, Paulo Mendes Campos, Machado de Assis, Afonso
Arinos
ISBN 85-336-1582-5
1. Contos brasileiros - Coletneas - Literatura infanto-juvenil
I. Jos, Elias.
II. Orthof, Sylvia, 1932-1997.
III. Colasanti, Marina.
IV. Campos, Paulo Mendes, 1922-1991.
V. Assis, Machado, 1839-1908.
VI. Arinos, Afonso, 1868-1916.
VII. Srie.
02-2611 CDD-028`.5
ndices para catlogo sistemtico:
1. Contos : Antologia : Literatura infanto-juvenil 028`.5
2. Contos : Antologia : Literatura juvenil 028`.5
ISBN 85-336-1582-5
<IX>
Caro aluno,
Voc est recebendo uma coleo composta por cinco livros de diferentes tipos de texto:
poesia, conto, novela, literatura universal e teatro ou literatura popular.
A importncia desses livros muito grande: com eles, voc ir descobrir muitas coisas
novas, conhecer pessoas diferentes e mundos diferentes. Voc tambm ir saber que
existem muitas maneiras de se escrever e que cada uma delas serve para passar ao leitor,
isto :
para voc, um tipo de mensagem.
Esta coleo foi feita para que voc possa ler quando quiser e o texto que quiser. Eles vo
estar todos ali, aguardando uma oportunidade para mostrar-lhe novos lugares, novas

pessoas e despertar novos - e velhos sentimentos.


No esquea, tambm, que esta uma pequena coleo. H muitos outros livros mundo
afora e voc poder descobri-los na biblioteca de sua escola ou de sua cidade.
Esperamos que esta coleo possa contribuir para aumentar sua vontade de conhecer o
mundo da leitura e aventurar-se no universo das palavras.
Aproveite para contar a seus amigos e parentes sobre essa aventura, que est apenas
comeando.

<XI>
Um recado
Agora que voc escreveu seu nome neste livro, ele seu. Guarde-o em casa, leve-o para a
escola, leia-o quantas vezes quiser. A cada leitura voc vai conhec-lo melhor,
compreend-lo melhor, como se fosse um amigo.
Leia-o para seus pais, seus irmos, as crianas da vizinhana, enfim, para quem tiver
vontade de ouvir.
Fazer um livro no s escrever a histria, os poemas ou os contos que esto nele. Esses
textos precisam ser apresentados de um jeito agradvel, para que sua leitura d maior
prazer. E, no final, ainda houve gente que leu e revisou cada pgina, para verificar se
estava tudo correto. Todos trabalharam pensando no leitor, que voc.
Chegou sua vez de aproveitar. Boa leitura!
A turma da editora
<XIII>
Por que ler contos
Amigo leitor
Voc vai ler agora um livro de contos. O que um conto?
O escritor Mrio de Andrade dizia: conto tudo o que voc chamar de conto. No
esclareceu muita coisa, no acha?
Vamos falar mais claro: conto uma narrativa que pode ser contada oralmente ou por
escrito. Pode-se dizer que o ser humano j surgiu contando contos. Tudo o que via,
descobria ou pensava dava origem a uma histria, que ele aumentava ou modificava
usando sua imaginao. Antes do surgimento da escrita, os desenhos nas cavernas foram
uma maneira de registrar essas histrias.
Mas aqui vamos tratar do conto escrito. O conto mais curto do que a novela e do que o
romance. Tem um nmero reduzido de personagens e conta apenas uma histria, que se
passa num curto espao de tempo e em poucos lugares.
Essas personagens podem ser pessoas, bichos ou mquinas e elementos da natureza que
adquirem vida. Os contos podem ser romnticos, de aventura, de terror. Tambm h os
contos psicolgicos, que falam mais do interior das personagens, do que elas sentem. Os
contos maravilhosos so contos de fadas e bruxas, reis e rainhas, prncipes e princesas.
Alguns contos narram histrias que, mesmo no sendo verdadeiras, poderiam muito bem
ter acontecido na vida real.

Outros se inspiram em histrias verdadeiras para criar situaes absurdas, totalmente


imaginrias, que nunca poderiam acontecer na realidade. Enfim, h contos de todos os
tipos.
<6>
Geralmente o conto no tem uma histria muito movimentada.
Ele deixa transparecer mais os sentimentos das personagens do que suas aes. Por isso,
ele faz pensar, desperta alegria ou tristeza, faz
<XV>
o leitor sentir o gosto de se emocionar.
Ento, vamos conhecer alguns dos melhores contos criados por escritores brasileiros?
Elias Jos
Os contos e seus autores
A garupa e outros contos uma antologia, uma reunio de contos.
Uma antologia nunca organizada ao acaso, sempre existe um critrio para selecionar
determinados textos. Neste livro, foram includos cinco contos de autores brasileiros
importantes.
"Bruzundunga da Silva", de Sylvia Orthof, um conto humorstico, de uma autora de
grande importncia para a literatura infanto-juvenil atual.
"Palavras aladas", de Marina Colasanti, no se passa no Brasil nem em outro lugar
determinado. No um conto que faz rir. uma crtica social, que faz refletir muito.
"Fbula eleitoral para crianas", de Paulo Mendes Campos, tem mesmo algumas
caractersticas de fbula: personagens do reino animal, vegetal e mineral confabulam
como se fossem humanos.
"Conto de escola" de Machado
<XVII>
de Assis, o autor mais importante da literatura brasileira. uma histria de corrupo e
denncia, dentro do ambiente rgido de uma sala de aula do sculo XIX, no Rio de
Janeiro.
"A garupa", escrito por Afonso Arinos no incio do sculo XX, retrata o mundo rural
mineiro. Este foi um dos primeiros autores brasileiros a trazer para a literatura a
linguagem do serto.
Na leitura destes contos, portanto, voc vai viver uma grande variedade de emoes.
Elias Jos
Sylvia Orthof nasceu em 3 de setembro de 1932, no Rio de Janeiro, e faleceu em
Petrpolis (RJ), em 24 de julho de 1997. Foi professora de televiso e teatro, onde se
consagrou como atriz, diretora, cengrafa e escritora. Deixou vasta obra escrita que se
caracteriza pelo humor e pela inteligncia. Ganhou inmeros prmios pelos seus
trabalhos.
Marina Colasanti nasceu na Etipia (hoje Eritia) em 1937. Viveu na Itlia e veio para o
Brasil, onde mora. Trabalhou na imprensa como editora e cronista, foi tradutora de

dezena de livros e publicou vrias obras. Seus contos so muito apreciados, e o mais
famoso Uma idia toda azul.
Paulo Mendes Campos nasceu em Recife (PE), em 28 de fevereiro de 1922, e morreu em
1991, na cidade do Rio de Janeiro.
<XIX>
Ficou famoso por seus contos. Publicou poemas, foi hbil tradutor de lngua inglesa e
francesa.
(Joaquim Maria) Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21
de junho de 1839, e faleceu na mesma cidade em 29 de setembro de 1908. considerado
o nosso maior escritor. Deixou livros de poemas, contos e romances.
Afonso Arinos (de Melo Franco) nasceu em Paracatu (MG), em 1868, e faleceu em
Barcelona (Espanha), em 1916. Foi jornalista e escritor, destacando-se por seus contos
regionais mineiros.
Lcia Brando desenhista autodidata, nascida em So Paulo, em 24 de dezembro de
1959.
Quando adolescente, cursou a Escola Panamericana de Arte. Fez ilustraes para vrias
editoras, revistas e jornais (Globo, Abril, Folha de S. Paulo, etc.).

