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Virgílio Afonso da Silva

Chamar as Forças Armadas é ideia absurda

Nenhum país democrático no mundo consideraria convocá-las como 'poder moderador'

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Virgílio Afonso da Silva

Professor titular de direito constitucional da USP, é autor de “Direito Constitucional Brasileiro” (Edusp)

Escolha dez países democráticos e faça a seguinte pergunta para as pessoas que mais entendem de direito constitucional em cada um deles: "O que o Legislativo deve fazer se entender que o Judiciário invadiu suas competências?". Sabe quantas responderão "o Legislativo deve chamar as Forças Armadas"? Nenhuma. E, se você sugerir essa possibilidade, as reações possíveis iriam de um incrédulo "as Forças Armadas!?" a respostas mais diretas como "mas que ideia absurda!".

Ives Gandra da Silva Martins não acha a ideia absurda. Ao contrário, ele entende que o recurso às Forças Armadas é a resposta mais plausível. Contra ele estão quase todos os constitucionalistas do Brasil e também o STF. O debate é sempre grandiloquente. E, talvez por isso mesmo, não convence ninguém. Quem já estava de um lado, lá permanece. E quem ainda não tinha posição definida tem dificuldade em entender o palavrório.

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Apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) fazem manifestações antidemocráticas em frente ao QG do Exército, em Brasília, em dezembro de 2022 - Pedro Ladeira/Folhapress - Folhapress

Vou tentar um caminho diferente aqui. Minha proposta é fazer perguntas básicas, cujas respostas são capazes de mostrar, até mesmo para não especialistas, como determinadas teses são simplesmente absurdas.

Imagine a seguinte situação: o presidente do Congresso, convencido de que uma decisão do STF invadiu suas competências, solicita o auxílio das Forças Armadas. Primeira pergunta: as Forças Armadas teriam que atender ao pedido? Se sim, a conclusão é simples: quem pede tem sempre razão. Não parece ser um bom critério de interpretação constitucional. Tentemos outro caminho.

Suponha então que as Forças Armadas possam rejeitar o pedido (por entender que o Congresso não tem razão). Mas, nesse caso, quem decide? Um general especialista em direito constitucional? Ou o presidente da República, já que ele é o comandante das Forças Armadas? Mas a Constituição não atribui ao presidente a tarefa de mediar conflitos entre Poderes. Novo beco sem saída.

Vamos ignorar essas dificuldades e tentar ir em frente. Como poderia ser a ação das Forças Armadas nesse contexto? Alguém (um general, talvez) daria uma passadinha no STF para tentar, educadamente, convencer os ministros a mudarem de ideia?

E se os ministros do STF mantiverem a sua decisão? Parece haver duas opções. A primeira é dar meia-volta e comunicar ao Congresso que a ação não deu certo. A segunda? A segunda é chamar a tropa, invadir o Supremo, prender os ministros, rasgar a decisão e sabe-se lá o que mais.

Desnecessário dizer que nenhuma delas faz sentido em um Estado democrático de Direito. Mas Gandra poderia insistir que, mesmo que os caminhos descritos pareçam estapafúrdios, é a Constituição que autoriza a intervenção das Forças Armadas. Portanto, não culpe o jurista, culpe a Constituição.

Aí entra em cena o art. 142, que define três tarefas para as Forças Armadas: (1) defesa da Pátria; (2) garantia dos poderes constitucionais; e (3) garantia da lei e da ordem.

Gandra vê na terceira tarefa ("garantia da lei e da ordem") a autorização para as Forças Armadas agirem como "poder moderador" para que, se necessário, o Congresso possa descumprir decisões do STF.

Mas será que é isso mesmo o que "garantia da lei e da ordem" significa? Vamos consultar a lei que regula o emprego das Forças Armadas (LC 97/1999). Ela diz algo completamente distinto, ao prever que a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem ocorrerá quando estiverem "esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio". Nenhum sinal de poder moderador, muito menos de uso das Forças Armadas para intermediar divergências de opiniões entre o Congresso e o STF.

Mas, claro, pode ser que a lei esteja errada e Gandra esteja certo. Vamos então voltar à Constituição. Nem sempre é fácil interpretá-la, mas, para o art. 142, há um critério tão simples que chega a ser constrangedor que ninguém pense nele como um primeiro passo interpretativo. O critério é o seguinte: em qualquer das três tarefas definidas pelo art. 142, a atuação das Forças Armadas só se justificaria em situações que possam demandar o uso da força. Se necessário, armada. Propostas que não passam nem mesmo nesse simplório teste são suspeitas. Fim da linha para as interpretações que veem as Forças Armadas como um poder moderador.

Ives Gandra tem dito que distorceram o que ele escreveu. Pode ser. Mas alguém que conhece a turbulenta história constitucional do Brasil e, apesar disso, insiste em defender que divergências estritamente jurídicas e políticas entre os Poderes da República devem ser solucionadas pela intervenção de uma instituição caracterizada pelo uso da força (armada, se necessário) não deveria ficar surpreso que suas ideias sejam usadas para tentar justificar golpes de Estado.

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