Há dez anos, o Brasil se consolidou como destaque internacional em direitos digitais ao aprovar o Marco Civil da Internet, lei que define o modelo de rede que temos hoje.
Como relator do projeto na Câmara dos Deputados, vivenciei intensos debates em torno de seus pilares: liberdade de expressão, direitos individuais no mundo digital e neutralidade da rede. Agora, temos a oportunidade de reforçar o compromisso do Brasil com a internet aberta a partir de um processo democrático.
Em 15 de janeiro, a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) abriu nova consulta para discutir, entre outros temas, a possível criação de uma cobrança extra pelo uso da infraestrutura de internet, conhecida como "network fee", ou taxa de rede.
A ideia não é nova e acumula reveses. Na Europa, mais de 400 organizações se manifestaram contrariamente à medida numa ampla consulta pública. Em novembro, a Bélgica rejeitou a proposta de vez.
Na Coreia do Sul, único país em que a cobrança foi de alguma forma implantada, os resultados são desastrosos: o preço da conexão subiu, a qualidade caiu e empresas anunciaram a saída do país.
Mas, se a ideia é tão ruim, por que cogitá-la no Brasil?
A taxa é defendida apenas por algumas gigantes das telecomunicações, que se beneficiariam economicamente. Elas argumentam que provedores de conteúdo e aplicações, como aplicativos, serviços de streaming, redes sociais armazenamento (cloud), sobrecarregam a internet e, portanto, parte dos custos deveria ser repassada a eles.
O argumento não se sustenta. Faltam evidências de que o aumento de tráfego coloque em risco a infraestrutura, como destacou recentemente o colegiado europeu de reguladores de telecomunicações.
Os provedores de conteúdos e serviços, na verdade, contribuem para o modelo de negócios das teles.
Afinal, os consumidores pagam pela conexão justamente para poder acessar o que a internet tem a oferecer —os conteúdos. E a conta não é baixa. Um brasileiro que ganha o salário mínimo precisa trabalhar 353 minutos (quase 6 horas) para ter acesso ao mais básico dos planos de banda larga —7 vezes mais que um trabalhador americano, segundo o estudo Digital Quality of Life, da empresa de cibersegurança Surfshark.
A taxa de rede seria uma cobrança dupla por um mesmo serviço: primeiro cobra-se o consumidor, depois os provedores de conteúdos e aplicações.
Os defensores da proposta argumentam que só grandes empresas de tecnologia sentiriam o impacto, o que tampouco é verdade. Em uma sociedade cada vez mais conectada, qualquer serviço intensivo em dados poderá ser obrigado a pagar a taxa —e eles estão por toda parte.
Tome-se o exemplo do setor de medicina digital, que se popularizou na pandemia e usa cada vez mais dados para o diagnóstico e tratamento de doenças. Ou serviços de educação a distância, que facilitam o acesso de milhões de brasileiros à capacitação.
O impacto da taxa seria generalizado, e o consumidor sofreria seus reflexos mesmo que indiretamente. Para além do efeito no bolso, a taxa de rede criaria uma internet dividida em classes, algo incompatível com a neutralidade da rede, uma conquista do Marco Civil da Internet.
Num momento em que discutimos o avanço de tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial, o foco deveria estar em preparar a sociedade para prosperar num mundo mais digitalizado. Ao seguir o exemplo de países desenvolvidos e se afastar da ideia de criar uma nova taxa, o Brasil tem a chance de continuar garantindo uma internet aberta e livre para todos.
TENDÊNCIAS / DEBATES
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