Pais se desdobram para cuidar dos filhos em toda parte há cinco meses, desde que a chegada do coronavírus provocou a suspensão das aulas nas escolas. Para alguns, as dificuldades são ainda maiores por causa dos cuidados especiais que seus filhos exigem.
A pandemia também levou instituições de assistência a deficientes a suspender os serviços prestados, e Jorge Laranjeira teve que assumir os cuidados de sua filha, Mikaela Santos, 21. Ela tem paralisia cerebral, uma alteração neurológica permanente que prejudicou seu desenvolvimento motor e cognitivo, e usa cadeira de rodas.
A família de Mikaela se mudou há sete meses de São Paulo para Andradas (MG), em busca de custo de vida mais baixo. “Na pandemia, estamos fazendo todas as tarefas em casa, como a fisioterapia", diz Laranjeira. "Eu mesmo faço os movimentos no tornozelo, no joelho e nos braços dela, com orientação dos profissionais.”
Os profissionais da unidade da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais) que atendia Mikaela antes da pandemia mantiveram alguns serviços remotamente, pelo menos uma vez por semana ou quando surge alguma necessidade urgente, mas a rotina presencial faz falta.
“O acompanhamento acontece por videochamada ou apostilas”, diz Laranjeira. “O problema é que estamos há mais de quatro meses em casa. Não podemos ir para lugar nenhum, pelo risco.”
A pandemia não só impactou Mikaela, mas o próprio pai, que trabalha como motorista de aplicativos. Sua mulher trabalha como assistente administrativa em uma empresa. Laranjeira só faz bicos nos finais de semana, quando a mulher está de folga.
“Quando a minha filha fica na APAE, eu posso trabalhar. Sou Uber, faço bicos de pintura, além de ser cabeleireiro", diz. "Como minha esposa trabalha, não tem ninguém para cuidar da nossa filha, então sou eu que fico com essa função.”
Ficar confinada em casa traz outras complicações para o dia a dia da família de Mikaela: o lugar é pequeno e não é preparado para as necessidades de uma pessoa com deficiência. Há degraus em alguns cômodos, e o espaço apertado dificulta a mobilidade dela.
Segundo Laranjeira, a única diversão da filha eram as aulas de dança que fazia quando morava em São Paulo, mesmo em cadeira de rodas. "Ela ficava muito animada quando ia dançar", diz o pai. "Como aqui não tem, fica mais entediada."
Para Marli Duarte, mãe de Tarcísio Duarte, de 37 anos, que também tem paralisia cerebral e é cadeirante, o pior é a falta de convivência do filho com os colegas da APAE, além da falta de assistência mais constante dos profissionais da instituição.
“O atendimento é essencial para a reabilitação e a fonoaudiologia, mas ajuda também na interação, na convivência, na socialização com o outro", afirma. "Tudo fica muito prejudicado nesse tempo de pandemia, e isso impacta a pessoa com deficiência e a família.”
A mãe de Duarte recebe orientações por videochamada duas vezes por semana, por meia hora, mas acha que não é suficiente. “Eu e meu marido só conseguimos fazer alguns alongamentos, coisas bem básicas", diz. "Felizmente, meu filho não tem problemas respiratórios.”
A casa de Tarcísio é maior do que a de Mikaela e tem mais acessibilidade para ele. "Antes o esforço era dividido com a instituição, mas agora temos que cuidar dele o dia todo", afirma Marli. "Temos muito estresse e cansaço físico, e ele sente muitas dores musculares."
Enquanto governos estaduais e prefeituras discutem a volta às aulas, Marli é cautelosa quanto ao retorno volta dos atendimentos da APAE. “Eu apoio a volta desde que haja um plano. Primeiro, com a instituição adquirindo todos os equipamentos de segurança. Depois, com uma capacitação dos profissionais. Só aí é que poderíamos voltar com as atividades normais.”
Segundo o superintendente da Federação das APAEs de Minas Gerais, Sérgio Sampaio, as instituições estão montando um plano para retomada das atividades, para estabelecer um protocolo único e orientações, mas deixando as famílias livres para escolher o tipo de atendimento que as pessoas com deficiência receberão.
“Mais de 50% acenaram positivamente para a volta da assistência ainda neste ano e poderão decidir o modelo em que isso ocorrerá: se presencial, remoto, ou domiciliar, para os casos mais graves", diz. Ainda não há data prevista para a reabertura das unidades.
No Brasil, 46 milhões de pessoas têm algum tipo de deficiência, o que representa 24% da população, segundo o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), feito em 2010. A deficiência mais recorrente no Brasil é a visual (19%), seguida da motora (7%), da auditiva (5%) e da deficiência mental (1%).
O governo federal não tomou nenhuma iniciativa para coordenar políticas voltadas para esse grupo populacional durante a pandemia, ou para a definição dos protocolos de segurança necessários para a retomada dos serviços das entidades assistenciais.
Levantamento feito pela Folha encontrou poucas medidas específicas para pessoas com deficiência, em geral pontuais, como a prorrogação do prazo de validade das credenciais para passe livre no transporte público interestadual e um plano para destinar R$ 7 milhões à aquisição de equipamentos de proteção para profissionais de unidades assistenciais.
Além disso, foi antecipado o pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 para 178 mil pessoas com deficiência que tinham se cadastrado para receber o Benefício de Prestação Continuada (BPC), mas ainda estavam na fila à espera de aprovação do pedido.
Entidades sem fins lucrativos que prestam serviços a pessoas com deficiência também enfrentaram dificuldades na pandemia. A Casa Família Rosetta, em Porto Velho (RO), que atende há mais de 30 anos deficientes neurológicos de várias cidades do estado, teve que cortar salários e fazer campanhas para arrecadar doações.
O atendimento nas unidades da instituição despencou com a pandemia, segundo a diretora-geral, Giusi Fulco, mas alguns pacientes continuaram exigindo atenção. "Temos seis com paralisia cerebral morando conosco, porque foram abandonados pelas suas famílias", diz.
Segundo o conselheiro da Associação Brasileira dos Captadores de Recursos (ABCR), Rafael Vargas, entidades que atuam nas regiões Norte e Nordeste têm enfrentado dificuldades maiores do que as do Centro-Sul do país para se manter à tona na pandemia.
Segundo o Monitor das Doações da ABCR, de uma amostra com 526 entidades brasileiras que receberam R$ 1 bilhão em doações desde a chegada do coronavírus, apenas 76 são das regiões Norte e Nordeste. Elas foram contempladas com R$ 198 milhões, um quinto do total.
“Para a gente aqui do Norte, tudo é mais complicado, e existem dificuldades até com o poder público", diz Vargas. "Só ganhamos alguma força quando fizemos uma associação com 80 entidades assistenciais rondonienses.”
Entidades como a Casa Família Rosetta ainda não sabem como retomarão os serviços. “Vamos buscar mais o apoio de voluntários, cuidando principalmente da saúde mental, fazendo atendimentos individuais ou terapias em grupo", diz Fulco. "Mas vamos ter que encerrar parte dos nossos serviços em definitivo.”
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