Lava Jato acelerou processos, mas 'direito penal de Curitiba' � criticado
Pedro Ladeira - 19.set.2017/Folhapress | ||
O ministro do STF Gilmar Mendes, que considera a Lava Jato abusiva |
Quando o ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes quis alfinetar a Opera��o Lava Jato, considerada arbitr�ria e abusiva por ele, disse que procuradores e o juiz Sergio Moro criaram "o direito penal de Curitiba".
Para ele, esse novo direito n�o respeita "par�metros legais", a Constitui��o sofre viola��es em s�rie e dela��es s�o at� encomendadas.
Aliado e conselheiro de alvos da Lava Jato como o presidente Michel Temer e o senador A�cio Neves (PSDB-MG), a vis�o de Gilmar n�o � endossada por pesquisadores do direito, mas sua cr�tica ro�a numa novidade, ainda de acordo com especialistas: a Lava Jato inventou n�o um novo direito penal, algo que demanda tempo para cristalizar, mas uma nova maneira de conduzir processos penais.
N�o � s� na velocidade acelerada dos processos que a for�a-tarefa da Lava Jato em Curitiba e o juiz Moro inovaram, reduzindo o tempo de um a��o de 4 anos e 4 meses, a m�dia nacional apurada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justi�a) em 2016, para 9 meses e 12 dias.
H� novidades tamb�m no uso de recursos que s�o mais comuns no direito anglo-sax�o, o chamado "common law", do que na tradi��o romana a que o Brasil se filia, como os acordos de dela��o e de leni�ncia e os pedidos de ajuda a outros pa�ses para obter provas.
POL�MICAS
H� tamb�m medidas extremamente pol�micas, como pris�es preventivas longas e as condu��es coercitivas, tidas como inconstitucionais por pesquisadores.
"A Lava Jato constitui mais um cap�tulo da louv�vel tentativa de reconfigurar a rela��o entre crime e pol�tica no Brasil. A principal inova��o est� no processo, n�o no direito penal", diz Alaor Leite, professor de direito penal na Universidade Humboldt, de Berlim.
Segundo ele, o caso da Lava Jato � completamente diferente do mensal�o, no qual houve um debate t�cnico sobre corrup��o e atos de of�cio, lavagem de dinheiro e at� sobre a responsabilidade dos que comandam, mas n�o se envolvem diretamente no crime, a chamada teoria do dom�nio do fato.
A Lava Jato, para efeitos te�ricos, s� levantou a discuss�o sobre a diferen�a entre o caixa dois eleitoral e a corrup��o (neste caso haveria enriquecimento para o pol�tico), ainda de acordo com Leite.
O ofuscamento do debate ocorreu por causa dos acordos de dela��o, segundo Leite. Previstos na lei brasileira desde 1990, eles s� ganharam seguran�a jur�dica a partir de 2013, com a lei contra o crime organizado, quando passaram a ser regidos por um contrato entre o delator e o Minist�rio P�blico.
A discuss�o arrefeceu com as dela��es porque n�o h� mais lacunas probat�rias, na vis�o de Leite. "H� 'anexos' fartos, �udios reveladores, imagens constrangedoras. A inova��o � a seguinte: a nitidez das provas obtidas por meio das muitas colabora��es premiadas praticamente apaga a relev�ncia dos debates t�cnicos. Nunca o ditado 'uma imagem vale mais do que mil palavras' pareceu t�o certeiro. Ocorre que no direito s�o as palavras, n�o as imagens, que condenam cidad�os".
Editoria de Arte/Folhapress | ||
PONTOS CR�TICOS
Os pontos mais cr�ticos da Lava Jato s�o as pris�es preventivas, as condu��es coercitivas e a falta de regras claras para os acordos de dela��o, segundo estudiosos.
Nenhum dos especialistas ouvidos pela Folha condena as pris�es, mas todos apontam casos que consideram ilegais.
"Muitas pris�es preventivas da Lava�Jato n�o foram fundamentadas com base nos crit�rios da lei e isso � ruim. N�o considero que o desejo de combater a impunidade deva ser atendido antecipando pris�es", diz Thiago Bottino, advogado e coordenador do curso de direito da Funda��o Get�lio Vargas no Rio.
Um caso famoso � o dos empres�rios Eduardo Meira e Fl�vio Macedo, que criaram uma empresa de fachada que pagou propina ao ex-ministro Jos� Dirceu.
Eles foram presos em maio do ano passado com o argumento de que havia risco de continuarem a cometer crimes.
Em mar�o deste ano, foram condenados a 8 e 9 anos pelo juiz Moro. Em vez de serem soltos para recorrer em liberdade, como determina a lei, Moro manteve a dupla presa at� outubro, quando o Supremo decidiu solt�-los.
Se houve abusos no uso das pris�es preventivas, tamb�m houve atropelo em acordos que previam cumprimento, n�o de medidas cautelares, mas de penas, mesmo quando o investigado n�o havia sido condenado, diz o pesquisador Vin�cius Gomes de Vasconcellos, doutor em direito pela USP�e�autor de dois livros sobre barganhas judiciais.
Foi isso que ocorreu em acordos de dela��o assinados entre os executivos da Odebrecht e a Procuradoria-Geral da Rep�blica.
