“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará”, diz o versículo 32 do capítulo 8 do Evangelho de João. Esse trecho da Bíblia é citado com frequência pelo presidente Jair Bolsonaro em discursos e lives na internet, e foi usado para justificar seu boicote à Folha por ser, segundo ele, um jornal que não se atém à verdade dos fatos.
O contexto original dos versículos, no entanto, está muito distante de debates sobre jornalismo isento, e bem mais próximo da visão dualista – bem contra mal, nós contra eles – que caracteriza o governo do militar da reserva.
No chamado Quarto Evangelho do Novo Testamento, a frase sobre a verdade faz parte de uma longa discussão entre Jesus e um grupo de judeus que, ao menos de início, haviam acreditado em sua mensagem. “Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos”, diz Cristo, concluindo a frase com a declaração sobre o poder libertador da verdade.
Os judeus, porém, ficam confusos com a afirmação, dizendo que nunca tinham sido escravos e, portanto, não precisavam ser libertados.
Jesus explica que está se referindo à liberdade em relação ao pecado e, diante da dificuldade do grupo em entender o que está dizendo, afirma que os judeus recusam a verdade e desejam matá-lo por inspiração demoníaca. “Vós sois do diabo, vosso pai, e quereis realizar os desejos de vosso pai”, sentencia ele. No fim da conversa, o grupo pega pedras para atirá-las em Jesus, que consegue escapar.
A passagem reúne vários temas importantes do Evangelho de João, um texto que, para a maioria dos atuais estudiosos do Novo Testamento, teria sido produzido por uma comunidade bastante sectária, ou seja, isolada dos demais grupos religiosos do período e ciosa de seu status como portadora da única verdade sobre a fé.
No caso, trata-se da crença de que Jesus tem natureza divina e é o responsável exclusivo por conferir a vida eterna aos que creem nele, ideia reforçada por outro trecho célebre do evangelho: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim”. Tudo indica, portanto, que o termo “verdade” tem significado primordialmente teológico naquele contexto.
“São sempre divisões claras, entre os de dentro e os de fora, os do alto e os de baixo, os filhos da luz e os filhos das trevas, os filhos de Deus e os filhos de Satanás. Não existem intermediários ou zonas cinzentas”, diz o historiador americano Dale Martin, da Universidade Yale, em seu curso de introdução ao Novo Testamento.
Para muitos especialistas, o caráter dualista e sectário do Evangelho de João poderia ser uma resposta a conflitos teológicos entre seguidores de Jesus de origem judaica e os demais judeus, que não o aceitavam como Messias e, depois de algumas décadas de convivência hostil com os primeiros cristãos, decidiram expulsá-los das sinagogas.
Reagindo a esses conflitos, o texto, muitas vezes, classifica todos “os judeus” como inimigos de Jesus e até do próprio Deus –embora, é claro, Jesus e todos os seus primeiros seguidores fossem de origem judaica. Passagens como a associação entre os judeus e o Diabo foram usadas como justificativa para o antissemitismo ao longo dos milênios.
Desse ponto de vista, não deixa de ser irônico que um presidente simpático a Israel como Bolsonaro adote justamente esse trecho como o seu favorito. Por outro lado, o dualismo do texto joanino espelha a visão que o bolsonarismo tem em relação à política brasileira.
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