Descrição de chapéu MST, 40 anos

MST em Carajás é vizinho de clube de tiro e convive com bolsonarismo e evangélicos

Assentamento da reforma agrária criado no sul do Pará após assassinato de 19 sem-terra em 1996 vê êxodo de jovens

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Placa do clube de tiro e, ao fundo, o ponto de ônibus da entrada do assentamento 17 de Abril do MST, criado após o massacre de Eldorado do Carajás (PA) Gabriela Biló - 8.nov.2023/Folhapress

Eldorado do Carajás (PA)

De um lado, um ponto de ônibus com o símbolo do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Do outro, um espaço de leilão de gado e um clube de tiro.

Essa é a cena para quem entra no assentamento 17 de Abril, construído após o massacre de Eldorado do Carajás (PA), comunidade que vê êxodo da juventude e o crescimento do bolsonarismo e das igrejas evangélicas.

Em 17 de abril de 1996, a Polícia Militar assassinou 19 militantes do movimento que faziam um protesto na rodovia PA-150. Até hoje, apenas 2 policiais de 155 acabaram condenados.

O episódio serviu para catapultar a imagem do movimento dentro e fora do Brasil —imagens do caso ilustram o famoso livro "Terra" (Companhia das Letras), do fotógrafo Sebastião Salgado.

O número de óbitos ainda é questionado por quem estava no dia. "Cadê as mulheres? As crianças? Eram 3.000 pessoas no meio de um fogo cruzado… foram parar onde?", diz Maria Zelzuíta Oliveira de Araújo, 59.

Maria Zelzuíta Oliveira de Araújo, 59, sobrevivente do massacre e uma das principais líderes do assentamento 17 de Abril, em Eldorado do Carajás (PA) - Gabriela Biló/Folhapress

Natural do Piauí, ela peregrinou pelo Brasil como mãe solo e ouviu que deveria dar suas crianças a alguma família com um homem. Hoje, é uma das principais lideranças do 17 de Abril, uma das pioneiras, como são chamados os seus fundadores, e sua família já está na terceira geração de assentados.

O ataque da PM aconteceu na chamada curva do S da rodovia PA-150, onde o MST realizava um acampamento. Atualmente, no local há um memorial, um monumento e uma capela. Do outro lado da via, fica um posto de gasolina que pertence ao dono do espaço de leilão e do clube de tiro.

"A gente só fala porque somos obrigados, para não esquecer. É uma memória que precisa passar de pai para filho, de filho para neto", diz Raimundo dos Santos Gouveia, 69. "Ficou pedaço de cabeça espalhado no chão", lembra Maria.

Os laudos médicos apontam tiros à queima-roupa, na cabeça e perfurações por armas brancas. "Até hoje ainda chega gente aqui procurando por parentes e conhecidos. A gente não sabe se esse pessoal morreu, se nunca voltou. Então, contabilizados, são 19 [mortos], mas…", diz Natanael Limirio da Silva, 56.

Após o massacre, a Fazenda Macaxeira foi transformada em assentamento.

Depois de 28 anos, a granja e a refinaria da vila estão abandonadas. Os moradores afirmam ter sido um "cala boca" dado pelo poder público —deram os equipamentos, mas não ensinaram como usar.

Por outro lado, o posto de saúde e, principalmente, a escola do assentamento são referências na região.

Construir uma estrutura de ensino é prioridade do movimento desde os acampamentos, tarefa realizada "já quando nós cortamos o arame e adentramos a ocupação", diz Wanderlan Oliveira de Araújo, 30, filho de Maria Zelzuíta. "É um recado para a sociedade de que temos um projeto que vai além da conquista da terra."

Wanderlan Oliveira de Araújo, 30, professor do colégio do assentamento 17 de abril e filho de Maria Zelzuita, uma das sobreviventes do massacre de Eldorado do Carajás - Gabriela Biló/Folhapress

No caso de Carajás, o colégio foi construído após o movimento organizar aulas-protesto interditando a ferrovia e a curva do S na rodovia, o local dos assassinatos.