<XXI>
[]
Tire o melhor proveito deste livro e procure conserv-lo. Ele uma fonte permanente de
consulta.
<XXV>
Sumrio
SYLVIA ORTHOF Bruzundunga da Silva ..................... 1
MARINA COLASANTI Palavras aladas ............: 13
PAULO MENDES CAMPOS Fbula eleitoral para crianas ............:: 19
MACHADO DE ASSIS Conto de escola ............: 26
AFONSO ARINOS A garupa ..................:: 46
Glossrio ..................: 67
<12>

garupa e outros contos>


SYLVIA ORTHOF Bruzundunga da Silva
Cada livro tem uma histria... mas este livro que voc
est comeando a ler um livro diferente. A comear pelo nome: Bruzundunga da Silva.
Voc quer saber quem Bruzundunga da Silva? Eu vou contar, s pra voc, a vida dele.
Bruzundunga nasceu numa casa em Laranjeiras, no Rio de Janeiro. Nasceu numa tarde de
muito calor, no dia 6 de fevereiro de 1985.
A me do livro, a escritora que o escreveu, ficou logo aflita quando Bruzundunga chegou
neste mundo. Porque Bruzundunga chegou, olhou em volta... e ficou encharcado.
- Eu no sabia que livro chorava, eu no sabia! - disse a escritora, buscando um leno
para enxugar os olhos do seu filho-livro. - Por que voc est chorando, hein? - perguntou
pra ele.
<13>
- que eu sou um livro, j nasci sabendo o que me espera.
Nasci, olhei a para os meus irmos-livros da sua estante, mame... bu, bu... eles esto
com um ar to sofrido! A me do livro entendeu o filho, botou no colo, ninou.
Bruzundunga foi crescendo: completou a primeira pgina.
Para comemorar um aniversrio to importante, a Dona Me de Bruzundunga fez uma
festa, com bolo de letras, teatro de fantoches, bolas de soprar. O tio, Dicionrio de Ingls,
veio muito importante e cantou o "Parabns", dizendo "Happy Birthday to You".
Mas, de repente... Bruzundunga pulou no colo da tia Enciclopdia e recomeou a chorar:
- Bu, Bu!
- O que foi, filho meu? Mas o que ser que aconteceu? perguntou a Dona Mame de
Bruzundunga.
- No sei, me... uma aflio... tenho medo... medo... medo...
- Medo de fantasmas? - perguntou um livro de Hisrias de Botar Cabelo Em P, dando
um susto em Bruzundunga, pois veio voando, vestido de lenol.
- Ui, ui... que susto, bu, bu! - berrou o livro.
Mame Dona Me de Bruzundunga no entendia o motivo da aflio de seu filho. Mas
mesmo assim o compreendia, porque tentava entender, mas no entendia, entende? No?
Nem eu. S sei que era assim.
O livro Bruzundunga cresceu, completou as pginas necessrias para ir ao encontro da
luta pela vida. Cresceu meio magrela, sempre dando umas choradinhas. A Dona Me de
Bruzundunga, ao contrrio, nervosa com o nervosismo do filho, desatou a comer farofa
com caldo de feijo. Era s o livro-filho demonstrar um nervosinho, Dona Me de
Bruzundunga corria pra cozinha e desatava a comer, pra ficar calma. O livro ficou
magrela, a Dona Me, ao contrrio, j estava da grossura do NOVO DICIONRIO
AURLIO, por parte de pai, e de ...E O VENTO LEVOU, por parte de me.
So livros gordssimos, talvez porque tenham tido problemas e tenham comeado a
devorar feijo com farofa, sei l!
Bruzundunga da Silva, enfim, nervosrrimo, foi para a luta pela vida, fora do escritrio
da mame. Ainda no estava bem com jeito de livro, tinha palavras risxxx, quero dizer,
riscaxxxx, ora, tinha riscos e xxxxx, remendos...
enfim, era ainda um papel, ou melhor, vrias folhas de papel, com cpias de papel
carbono, devidamente numeradas e grampeadas.

Bruzundunga foi posto num envelope. A Dona Me de Bruzundunga escreveu o nome da


editora no tal envelope e enviou as cpias das pginas escritas, aquelas que tinham sido
copiadas com carbono.
A editora ficava em So Paulo. Bruzundunga iria pelo correio, l do Largo do Machado,
que um correio que fica numa praa que tem de tudo: tem trinta e nove mil pombos,
uma igreja, um buraco de metr, bancos com namorados, desquitados, divorciados e
amigos em geral. Tem tambm crianas, barulho de buzinas... e o tal correio.
<15>
Bruzundunga tremia dentro do envelope, chorando baixo. Chorou tanto, que o envelope
derreteu, furando, e Bruzundunga fugiu. Logo que Bruzundunga escapuliu, a Dona Me
de Bruzundunga, muito distrada, foi
colocar o envelope no correio, mas jogou-o dentro do buraco do metr, l do Largo do
Machado. Em vez de selo, Dona Me de Bruzundunga havia comprado uma passagem de
metr, que colara, com cuspe, no envelope.
Depois, Dona Me de Bruzundunga atravessou a praa, o tal Largo do Machado, para
comer feijo com farofa num restaurante da esquina, por nervosismo.
Me quando se separa de filho fica assim, geralmente. Tem algumas que ficam aliviadas,
dependendo do momento...
porque nenhuma pessoa igual a outra.
Bruzundunga da Silva, livre do seu envelope, que foi enviado de metr pra no sei onde,
ficou assim, fungando, no meio dos pombos do Largo do Machado.
Bruzundunga era branco. Veio um vento, abriu suas pginas... e de repente ele voou junto
com os pombos.
Olhando de longe, c de baixo, ningum saberia dizer quem era pombo e quem era
Bruzundunga. Bruzundunga ficou assustado, vendo a igreja l embaixo... mas bateu suas
asas de papel, voou e gostou.
Foi a que Bruzundunga conheceu Bernardina, uma pomba rolia, bonitona. Dizem at
que Bernardina e Bruzundunga tiveram um caso de amor, um caso rpido, porm lindo:
coisa de muita asa e vo.
<17>
A noite chegou. Todos os pombos foram comer milho.
No Largo do Machado tem uma velha, chamada Dona Pipoca, que todas as tardes leva
milho para os pombos.
Bruzundunga, achando que era pombo, viu os pombos comerem milho e... nhoc!
avanou, tambm. Mas no conseguiu engolir. Ficou tossindo, tossindo... at que
Bernardina deu um tapa nas costas dele. O tapa foito forte que Bruzundunga subiu,
subiu, depois desceu, desceu... e foi planando, planando, at cair dentro de uma coisa
escura e quente.
- Ui, ui... bu... bu... - choramingou Bruzundunga.
- Mas o meu filho! - gritou a me, a Dona Me de Bruzundunga, pescando o lambuzado
filhote de dentro do prato de caldo de feijo. Ela no sara ainda do restaurante.
- Me! - exclamou o filho.
- Filho! - exclamou a me.
- Mezinha queridinha! - reexclamou o filho.
- Filhotinhozinho queridozinho! - reexclamou a me.
Os dois, abraadssimos, voltaram para casa. As cigarras continuavam a cantar, porque

ainda era vero.


