Síndrome do carro na frente dos bois

Para Chucho Navarro, a canção 'Rayito de Luna' mantinha o mistério e o terror de sua primeira noite na cidade

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Lucrecia Zappi

Escritora, tradutora e jornalista, é autora dos romances "Onça Preta", "Acre" e "Degelo". Prepara novo livro para 2025.

Fechou os olhos e voltou a abrir. Imóvel, achou que dormia, tentando ignorar o cheiro de umidade do quarto minúsculo. Puxou o lençol até o queixo e improvisou um travesseiro com os dois punhos sob a orelha, mas voltou ao teto, reparando na rachadura trêmula, viva e sorrateira, desde o canto alto esquerdo da porta até a cortina de poucas dobras de um azul intenso sintético cobrindo parte da janela.

Chucho não entendia como tinha conseguido chegar na cidade grande, para ele sinônimo de conquistar o mundo, mas o dinheiro não era suficiente para três diárias. Tinha que arrumar trabalho. Chucho sofria da síndrome do carro na frente dos bois, brincaram seus companheiros músicos, porque qualquer bico seria mais realista do que viver da música.

Foto tirada na cidade do Kuwait mostra uma vista da lua crescente - Yasser Al-Zayyat/AFP

Era cantor, compunha e tocava bem o violão, mas a viagem de dois dias de ônibus terminava ali, em um quarto praticamente vazio. Já fora pedreiro e não tinha frescura. Com um pouco de argamassa resolveria o céu de cimento rachado, o caminho dos insones. Tinha toda a noite pela frente e já desconfiava que em algumas horas voltaria a ser pedreiro.

Estava só, a não ser pelo reflexo de um espelho pequeno ao fundo da habitação, que engrandecia a penumbra e trazia figuras dançantes. Eram imagens indecifráveis, produzidas pelo brilho dos carros que passavam na rua. Para Chucho representavam uma plateia nem tão imaginária assim, talvez fosse o sinal de que seu talento seria reconhecido.

Deitado de lado no colchão magro da água furtada, ele próprio era um espectador atordoado, assustado com o peso de uma metrópole. Foi quando notou um clarão atrás da cortina. Surpreendeu-lhe que a lua o acompanhasse tão tranquila, como no vilarejo de onde veio, e sua presença serviu para apaziguar um pouco a ansiedade. Considerou se ela estava na fase minguante ou cheia, e concluiu que não sabia nada daquilo. O céu era uma rachadura.

Lua, disse ele, mas não soube como seguir. Era letrista. Tirou o violão da caixa. Lua, voltou a chamar, atraindo para si o conforto de casa e o perigo sedutor do luar. Chucho era uma criatura da noite. Sentou-se na cama para responder a velha questão da mãe que já vinha decepcionada, se o filho traria sustento aos seus.

Lamentou não poder enviar dinheiro, a não ser que tivesse sorte. E sorte, para ele, talvez fosse vender o violão a bom preço, depois de tocar de mesa em mesa. Puxou um acorde com delicadeza. Nada mais saía de sua boca e Chucho era capaz de dizer verdades surpreendentes.

A falta da namorada o fez pegar o caderninho amarrotado que mantinha no bolso da camisa. Quis produzir uma carta. Pegou o lápis, molhou a ponta do grafite na boca e escreveu. "Como um raiozinho de lua, entre a selva adormecida, assim a luz dos seus olhos iluminou", escreveu.

Sob a luz mais antiga do mundo, brotava-lhe um sentimento primitivo. Chucho sentiu-se um explorador, como "Na Colônia Penal" de Franz Kafka, de quem provavelmente nunca tinha ouvido falar. Esse viajante chegava a uma paisagem lunar, ou a uma terra de ninguém, onde lhe esperavam pessoas cruéis que o iriam julgar, apesar do calor da lua, a mesma que lhe trouxe conforto nas noites da infância.

Como Kafka, Chucho também era insone, indeciso, um aterrorizado pela vida. Era um mestre moderno, buscando a compreensão do mundo em sua lucidez obscura. Um aforismo de Kafka indica os inúmeros esconderijos na vida, apesar de a fuga ser apenas uma. Chucho com seu violão e o caderninho, naquele momento, buscava entender se fugia de seu destino e passaria o resto de seus dias escondendo-se em águas furtadas como aquela. Talvez já tivesse nascido condenado.

Por sorte, a lua era sua amiga. Brilhava como seus olhos quebradiços de sono. "Raiozinho de lua, brilha na selva sonolenta. Raiozinho de lua branca, que ilumina meu caminho, assim como seu amor em minha vida, a verdade do meu destino." Chucho molhou de novo o lápis na boca. "Você deu luz ao meu caminho, em minha noite sem fortuna, iluminando meu céu como um raio, clarão de lua."

As figuras no espelho voltaram a cintilar. Chegara de noite e as imagens fantasmagóricas o recordavam o postal, a única impressão que tivera da cidade, apesar da lembrança agora lhe parecer menos colorida. A memória, pensou, deve ser um exercício da imaginação.

O brilho não ia embora e já estava bem tarde. Ou cedo. Irritado, Chucho desejou um cubículo sem janela. Até lhe sairia mais barato. Apreensivo pelo dia seguinte, decidiu puxar a cortina, mas antes, pensou em outra frase. "Você deu luz ao caminho em minha noite sem fortuna, iluminando meu céu com um raiozinho de luar." Anotou e repetiu, murmurando acompanhado de seu violão.

Ao se aproximar da janela, percebeu que o vidro era fixo, sem abertura. Aquilo bloqueava sua aproximação com o satélite. Buscou-o, em vão. Inclinou-se em todos os ângulos possíveis, e se alguém o observasse de fora, pensaria que buscava um esconderijo de lagartixa, e os esconderijos poderiam ser tantos na verticalidade de um vidro, sem encontrar sequer uma fuga. Encheu a superfície de marcas digitais e de borrões do rosto arrastado.

De repente, achou que o clarão vinha de um poste de luz. Pior, de uma placa de neon do outro lado da rua. Truques da cidade, sorriu rendido e exausto. Releu o que escrevera no caderninho e o guardou com cerimônia no bolso do paletó velho. Na última tentativa desesperada de tapar a luz, levou o lençol à janela. Então ele viu uma luazinha bem pequena, que surgia por trás de um prédio.

Era de manhã quando Chucho finalmente adormeceu. Sonhou consigo mesmo, caminhando na lua, prestes a ser um músico famoso. De repente, viu-se mais longe, em um futuro distante, e a perspectiva de revisitar uma obra-prima antiga encheu-lhe de medo. Acordou gemendo. Os primeiros acordes já estavam feitos, mas a melodia veio depois.

"Rayito de Luna" se tornaria um dos boleros mais conhecidos de todos os tempos. Para Chucho Navarro, um dos criadores do trio Los Panchos, a canção mantinha o mistério e o terror daquela primeira noite na cidade. Era sobre a ilusão de um raio de lua, a separação de pessoas queridas e o homem solitário em um lugar desconhecido. Era também sobre o carro e os bois.

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