"Nós inserimos o massacre na grade curricular, porque a própria escola, por ser dentro de um território do MST, é resultado de um processo de luta, de resistência", diz Wanderlan.

Hoje, o movimento auxilia a formação de médicos, advogados, agrônomos e professores, como é seu caso.

"A reforma agrária não é só enxada na terra. Ela entende que a madeira que dá o cabo da enxada dá também o violão e dá o lápis. É trabalhar a terra, ter direito à cultura, ao lazer, ao estudo", diz Laurindo Ferreira da Costa, 54, pioneiro do movimento e que escreve e declama cordéis.

Wanderlan afirma que é um dos poucos de sua geração que conseguiu trabalho no assentamento e ainda é engajado na militância. À medida que os jovens se formam, também precisam, em muitos casos, deixar o assentamento para conseguir emprego.

Natanael lembra, por exemplo, que, de suas três filhas, uma é agrônoma e atua no assentamento, mas as outras duas, médica e advogada, se formaram com auxílio do movimento e trabalham fora.

"Antes nós lutamos pela terra, agora lutamos por educação, saúde, assessoria técnica para manejo do solo, intensificação da produção. Por um outro modelo de sociedade mais justo, igualitário, com melhores condições de vida para os moradores. E o jovem vai passeando por esses processos e se engajando em maior ou menor grau", diz Wanderlan.

Ele diz que mesmo quem sai ainda contribui com o movimento, seja defendendo o MST em outros locais ou pela simples trajetória de vida.

"Se antes a juventude que ocupou [a curva do S] tinha a perspectiva da conquistar a terra, e conseguiram, o jovem de hoje tem outras perspectivas, a terra já está com a família. Às vezes é uma moto, um celular, um dinheiro para o final de semana. Tem um aspecto cultural que influencia o jovem de hoje."

A reportagem presenciou uma série de casas à venda, e o número de chegantes —pessoas que entraram no assentamento após sua criação— é cada vez maior, segundo os relatos. "Entrou muita gente de fora, que não fala a nossa língua", diz Maria Zelzuíta.

Laurindo concorda, mas pondera: "Também são trabalhadores, também precisam ter onde tirar o sustento de sua família".

Os novos membros impulsionaram o bolsonarismo, mas não só eles. "O bolsonarismo não gosta do MST, isso é verdade", admite Miguel Pontes Silva, 60, que chegou a ocupar cargos de coordenação no assentamento e hoje defende o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Miguel é um dos sobreviventes do massacre: "Estou vivo porque o policial devia ser crente e não queria me matar. Atirou no chão e ricocheteou na minha perna. Se fosse um policial mau, tinha me matado, estava muito perto de mim", diz.

Sua crítica ao movimento é que, segundo ele, a postura arrefece quando é preciso enfrentar partidos de esquerda, como o PT.

"Tudo que tenho devo ao movimento. Mas antigamente a gente ocupava a rodovia, se manifestava em frente à prefeitura. O movimento, fosse uma gestão de direita ou de esquerda, tinha que tratar da mesma forma", diz ele, que entrou para a militância após deixar o garimpo.

Durante a visita, a Folha encontrou três adesivos de Bolsonaro colados às casas e nenhum de Lula. Em 2022, o candidato do PL superou o petista na cidade de Eldorado do Carajás com 50,5% dos votos válidos.

Cruzes em memória aos 19 mortos no massacre de 17 de abril de 1996, na curva do S, na PA-150, em Eldorado do Carajás (PA) - Gabriela Biló/Folhapress

Se o MST historicamente é ligado à Igreja Católica, outra forte influência no 17 de Abril é a da corrente evangélica, que tem dois templos no vilarejo.