Finalmente, depois de muito conversarem, depois de muito choro, feijo e farofa, os dois
resolveram que tinham que crescer.
A me despediu-se do filho, levou-o para a caixa do correio mesmo.
O envelope tinha uma fralda dentro, que era para o caso de Bruzundunga chorar e evitar
que o envelope ficasse molhado e tudo acontecesse de novo.
<18>
O editor leu o livro, ou melhor, o editor leu as pginas, fez um contrato com a escritora.
Teve um momento em que a escritora pediu mais um dinheirinho, meio envergonhada...
mas, afinal, escrever livros era a profisso dela, no ? E tudo ficou combinado.
Bruzundunga ficou conhecendo o ilustrador, que desenhou a histria da sua vida. Depois,
foi para a grfica... e saiu assim, livro mesmo.
Alis, ele virou milhares de exemplares iguais.
Quando ele est numa livraria, todo bonito, exposto para ser vendido, e algum chega,
olha pra ele, gosta e compra... a, Bruzundunga fica feliz, feliz... e parece at que
engorda, pois fica inchado.
Mas tem certas gentes que olham para um exemplar de Bruzundunga, torcem o nariz e
dizem:
- Gastar dinheiro com livro? Para qu? Criana l, depois no liga... dinheiro jogado
fora!
Quando isso acontece, Bruzundunga chora, se desmancha todo: molha a estante, desbota,
encharca a livraria.
Vira um problema, dizendo:
- por causa disso que eu j chorava, quando ainda era um beb-papel-texto-e-pauta...
bu... bu... Os meus irmos livros, logo que eu nasci, me contaram das dificuldades
pelas quais passa um livro... bu... livro sofre!
Quando Bruzundunga completou a segunda edio, a ele j
ficou menos choro. Olhava bem pra cara das pessoas que no gastavam com livros, mas
gastavam com sorvetes e sanduches.
E quando uma daquelas gentes dizia:
<19>
- Comprar livro besteira... A gente compra um livro para uma criana, depois a criana
l e joga pro lado...
Bruzundunga olhava bem pra cara dessas gentes, botava a lngua de fora, fazia uma
careta amassada e respondia, malcriado:
- ? , no ? Quer dizer que livro besteira, porque a pessoa l e depois joga para um
lado? E sorvete? A pessoa come... e depois? Depois... o que que acontece com o sorvete
e o sanduche, hein? Depois de comido, digerido... vira o qu, hein? E quer saber de uma
coisa? Voc no merece livro, t? Quem quiser gostar de mim, vai gostar de mim... e
pode at, de vez em quando, me querer de novo, reler minha histria. Falei e disse!
Bruzundunga no queria contar uma histria assim, que diz
que livro importante, coisas de moral de histria. Ele nem foi escrito para isso... mas
que, sem querer, livro tambm sente, n? E Bruzundunga resolveu falar bem dele mesmo,
porque Bruzundunga resolveu, ora!
Mas neste instante Bruzundunga est inchando de felicidade!
Porque voc legal: gosta de sorvete, sanduche... e livro... porque, se no gostasse, no

ia querer saber de Bruzundunga at aqui, no mesmo?


E a Dona Me de Bruzundunga?
Ela est com medo das crticas sobre Bruzundunga... est
nervosa... e come feijo com farofa... e mais
<20>
feijo com farofa... mas, nos intervalos, l e escreve, ora! isso a.
E Bernardina, a pomba?
Ela no gosta de ler: come pipoca... e descome, come e descome... mas no liga pra
livrarias. Sabe por qu?
Bernardina mope, no usa culos porque vaidosa. E, sem culos, ela s gosta de livro
quando pensa que livro pombo, como aconteceu com Bruzundunga.
Tem pomba que assim, pombas!
<22>
MARINA COLASSANTI
Palavras Aladas
Silncio era a coisa de que aquele rei mais gostava. E de que, a cada dia, mais parecia
gostar. Qualquer rudo, dizia, era faca em seus ouvidos.
Por isso, muito jovem ainda, mandou construir altssimos muros ao redor do castelo. E
logo, no satisfeito, ordenou que por cima dos muros, e por cima das torres, por cima dos
telhados e dos jardins, passasse imensa redoma de vidro.
Agora sim, nenhum som entrava no castelo. O mundo podia gritar l fora, que dentro
nada se ouviria. E mesmo a tempestade fez-se muda, sem que rolar de trovo ou correr de
vento perturbassem a serenidade das sedas.
- Ouam que preciosidade - dizia o rei. E toda a corte se calava ouvindo
embevecidamente coisa alguma.
Mas, se os sons no podiam entrar, verdade que tambm no podiam sair. Qualquer
palavra dita,
<23>
qualquer espirro, soluo, canto, ficava vagando prisioneiro do castelo, sem que lhe
fossem de valia fresta de janela ou porta esquecida aberta, Pois, se ainda era possvel
escapar s paredes. nada os libertava da redoma.
Aos poucos, tempo passando sem que ningum lhe ouvisse os passos, palavras foram se
acumulando pelos cantos, frases serpentearam na superfcie dos mveis, interjeies
salpicaram as tapearias, um miado de gato arranhou os corredores, E tudo teria
continuado assim, se um dia, no exato momento em que sua majestade recebia um
embaixador estrangeiro, no atravessasse a sala do trono uma frase desgarrada. Frase de
cozinheiro que, sobrepondo-se aos elogios reais, mandou o embaixador depenar, bem
depressa, uma galinha.
Mais do que os ouvidos, a frase feriu o orgulho do rei.
Furioso, deu ordens para que todos os sons usados fossem recolhidos, e para sempre
trancados no mais profundo calabouo.
Durante dias os cortesos empenharam-se naquele novo esporte que os levava a sacudir

cortinas e a rastejar sob os mveis. A audio certeira abatia exclamaes em pleno vo.
Algemava rimas, desentocava cochichos. Uma condessa encheu um cesto com um cento
de acentos. Um marqus de monculo fez montinhos de monosslabos. E houve at quem
garantisse ter apanhado entre os dedos delicado no de uma donzela. Enfim,
divertiram-se tanto,
<25>
to entusiasmados ficaram com a tarefa, que acabaram por instituir a Temporada Anual
de Caa Palavra.
De temporada em temporada, esvaziava-se o castelo de seus sonhos, enchia-se o
calabouo de conversas. A tal
ponto que o momento chegou em que ali no cabia mais sequer o quase silncio de uma
vrgula. E o mordomo real viu-se obrigado a transferir secretamente parte dos sons para
aposentos esquecidos do primeiro andar.
Foi portanto por acaso que o rei passou diante de um desses cmodos. E passando ouviu
um: murmrio, rasgo de conversa. Pronto a reclamar, j a mo pousava na maaneta,
quando o calor daquela voz o reteve. E, inclinado
fechadura para melhor ouvir, o rei colheu as lavas, palavras, com que um jovem, de
joelhos talvez, derramava sua paixo aos ps da amada.
A lembrana daquelas palavras pareceu voltar ao rei de muito longe, atravessando o
tempo, ardendo novamente no peito. E em cada uma ele reconheceu com surpresa sua
prpria voz, sua jovem paixo. Era sua aquela conversa de amor h tantos anos trancada.
Fio da longa meada do passado, vinha agora envolv-lo, relig-lo a si mesmo, exigindo
sair de calabouos.
- Que se abram as portas! - gritou comovido, pela primeira vez gostando do seu grito, ele
que sempre havia falado to baixo. E escancarou os batentes sua frente.
- Que se abram as portas! - correu o grito da sala ao salo, da escada ao jardim, muro
acima, at esbarrar na cpula de vidro, e voltar, batendo no queixo majestoso.
<26>
- Que se derrube a redoma! - lanou ento o rei
com todo o poder de seus pulmes. - Que se abatam os muros!
E desta vez vai o grito por entre o estilhaar, subindo, planando, pssaro-grito que no azul
se afasta, trazendo atrs de si em revoada frases, cantigas, epstolas, ditados, sonetos,
epopias, discursos e recados, e ao longe - maritacas - um bando de risadas. Sons que no
espao se espalham levando ao mundo a vida do castelo, e que, aos poucos, em liberdade
se vo.
<28>
PAULO MENDES CAMPOS
Fbula eleitoral para crianas
Um dia, as coisas da natureza quiseram eleger o rei ou a rainha do universo. Os trs
reinos entraram logo a confabular.
Animais, vegetais e minerais comearam a viver uma vida agitada de surtos eloqentes,
manobras, recados furtivos, mensagens cifradas, promessas mirabolantes, ardis, intrigas,
palpites, conversinhas ao p do ouvido.

