Como a roda da fortuna, a democracia deve girar. Os governantes de ontem serão os governados de amanhã. Não há arranjo político mais equilibrado, vivo e dinâmico. Eleições periódicas impõem justo equilíbrio ao podere desagradáveis entraves a despóticas tentações.
No caso específico de escolher o presidente da República, o voto direto e majoritário representa o que há de mais soberano na democracia: a vontade do povo. Hoje, aos trancos e barrancos, isso prevaleceu.
Mas o que, afinal, ganhamos e perdemos com isso? Este segundo turno das eleições nos fez lembrar de que há um lado sujo nas disputas pelo poder.
A maioria do povo brasileiro novamente escolheu ser governada por Lula. Por mais que a campanha do candidato petista possa ter lá seus méritos, a incompetência de Bolsonaro, seu principal adversário ideológico, pesou na consciência do eleitor insatisfeito.
É óbvio que não me refiro à incompetência de campanha. Bolsonaro perdeu por ter sido um dos mais incompetentes chefes do Estado brasileiro, pelo menos desde a redemocratização. O povo parece perdoar corrupção, mas não perdoa o descaso e a falta de empatia com o sofrimento alheio.
Cada vez mais fechado em sua base fanatizada de apoiadores, Bolsonaro deixou o país à deriva. Sua desumanidade jocosa no período da pandemia cobrou preço alto: o retorno do PT.
Nesse sentido, com a cumplicidade da classe artística e o apoio de uma imprensa comprometida com os ideais de esperança que ele representa, Lula não teve dificuldades em tirar vantagens da inépcia bolsonarista. A esquerda populista volta ao poder com aquela sensação, um tanto exagerada, de que o pior pesadelo passou. Como isso foi possível?
Bom, há algo de semelhante na vitória de Bolsonaro em 2018 e na do Lula hoje. Na época, muita gente escolheu Bolsonaro para "tirar o PT do poder".
Numa palavra, o bolsonarismo surgiu como um projeto reativo a tudo o que o petismo representava naquele momento: escândalos de corrupção, ameaça de controle da internet, apoio a ditaduras de esquerda, ameaça comunista, progressismo identitário. Enfim, toda a corrosão moral do país e a decadência política das instituições. O PT não pode se isentar de suas responsabilidades.
Pouco propositiva, a direita que ascendeu ao poder apostou na narrativa do medo e na retórica do conflito. Do petismo, soube incorporar o "nós contra eles" e levá-lo às últimas consequências. Dominou o algoritmo das redes, construiu memes, venceu no WhatsApp e levou as eleições.
Entretanto, com o país ainda mais dividido, o antipetismo de ontem se tornou o antibolsonarismo de hoje. Populistas, de esquerda e direita, são eficientes em seduzir o povo na disputa por cenários apocalípticos.
Em 2018, Bolsonaro ganhou muitas vantagens eleitorais por causa do "voto útil", e não pela convicção do povo em busca de um nobre estadista. Hoje, a roda da democracia girou, e o PT retorna ao poder com a mesma narrativa do medo e a mesma retórica odiosa do "nós contra eles". Ou seja: Lula voltou como reação "a tudo o que está aí".
A base fanatizada de eleitores petistas não encontrou dificuldade em tirar proveito da narrativa da política como esperança: "quem não está com Lula é fascista", Ciro Gomes e Neymar que o digam. Assim como o bolsonarismo de ontem, o difuso projeto petista de hoje é "do contra" e da "revogação". Em suma, um duro acerto de contas.
Não à toa, a palavra-chave do plano de governo de Lula foi "reconstrução". Segundo o documento de campanha, o Brasil está "devastado por um processo de destruição" em todos os níveis: econômico, político e social. "A fome, o desemprego, a inflação, o endividamento e o desalento das famílias" colocam em "xeque a democracia e a soberania nacional".
No princípio era o caos, e "a sociedade brasileira precisa voltar a acreditar na sua capacidade de mudar os rumos da História" —assim mesmo, com um eloquente H maiúsculo. É preciso, sempre com urgência, "superar uma profunda crise social, humanitária, política e econômica" cuja responsabilidade é, claro, do último governo. Enquanto a salvação, óbvio, só pode ser Lula.
Sinceramente, não há nada de substantivo no projeto petista. Só não digo que entregamos um cheque em branco para Lula porque ele imagina reabilitar o país de antes: revogação da reforma trabalhista, revogação do teto de gastos, fortalecimento das estatais e a mesma ladainha progressista de sempre: sem um governo paternalista —de esquerda, diga-se de passagem— dirigindo a vida do brasileiro, não há país. O programa político petista deixa explícito que só somos um povo enquanto há um Estado governado por um líder carismático e forte, tal como Lula.
Coincidentemente, esse era o clima ideológico das eleições de 2018. Lembro-me do discurso das redes a favor de Bolsonaro: "O Brasil está, definitivamente, à beira do abismo em todos os segmentos. É uma briga entre o bem e o mal. Entre a desgraça e a esperança. Bolsonaro não é nossa melhor opção, é a única, ou então é o mergulho no caos marxista completo". Substitua "Bolsonaro" por "Lula" e "marxismo" por "neoliberalismo" para provar como a roda de nossa fortuna gira.
Como superar a tragédia? Bom, assim como bolsonaristas de ontem, petistas de hoje também acreditam no seu mito de salvação.
Em seus discursos de campanha, Lula falava em pacificar o país. Só se esqueceu de mencionar que a lógica do conflito, do esgarçamento do tecido social, é tão petista quanto bolsonarista.
Aproveitemos, portanto, porque vivemos algo tão raro quanto um eclipse: o embate de duas religiões políticas, e não de dois projetos de país. Por enquanto, é o que restou da política.
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