A esquerda que mais teve influência na história do Brasil é inseparável da democracia liberal. Essa esquerda surgiu e cresceu na luta contra a ditadura militar; foi fundamental na redemocratização e chegou ao poder graças à democracia que ajudou a aprofundar e aprimorar; defendeu na última década essa democracia contra os piores ataques que ela sofreu. Foi através de direitos civis e políticos que essa esquerda logrou garantir, aprofundar e ampliar direitos sociais e coletivos no Brasil. Pelo menos em seu próprio país, essa esquerda é fundamentalmente democrática.
Saliento isso para apontar a vergonhosa contradição em que hoje caem pessoas e grupos importantes dessa mesma esquerda, que ou lavam suas mãos diante da crise na Venezuela ou defendem abertamente o regime autoritário responsável por essa crise. Tudo indica que subjacente a essa contradição está uma oprobriosa versão contemporânea de uma velha doutrina da esquerda autoritária. Se um dia Stálin promoveu a ideia do "socialismo em um só país", essa esquerda brasileira, ao negar aos cidadãos de outros países latino-americanos direitos pelos quais tanto lutou e continua lutando no Brasil, parece seguir hoje uma doutrina não declarada que proponho chamar de democracia em um só país.
Mesmo se supormos, contra fortes indícios, que não houve fraude nas recentes eleições da Venezuela, é evidente que elas não foram democráticas. A imensa maioria dos venezuelanos no exterior —mais de 20% da população do país— foi impedida de votar. Dentro do território venezuelano, inúmeros cidadãos foram barrados dos lugares de votação, e líderes opositores tiveram candidaturas cassadas ou foram encarcerados. Há duas décadas o Executivo tem controlado os demais Poderes, e a sociedade civil e a imprensa têm sido cerceadas e censuradas. Com ou sem fraude, a brutal repressão aos manifestantes após as eleições escancarou mais ainda o caráter não democrático desse processo eleitoral.
Eleições desse tipo —sem competição, sem instituições independentes, sem direitos civis e sem liberdade de expressão— não são apenas não democráticas. Elas são antidemocráticas: servem para justificar e perpetuar ditaduras dando-lhes uma máscara de legitimidade. Qualquer pessoa que conheça a ditadura militar brasileira deveria saber isso. Assim, defender ou referendar a farsa chavista contradiz muito do melhor que a esquerda brasileira representa para o continente e para todo o mundo.
Mas essa contradição não concerne apenas a direitos civis e políticos. Longe de ter propiciado direitos sociais e coletivos, o regime chavista realizou algo que Marx e Engels já alertavam que um socialismo desavisado poderia fazer: socializar a miséria. Isso talvez seja mais evidente nos 7 milhões de venezuelanos que fugiram da pobreza gerada pelo chavismo, provenientes sobretudo dos grupos em nome das quais ele reprime e oprime os que o criticam: pobres, negros, indígenas, trabalhadores rurais, moradores de favelas e periferias. Aliás, pessoas desses mesmos grupos sofrem hoje violência física quando protestam contra a farsa eleitoral.
O regime chavista produziu efeitos que são o oposto do propalado pelos slogans de alguns de seus defensores brasileiros. O que há hoje na Venezuela, ao contrário dos lemas "sem medo de ser feliz" e "fome zero", é mais medo e mais fome do que nunca; em vez de um "país de todos" e um "país sem pobreza", há um país de poucos, para poucos e repleto de miséria; ao invés de "união e reconstrução", há divisão e destruição. O governo venezuelano só pode ser defendido por brasileiros que veem em seus vizinhos não pessoas reais, mas meras metáforas para seus próprios dilemas, ou seja, por quem pensa que seus compatriotas são os únicos latino-americanos que merecem liberdade e dignidade. Eis a atrocidade desumana da ideia da democracia em um só país.
TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.