Entre os bichos era um tumulto formidvel. Bandos de periquitos saam em caravana


eleitoral, matilhas de ces discursavam dentro da noite, cfilas de camelos percorriam os
desertos, formigas realizavam comcios fantsticos, a rainha das abelhas passava com o
seu squito, sem falar nos cardumes de peixes, nos lobos em alcatias pelos montes, nas
manadas de bfalos pelas savanas, nas revoadas instantneas dos pombos-correios.
Todas as qualidades eram postas prova: a astcia da raposa, a agilidade dos felinos, o
engenho dos cupins, o
<29>
siso da coruja, o poder de intriga das serpentes, a picardia do zorro, a doura da pomba, a
teimosia do burro, o cosmopolitismo dos ratos.
O leo, o tigre, a pantera, o leopardo e os outros queriam derramar muito sangue; os
pssaros coloridos faziam frente nica para indicar um pssaro colorido; j os pssaros
que cantam decidiam apontar como candidato o rouxinol, a cotovia, a patativa; as
cegonhas, irresolutas, passavam as tardes pensando; os patos selvagens desfilavam no
cu; as andorinhas, tmidas, buscavam o refgio das igrejas; e a guia, fascista de
nascena, pretendia organizar l no alto uma conferncia de que s participassem as aves
de rapina, como o falco, o condor e o gavio-de-penacho.
Os papagaios viviam a arengar bobagens pelas rvores; a raposa corria as vrzeas
articulando uma candidatura, ningum sabia qual; os macacos eram vaiados quando
alegavam a semelhana com o homem; o cavalo se insinuou candidato, dando a sua
condio de antigo senador; o pavo, escondendo os ps, exibia a cauda; nos brejos, os
sapos repetiam slogans
montonos; os jacars e as tartarugas ressonavam na beira dos rios, que passavam
levando sussurros quase imperceptveis, a conversar as pedras e as ervas das margens; o
rato do campo ia de vez em quando se aconselhar com o rato da cidade; os gansos
citavam velhos costumes romanos; certos bichos, como o boi e a bis, invocavam direitos
divinos, que no eram mais levados a srio;
as hienas e os chacais opinavam por um
<30>
conselho de notveis, a ser constitudo pelos animais ferozes, que lhes deixavam os
restos; at a ameba, coitada, queria ser candidata, dizendo-se a origem da vida.
A mosca azul voava e revoava por todos os cantos.
Quem ser o rei ou a rainha do universo? De dia, as borboletas andavam como doidas
pelos campos, noite, os vaga-lumes acendiam as suas luzes.
Nas profundezas da terra, o carbono fazia estranhas combinaes com o hidrognio. O
diamante e o ouro reluziam de esperana. As estrelas pretendiam uma coalizo de todo o
espao constelado em torno de Vnus, causando cimes Lua.
As flores distribuam perfumes. rvores agitadas recebiam recados que os ventos traziam
de longe. A floresta pensava eleger no um rei, mas um colegiado de carvalhos, velhos,
cheios de experincia. E por toda a flora era um germinar, um brotar, um verdejar, um
florescer. Os monocotiledneos discordavam dos dicotiledneos, os fanergamos
acusavam de hipocrisia os criptgamos. A plena campanha eleitoral com todos os
incidentes. S os ciprestes continuavam fechados em sua indiferena.
A despeito dos interesses em choque, e de tantas contradies, preciso dizer, a bem da
verdade, que o pleito transcorreu com a mxima lisura.
Ao fim de tudo, a escolha no podia ter sido mais feliz, pois os trs reinos unidos

elegeram a rosa rainha suprema do universo.


<31>
Sim, a rosa, a rosa na sua simplicidade tocada de esplendor, presa na sua haste entre o cu
e a terra, eterna e efmera, a rosa, carne, esprito e p. E, para entronizar a rainha, o dia se
iluminou com a sua luz mais clara, o mar se fez manso, os pssaros cantaram com
inspirao, as rvores se puseram mais verdes e mais altas, as flores vestiram roupagens
de gala, os seixos rolaram alegremente nas praias, os juncos das lagoas se inclinaram em
reverncia, as nuvens se desfraldaram como cortinas de gaze sobre o berilo. No fundo do
mar era uma alegria silenciosa e solene como um te-dum em uma catedral
verde-escura, os polvos gesticulando em cmara lenta, os peixes e as medusas passando
sem barulho.
Entre os seres humanos, s as crianas sabiam que era o dia da entronizao da rosa, e
nada contaram a ningum. Mas pelo jardim onde se achava a rosa, expectante no seu
recato soberano, passava naquela manh um homem feio e preocupado. Era um candidato
a qualquer coisa, a vereador, a deputado, a Presidente da Repblica, no se sabe ao certo.
Distrado com as suas ambies, ele colheu a rainha do universo, que entrou logo a
fenecer em suas mos midas. Depois, olhou e viu que se tratava de uma bela rosa, uma
rosa digna de se oferecer a uma namorada. Mas ele no tinha namorada. Mal-me-quer,
bem-me-quer, mal-me-quer... Ele comeou a desfolhar a rosa s para saber se dessa vez
seria eleito: Cmara de vereadores, de deputados ou curul da Presidncia da
Repblica, no se sabe ao certo. E a rosa morreu.
<32>
E foi por isso que o dia se fechou de repente, o cu ficou escuro, os animais uivaram nos
bosques, os pssaros sumiram, o vento se desatou sobre o mar agora encapelado, o raio e
o trovo tomaram conta da noite sem estrelas, e as crianas na hora do jantar perderam a
fome. Tinha morrido a rainha do universo.
Mas nas trevas desabrochou outra rosa para iluminar com a sua beleza o jardim
amanhecido.
<33>
MACHADO DE ASSIS
Conto de Escola
A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840.
Naquele dia - uma segunda-feira, do ms de maio - deixei-me estar alguns instantes na
Rua da Princesa a ver onde iria brincar amanh. Hesitava entre o Morro de So Diego e o
Campo de Sant'Ana, que no era ento esse parque atual, construo de gentleman, mas
um espao rstico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos.
Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola.
E guiei para a escola.
Aqui vai a razo.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das
mos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai
doam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, rspido e
intolerante. Sonhava

<35>
para mim uma grande posio comercial, e tinha nsia de me ver com os elementos
mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de
capitalistas que tinham comeado ao balco. Ora, foi a lembrana do ltimo castigo que
me levou naquela manh para o colgio. No era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para no ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou
na sala trs ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em
chinelas de cordovo, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, cala branca e tesa e
grande colarinho cado. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqenta anos ou mais.
Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rap e o leno vermelho, p-los na
gaveta;
depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de p durante a
entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; comearam os trabalhos.
- Seu Pilar, eu preciso falar com voc - disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo esse pequeno, e era mole, aplicado, inteligncia tarda. Raimundo
gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqenta
minutos; vencia com o tempo o que no podia fazer logo com o crebro. Reunia a isso
um grande medo ao pai. Era uma criana fina, plida, cara doente; raramente estava
alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com
ele do que conosco.
- O que que voc quer?
<36>
- Logo - respondeu ele com voz trmula.
Comeou a lio de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola;
mas era. No digo tambm que era dos mais inteligentes, por um escrpulo fcil
de entender e de excelente efeito no estilo, mas no tenho outra convico. Note-se que
no era plido nem mofino:
tinha boas cores e msculos de ferro. Na lio de escrita, por exemplo, acabava sempre
antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tbua, ocupao
sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingnua.
Naquele dia foi a mesma coisa; to depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do
mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a
admirativa, a dubitativa e a cogitativa. No lhes punha esses nomes, pobre estudante de
primeiras letras que era;
mas, instintivamente, dava-lhes essas expresses. Os outros foram acabando; no tive
remdio seno acabar tambm, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo.
Agora que ficava preso, ardia por andar l fora, e recapitulava o campo e o morro,
pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Amrico, o Carlos das Escadinhas,
a fina flor do bairro e do gnero humano. Para cmulo de desespero, vi
atravs das vidraas da escola, no claro azul do cu, por cima do Morro do Livramento,
um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma
coisa soberba. E eu na escola,
<37>
sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramtica nos joelhos.
- Fui um bobo em vir - disse eu ao Raimundo.

- No diga isso - murmurou ele.


