O pedreiro Genivaldo de Jesus, 49, levanta seu teto, tijolo por tijolo. Na casa, quase pronta, ele investe o dinheiro de indenização pela exploração trabalhista que sofreu nos primeiros meses do ano.
Genivaldo está de volta ao povoado Umburanas, zona rural de Monte Santo (BA), a 296 km de Salvador. Ele é um dos 194 baianos resgatados em fevereiro, na operação contra trabalho análogo à escravidão em vinícolas no Rio Grande do Sul. Foram 45 dias de jornada exaustiva, das 5h às 20h, sem contar horas de deslocamento do alojamento até as fazendas.
Alguns trabalhavam no engarrafamento do vinho e outros na colheita da uva, a tarefa mais pesada. A situação era agravada com alimentação precária, maus tratos e cobranças indevidas.
"Eu já corri trecho no mundo, mas nunca vi uma situação daquela que a gente passou. A pior coisa é você sair do seu lugar para ser enganado", afirma Genivaldo.
Eu já corri trecho no mundo, mas nunca vi uma situação daquela que a gente passou. A pior coisa é você sair do seu lugar para ser enganado
De volta ao sertão, de onde diz que não devia ter saído, ele reconstrói a vida junto com os colegas, também vítimas da aventura no Sul. "Nós tudo aqui ajudamos um o outro".
Duas ou três vezes por mês eles se encontram. Na reunião, falam sobre questões burocráticas, são informados do estágio do processo no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e recebem atendimento médico e psicológico por meio do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Caps).
A turma de Monte Santo (BA) caiu na proposta de trabalho nas vinícolas do Rio Grande do Sul porque um colega de Barreiras (BA) tinha ido para lá na safra passada e disse que o dinheiro era bom.
O contato foi feito por uma empresa de recrutamento de Valente (BA), a 136 km dali. A promessa era de um contrato de 60 dias com rendimento de R$ 4 mil para cada trabalhador, além de comida, alojamento e viagem.
Os trabalhadores souberam que as vinícolas pagavam em média R$ 300 pela diária de cada homem à empresa terceirizada que os levou.
Manoel Pinheiro Nascimento, 42, percebeu que a coisa não estava boa quando o primeiro pagamento, de R$ 2 mil, não veio após o primeiro mês.
Manoel, que é pedreiro, trabalhou na colheita de uva até quando ficou doente. "Se perdesse um dia, era mil reais de desconto, mesmo com atestado. Ou morrendo, ou vivendo, tinha que trabalhar".
Ele narra que um dia assinou o ponto de papel colocando o horário verdadeiro da sua saída, "tarde da noite". O responsável rasgou a folha e o obrigou a assinar outra.
A jornada, que incluía encher de uva 40 caixas da colheita, nem era o maior problema, segundo ele. "Se a gente saiu para trabalhar, tem que trabalhar." A fome era o maior problema. Nos 45 dias de Sul, Manoel diz ter perdido 22 quilos. "O short tinha que ser amarrado com fita".
Ao voltar para sua comunidade, Fazenda Poço do Umbuzeiro, Manoel tratou logo de organizar um churrasco. Quis celebrar com as filhas e comer à vontade.
As marcas físicas da experiência duraram semanas. O pescoço, machucado na correia da caixa usada na colheita, foi curado com "torrado" (pó feito de ervas e cascas de pau), diz.
Algumas cicatrizes não são físicas. Ao lado de Manoel, seu irmão Regivaldo, 33, fica emocionado ao contar o que viu: instrumentos de intimidação dos trabalhadores, que iam de arma de choque à espingarda, passando por câmera até no banheiro. Regivaldo também testemunhou, na roça, o risco dos trabalhadores expostos a abelhas e serpentes venenosas, sem qualquer equipamento de proteção.
"Agora, estamos aqui com a família. Aqui é bom para viver, come todo mundo junto. Não quero nem ouvir falar no Rio Grande do Sul", afirma.
Agora, estamos aqui com a família. Aqui é bom para viver, come todo mundo junto. Não quero nem ouvir falar no Rio Grande do Sul
Os primos Alan Lima Rios, 19, e Charles da Silva Nascimento, 21, são os mais jovens do grupo resgatado no Sul. Eles tiveram experiências anteriores de trabalho em Minas e São Paulo. Dizem que nunca enfrentaram uma situação tão difícil quanto nesse caso de fevereiro.
"A gente ficou com a mente meio perturbada. Às vezes nem dormia direito, eram mais de 200 pessoas no mesmo local", diz Charles.
A gente ficou com a mente meio perturbada. Às vezes nem dormia direito, eram mais de 200 pessoas no mesmo local
Agora, ele quer trabalhar em sua cidade natal. "É seguir a vida. Trabalhar e fazer o que a gente sabe. Ficar em casa com minha família, ver o que fazer por aqui mesmo."
A esperança de um serviço mais justo passa pelo projeto "Vida Pós Resgate", que assenta vítimas da escravização em fazendas de criação de cabra em municípios da Bahia.
A turma de Monte Santo já está em contato com o Ministério Público do Trabalho, que implementa os assentamentos. Um dos trabalhadores até já viajou para conhecer exemplos de assentados de outro caso de resgate.
Aos 52 anos, José Pereira da Silva é o mais velho do grupo. Quando estava longe, conversava todos os dias com as filhas por telefone, relatando as dificuldades e a saudade. Hoje, ele torce para que o projeto dê certo. Sair da Bahia deixou de ser opção, diz.
"A maior alegria é estar em casa. Agora, é trabalhar e investir na roça, sempre na roça. Vou fazer um jeito de ficar por aqui mesmo".
A maior alegria é estar em casa. Agora, é trabalhar e investir na roça, sempre na roça. Vou fazer um jeito de ficar por aqui mesmo
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