"Cumprir a pena antes do sentenciamento � problem�tico porque acaba com o processo", afirma, frisando que esse mecanismo inverte a l�gica da lei. Para ele, podem ocorrer casos em o investigado ser� absolvido ao fim do processo por falta de provas.
Os procuradores da Lava Jato tamb�m "criaram" penas, segundo os especialistas.
PENALIDADES
Foram aplicadas em profus�o penalidades que n�o est�o previstas na lei, como a pris�o domiciliar semiaberta diferenciada (em que o condenado pode sair durante o dia e no in�cio da noite volta para casa) e a pris�o domiciliar aberta (quando tem a obriga��o de voltar para a casa apenas nos finais de semana e feriado).
Bottino diz que isso ocorre porque n�o h� no pa�s diretrizes que orientem como esses acordos devem ser feitos. "� preciso haver um regramento de dela��o premiada a fim de manter um padr�o para acordos feitos pelo Minist�rio P�blico Federal".
Atualmente n�o h� padr�o nem mesmo entre os acordos feitos na Lava Jato em Curitiba, no Rio e em Bras�lia.
O exemplo mais explosivo da falta de padr�o nos acordos foi a decis�o do ministro do Supremo Ricardo Lewandowski de devolver a dela��o do marqueteiro Renato Pereira, que atuou em campanhas do PMDB no Rio e S�o Paulo.
Para o ministro, a Procuradoria-Geral da Rep�blica excedeu-se no acordo ao conceder benef�cios e determinar penas, o que seria uma prerrogativa de magistrados.
O ministro j� havia defendido essa posi��o em casos anteriores, junto com Gilmar, e saiu derrotado.
H� outro problema pr�tico: o ministro Teori Zavascki (1948-2017) e seu sucessor no cargo, Edson Fachin, j� homologaram mais de uma centena de dela��es em que as penas e benef�cios foram negociadas pelo Minist�rio P�blico, n�o por ju�zes ou ministros do Supremo.
A Lava Jato pode ter revolucionado a rela��o entre poderosos e impunidade a partir das dela��es, como diz Gilmar. Mas � muito cedo, segundo Bottino, para comemorar o fim da impunidade.
O resultado da opera��o, diz ele, s� poder� ser aferido depois que todos os processos passarem por todas as inst�ncias, algo que ningu�m consegue prever quando ocorrer�, tamanha � a lerdeza da Justi�a brasileira.
QUALIDADE DAS PROVAS
A Lava Jato conseguiu romper com o c�rculo vicioso de processos contra criminosos de colarinho branco, que acabavam impunes, porque mudou a qualidade das provas, segundo o procurador Roberson Pozzobon, integrante da for�a-tarefa da opera��o em Curitiba.
"H� um novo paradigma probat�rio na Lava Jato. Focamos bastante na produ��o de provas e deixamos os r�us perplexos com a qualidade do material."
Antes da Lava Jato, avalia Pozzobon, as a��es discutiam quest�es processuais, como a legalidade da dura��o de grampos telef�nicos ou a validade de um documento vindo da Su��a, e n�o o crime propriamente dito.
Como as obras investigadas da Petrobras eram complexas e seu eventual superfaturamento poderia levar anos para ser provado, a for�a-tarefa preferiu focar em tr�s crimes: corrup��o, lavagem de dinheiro e organiza��o criminosa.
Houve tamb�m busca de provas em outros pa�ses por meio de coopera��o internacional, uma via r�pida se comparada ao m�todo anterior, de cartas rogat�rias, que demoravam anos para ter resposta por causa de quest�es burocr�ticas.
Foi essa mudan�a que propiciou a condena��o de executivos das empreiteiras e de pol�ticos, na vis�o da for�a-tarefa.
Uma das ideias centrais dos procuradores era de que havia um desequil�brio entre as garantias que a Justi�a oferecia ao r�u e aquelas que cabiam � sociedade. Um texto do procurador Douglas Fischer, que atuou na Lava Jato em Bras�lia, apontava esse desequil�brio e serviu de guia te�rico dos procuradores.
Como a balan�a pendia para os poderosos, que podiam contratar bons advogados, o resultado era a impunidade.
S� 3% dos crimes de corrup��o eram punidos, diz pesquisa de Carlos Higino de Alencar e Ivo Gico Jr.
Segundo Pozzobon e Fischer, a Lava Jato mudou parcialmente esse cen�rio. "A Lava Jato mostra que, em determinados casos, � poss�vel reverter a impunidade, mas a regra do crime de colarinho branco continua sendo a falta de puni��o", diz Pozzobon.
Segundo ele, pode ter havido equ�vocos em tr�s anos e meio de investiga��o, mas n�o arbitrariedade e viola��o de direitos.
"N�o quero a viola��o de garantias. Se fiz�ssemos algo errado, a opera��o toda seria anulada", afirma Fischer. Ele diz defender o equil�brio entre a garantia do r�u e a garantia para a sociedade de que crimes ser�o punidos.
S�RIE
A s�rie "Direito P�s-Lava Jato", iniciada neste domingo (19), detalha as mudan�as causadas pela opera��o na pr�tica jur�dica.
Ser�o objeto de reportagens, entre outros temas, o impacto para a advocacia, as transforma��es ocorridas no Supremo Tribunal Federal, os novos acordos de coopera��o internacional, as inova��es na �rea de transpar�ncia e comunica��o e as "filiais" da opera��o pelo Brasil.
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