Olhei para ele; estava mais plido. Ento lembrou-me outra vez que queria pedir-me
alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rpido, disseme que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
- Seu Pilar... - murmurou ele da a alguns minutos.
- Que ?
- Voc...
- Voc qu?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos.
Um desses, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa
circunstncia, pediu alguns minutos mais de espera.
Confesso que comeava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo e vi que parecia
atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscriminao; mas podia ser
tambm alguma coisa entre eles.
Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que ns.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe
baixo, com instncia, que me dissesse o que era, que ningum cuidava dele nem de mim.
Ou, ento, de tarde...
- De tarde, no - interrompeu-me ele -, no pode ser de tarde.
- Ento agora...
- Papai est olhando.
<38>
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas
vezes com os olhos, para traz-lo mais aperreado: Mas ns tambm ramos finos;
metemos o nariz
no livro e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, trs ou quatro, que
ele lia devagar, mastigando as idias e as paixes. No esqueam que estvamos ento no
fim da Regncia, e que era grande a agitao pblica. Policarpo tinha decerto algum
partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para ns, era a
palmatria.
E essa l estava, pendurada do portal da janela, direita, com os seus cinco olhos do
diabo. Era s levantar a mo, despendur-la e brandi-la, com a fora do costume, que no
era pouca. E da, pode ser que alguma vez as paixes polticas dominassem nele a ponto
de poupar-nos uma ou outra correo.
Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os
olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a
valer.
No fim de algum tempo - dez ou doze minutos - Raimundo meteu a mo no bolso das
calas e olhou para mim.
- Sabe o que tenho aqui?
- No.
- Uma pratinha que mame me deu.
- Hoje?
- No, no outro dia, quando fiz anos...
- Pratinha de verdade?
- De verdade.

<39>
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido
que doze vintns ou dois tostes, no me lembra; mas era uma moeda, e tal
moeda que me fez pular o sangue no corao. Raimundo revolveu em mim o olhar
plido, depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caoando,
mas ele jurou que no.
- Mas ento voc fica sem ela?
- Mame depois me arranja outra. Ela tem muitas que vov lhe deixou, numa caixinha;
algumas so de ouro.
Voc quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mo disfaradamente, depois de olhar para a mesa do
mestre. Raimundo recuou a mo dele e deu boca um gesto amarelo, que queria sorrir.
Em seguida props-me um negcio, uma troca de servios;
ele me daria a moeda, e eu lhe explicaria um ponto da lio de sintaxe. No conseguira
reter nada do livro, e estava com medo do pai. E conclua a proposta esfregando a
pratinha nos joelhos...
Tive uma sensao esquisita. No que eu possusse da virtude uma idia antes prpria
de homem; no tambm que no fosse fcil empregar uma ou outra mentira de criana.
Sabamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca
de lio e dinheiro, compra franca, positiva, toma l, d c; tal foi a causa da sensao.
Fiquei a olhar para ele, toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lio era difcil, e que o Raimundo, no o tendo
aprendido, recorria a um
<40>
meio que lhe pareceu til para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por
favor, alcan-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes; mas parece que a lembrana
das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e no aprender
como queria - e pode ser mesmo que em alguma ocasio lhe tivesse ensinado mal -,
parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor - mas queria
assegurar-lhe a eficcia, e da recorreu moeda que a me lhe dera e que ele guardava
como relquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfreg-la nos joelhos,
minha vista, como uma tentao... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e
para mim, que s trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio,
grosso, azinhavrado...
No queria receb-la, e custava-me recus-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler,
com tal interesse, que lhe pingava o rap do nariz. - Ande, tome - dizia-me baixinho o
filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o
mestre no visse nada, que mal havia? E ele no podia ver nada, estava agarrado aos
jornais, lendo com fogo, com indignao...
- Tome, tome...
Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em ns; disse ao Raimundo que
esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, ento dissimulei; mas da a pouco,
deitei-lhe outra vez o olho e - tanto se ilude a vontade!
- no lhe vi mais nada. Ento cobrei nimo.
- D c...
<42>

Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calas, com um


alvoroo que no posso definir.
C estava ela comigo, pegadinha perna. Restava prestar o servio, ensinar a lio, e no
me demorei em faz-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a
explicao em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de ateno.
Sentia-se que despendia um esforo cinco ou seis vezes maior para aprender um nada;
mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em ns, com um riso que me
pareceu mau. Disfarcei; mas da a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do
mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco,
impaciente. Sorri para ele e ele no sorriu; ao contrrio, franziu a testa, o que lhe deu um
aspecto ameaador. O corao bateu-me muito.
- Precisamos muito cuidado - disse eu ao Raimundo.
- Diga-me isso s - murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, c no bolso, lembrava-me o
contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarando muito; depois, tornei a olhar para o
Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. No
preciso dizer que tambm eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse;
mas nem o relgio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este
lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamaes, com gestos
<43>
de ombros, com uma ou duas pancadinhas na mesa. E l fora, no cu azul, por cima do
morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir
ter com ele. Imaginei-me ali, com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha
no bolso das calas, que eu no daria a ningum, nem que me serrassem;
guard-la-ia em casa, dizendo mame que a tinha achado na rua.
Para que me no fugisse, ia-a apalpando, roando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo
pelo tato a inscrio com uma grande vontade de espi-la.
- Oh! seu Pilar! - bradou o mestre, com voz de trovo.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me s pressas. Dei com o mestre,
olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao p da mesa, em p, o Curvelo.
Pareceu-me adivinhar tudo.
- Venha c! - bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela conscincia dentro um par de olhos
pontudos; depois chamou o filho.
Toda a escola tinha parado; ningum mais lia, ningum fazia um s movimento. Eu,
conquanto no tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
- Ento o senhor recebe dinheiro para ensinar as lies aos outros? - disse-me o
Policarpo.
- Eu...
- D c a moeda que esse seu colega lhe deu! - clamou.
No obedeci logo, mas no pude negar nada. Continuei
a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a
<44>
moeda, e eu no resisti mais, meti a mo no bolso, vagarosamente, saquei-a e entregueilha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o brao e

atirou-a rua:
E ento disse-nos uma poro de coisas duras, que tanto o filho como eu acabvamos de
praticar uma ao feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo amos ser
castigados.
Aqui pegou da palmatria.
- Perdo, seu mestre... - solucei eu.
- No h perdo! D c a mo! d c! vamos! sem-vergonha! d c a mo!
- Mas, seu mestre...
- Olhe que pior!
Estendi-lhe a mo direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos
outros, at completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a
vez do filho, e foi a mesma coisa; no lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos.
Acabou, pregou-nos outro sermo. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou
que, se repetssemos o negcio, apanharamos tal
castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhes! tratantes!
faltos de brio!
Eu, por mim, tinha a cara no cho. No ousava fitar ningum, sentia todos os olhos em
ns. Recolhi-me ao banco, soluando, fustigado pelos improprios do mestre. Na sala
arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ningum faria igual
negcio. Creio que o prprio Curvelo enfiara de medo. No olhei logo para ele, c dentro
de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que sassemos, to certo como trs e dois
serem cinco.
<45>
Da a algum tempo olhei para ele; ele tambm olhava para mim, mas desviou a cara, e
penso que empalideceu.
Comps-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo.
Comeou a variar de atitude, agitando-se toa, coando os joelhos, o nariz. Pode ser at
que se arrependesse de nos ter denunciado; e, na verdade, por que denunciar-nos?
Em que que lhe tirvamos alguma coisa?
"Tu me pagas! to duro como osso!", dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e samos; ele foi adiante, apressado, e eu no queria brigar ali mesmo,
na Rua do Costa, perto do colgio; havia de ser na rua larga de So Joaquim. Quando,
porm, cheguei esquina, j o no vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou
loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas,
ningum me deu notcia. De tarde faltou escola.
Em casa no contei nada, claro; mas para explicar as mos inchadas, menti a minha
me, disse-lhe no tinha sabido a lio. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois
meninos, tanto o da denncia como o da moeda. E sonhei com a moeda;
sonhei que, ao tornar escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem
medo nem escrpulos...
De manh, acordei cedo. A idia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia
estava esplndido, um dia de maio, sol magnfico, ar brando, sem contar as calas novas
que minha me me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Sa de
casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalm. Piquei o passo para que ningum
chegasse antes de mim escola; ainda assim
<46>