"Eu vejo [separação entre] esquerda e direita, não entre MST e igreja evangélica", diz Natanael, que desde jovem integrou movimentos de luta pela terra, fundou o assentamento e também a sua primeira e principal igreja evangélica.

Filiado ao PT, ele entende que, se há divergências em pautas como aborto ou questões LGBTQIA+, há convergência na luta pela terra.

"Sou assentado, meus filhos são assentados, minha esposa estudou na escola, se formou e hoje é professora lá. Eu sou pastor da igreja evangélica do assentamento há 21 anos e, graças a Deus, nunca tive problema com ninguém", completa Samuel Limirio da Silva, 62, irmão de Natanael.

Ele não se diz integrante formal do MST, mas lembra que sua igreja é atuante nos protestos e que são diversos os membros da congregação que ocuparam cargos na associação do movimento ou até foram eleitos vereador com apoio de ambas as instituições —caso de Haroldinho da 17, eleito pelo PL em 2016 e que quer agora voltar ao PT.

A disputa que há, segundo Wanderlan, é simbólica e cultural. Não só pelo leilão de boi na entrada do assentamento e o posto de gasolina em frente ao monumento das castanheiras, mas também pela presença da música sertaneja nas festas locais.

"Eles vão tentando decantar a gente, a gente vai tentando resistir. A gente acaba direta ou indiretamente consumindo isso [a cultura do agro], seja aqui nas feiras, nas TVs, no rádio."

O receio, no entanto, é que a força do agronegócio, a chegada do bolsonarismo que com ele se identifica, o êxodo jovem e, para alguns, também os valores conservadores da igreja evangélica, confluam para o enfraquecimento do movimento e o esquecimento da história do 17 de Abril.

"Tem alguns hoje que não fazem questão de conhecer, não faz ideia de qual foi o preço dessa terra aqui, nem sabem que morreram 19 pessoas para que fosse conquistada", diz Natanael.

Anualmente o MST organiza um evento educacional na curva do S.

"Os pioneiros vão numa tentativa de passada de bastão. Esse processo é complexo para a gente, porque a realidade está se metamorfoseando. Uma coisa é você falar para um sujeito que vivenciou o massacre, como minha mãe, e entender a disposição que ela tem para lutar. Outra é um jovem, que está mais antenado em outras práticas sociais, culturais", diz Wanderlan.

Cronologia do massacre

Ocupação (5.mar.1996)
Fazenda Macaxeira, em Curionópolis (PA), é ocupada por 1.100 famílias de sem-terra

Marcha (16.abr.1996)
Os agricultores, em marcha para Belém, obstruem a rodovia PA-150, em Eldorado do Carajás (PA)

Massacre (17.abr.1996)
Operação da polícia para desbloquear a rodovia termina com a morte de 19 sem-terra e 60 feridos

Laudo (8.mai.1996)
Laudo judicial aponta que os sem-terra foram mortos com tiros à queima-roupa, pelas costas ou na cabeça, e com golpes de armas brancas

Julgamento (16.ago.99)
Tribunal do Júri absolve três oficiais da PM envolvidos no caso, coronel Mário Colares Pantoja, major José Maria Pereira de Oliveira e capitão Raimundo José Almendra Lameira

Anulação (abril de 2000)
Tribunal de Justiça do Pará anula julgamento

Novo júri (maio e junho de 2002)
Novo julgamento é iniciado. Coronel Pantoja e major Oliveira são condenados a 228 e 158 anos de prisão. O júri inocentou os demais envolvidos.

Supremo (setembro e outubro de 2005)
STF concede habeas corpus ao coronel Pantoja e, posteriormente, estende a decisão ao major Oliveira

Prisões (7.mai.2012)
Justiça do Pará determina a prisão do coronel Pantoja e do major Oliveira

Prisão domiciliar (outubro de 2018)
Pantoja e Oliveira passam a cumprir pena em regime domiciliar

Morte (11.nov.2020)
Pantoja morre em Belém por complicações decorrentes da Covid-19

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