no andei to depressa que amarrotasse as calas. No, que elas eram bonitas! Mirava-as,
fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalho de fuzileiros, tambor frente, rufando. No
podia ouvir isso quieto. Os soldados vinham batendo o p rpido, igual, direita, esquerda,
ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comicho
nos ps, e tive mpeto de ir atrs deles.
J lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... olhei
para um e outro lado; afinal, no sei como foi, entrei a marchar tambm ao som do rufo,
creio que cantarolando alguma coisa:
Rato na casaca... No fui escola, acompanhei os fuzileiros, e depois enfiei pela Sade,
e acabei a manh na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calas enxovalhadas, sem
pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram
eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupo,
outro da delao; mas o diabo do tambor...
<48>
AFONSO ARINOS
A garupa
Samos para o campeio com a fresca da madrugada.
Tnhamos de ir longe e de pousar no campo. Eu tomava conta da eguada, ele era
vaqueiro. Vizinhos de retiro na fazenda de meu amo, companheiros de muitos anos, no
largvamos um do outro. Sempre que havia uma folgazinha, ou ele vinha para o meu
rancho, ou eu ia para o rancho dele.
s vezes, quando meu amo queria perguntar por ns aos outros vaqueiros e camaradas,
dizia:
- Onde esto a corda e a caamba?
Vanc bem pode imaginar, patro, que tbua eu no carrego, que dor me no di bem no
fundo do corao, desde aquele triste dia.
Como eu lhe ia dizendo, ns samos com a fresca. Por sinal que, naquele dia, compadre
Quinca estava alegre, animado como poucas vezes. Ainda me lembra que o cavalo dele,
um castanho estrelo calado dos quatro ps, a
<49>
modo que no queria sair do terreiro. Quando ns fomos passando perto do cocho da
porta, ou ele viu alguma coisa l dentro ou que, o diacho do cavalinho virou nos ps.
O defunto Joaquim - coitado! Deus lhe d o cu! juntou o bicho nas esporas, jogou-o para
a frente e, num galo, quase ralou a perna no rebuo do telhado de mei'gua dos bezerros.
Samos.
Quando fomos confrontando com a lagoa da Caiara ele ganhou o trilho para umas
barrocas, l embaixo, onde diziam que duas novilhas tinham dado cria e que um dos
bezerros estava com bicheira no umbigo.
Eu torci para o logradouro das guas, c para a banda do cerrado de cima.
- Est bom. Ento, at, compadre!
- Se Deus quiser, meu compadre!
No sei o que falou por dentro dele, porque, naquele mesmo suflagrante, ele virou para

mim e disse:
- Qual, compadre! Vamos juntos. Assim como assim, a gente no pode chegar casa hoje.
Pois ento, a gente viageia junto, e da gua Limpa eu toro l para Fundo, para pegar as
novilhas; vanc apanha l adiante o caminho do logradouro.
Eu j ia indo um pedao, quando dei de rdeas para trs e ajuntei-me outra vez com o
compadre. Parece que ele estava adivinhando!
E fomos indo, conversa tira conversa, caso puxa caso.
Eta, dia grande de meu Deus!
<50>
Ainda na beira de um corguinho, l adiante, eu tirei dos alforjes um embornal com
farinha, fiz um foguinho e assamos um naco de carne-seca, bem gorda e bem gostosa,
louvado seja Deus! Bebemos um gole d'gua e tocamos.
A, j na virada do dia, o compadre me disse:
- Compadre, vanc vai andando, que eu vou descer quele buraco. Pode ter alguma rs
ali. A modo que eu vi relampear o lombo daquela novilha chumbadinha, que anda sumida
faz
muito tempo.
Ele foi descendo para o buraco e eu segui meu caminho pelos altos. Com pouca dvida,
ouvi um grito grande e dodo:
- Aiiii!
Acudi logo:
- Que l, compadre! - e apertei nas esporas o meu queimado.
No le conto nada, patrozinho! Quando cheguei l, o castanho galopava com os arreios e
meu compadre estava estendido numa moita de capim, com a cabea meio para baixo e a
mo apertada no peito.
- Que isto, meu compadre? No h de ser nada, com o favor de Deus!
Apalpei o homem, levantei-lhe a cabea, arrastei-o para um capim, encostei-o ali, chamei
por ele, esfreguei-lhe o corpo, corri l embaixo, num olho-d'gua, enchi o chapu, quis
dar-lhe de beber, sacudi-o, virei, mexi: nada!
Estava tudo acabado! O compadre morrera de repente; s
Deus foi testemunha.
<51>
E agora, como , Benedito Pires? Peguei a imaginar como era, como no era: eu sozinho
e Deus, ou melhor, abaixo de Deus, o pobre do Benedito Pires; afora eu, o defunto e os
dois bichos, o meu cavalo e o dele. Imaginei, imaginei... Dali
casa era um pedao de cho, umas cinco lguas boas; ao arraial, tambm cinco lguas.
Tanto fazia ir casa, como ao arraial. Mais perto, nenhum morador, nem sinal de gente!
Largar meu compadre, eu no podia: amigo amigo! Demais, estava ficando tarde. At
eu ir buscar gente e voltar, o corpo ficava entregue aos bichos do mato, ona, ariranha,
tatu-peba, tatu-canastra... Nem bom falar! Levar o corpo para a casa e de l para o
arraial, era andar dez lguas, no contando o tempo de ajuntar gente em casa para
carregar a rede. Assim, assentei que o melhor era fazer o que eu fiz. Distncia por
distncia, decidi levar o compadre direito para o arraial onde h igreja e cemitrio.
Mas, ir como? A que estava a coisa. Pobre do compadre!
Banzei um pedacinho e tirei o lao da garupa. Ns, campeiros, no largamos o nosso
lao. Antes de ficar duro o defunto, passei o lao embaixo dos braos dele - coitado! -

joguei a ponta por cima do galho de um jatob e suspendi o corpo no ar. Ento, montei a
cavalo e fiquei bem debaixo dos ps do defunto. Fui descendo o corpo devagarinho,
abrindo-lhe as pernas e escarranchando-o na garupa.
Quando vi que estava bem engarupado, passei-lhe os braos por baixo dos meus e
amarrei-lhe as mos diante do meu peito. Assim ficou, grudado comigo. O cavalo dele
atufou-se no cerrado.
<52>
- L se avenha! - pensei. - Tomara eu tempo para cuidar do pobre do dono!
Caminho para o arraial era um modo de falar. Estrada mesmo no havia: mal-mal uns
trilhos de gado, uns cortando os outros, tranando-se pelos campos e sumindo-se nos
cerrades.
Tomei as alturas e corri as esporas no meu queimado, que, louvado Deus, era bicho de
fiana; nunca me deixou a p e andou sempre bem arreadinho.
O sol j estava some-no-some atrs dos morros; a barra do cu, cor de aafro; as jas
cantavam de l, as perdizes respondiam de c, to triste!
Quando eu ganhei o espinhao da serra, l em cima, as nossas sombras, muito compridas,
estendiam as cabeas at ao fundo do boqueiro.
Era tempo de escuro. O que ainda me valeu, abaixo de Deus, foi que estava chegando o
meio do ano, e nessa ocasio, a estrela do pastor nasce de tarde e alumia pela noite
adentro.
Enquanto foi dia, ainda que bem; mas, quando a noite fechou deveras e eu no tinha no
meio daquele campo outra claridade seno a da estrela, s Noss'enhor sabe por que no
acompanhei o compadre para o outro mundo, rodando por alguma perambeira, ou caindo
com o seu corpo no fundo de algum groto.
Nos cerrades, ou nos matos, como no da beira do ribeiro, eu no enxergava, s vezes,
nem as orelhas do meu queimado, que descia os topes gemendo. O compadre, a rente. O
que vale que "macho que geme, a carga no teme", l diz o ditado.
<54>
Toquei para diante: sobe morro, desce morro, vara chapada, fura mato, corta cerrado.
salta crrego - eu fui andando sempre. O defunto vinha com o chapu de couro preso no
pescoo pela barbela e cado para a carcunda. Quando o queimado trotava um pouco mais
depressa, o chapu fazia pum, pum, pum. O compadre a modo que estava esfriando
demais.
No sei se era porque fosse mesmo tempo de frio, eu peguei a sentir nas costas uma coisa
que me gelava os ossos e chegava a me esfriar o corao. Jesus! que frira aquela!
A noite ia fechando, fechando. Eu j seguia no sei
como, pois tinha de andar s pelo rumo. O queimado, s vezes, refugava aqui, fugia
dacol, cheirava as moitas e bufava. Pelo barulho d'gua, eu vi que ns amos chegando
beira do ribeiro. Tinha a de atravessar uma mataria braba, por um trilho de gado.
Insensivelmente, eu fugia de um galho, negava o corpo a outro, virando na sela campeira.
A cabea do compadre, que, no princpio, batia de l para c e, s vezes, escangotava,
endureceu, e o queixo dele, com a marcha do animal, me martelava a ap.
Fui tocando. Dentro da mataria, passava um ou outro vaga-lume, e havia uma voz triste,
grossa, vagarosa, de algum pssaro da noite que eu no conheo e que cantava num tom
s, muito compassado, zoando, zoando...
Em certa hora parecia que meu cavalo marchava num terreno oco: ao baque das passadas

respondia l no fundo outro baque e o som rolava como um trovo longe. A ramaria
estava cerrada por cima de minha cabea, que nem
<55>
a coberta do meu rancho. O trilho a modo que ia ficando esconso, porque o queimado no
sabia onde pisar; chegou uma horinha em que ele pegou; a patinhar para cima, para
baixo, de uma banda e de outra, sem adiantar um passo.
O bicho parecia que estava ganhando fora para fazer alguma.
No levou muito tempo, ele mergulhou aqui para sair l
adiante, descendo ao fundo de um buraco e galgando um tope aos arrancos, escorrega
aqui, firma acol.
Nesse vaivm, nesse balano dos diabos, o corpo do compadre pendia pra l, pra c. Uma
vez ou outra, ele ia arcando, arcando; a cara dele chegava mais perto da minha e - Deus
me perdoe! - pensei at que ele queria me olhar no rosto.
Eu ia tocando toda-vida. Mas, aquele frio, ih! aquele frio foi crescendo, foi me descendo
para os ps, subindo para os ombros, estendendo-se para os braos e encarangando-me os
dedos. Eu j quase no senti as rdeas, nem os estribos.
A, por Deus! eu no enxergava nem as pontas das orelhas do queimado; a escurido
fechou de todo e o cavalo no pde romper. Corri-lhe as esporas; o bicho era de esprito,
eu bem sabia; mas bufava, bufava, cheirando alguma coisa na frente e refugava... Tanto
apertei o bicho nas esporas, que, de repente, ele suspendeu as mos no ar... O corpo do
compadre me puxou para trs, mas eu no perdi o tino. Tinha confiana no cavalo e
debrucei-me para a frente... Senti que o casco do queimado batia numa torada de pau
atravessada por cima do trilho.
<56>
E agora, Benedito? Entreguei a alma a Deus e bambeei as rdeas. O cavalo parou,
tremendo... Mas, o focinho dele andava de um lado para o outro, cheirando o cho e
soprando com fora... Com pouca dvida, ele foi se encostando devagarinho, bem rente
do mato; minhas pernas roavam nos troncos e nas folhas do arvoredo mido. Senti um
arranco e, com a ajuda de Deus, ca do outro lado, firme nos arreios: o queimado achou
jeito de saltar a barreira nalgum lugar favorvel.
Toquei para diante. Ah! patro! no gosto de falar no que foi a passagem do ribeiro
aquela noite! No gosto de lembrar a descida do barranco, a correnteza, as pedras rolias
do fundo d'gua, aquele vau que a gente s passa de dia e com muito jeito, sabendo muito
bem os lugares. Basta dizer que a gua me chegou quase s borrainas da sela, e do outro
lado, cavalo, cavaleiro e defunto - tudo pingava!
Eu j no sentia mais o meu corpo: o meu, o do defunto e o do cavalo misturaram-se num
mesmo frio bem frio; eu no sabia mais qual era a minha perna, qual a dele... Eram trs
corpos num s corpo, trs cabeas numa cabea, porque s a minha pensava... Mas, quem
sabe tambm se o defunto no estava pensando? Quem sabe se no era eu o defunto e se
no era ele que me vinha carregando na frente dos arreios?
Peguei a imaginar nisso, meu patro, porque - medo no era, tomo a Deus por
testemunha! - eu no sentia mais nada, nem sela, nem rdea, nem estribos. Parecia que eu
era o ar, mas um ar muito frio, que andava sutil, sem
<57>
tocar no cho, ouvindo - porque ouvir eu ouvia - de longe, do alto, as passadas do cavalo,
e vendo - eu ainda enxergava tambm - as sombras do arvoredo no cerrado e, por cima de

mim, a boiada das estrelas no pastoreio l do cu!


S este medo eu tive, meu patro - de no poder falar.
Quis chamar por meu nome, para ver se eu era eu mesmo;
quis lembrar alguma coisa desta vida, mas no tive coragem de experimentar...
A j no posso dizer que marchei para diante: fui levado nessa dvida, pensando que
bem podia ser eu alguma alma perdida naquela noite, zanzando pelos campos e cerrados
da terra onde assisti de menino...
E quem sabe tambm se a noite era s noite para meus olhos, olhos vidrados de defunto?
Bem podia ser que fosse dia claro...
Haver dia e noite para as almas, ou ser o dia das almas essa noite em que vou andando?
Essa dvida, patro, foi crescendo... E uma hora chegou em que eu no acreditava em
mim mesmo, nem punha mais f no que eu tinha visto antes... Peguei a pensar que era
minha alma quem ia acompanhando pela noite fora aqueles trs vultos...
Minha alma era um vento, um vento frio, avoando como um curiango arriba das nossas
cabeas.
Da, patro, enfim, entendi que aquilo tudo por ali em roda era algum logradouro da gente
que j morreu, alguma repartio de Noss'enhor, por onde a gente passa depois da morte.
Mas, aquele escuro e aquele frio! Sim, era muito estrdio aquilo. Ou quem sabe se aquilo
era um pouso no caminho do outro mundo? Numa comparao, podia bem ser
<58>
o estrado assombreado por onde a alma, depois de separada do corpo, caminha para
onde Deus servido.
Ah! patro! o que minh'alma imaginou aquele tempo todo eu no lhe posso contar, no!
Sei que fomos embora, aqueles trs vultos, um carregando dois e todos trs irmanados da
mesma escurido.
Tocamos.
De repente, peguei a ouvir galo cantar. Uai! Era bem o canto do galo; com pouca dvida,
um cachorro latiu l adiante. Gente, que isso? Que trapalhada era essa? Era o compadre
que estava ouvindo, ou era eu? Pois, ento, Benedito virou de novo Benedito?
Ou que as coisas por l so tal e qual as nossas de c, com pouca diferena? Galo e
cachorro eu ouvi. Estive assuntando mais e ouvi o mugido de uma vaca e o berro de um
bezerro... Com um tiquinho de tempo mais, eu vi, e vi bem, uma casa e outra e outra
ainda! Gente, isso o arraial: olha a igreja ali!
No havia dvida mais: estvamos no arraial e o queimado batia o casco numa caladinha
da rua.
Era eu mesmo, era o meu queimado e o compadre a rente, na garupa!
Toquei para a casa do sacristo e bati. Custou muito a responder, mas uma janela abriu e
uma cabea apareceu a modo muito assustada.
- Abre a igreja, que tem defunto aqui!
- Cruz, cruz, cruz, Ave Maria! - gritou o sacristo assombrado, e bateu a janela, correndo
para dentro da casa.
<59>
Eu no insisti mais. Toquei para a porta da igreja, de onde correram assustados uns
cabritos. Defronte, o cruzeiro abria os braos para ns. Como havia de ser?
Quem me podia ajudar a descer aquele corpo?
Parei um pedao, olhando para o tempo.

A o frio pegou a apertar outra vez, e uma coisa me fazia uma zoeira nos ouvidos, que
nem um lote de cigarras num dia de sol quente. Que frio, que frio! Meu queixo pegou a
bater feito uma vara de canelas-ruivas. Turrr! turrr! O compadre, atracado na minha
carcunda, ficou feito um casco de tatu; quando meu calcanhar batia no p dele, o baque
respondia no corpo todo e o queixo dele me fincava com mais fora na ap. A porta da
igreja pegou a rodar, principiando muito devagarinho; e o cruzeiro a modo que saa do
lugar, vinha para mim, subia l em cima, descia c embaixo, como uma gangorra, mal
comparando.
Peguei a sentir, no sei se na cabea, no sei mesmo onde, um fogo, que era fogo l
dentro e c fora, no meu corpo, nas minhas pernas, nas mos, nos ps, nas costas era uma
frira, que ningum nunca viu to grande!...
Meu brao no mexia, minhas mos no mexiam, meus ps no saam do lugar; e, calado
como defunto, eu fiquei ali, de olhos arregalados, olhando a escurido, ouvidos alertas,
ouvindo as coisas caladas!
Meu cavalo, entresilhado tambm de fome, de cansao e de frio, vendo que a carga no
era de cavaleiro, desandou a andar toa, pra baixo, pra cima, catando aqui-acol uns
fiapos de capim...
<60>
Quando eu passava por perto da porta de alguma casa, fazia fora e podia gritar:
- de casa! Gente, vem ajudar um cristo! Vem dar uma demo aqui!
Ningum respondia!
Numa porta em que o cavalo parou mais tempo - porque uma hora meu queimado parecia
cavalo de aleijado parando nas portas para receber esmola - apareceu uma cara... E
quando eu disse:
- " um defunto..." - a pessoa soltou um grito e correu para dentro esconjurando...
Mas, as casas todas pegaram a embalanar outra vez, e eu estava como em cima d'gua,
boiando, boiando..
Parece que o queimado cansou de andar. L nos ps do cruzeiro, onde havia um gramado,
ele parou...
E foi a que vieram me achar, de manhzinha, com os olhos arregalados, todo frio, todo
encarangado e duro no cavalo, com o compadre garupa!
Ah! patro! amigo amigo!
Da para c eu andei bem doente...
Quantos anos j l se vo, nem eu sei mais.
O que eu sei, s o que eu sei, que nunca mais, nunca mais aquele frime das costas me
largou!
Nem chs, nem mezinha, nem fogo, nem nada!
E quando eu ando pelo campo, quando eu deito na minha cama, quando eu vou a uma
festa, me acompanha sempre, por toda a parte, de dia e de noite, aquele frime, que no
mais deste mundo!
Coitado do compadre! Deus lhe d o cu!
<61>

Glossrio
As palavras esto explicadas neste glossrio s pelo sentido com que so empregadas
neste livro.
- A aafro - p de cor amarela bem forte usado como tempero.
alastrado - repleto, cheio.
alforje - saco duplo, posto sobre o lombo do animal para carregar mercadoria.
algibeira - bolso.
ameba - parasita intestinal.
ap - ombro.
aperreado - preso, sem liberdade.
arengar - discutir bobagens.
arquejar - respirar ruidosamente.
astcia - esperteza, malcia.
atufar-se - embrenhar-se, adentrar.
azinhavrado - coberto de azinhavre ou zinabre, camada verde que se forma no metal.
-B
banzar - pensar, matutar.
berilo - pedra semipreciosa.
boceta de rap - caixinha para guardar p de fumo para inalar.
bojar - tornar abaulado, com bojo.
bolo - golpe dado nas mos com palmatria.
borraina - almofada.
bradar - gritar.
brandir - agitar.
-C
calabouo - priso subterrnea.
campeio - procura pelo gado no campo.
capitalista - que tem propriedades e dinheiro, rico.
carbono - elemento qumico.
chacal - mamfero feroz parecido com o lobo.
cifrada - em cdigo.
<62>
coalizo - acordo, aliana.
cobre - dinheiro, material de que so feitas algumas moedas.
cognitiva - relativo ao conhecimento, ao raciocnio.
comicho - coceira.
confabular - conversar sobre assunto secreto.
constelado - cheio de estrelas.
convico - certeza.
cordovo - couro de cabra.
cosmopolitismo - caracterstica de quem se adapta a qualquer lugar.

criptgamos - plantas que tm os rgos reprodutores dificilmente visveis.


cuidar - pensar, imaginar.
cunho - marca em relevo impressa na moeda.
curul - lugar ocupado por pessoa de alto poder.
-D
delao - denncia; acusao.
desfraldar - soltar ao vento.
dicotilednea - planta com semente dividida em dois, como por exemplo o feijo.
dissimular - disfarar.
dubitativa - em que h dvida.
- E efmera - passageira, de pouca durao.
embevecidamente - de modo encantado, fascinado.
encapelado - agitado.
encarangar - ficar sem movimento, paralisar.
enfiar de - empalidecer.
entronizar - colocar no trono.
enxovalhada - emporcalhada, muito suja.
epstola - carta.
epopia - poema longo que relata feitos hericos.
escangotar - sacudir pelo cangote.
escarranchar - montar, sentar de pernas abertas.
esconjurar - exorcizar, fazer oraes para se livrar de espritos maus.
esconso - inclinado, enviesado.
escrpulo - cuidado, zelo.
esplendor - brilho, grandeza.
estrelo - que tem mancha branca na cabea.
estresilhado - exausto.
estrdio - esquisito.
<63>
expectante - que espera.
-F
fanergamo - plantas que tm rgos reprodutores aparentes, bem visveis.
fascita - ditador, antidemocrtico.
felino - animal da famlia dos gatos, lees, onas etc.
fenecer - murchar, morrer.
fiana - confiana.
fitar - fixar os olhos em.
frime - o mesmo que frira, frieza.
furtivo - rpido e meio escondido.
-G

gentleman - homem muito educado.


groto - depresso funda entre montanhas.
-H
hiena - animal de hbitos noturnos que se alimenta de cadveres.
hipocrisia - fingimento, falsidade.
-I
bis - ave pernalta aqutica.
improprio - repreenso ofensiva.
insinuar - dar a entender, sem falar claramente.
instncia - insistncia.
instintivamente - feito sem pensar.
irresolutas - indecisas.
-J
ja - ave de caa do serto, de carne muito apreciada.
-L
le - forma popular de lhe.
lisura - honestidade.
- M mercantil - relativo ao comrcio.
mezinha - remdio caseiro.
mofino - covarde.
monocotilednea - planta com semente que no dividida, como o milho e o arroz.
-P
patativa - ave de canto melodioso.
patinhar - o mesmo que patinar, andar sem sair do lugar.
perambeira - abismo, precipcio.
picardia - esperteza, astcia.
pleito - eleio.
-Q
queimado - cavalo de plo avermelhado.
- R recapitular - trazer novamente lembrana.
recato - modstia, simplicidade.
redoma - grande cobertura de vidro arredondada.
Regncia - perodo em que o Brasil foi governado por regentes.
<64>
relancear - olhar rapidamente.
relquia - coisa preciosa.

ressentimento - mgoa.
ressonar - roncar.
rspido - grosseiro, severo, rude.
- S salpicar - polvilhar, esparramar sobre.
sequito - comitiva, cortejo.
serenidade - calma, mansido.
sintaxe - construo gramatical.
siso - juzo, bom senso.
slogan - frase curta, fcil de lembrar, que se usa muito em propaganda.
soberano - absoluto, nico.
soberba - majestosa.
sorrateiramente - de modo escondido, disfaradamente.
sueto - falta aula por vadiagem.
suflagrante - momento presente.
surto eloqente - acesso de fala entusiasmada.
sutil - quase imperceptvel.
-T
te-dum - canto de louvor a Deus.
tesa - esticada, justa.
tino - orientao.
tosto - antiga moeda brasileira de nquel.
-V
vanc - forma popular de voc.
viageia - forma popular de viaja.
vilania - ato reprovvel.
vintm - moeda brasileira de cobre.
-Z
zorro - raposo.

Fim da Obra

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